I – Demonstrado que o condutor do veículo praticou um acto ilícito contra-ordenacional e que a norma violada se destinou a proteger o interesse, em concreto, ofendido, estabelece-se uma presunção “juris tantum” de que esse mesmo condutor agiu com culpa no acidente, cabendo-lhe elidir essa presunção por contra-prova demonstrando facto justificativo ou factos que façam criar a dúvida no espírito do julgador. II – Para efeito do exercício do direito de regresso contra o segurado alcoolizado, não basta que, em abstracto, a influência alcoólica do condutor seja adequada a desencadear o efeito danoso, é necessário que a seguradora demonstre que, atentas as circunstâncias do caso concreto, o dano resultou do estado ébrio do condutor. III – Dadas as dificuldades da prova deste nexo de causalidade, é admissível o recurso a presunções judiciais. IV – Na formação do juízo presuntivo, manda a prudência e o senso jurídico que a intelecção das ilações atenda à fundamentação das respostas à matéria da base instrutória sempre que dela se colha contributo sério e seguro para o esclarecimento das circunstâncias relevantes, de modo a evitar qualquer contradição do tribunal entre a sua convicção formada no momento das respostas à matéria de facto e a convicção subsequentemente plasmada na sentença.
Proc. nº 675/08.2TBAMT.P1 – 3ª Secção (apelação) Tribunal Judicial de Amarante Relator: Filipe Caroço Adj. Desemb. Teresa Santos Adj. Desemb. Maria Amália Santos Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. B………. – COMPANHIA DE SEGUROS S.A., pessoa colectiva nº ………, com sede na Rua ………., .., …. – … Lisboa, intentou acção declarativa sob a forma de processo ordinário, contra C………., residente no ………. em ………., …. Marco de Canaveses, seu segurado, alegando, no essencial, que este, no exercício da condução do veículo seguro, por desatenção e velocidade inadequada, não conseguiu controlar a direcção do automóvel que passou a transitar pela via de rodagem destinada para a marcha dos veículos em direcção oposta à sua, indo embater num poste de electricidade situado no outro lado da estrada. Nas circunstâncias do acidente o R. estava sob influência alcoólica, com uma TAS de 0,70 g/l que lhe reduziu as capacidades de percepção do espaço físico e de avaliação das distâncias, causando-lhe também lentidão na reacção. Além do dano causado no poste de iluminação que o R. derrubou e que a A. reparou em favor da D………., aquela queda provocou danos num veículo de terceiro e lesões corporais numa das duas passageiras então ali transportadas, tendo a demandante suportado as despesas da reparação automóvel e os prejuízos sofridos pela dita ocupante do veículo. Invocando o direito de regresso contra o segurado em virtude da TAS[1] do R. ter tido influência directa na sua actuação, a A. pediu que se julgue a acção procedente e se condene o R. a apagar-lhe a quantia de € 38.800,13, corresponde à soma de todos os montantes pecuniários indemnizatórios que pagou, acrescida dos juros vencidos contados às taxas legais “desde a interpelação”, e dos juros vincendos até integral e efectivo pagamento. Citado, o R. contestou a acção impugnando parcialmente os factos e apresentando uma versão diferente relativa às circunstâncias do acidente. Além do mais, alegou que o embate não foi causa exclusiva do derrube do poste por este se encontrar em mau estado, inseguro e a sua TAS também resultou de potenciação causada por comprimidos que o R. tomava na data dos factos. Só por si, o álcool que o R. ingeriu “não lhe reduziu as capacidades de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias, nem era susceptível de provocar tal fim”. Nem tão-pouco lhe perturbou os reflexos e a coordenação motora. Agiu sem culpa, acrescenta. Conclui no sentido de que se julgue a acção improcedente, com absolvição do R. do pedido. Teve lugar a audiência de julgamento e discussão da causa que culminou com a prolação fundamentada das respostas à base instrutória e a que se seguiu a sentença com a respectiva fundamentação jurídica, e onde se decidiu a causa nos seguintes termos: «Nesta conformidade, julgo a presente acção procedente por provada e em consequência condeno o Réu C………. a pagar à Autora “B………. – Companhia de Seguros, S.A.” a quantia de 38.800,13 (trinta e oito mil oitocentos euros e treze cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a partir de 04 de Abril de 2007 até integral e efectivo pagamento. Custas pelo Réu.» Inconformado, recorreu o R. de apelação, recurso que foi admitido e ao qual a R. respondeu, em contra-alegações. Na apelação, o A. formulou as seguintes conclusões: A) O tribunal “a quo” julgou procedente a acção proposta pela autora seguradora por entender que não só em abstracto, como também em concreto, o acidente automóvel derivou da condução automóvel empreendida pelo réu sob o efeito do álcool. B) Porém, da matéria dada como provada não resulta que, conforme alegado pela autora, o acidente deve-se exclusivamente ao réu, por não ter actuado com a diligência necessária à execução da manobra em virtude de conduzir sob à influência do álcool. C) Com efeito, face a factualidade provada não é possível determinar a actuação culposa do réu na produção do acidente, para além do risco inerente à condução do veículo seguro, nem que o embate no poste foi causado pelo facto de o condutor seguir alcoolizado. D) Ao decidir como decidiu, o tribunal “a quo” presumiu da taxa de álcool ilegal a condução ilícita quando a lei exige um nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia e a condução que foi causa do acidente. E) Pelas presunções naturais integra-se ou complementa-se a matéria de facto provada, mas não se supre a falta de prova nem é meio de modificar a factualidade provada. F) Pelo que ao aplicar a lei como aplicou, o tribunal “a quo” violou o artigo 19.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.» Terminou no sentido de ser concedido provimento ao recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida. Nas contra-alegações, a A. apresentou as seguintes conclusões: «1. O Recorrente não concorda com a douta sentença proferida pelo Mm.º Juiz “ a quo” na parte em que deu como provados os factos constantes nas alíneas K, L, M e N da sentença - pontos 10 a 13º da resposta à base instrutória - porquanto, entende que não existem provas suficientes para o tribunal “a quo” ter dado a resposta que deu aos referidos quesitos; 2. A ora Recorrente[2] alegou os factos constitutivos da existência do nexo de causalidade que entendeu existir entre o acidente e a taxa de álcool apresentada pelo Recorrente; 3. Nomeadamente, a Recorrente alegou que: “No momento do acidente, o réu conduzia sob a influência do álcool, apresentando uma taxa de alcoolemia no sangue de 0,70 g/l” (artigo 19º da Petição Inicial e 10º da Base Instrutória); 4. A Recorrente alegou também que “O álcool que o réu ingeriu reduziu-lhe as capacidades de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias” (artigo 20º da Petição Inicial e 11º da Base Instrutória); 5. A Recorrente alegou ainda que o álcool “Causou-lhe lentidão na capacidade de reacção” (artigo 21º da Petição Inicial e 12º da Base Instrutória); 6. E “Perturbou-lhe os reflexos e a coordenação motora” (artigo 22º da Petição Inicial e 13º da Base Instrutória); 7. O Tribunal “a quo” deu como provados os seguintes factos: 8. “L – A taxa de alcoolemia no sangue referida no ponto anterior afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias do Réu – resposta ao ponto 11º da base instrutória.”; 9. “M – Essa taxa afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de reacção do Réu – resposta ao ponto 12º da base instrutória.”; 10. “N – Perturbou-lhe, em grau que não foi possível apurar, os reflexos e a coordenação motora - resposta ao ponto 13º da base instrutória.”; 11. Ao dar como assentes estes factos o Tribunal deu cumprimento ao regime previsto ao artigo 484º do Código do Processo Civil; 12. Mesmo que assim não fosse, o momento adequado para reagir contra a selecção da meteria de facto não é com a decisão do recurso final; 13. Caso não concordasse com a selecção da matéria de facto o Recorrente deveria ter dela reclamado nos termos do número 2 do artigo 511º do Código do Processo Civil; 14. Face aos factos concretos da dinâmica do acidente retira-se que efectivamente a condução do Recorrente foi influenciada pela taxa de álcool apresentada no sangue; 15. O Recorrente alegou que o piso tinha terra em virtude dos trabalhos de terraplanagem que alegadamente decorriam no local do acidente não tendo, no entanto, logrado fazer prova do que alegou; 16. No caso da inobservância de leis ou regulamentos regendo a circulação rodoviária presume-se a falta de diligência, e consequente existência de culpa do infractor na produção dos danos decorrentes dessa mesma inobservância, permitindo assim a dispensa da concreta e completa comprovação de tal falta de diligência; 17. O Recorrente não logrou fazer prova da existência de qualquer facto que o legitimasse a actuar da forma como actuou – quando era sobre este que incidia o ónus de alegar e provar da existência de um facto atenuante da sua culpa; 18. O Tribunal “a quo” pode retirar ilações ou conclusões lógicas da matéria de facto dada como apurada, nomeadamente da dinâmica de todo o acidente entre outros elementos: a perda do domínio sobre a viatura que o Réu conduzia ao ponto de ter invadido a hemi-faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha, em cuja berma foi embater num poste de iluminação pública, provocando a sua queda em cima do veículo UQ; 19. O nexo de causalidade entre o álcool e o acidente tem total apoio na matéria julgada como provada; 20. O Tribunal “a quo”, e bem, partiu da existência de um facto concreto conhecido, para afirmar outro que a experiência da vida, a normalidade e a lógica permite inferir daquele, concluindo pela existência de um nexo de causalidade entre o álcool ingerido e o acidente – A forma como todo o acidente ocorreu – a dinâmica do sinistro – apenas é explicável pelo consumo de álcool apresentado pelo Recorrente; 21. Assim, andou bem o Tribunal a “quo” a julgar como provados os factos constantes dos artigos 10º a 13º da base instrutória; 22. O Tribunal “a quo” decidiu, e bem, segundo a sua livre convicção com total respeito pelas regras da experiência e a livre convicção do julgador.» Defendeu, assim, a improcedência do recurso, com confirmação da decisão.*Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.*II. As questões a decidir --- excepção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação do R. recorrente (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto). São duas, a saber: 1- Se há culpa do R. na eclosão do acidente; e 2- Se há nexo causal relevante entre a condução que o R. fazia sob a influência do álcool e o despiste, com atravessamento da hemi-faixa destinada ao sentido de trânsito contrário e embate do veículo conduzido pelo R. no poste da D………..*III. Os factos dados como provados na acção A- A Autora é uma sociedade que se dedica à actividade seguradora. B- Por contrato de seguro celebrado entre Autora e Réu, este transferiu para a Autora a responsabilidade civil decorrente dos acidentes causados pelo automóvel com a matrícula ..-..-XD. C- À data do acidente o contrato de seguro encontrava-se válido e eficaz. D- No dia 25 de Fevereiro de 2006, o Réu conduzia o veículo com a matrícula ..-..-XD pela Rua ………., no sentido ………./……….. E- O troço da via em que se verificou o acidente é uma curva, pouco acentuada, com boa visibilidade. F- O “XD” foi embater no poste de electricidade existente na berma da faixa de rodagem no sentido ………./……….. G- No momento do acidente seguiam como passageiros do veículo “UQ” E………. e F……….. H- A faixa de rodagem é asfaltada e o piso apresentava-se em bom estado de conservação – resposta ao ponto 2º da base instrutória. I- O Réu circulava dentro de uma localidade – resposta ao ponto 3º da base instrutória. J- No seguimento do embate referido em F), o poste de iluminação caiu em cima do veículo com a matrícula ..-..-UQ – resposta ao ponto 9º da base instrutória. K- No momento do acidente o Réu conduzia sob a influência do álcool, apresentando uma taxa de alcoolemia no sangue de 0,70 g/l – resposta ao ponto 10º da base instrutória. L- A taxa de alcoolemia no sangue referida no ponto anterior afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias do Réu – resposta ao ponto 11º da base instrutória. M- Essa taxa afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de reacção do Réu – resposta ao ponto 12º da base instrutória. N- Perturbou-lhe, em grau que não foi de todo possível apurar, os reflexos e a coordenação motora – resposta ao ponto 13º da base instrutória. O- Em consequência directa do acidente E………. fracturou os dois braços – resposta ao ponto 14º da base instrutória. P- Pelo que ficou impossibilitada de prestar quaisquer serviços e de trabalhar pelo período de quatro meses – resposta ao ponto 15º da base instrutória. Q- E foi obrigada a contratar uma pessoa para a ajudar no dia-a-dia – resposta ao ponto 16º da base instrutória. R- A 30 de Marco de 2007, a Autora pagou a E……… o montante de 26.000,00 Euros para indemnização pelos danos sofridos em consequência do acidente – resposta ao ponto 17º da base instrutória. S- E………. foi obrigada a deslocar-se em táxi para o Hospital para receber tratamento – resposta ao ponto 18º da base instrutória. T- A 28 de Abril de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 403,53 Euros a título de reembolso por despesas por esta suportadas em consequência do acidente – resposta ao ponto 19º da base instrutória. U- A 03 de Maio de 2006, a Autora pagou a E………. o montante de 151,97 Euros a título de reembolso por despesas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente a título de transporte e alimentação – resposta ao ponto 20º da base instrutória. V- A 01 de Junho de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 726,42 Euros, sendo que dessa quantia 226,42 Euros eram referentes a deslocações em táxi e 500,00 Euros respeitantes a perda de salários em consequência do referido acidente – resposta ao ponto 21º da base instrutória. W- A 29 de Maio de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 342,25 Euros a título de reembolso por despesas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com medicamentos e fisioterapia – resposta ao ponto 22º da base instrutória. Y- A 31 de Outubro de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 1.000,00 Euros a título de indemnização por perda de salário em consequência do acidente – resposta ao ponto 23º da base instrutória. X- A 19 de Junho de 2006, a Autora pagou a E………. o montante de 256,60 Euros a título de reembolso por despesas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com transporte, alimentação e fisioterapia – resposta ao ponto 24º da base instrutória. Z- Em 09 de Agosto de 2006, a Autora pagou a E………. o montante de 529,14 Euros, a título de reembolso por despesas diversas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com transporte, alimentação e fisioterapia – resposta ao ponto 25º da base instrutória. AA- A 07 de Julho de 2006, a Autora pagou a E………. o montante de 522,31 Euros, a título de reembolso por despesas diversas por esta suportadas em consequência do acidente – resposta ao ponto 26º da base instrutória. AB- A 29 de Setembro de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 489,28 Euros a título de reembolso por despesas diversas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com transporte, alimentação e fisioterapia – resposta ao ponto 27º da base instrutória. AC- A 17 de Outubro de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 531,80 Euros a título de reembolso por despesas diversas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com transportes e fisioterapia – resposta ao ponto 28º da base instrutória. AD- A 31 de Outubro de 2006, a Autora pagou a E………. o montante de 481,61 Euros a título de reembolso por despesas diversas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com transporte, alimentação e fisioterapia – resposta ao ponto 29º da base instrutória. AE- Em consequência do acidente o “UQ” sofreu os danos descritos na factura de fls. 60 a 62, aqui dada como reproduzida, no valor de 6.255,06 Euros – resposta ao ponto 30º da base instrutória. AF- A 30 de Junho de 2006 a Autora pagou à sociedade “G……….” o montante de 6.255,06 Euros para reparação dos danos provocados no veículo “UQ” – resposta ao ponto 31º da base instrutória. AG- A 22 de Dezembro de 2006 a Autora pagou à D………. o montante de 1.110,16 Euros para indemnização do dano provocado no poste de electricidade no seguimento do acidente – resposta ao ponto 32º da base instrutória. AH- A 04 de Abril de 2007, a Autora interpelou o Réu para pagamento do montante em dívida – resposta ao ponto 33º da base instrutória. AI- Até à presente data o Réu nada pagou à Autora – resposta ao ponto 34º da base instrutória. AJ- A Autora despendeu as quantias discriminadas em R a AG em consequência do acidente – resposta ao ponto 35º da base instrutória. AK- O piso de ambas as faixas de rodagem encontrava-se molhado – resposta ao ponto 36º da base instrutória.*IV. O recorrente conformou-se com a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo, pelo que, nada justificando também a sua modificação nos termos do art.º 712º do Código de Processo Civil, as questões a apreciar respeitam exclusivamente ao enquadramento jurídico dos factos provados. 1ª questão: a culpa do R. Sabido que a culpa --- a par do facto ilícito, do dano e da existência de nexo causal entre o facto e o dano --- constitui um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos e da consequente obrigação de indemnizar (art.º 483º e seg.s do Código Civil[3]), é mister rever se, no caso, tal requisito se verifica. Na conclusão C) --- síntese do alegado sob os art.ºs 22º a 24º da apelação --- alega, o recorrente, que “face à factualidade provada não é possível determinar a actuação culposa do réu na produção do acidente, para além do risco inerente à condução do veículo seguro…”. O art.º 487º, nº 2, consagra a apreciação da culpa em abstracto, princípio segundo o qual a culpa deve ser apreciada em face das circunstâncias de cada caso, pela diligência de um bom pai de família ou homem médio --- in abstracto --- e não segundo a diligência habitual do autor do facto ilícito que é a apreciação da culpa em concreto[4]. Com a expressão “bom pai de família” quer-se visar o homem de diligência normal, encarado não apenas no âmbito das relações familiares, mas nos vários campos de actuação. A referência a “circunstâncias de cada caso” significa que o próprio padrão a ter em conta varia em função de condicionalismos da hipótese e designadamente do tipo de actividade em causa. Para concluir se houve ou não culpa, deve-se conjecturar como o homem padrão teria agido dentro do condicionalismo concreto do caso[5]. O Prof. Galvão Telles[6] define a culpa como sendo a imputação psicológica de um resultado ilícito a uma pessoa em que não há previsão ou aceitação do resultado antijurídico. Se a culpa produz um evento contrário à lei e esse evento é psíquica ou moralmente imputável a certo indivíduo, diz-se que agiu com culpa. Esta não deixa de existir pelo facto de o agente se ter convencido de que o resultado não se produzia, não sendo no entanto razoável essa sua confiança, fruto de inconsideração ou ligeireza (negligência consciente); ou nem sequer pensou na possibilidade do evento ilícito, que não previu porquanto deveria ter também procedido por forma a evitá-lo, usando da diligência adequada (negligência inconsciente). Em qualquer caso, faltando embora previsão ou aceitação do resultado antijurídico, existe omissão da diligência exigível. Nessa omissão consiste a mera culpa. Resumindo, agir com culpa significa a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do Direito, sendo que o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo[7]. Tal juízo assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor. É importante reter que, nos termos do nº 1 do referido art.º 487°, pertence ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção de culpa. Como a culpa constitui elemento integrante do direito à indemnização, é ao lesado que compete a prova da culpa do lesante. Tem-se entendido que nas acções de indemnização por facto ilícito, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, essa sua tarefa está aliviada com o recurso à chamada prova da primeira aparência (presunção simples). Em princípio procede com culpa o condutor que, em infracção aos preceitos estradais, causa dano a terceiro. Se a prova prima facie ou presunção judicial, produzida pelo lesado apontar no sentido da culpa do lesante, cabe a este o ónus da contra-prova, ou seja, caber-lhe-á a prova do facto justificativo ou de factos que façam criar a dúvida no espírito do julgador[8]. Isto não está sequer em contradição com o disposto no art.º 342°, que consagra um critério de normalidade no que respeita à repartição do ónus da prova, no sentido de que aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram, tendo a parte contrária de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos do direito.[9] Assim, a ocorrência, em termos objectivos, de uma situação que constitui contra-ordenação nos termos do Código da Estrada deve implicar presunção juris tantum de negligência do interveniente em acidente de viação. E, para além da falta de contra-prova, tal presunção deve ser afastada também nos casos em que a norma violada não se destine a proteger o interesse em concreto ofendido, uma vez que, nesse caso, não haverá causa adequada entre os danos e a violação daquela norma. Esta matéria foi proficientemente tratada na sentença recorrida ao caracterizar os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, resultando dali também muito claro que “conforme tem sido sustentado pela jurisprudência, em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de trânsito em que esteja subjacente uma contravenção estradal, existe uma presunção iuris tantum de negligência contra o autor da conduta contravencional”. Além de outros cita-se ali um acórdão desta Relação de 22.1.2009, Proc. nº 0837130, Relator José Ferraz, publicado in www.dgsi.pt. Aceitando, o recorrente, que praticou o acto ilícito contra-ordenacional qualificado na decisão recorrida ao abrigo dos art.ºs 3º, nº 2 e 13º, nº 2, do Código da Estrada aprovado pela Lei nº 114/94, de 3 de Maio, destinando-se a última das normas a proteger o interesse, em concreto, ofendido --- a não utilização da hemi-faixa da estrada à esquerda do veículo, destinada à circulação em sentido contrário, excepto quando necessário para mudar de direcção ou realizar uma ultrapassagem --- sempre deveria o R. ter demonstrado o motivo pelo qual, efectivamente, deixou a sua mão de trânsito, conduziu o veículo atravessando a hemi-faixa contrária, batendo depois num poste situado na berma do sentido de marcha contrário àquele em que seguia (al.s D a F dos factos provados). Como não resulta da matéria assente justificação para essa conduta contra-ordenacional, qualquer que seja o motivo, por o demandado o não ter demonstrado, e conformando-se ele com aqueles factos, temos como juridicamente inquestionável que não foi elidida a presunção (juris tantum) de culpa que sobre ele recaiu, devendo considerar-se culpado para efeitos de responsabilidade civil extracontratual, como muito bem se entendeu na sentença recorrida. Estão, pois, reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil por actos ilícitos em torno da conduta do R. com obrigação de indemnizar por parte da A. seguradora em razão do contrato de seguro relativo ao veículo ..-..-XD, que o R. conduzia. Bem andou a recorrida em assumir a obrigação e em reparar os prejuízos sofridos pelos lesados. É tempo passar à segunda questão. Terá a recorrida direito de regresso sobre o recorrente relativamente ao que pagou de indemnização aos lesados? O tribunal a quo decidiu-se pela afirmativa, enquanto o recorrente nega a verificação dos pressupostos necessários. É correcta a análise jurídica efectuada na sentença quanto aos fundamentos do direito de regresso. Mais discutível será o respectivo enquadramento jurídico das circunstâncias do caso sub judice. O art.º 19º, al. c), da Lei do Seguro Obrigatório, aprovada pelo Decreto-lei nº 522/85, de 31 de Dezembro,[10] prevê que, satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, além do mais ali expresso, “se tiver agido sob a influência do álcool”. Para a eventual responsabilização do recorrente sobrelevam, da sentença, os seguintes factos: «K- No momento do acidente o Réu conduzia sob a influência do álcool, apresentando uma taxa de alcoolemia no sangue de 0,70 g/l – resposta ao ponto 10º da base instrutória. L- A taxa de alcoolemia no sangue referida no ponto anterior afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias do Réu – resposta ao ponto 11º da base instrutória. M- Essa taxa afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de reacção do Réu – resposta ao ponto 12º da base instrutória. N- Perturbou-lhe, em grau que não foi de todo possível apurar, os reflexos e a coordenação motora – resposta ao ponto 13º da base instrutória. O- Em consequência directa do acidente E………. fracturou os dois braços – resposta ao ponto 14º da base instrutória.» A norma da alínea c), do artigo 19º, do DL 522/85, de 31/12, tem sido interpretada e aplicada de três maneiras diferentes, a saber: a) basta à seguradora provar que o condutor conduzia sob o efeito do álcool[11]; b) exige-se-lhe, para além daquela prova, a de que o álcool teve efeito na conduta concreta que deu causa ao acidente[12]; c) se a taxa de alcoolemia for superior à permitida por lei, aquele efeito deve presumir-se, por simples presunção de facto ou judicial[13]. Por acórdão uniformizador[14], o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência: «A alínea c) do artigo 19.° do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente». Esta interpretação mantém a sua força vinculativa dentro da ordem jurisdicional enquanto a norma interpretada mantiver a sua aplicabilidade, ou não for tirado outro acórdão uniformizador[15]. Com efeito, à luz daquele acórdão de uniformização de jurisprudência, em sede do direito de regresso previsto na alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, incumbe à seguradora o ónus da prova do nexo de causalidade entre a condução do segurado sob o efeito do álcool e a eclosão do acidente, no termos do art.º 342º, n.º 2. Cabe à seguradora demonstrar os factos que, segundo a norma substantiva aplicável --- o art.º 19º, al. c), do Decreto-Lei nº 522/85 --- servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido; os factos (constitutivos) correspondentes à realidade desenhada na norma material em que funda a sua pretensão. A seguradora que pretende exercer o direito de regresso contra o condutor alcoolizado terá, assim, de alegar e demonstrar[16]: a) que o acidente ocorreu por culpa desse condutor bem como todos os demais pressupostos da obrigação de indemnização a seu cargo (do lesante); b) que indemnizou o lesado; e c) que o acidente se verificou (ainda que não como causa exclusiva[17]) em virtude do condutor estar alcoolizado com uma TAS ilícita. Taxa ilícita é a superior ao máximo legalmente permitido por lei à data do acidente, ou seja, igual ou superior a 0,5 g/l de sangue[18], ainda que contra-ordenacional (não criminosa) nos termos do art.º 81º, nº 2, do Código da Estrada. Para estabelecer aquela causalidade não basta a alegação genérica dos malefícios da condução sob os efeitos do álcool, que assentam a qualquer condutor, mas factos relativos ao concreto condutor causador do acidente. Nem a conclusão por essa causalidade se pode bastar na verificação de uma TAS superior ao máximo legalmente permitido, uma vez que não se estabelece na lei uma tal presunção (ainda que contrariável pelo condutor). Como se refere no acórdão da Relação de Évora de 5.5.2005[19], não é exacto que no art.º 81º do Código Estrada tenha sido estabelecida qualquer presunção legal juris et de jure no sentido de que a partir do limite mínimo de 0,5 g/l o álcool influencia o condutor na sua actividade de condução. O que ali se tem em consideração é a experiência comum que o legislador tem em atenção, ao criminalizar determinadas condutas, proibindo os comportamentos de risco ou perigo, sem que tal se traduza porém numa presunção de resultado. Assim, no que tange ao direito de regresso da seguradora, há que ter em atenção o resultado danoso e o nexo de causalidade adequada entre o estado do condutor etilizado e o acidente produtor de tal resultado cujo ónus de prova compete àquela seguradora. A causa juridicamente relevante de um dano é --- de acordo com a doutrina da causalidade adequada adoptada pelo artigo 563º --- aquela que, em abstracto, se revele adequada ou apropriada à produção desse dano, segundo regras da experiência comum ou conhecidas do lesante. «Não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado. … Sendo assim, parece razoável que o agente só responda pelos resultados, para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária». Assim, não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz adequada desse efeito[20]. Desta feita, não basta que, em abstracto, a influência alcoólica do condutor seja adequada a desencadear o efeito danoso, é necessário que a seguradora demonstre que, atentas as circunstâncias do caso concreto, o dano resultou do estado ébrio do condutor, de tal modo que se não fosse a taxa de alcoolemia verificada o acidente não teria ocorrido ou, no mínimo, não se teria produzido da mesma forma. Dificilmente se consegue uma prova directa desta causalidade. Isto significa que[21] a prova deste nexo causal, no plano factual, “há-se resultar da articulação/conjugação de várias circunstâncias factuais, particularmente, da concreta taxa de alcoolemia que o condutor apresentava e do modo e circunstâncias que envolveram a eclosão do sinistro, podendo o Tribunal (os que conhecem da matéria de facto, ou seja, a 1ª e a 2ª instâncias) socorrer-se quer dos factos propriamente ditos que resultaram provados, quer de presunções judiciais ou naturais que podem ser retiradas dos mesmos”. De acordo com a noção constante do art.º 349º, presunções judiciais são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido e inserem-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica e até na intuição humana. Volvendo agora ao caso concreto, como se impõe, não abundam factos provados sobre as circunstâncias do acidente; de tal modo que a culpa do R. foi obtida por recurso à presunção juris tantum acima explicitada de que, a demonstração da ilicitude do facto faz imputar a culpa ao seu autor (prova da aparência), podendo ele elidir (e não elidiu) tal presunção. Condução pelo lado esquerdo da faixa de rodagem é, em si mesma, uma contra-ordenação que não tem necessariamente de resultar da influência alcoólica. A condução nestas circunstâncias faz presumir a culpa do condutor, mas não pode fazer presumir o direito de regresso. Trata-se de fundamentos jurídicos diversos. A responsabilidade da seguradora resulta da culpa ou do risco causado pelo veículo conduzido, nexo de causalidade e dano. O direito de regresso fundamenta-se na circunstância de o condutor seguir sob a influência do álcool, sendo este o facto constitutivo do direito da seguradora a ser reembolsada pelos prejuízos sofridos. Ora, nos termos do art.º 342.°, n.º l, cabe ao autor (seguradora, no caso) a prova de que o acidente se deu com o condutor sob a influência do álcool e que foi por isso que ele ocorreu. Logo se verifica também que o R. conduzia sob o efeito de uma taxa de álcool no sangue (0,70 g/l) muito próxima do limite máximo não punível (inferior a 0,50 g/l), de tal modo que chegou a ser consentida pelo legislador, portanto lícita, na vigência da Lei nº 3/82, de 29 de Março, onde apenas a condução sob uma TAS igual ou superior a 0,8 g/l merecia a censura do Direito. É seguro, por provado, que a taxa de alcoolemia detectada afectou a capacidade de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias do Réu, assim como a sua capacidade de reacção, os seus reflexos e a coordenação motora. Mas ficou também demonstrado que não foi possível apurar o respectivo grau de afectação. Essa afectação poderá ser mínima ou mesmo inconsequente para o efeito danoso, dada a proximidade quantitativa da TAS relativamente aos valores tolerados pela lei para o exercício da condução. Mas releva aqui, sobretudo, a análise da motivação dos factos provados, como elemento de interpretação dos mesmos, coadjuvante da possível ilação própria da presunção judicial. Desde logo se extrai dali que a prova dos referido factos, relativos aos efeitos do álcool sobre a pessoa do R. condutor (itens L, M e N dos factos provados) se fundamentou, apenas de modo abstracto --- nas palavras da motivação --- “nas regras da experiência comum, as quais demonstram que o álcool afecta a capacidade de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias, bem como a capacidade de reacção e os reflexos e a coordenação motora”. Não há na motivação qualquer referência às circunstâncias concretas do caso par afirmar aquelas conclusões. Pelo contrário, encontramos ali claramente expresso: - “Porém, o grau dessa afectação é variável de pessoa para pessoa, dependendo de múltiplos factores, designadamente, do peso, habituação, etc.” - “… in casu, a taxa de alcoolemia acusada pelo Réu afectou-lhe aquelas suas capacidades em grau que não foi de todo possível apurar, mas, necessariamente, de forma não significativa. Na verdade, o grau de alcoolemia acusado pelo Réu ascende a apenas a 0,70 g/1, estando, por isso, próximo do limite máximo legalmente permitido.” - “Por outro prisma, a testemunha H………. relata que nada de especial aconteceu no caso em análise, de tal forma que este nem sequer tem já presente o acidente em análise, afirmando que isso significa que o Réu não podia ter tido um comportamento ébrio, sequer anormal, posto que, de contrário, aquele lembrar-se-ia da situação.” - “A testemunha E………. referiu que, na altura do acidente, esteve, no local, a aguardar pela chegada do INEM e que não se apercebeu de qualquer situação anormal, designadamente, de comportamentos ébrios de quem quer que fosse.” - “… tudo indica que o Réu provinha do trabalho naquela empresa, o que significa que aquele não pode ter tido um comportamento ébrio, tanto assim, que tudo indica que aquele estivera a trabalhar até àquela hora.” - “… o que tudo demonstra que o Réu não podia ter os seus reflexos afectados de modo sensível, sequer significativo, posto que de contrário aquele, ao deparar-se com o UQ não teria mudado de forma repentina a direcção da viatura que conduzia.”[22] Decorre do exposto que a presunção judicial efectuada pelo tribunal a quo assentou em alicerces muito frágeis, nomeadamente em factos já de si obtidos por presunção e assentes em regras de experiência. Outrossim, contradiz a própria ratio decidendi da matéria de facto provada, onde o tribunal, de modo muito concreto, é peremptório no reconhecimento da insignificância da alcoolemia na condução empreendida pelo R., como causa relevante do acidente. Contraditoriamente, na sentença, a 1ª instância concluiu pelo nexo de causalidade entre a influência do álcool e o acidente, por via de uma ilação excessiva, abusiva, porquanto desautorizada pelos fundamentos da matéria de facto. Nestas circunstâncias, a multo fortiori, a ilação extraída pelo tribunal não foi uma consequência lógica, típica, necessária, de factos provados, embotando a decisão recorrida. Nenhum facto permite afirmar, em concreto, a interferência da alcoolemia no processo causal do sinistro, e não sendo, no caso sub judice, aceitável a ilação por presunção judicial efectuada pelo tribunal recorrido com vista à obtenção desse facto, falta a demonstração do nexo de causalidade adequada entre a influência alcoólica do R. e o resultado danoso. Como tal, não estão reunidos todos os pressupostos do exercício do direito de regresso pela seguradora contra o condutor alcoolizado a que alude a al. c) do nº 1 do art.º 19º da Lei do Seguro Obrigatório, aprovada pelo Decreto-lei nº 522/85, de 31 de Dezembro. Do exposto decorre a necessária procedência da apelação, com absolvição do R. do pedido. * *V. SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil): 1- Demonstrado que o condutor do veículo praticou um acto ilícito contra-ordenacional e que a norma violada se destinou a proteger o interesse, em concreto, ofendido, estabelece-se uma presunção juris tantum de que esse mesmo condutor agiu com culpa no acidente, cabendo-lhe elidir essa presunção por contra-prova demonstrando facto justificativo ou factos que façam criar a dúvida no espírito do julgador. 2- Para efeito do exercício do direito de regresso contra o segurado alcoolizado, não basta que, em abstracto, a influência alcoólica do condutor seja adequada a desencadear o efeito danoso, é necessário que a seguradora demonstre que, atentas as circunstâncias do caso concreto, o dano resultou do estado ébrio do condutor. 3- Dadas as dificuldades da prova deste nexo de causalidade, é admissível o recurso a presunções judiciais. 4- Na formação do juízo presuntivo, manda a prudência e o senso jurídico que a intelecção das ilações atenda à fundamentação das respostas à matéria da base instrutória sempre que dela se colha contributo sério e seguro para o esclarecimento das circunstâncias relevantes, de modo a evitar qualquer contradição do tribunal entre a sua convicção formada no momento das respostas em matéria de facto e a convicção subsequentemente plasmada na sentença.*VI. Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se o R. do pedido da acção.*Custas do recurso e da acção pela A. recorrida.* Porto, 7 de Outubro de 2010 Filipe Manuel Nunes Caroço Teresa Santos Maria Amália Pereira dos Santos Rocha ______________________ [1] Taxa de álcool no sangue. [2] Por certo quis escrever-se “recorrida”. [3] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem. [4] Cf. Almeida Costa, “Obrigações”, 3ª edição, pág. 388. [5] Cf. Galvão Telles, in “Manual de Direito das Obrigações”, 3ª Edição, pág. 302. [6] Cf. ob. cit., pág.s 293 e 294. [7] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I. 9ª edição, pág. 587. [8] cf. Acórdãos da Relação de Coimbra de 15/3/1983 e de 21/1/1985, Colectânea de Jurisprudência, T.s II e III, pág.s 15 e 81, respectivamente, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.11.2000, Colectânea de Jurisprudência III, pág. 105. [9] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2007, Colectânea de Jurisprudência Sup. T. I, pág. 72. [10] Em vigor na data do acidente. [11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.9.2001, www.dgsi.pt. [12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.2.1999, www.dgsi.pt. [13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2002, in www.dgsi.pt. [14] N.º 6/02, de 28 de Maio de 2002, DR, Série I-A, de 18 de Julho de 2002, pág. 5395. [15] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.5.2003 e de 9.1.2003, in www.dgsi.pt. [16] Neste sentido, acórdão desta Relação de 16.12.2009 (Relator José Ferraz), Proc. nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/144766" target="_blank">91/08.6TBAMM.P1</a>, citando ali os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/12/2003, 03/10/2006, 23/04/2009 e de 27/10/2009, naquela base de dados, proc.s 03B2757, 06A2334, 09B0132 e 752/05.1TBBJA. [17] Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pág. 865. [18] Fora de 0,8 g/l de sangue na vigência da Lei nº 3/82, de 29 de Março, antes da criminalização da TAS igual ou superior a 1,20 g/l sangue. [19] Colectânea de Jurisprudência, T. III, pág. 244. [20] P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, vol. I, 2ª edição, pág.s 502 e 503, citando, nomeadamente Vaz Serra e Manuel de Andrade. [21] Como se refere na própria sentença recorrida, citando o acórdão desta Relação de 7.7.2009, in www.dgsi.pt com remissão para Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed., pág. 310 e Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., pgs. 220 a 225; quanto à admissibilidade do recurso às presunções judiciais/naturais por parte dos Tribunais da Relação para apuramento do nexo causal em apreço, o acórdão do STJ de 09/06/2009, proc. 1582/04.3TVLSB.S1, in www.dgsi.pt e desta Relação do Porto de 07/05/2009, proc. <a href="https://acordao.pt/decisoes/145541" target="_blank">1475/07.2TBOVR.P1</a> e de 15/05/2008, proc. 0832044, ambos in www.dgsi.pt e Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª ed., pág. 217. [22] O sublinhado é nosso.
Proc. nº 675/08.2TBAMT.P1 – 3ª Secção (apelação) Tribunal Judicial de Amarante Relator: Filipe Caroço Adj. Desemb. Teresa Santos Adj. Desemb. Maria Amália Santos Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. B………. – COMPANHIA DE SEGUROS S.A., pessoa colectiva nº ………, com sede na Rua ………., .., …. – … Lisboa, intentou acção declarativa sob a forma de processo ordinário, contra C………., residente no ………. em ………., …. Marco de Canaveses, seu segurado, alegando, no essencial, que este, no exercício da condução do veículo seguro, por desatenção e velocidade inadequada, não conseguiu controlar a direcção do automóvel que passou a transitar pela via de rodagem destinada para a marcha dos veículos em direcção oposta à sua, indo embater num poste de electricidade situado no outro lado da estrada. Nas circunstâncias do acidente o R. estava sob influência alcoólica, com uma TAS de 0,70 g/l que lhe reduziu as capacidades de percepção do espaço físico e de avaliação das distâncias, causando-lhe também lentidão na reacção. Além do dano causado no poste de iluminação que o R. derrubou e que a A. reparou em favor da D………., aquela queda provocou danos num veículo de terceiro e lesões corporais numa das duas passageiras então ali transportadas, tendo a demandante suportado as despesas da reparação automóvel e os prejuízos sofridos pela dita ocupante do veículo. Invocando o direito de regresso contra o segurado em virtude da TAS[1] do R. ter tido influência directa na sua actuação, a A. pediu que se julgue a acção procedente e se condene o R. a apagar-lhe a quantia de € 38.800,13, corresponde à soma de todos os montantes pecuniários indemnizatórios que pagou, acrescida dos juros vencidos contados às taxas legais “desde a interpelação”, e dos juros vincendos até integral e efectivo pagamento. Citado, o R. contestou a acção impugnando parcialmente os factos e apresentando uma versão diferente relativa às circunstâncias do acidente. Além do mais, alegou que o embate não foi causa exclusiva do derrube do poste por este se encontrar em mau estado, inseguro e a sua TAS também resultou de potenciação causada por comprimidos que o R. tomava na data dos factos. Só por si, o álcool que o R. ingeriu “não lhe reduziu as capacidades de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias, nem era susceptível de provocar tal fim”. Nem tão-pouco lhe perturbou os reflexos e a coordenação motora. Agiu sem culpa, acrescenta. Conclui no sentido de que se julgue a acção improcedente, com absolvição do R. do pedido. Teve lugar a audiência de julgamento e discussão da causa que culminou com a prolação fundamentada das respostas à base instrutória e a que se seguiu a sentença com a respectiva fundamentação jurídica, e onde se decidiu a causa nos seguintes termos: «Nesta conformidade, julgo a presente acção procedente por provada e em consequência condeno o Réu C………. a pagar à Autora “B………. – Companhia de Seguros, S.A.” a quantia de 38.800,13 (trinta e oito mil oitocentos euros e treze cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a partir de 04 de Abril de 2007 até integral e efectivo pagamento. Custas pelo Réu.» Inconformado, recorreu o R. de apelação, recurso que foi admitido e ao qual a R. respondeu, em contra-alegações. Na apelação, o A. formulou as seguintes conclusões: A) O tribunal “a quo” julgou procedente a acção proposta pela autora seguradora por entender que não só em abstracto, como também em concreto, o acidente automóvel derivou da condução automóvel empreendida pelo réu sob o efeito do álcool. B) Porém, da matéria dada como provada não resulta que, conforme alegado pela autora, o acidente deve-se exclusivamente ao réu, por não ter actuado com a diligência necessária à execução da manobra em virtude de conduzir sob à influência do álcool. C) Com efeito, face a factualidade provada não é possível determinar a actuação culposa do réu na produção do acidente, para além do risco inerente à condução do veículo seguro, nem que o embate no poste foi causado pelo facto de o condutor seguir alcoolizado. D) Ao decidir como decidiu, o tribunal “a quo” presumiu da taxa de álcool ilegal a condução ilícita quando a lei exige um nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia e a condução que foi causa do acidente. E) Pelas presunções naturais integra-se ou complementa-se a matéria de facto provada, mas não se supre a falta de prova nem é meio de modificar a factualidade provada. F) Pelo que ao aplicar a lei como aplicou, o tribunal “a quo” violou o artigo 19.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.» Terminou no sentido de ser concedido provimento ao recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida. Nas contra-alegações, a A. apresentou as seguintes conclusões: «1. O Recorrente não concorda com a douta sentença proferida pelo Mm.º Juiz “ a quo” na parte em que deu como provados os factos constantes nas alíneas K, L, M e N da sentença - pontos 10 a 13º da resposta à base instrutória - porquanto, entende que não existem provas suficientes para o tribunal “a quo” ter dado a resposta que deu aos referidos quesitos; 2. A ora Recorrente[2] alegou os factos constitutivos da existência do nexo de causalidade que entendeu existir entre o acidente e a taxa de álcool apresentada pelo Recorrente; 3. Nomeadamente, a Recorrente alegou que: “No momento do acidente, o réu conduzia sob a influência do álcool, apresentando uma taxa de alcoolemia no sangue de 0,70 g/l” (artigo 19º da Petição Inicial e 10º da Base Instrutória); 4. A Recorrente alegou também que “O álcool que o réu ingeriu reduziu-lhe as capacidades de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias” (artigo 20º da Petição Inicial e 11º da Base Instrutória); 5. A Recorrente alegou ainda que o álcool “Causou-lhe lentidão na capacidade de reacção” (artigo 21º da Petição Inicial e 12º da Base Instrutória); 6. E “Perturbou-lhe os reflexos e a coordenação motora” (artigo 22º da Petição Inicial e 13º da Base Instrutória); 7. O Tribunal “a quo” deu como provados os seguintes factos: 8. “L – A taxa de alcoolemia no sangue referida no ponto anterior afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias do Réu – resposta ao ponto 11º da base instrutória.”; 9. “M – Essa taxa afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de reacção do Réu – resposta ao ponto 12º da base instrutória.”; 10. “N – Perturbou-lhe, em grau que não foi possível apurar, os reflexos e a coordenação motora - resposta ao ponto 13º da base instrutória.”; 11. Ao dar como assentes estes factos o Tribunal deu cumprimento ao regime previsto ao artigo 484º do Código do Processo Civil; 12. Mesmo que assim não fosse, o momento adequado para reagir contra a selecção da meteria de facto não é com a decisão do recurso final; 13. Caso não concordasse com a selecção da matéria de facto o Recorrente deveria ter dela reclamado nos termos do número 2 do artigo 511º do Código do Processo Civil; 14. Face aos factos concretos da dinâmica do acidente retira-se que efectivamente a condução do Recorrente foi influenciada pela taxa de álcool apresentada no sangue; 15. O Recorrente alegou que o piso tinha terra em virtude dos trabalhos de terraplanagem que alegadamente decorriam no local do acidente não tendo, no entanto, logrado fazer prova do que alegou; 16. No caso da inobservância de leis ou regulamentos regendo a circulação rodoviária presume-se a falta de diligência, e consequente existência de culpa do infractor na produção dos danos decorrentes dessa mesma inobservância, permitindo assim a dispensa da concreta e completa comprovação de tal falta de diligência; 17. O Recorrente não logrou fazer prova da existência de qualquer facto que o legitimasse a actuar da forma como actuou – quando era sobre este que incidia o ónus de alegar e provar da existência de um facto atenuante da sua culpa; 18. O Tribunal “a quo” pode retirar ilações ou conclusões lógicas da matéria de facto dada como apurada, nomeadamente da dinâmica de todo o acidente entre outros elementos: a perda do domínio sobre a viatura que o Réu conduzia ao ponto de ter invadido a hemi-faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha, em cuja berma foi embater num poste de iluminação pública, provocando a sua queda em cima do veículo UQ; 19. O nexo de causalidade entre o álcool e o acidente tem total apoio na matéria julgada como provada; 20. O Tribunal “a quo”, e bem, partiu da existência de um facto concreto conhecido, para afirmar outro que a experiência da vida, a normalidade e a lógica permite inferir daquele, concluindo pela existência de um nexo de causalidade entre o álcool ingerido e o acidente – A forma como todo o acidente ocorreu – a dinâmica do sinistro – apenas é explicável pelo consumo de álcool apresentado pelo Recorrente; 21. Assim, andou bem o Tribunal a “quo” a julgar como provados os factos constantes dos artigos 10º a 13º da base instrutória; 22. O Tribunal “a quo” decidiu, e bem, segundo a sua livre convicção com total respeito pelas regras da experiência e a livre convicção do julgador.» Defendeu, assim, a improcedência do recurso, com confirmação da decisão.*Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.*II. As questões a decidir --- excepção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação do R. recorrente (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto). São duas, a saber: 1- Se há culpa do R. na eclosão do acidente; e 2- Se há nexo causal relevante entre a condução que o R. fazia sob a influência do álcool e o despiste, com atravessamento da hemi-faixa destinada ao sentido de trânsito contrário e embate do veículo conduzido pelo R. no poste da D………..*III. Os factos dados como provados na acção A- A Autora é uma sociedade que se dedica à actividade seguradora. B- Por contrato de seguro celebrado entre Autora e Réu, este transferiu para a Autora a responsabilidade civil decorrente dos acidentes causados pelo automóvel com a matrícula ..-..-XD. C- À data do acidente o contrato de seguro encontrava-se válido e eficaz. D- No dia 25 de Fevereiro de 2006, o Réu conduzia o veículo com a matrícula ..-..-XD pela Rua ………., no sentido ………./……….. E- O troço da via em que se verificou o acidente é uma curva, pouco acentuada, com boa visibilidade. F- O “XD” foi embater no poste de electricidade existente na berma da faixa de rodagem no sentido ………./……….. G- No momento do acidente seguiam como passageiros do veículo “UQ” E………. e F……….. H- A faixa de rodagem é asfaltada e o piso apresentava-se em bom estado de conservação – resposta ao ponto 2º da base instrutória. I- O Réu circulava dentro de uma localidade – resposta ao ponto 3º da base instrutória. J- No seguimento do embate referido em F), o poste de iluminação caiu em cima do veículo com a matrícula ..-..-UQ – resposta ao ponto 9º da base instrutória. K- No momento do acidente o Réu conduzia sob a influência do álcool, apresentando uma taxa de alcoolemia no sangue de 0,70 g/l – resposta ao ponto 10º da base instrutória. L- A taxa de alcoolemia no sangue referida no ponto anterior afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias do Réu – resposta ao ponto 11º da base instrutória. M- Essa taxa afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de reacção do Réu – resposta ao ponto 12º da base instrutória. N- Perturbou-lhe, em grau que não foi de todo possível apurar, os reflexos e a coordenação motora – resposta ao ponto 13º da base instrutória. O- Em consequência directa do acidente E………. fracturou os dois braços – resposta ao ponto 14º da base instrutória. P- Pelo que ficou impossibilitada de prestar quaisquer serviços e de trabalhar pelo período de quatro meses – resposta ao ponto 15º da base instrutória. Q- E foi obrigada a contratar uma pessoa para a ajudar no dia-a-dia – resposta ao ponto 16º da base instrutória. R- A 30 de Marco de 2007, a Autora pagou a E……… o montante de 26.000,00 Euros para indemnização pelos danos sofridos em consequência do acidente – resposta ao ponto 17º da base instrutória. S- E………. foi obrigada a deslocar-se em táxi para o Hospital para receber tratamento – resposta ao ponto 18º da base instrutória. T- A 28 de Abril de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 403,53 Euros a título de reembolso por despesas por esta suportadas em consequência do acidente – resposta ao ponto 19º da base instrutória. U- A 03 de Maio de 2006, a Autora pagou a E………. o montante de 151,97 Euros a título de reembolso por despesas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente a título de transporte e alimentação – resposta ao ponto 20º da base instrutória. V- A 01 de Junho de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 726,42 Euros, sendo que dessa quantia 226,42 Euros eram referentes a deslocações em táxi e 500,00 Euros respeitantes a perda de salários em consequência do referido acidente – resposta ao ponto 21º da base instrutória. W- A 29 de Maio de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 342,25 Euros a título de reembolso por despesas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com medicamentos e fisioterapia – resposta ao ponto 22º da base instrutória. Y- A 31 de Outubro de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 1.000,00 Euros a título de indemnização por perda de salário em consequência do acidente – resposta ao ponto 23º da base instrutória. X- A 19 de Junho de 2006, a Autora pagou a E………. o montante de 256,60 Euros a título de reembolso por despesas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com transporte, alimentação e fisioterapia – resposta ao ponto 24º da base instrutória. Z- Em 09 de Agosto de 2006, a Autora pagou a E………. o montante de 529,14 Euros, a título de reembolso por despesas diversas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com transporte, alimentação e fisioterapia – resposta ao ponto 25º da base instrutória. AA- A 07 de Julho de 2006, a Autora pagou a E………. o montante de 522,31 Euros, a título de reembolso por despesas diversas por esta suportadas em consequência do acidente – resposta ao ponto 26º da base instrutória. AB- A 29 de Setembro de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 489,28 Euros a título de reembolso por despesas diversas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com transporte, alimentação e fisioterapia – resposta ao ponto 27º da base instrutória. AC- A 17 de Outubro de 2006 a Autora pagou a E………. o montante de 531,80 Euros a título de reembolso por despesas diversas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com transportes e fisioterapia – resposta ao ponto 28º da base instrutória. AD- A 31 de Outubro de 2006, a Autora pagou a E………. o montante de 481,61 Euros a título de reembolso por despesas diversas por esta suportadas em consequência do acidente, nomeadamente com transporte, alimentação e fisioterapia – resposta ao ponto 29º da base instrutória. AE- Em consequência do acidente o “UQ” sofreu os danos descritos na factura de fls. 60 a 62, aqui dada como reproduzida, no valor de 6.255,06 Euros – resposta ao ponto 30º da base instrutória. AF- A 30 de Junho de 2006 a Autora pagou à sociedade “G……….” o montante de 6.255,06 Euros para reparação dos danos provocados no veículo “UQ” – resposta ao ponto 31º da base instrutória. AG- A 22 de Dezembro de 2006 a Autora pagou à D………. o montante de 1.110,16 Euros para indemnização do dano provocado no poste de electricidade no seguimento do acidente – resposta ao ponto 32º da base instrutória. AH- A 04 de Abril de 2007, a Autora interpelou o Réu para pagamento do montante em dívida – resposta ao ponto 33º da base instrutória. AI- Até à presente data o Réu nada pagou à Autora – resposta ao ponto 34º da base instrutória. AJ- A Autora despendeu as quantias discriminadas em R a AG em consequência do acidente – resposta ao ponto 35º da base instrutória. AK- O piso de ambas as faixas de rodagem encontrava-se molhado – resposta ao ponto 36º da base instrutória.*IV. O recorrente conformou-se com a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo, pelo que, nada justificando também a sua modificação nos termos do art.º 712º do Código de Processo Civil, as questões a apreciar respeitam exclusivamente ao enquadramento jurídico dos factos provados. 1ª questão: a culpa do R. Sabido que a culpa --- a par do facto ilícito, do dano e da existência de nexo causal entre o facto e o dano --- constitui um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos e da consequente obrigação de indemnizar (art.º 483º e seg.s do Código Civil[3]), é mister rever se, no caso, tal requisito se verifica. Na conclusão C) --- síntese do alegado sob os art.ºs 22º a 24º da apelação --- alega, o recorrente, que “face à factualidade provada não é possível determinar a actuação culposa do réu na produção do acidente, para além do risco inerente à condução do veículo seguro…”. O art.º 487º, nº 2, consagra a apreciação da culpa em abstracto, princípio segundo o qual a culpa deve ser apreciada em face das circunstâncias de cada caso, pela diligência de um bom pai de família ou homem médio --- in abstracto --- e não segundo a diligência habitual do autor do facto ilícito que é a apreciação da culpa em concreto[4]. Com a expressão “bom pai de família” quer-se visar o homem de diligência normal, encarado não apenas no âmbito das relações familiares, mas nos vários campos de actuação. A referência a “circunstâncias de cada caso” significa que o próprio padrão a ter em conta varia em função de condicionalismos da hipótese e designadamente do tipo de actividade em causa. Para concluir se houve ou não culpa, deve-se conjecturar como o homem padrão teria agido dentro do condicionalismo concreto do caso[5]. O Prof. Galvão Telles[6] define a culpa como sendo a imputação psicológica de um resultado ilícito a uma pessoa em que não há previsão ou aceitação do resultado antijurídico. Se a culpa produz um evento contrário à lei e esse evento é psíquica ou moralmente imputável a certo indivíduo, diz-se que agiu com culpa. Esta não deixa de existir pelo facto de o agente se ter convencido de que o resultado não se produzia, não sendo no entanto razoável essa sua confiança, fruto de inconsideração ou ligeireza (negligência consciente); ou nem sequer pensou na possibilidade do evento ilícito, que não previu porquanto deveria ter também procedido por forma a evitá-lo, usando da diligência adequada (negligência inconsciente). Em qualquer caso, faltando embora previsão ou aceitação do resultado antijurídico, existe omissão da diligência exigível. Nessa omissão consiste a mera culpa. Resumindo, agir com culpa significa a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do Direito, sendo que o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo[7]. Tal juízo assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor. É importante reter que, nos termos do nº 1 do referido art.º 487°, pertence ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção de culpa. Como a culpa constitui elemento integrante do direito à indemnização, é ao lesado que compete a prova da culpa do lesante. Tem-se entendido que nas acções de indemnização por facto ilícito, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, essa sua tarefa está aliviada com o recurso à chamada prova da primeira aparência (presunção simples). Em princípio procede com culpa o condutor que, em infracção aos preceitos estradais, causa dano a terceiro. Se a prova prima facie ou presunção judicial, produzida pelo lesado apontar no sentido da culpa do lesante, cabe a este o ónus da contra-prova, ou seja, caber-lhe-á a prova do facto justificativo ou de factos que façam criar a dúvida no espírito do julgador[8]. Isto não está sequer em contradição com o disposto no art.º 342°, que consagra um critério de normalidade no que respeita à repartição do ónus da prova, no sentido de que aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram, tendo a parte contrária de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos do direito.[9] Assim, a ocorrência, em termos objectivos, de uma situação que constitui contra-ordenação nos termos do Código da Estrada deve implicar presunção juris tantum de negligência do interveniente em acidente de viação. E, para além da falta de contra-prova, tal presunção deve ser afastada também nos casos em que a norma violada não se destine a proteger o interesse em concreto ofendido, uma vez que, nesse caso, não haverá causa adequada entre os danos e a violação daquela norma. Esta matéria foi proficientemente tratada na sentença recorrida ao caracterizar os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, resultando dali também muito claro que “conforme tem sido sustentado pela jurisprudência, em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de trânsito em que esteja subjacente uma contravenção estradal, existe uma presunção iuris tantum de negligência contra o autor da conduta contravencional”. Além de outros cita-se ali um acórdão desta Relação de 22.1.2009, Proc. nº 0837130, Relator José Ferraz, publicado in www.dgsi.pt. Aceitando, o recorrente, que praticou o acto ilícito contra-ordenacional qualificado na decisão recorrida ao abrigo dos art.ºs 3º, nº 2 e 13º, nº 2, do Código da Estrada aprovado pela Lei nº 114/94, de 3 de Maio, destinando-se a última das normas a proteger o interesse, em concreto, ofendido --- a não utilização da hemi-faixa da estrada à esquerda do veículo, destinada à circulação em sentido contrário, excepto quando necessário para mudar de direcção ou realizar uma ultrapassagem --- sempre deveria o R. ter demonstrado o motivo pelo qual, efectivamente, deixou a sua mão de trânsito, conduziu o veículo atravessando a hemi-faixa contrária, batendo depois num poste situado na berma do sentido de marcha contrário àquele em que seguia (al.s D a F dos factos provados). Como não resulta da matéria assente justificação para essa conduta contra-ordenacional, qualquer que seja o motivo, por o demandado o não ter demonstrado, e conformando-se ele com aqueles factos, temos como juridicamente inquestionável que não foi elidida a presunção (juris tantum) de culpa que sobre ele recaiu, devendo considerar-se culpado para efeitos de responsabilidade civil extracontratual, como muito bem se entendeu na sentença recorrida. Estão, pois, reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil por actos ilícitos em torno da conduta do R. com obrigação de indemnizar por parte da A. seguradora em razão do contrato de seguro relativo ao veículo ..-..-XD, que o R. conduzia. Bem andou a recorrida em assumir a obrigação e em reparar os prejuízos sofridos pelos lesados. É tempo passar à segunda questão. Terá a recorrida direito de regresso sobre o recorrente relativamente ao que pagou de indemnização aos lesados? O tribunal a quo decidiu-se pela afirmativa, enquanto o recorrente nega a verificação dos pressupostos necessários. É correcta a análise jurídica efectuada na sentença quanto aos fundamentos do direito de regresso. Mais discutível será o respectivo enquadramento jurídico das circunstâncias do caso sub judice. O art.º 19º, al. c), da Lei do Seguro Obrigatório, aprovada pelo Decreto-lei nº 522/85, de 31 de Dezembro,[10] prevê que, satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, além do mais ali expresso, “se tiver agido sob a influência do álcool”. Para a eventual responsabilização do recorrente sobrelevam, da sentença, os seguintes factos: «K- No momento do acidente o Réu conduzia sob a influência do álcool, apresentando uma taxa de alcoolemia no sangue de 0,70 g/l – resposta ao ponto 10º da base instrutória. L- A taxa de alcoolemia no sangue referida no ponto anterior afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias do Réu – resposta ao ponto 11º da base instrutória. M- Essa taxa afectou, em grau que não foi de todo possível apurar, a capacidade de reacção do Réu – resposta ao ponto 12º da base instrutória. N- Perturbou-lhe, em grau que não foi de todo possível apurar, os reflexos e a coordenação motora – resposta ao ponto 13º da base instrutória. O- Em consequência directa do acidente E………. fracturou os dois braços – resposta ao ponto 14º da base instrutória.» A norma da alínea c), do artigo 19º, do DL 522/85, de 31/12, tem sido interpretada e aplicada de três maneiras diferentes, a saber: a) basta à seguradora provar que o condutor conduzia sob o efeito do álcool[11]; b) exige-se-lhe, para além daquela prova, a de que o álcool teve efeito na conduta concreta que deu causa ao acidente[12]; c) se a taxa de alcoolemia for superior à permitida por lei, aquele efeito deve presumir-se, por simples presunção de facto ou judicial[13]. Por acórdão uniformizador[14], o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência: «A alínea c) do artigo 19.° do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente». Esta interpretação mantém a sua força vinculativa dentro da ordem jurisdicional enquanto a norma interpretada mantiver a sua aplicabilidade, ou não for tirado outro acórdão uniformizador[15]. Com efeito, à luz daquele acórdão de uniformização de jurisprudência, em sede do direito de regresso previsto na alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, incumbe à seguradora o ónus da prova do nexo de causalidade entre a condução do segurado sob o efeito do álcool e a eclosão do acidente, no termos do art.º 342º, n.º 2. Cabe à seguradora demonstrar os factos que, segundo a norma substantiva aplicável --- o art.º 19º, al. c), do Decreto-Lei nº 522/85 --- servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido; os factos (constitutivos) correspondentes à realidade desenhada na norma material em que funda a sua pretensão. A seguradora que pretende exercer o direito de regresso contra o condutor alcoolizado terá, assim, de alegar e demonstrar[16]: a) que o acidente ocorreu por culpa desse condutor bem como todos os demais pressupostos da obrigação de indemnização a seu cargo (do lesante); b) que indemnizou o lesado; e c) que o acidente se verificou (ainda que não como causa exclusiva[17]) em virtude do condutor estar alcoolizado com uma TAS ilícita. Taxa ilícita é a superior ao máximo legalmente permitido por lei à data do acidente, ou seja, igual ou superior a 0,5 g/l de sangue[18], ainda que contra-ordenacional (não criminosa) nos termos do art.º 81º, nº 2, do Código da Estrada. Para estabelecer aquela causalidade não basta a alegação genérica dos malefícios da condução sob os efeitos do álcool, que assentam a qualquer condutor, mas factos relativos ao concreto condutor causador do acidente. Nem a conclusão por essa causalidade se pode bastar na verificação de uma TAS superior ao máximo legalmente permitido, uma vez que não se estabelece na lei uma tal presunção (ainda que contrariável pelo condutor). Como se refere no acórdão da Relação de Évora de 5.5.2005[19], não é exacto que no art.º 81º do Código Estrada tenha sido estabelecida qualquer presunção legal juris et de jure no sentido de que a partir do limite mínimo de 0,5 g/l o álcool influencia o condutor na sua actividade de condução. O que ali se tem em consideração é a experiência comum que o legislador tem em atenção, ao criminalizar determinadas condutas, proibindo os comportamentos de risco ou perigo, sem que tal se traduza porém numa presunção de resultado. Assim, no que tange ao direito de regresso da seguradora, há que ter em atenção o resultado danoso e o nexo de causalidade adequada entre o estado do condutor etilizado e o acidente produtor de tal resultado cujo ónus de prova compete àquela seguradora. A causa juridicamente relevante de um dano é --- de acordo com a doutrina da causalidade adequada adoptada pelo artigo 563º --- aquela que, em abstracto, se revele adequada ou apropriada à produção desse dano, segundo regras da experiência comum ou conhecidas do lesante. «Não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado. … Sendo assim, parece razoável que o agente só responda pelos resultados, para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária». Assim, não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz adequada desse efeito[20]. Desta feita, não basta que, em abstracto, a influência alcoólica do condutor seja adequada a desencadear o efeito danoso, é necessário que a seguradora demonstre que, atentas as circunstâncias do caso concreto, o dano resultou do estado ébrio do condutor, de tal modo que se não fosse a taxa de alcoolemia verificada o acidente não teria ocorrido ou, no mínimo, não se teria produzido da mesma forma. Dificilmente se consegue uma prova directa desta causalidade. Isto significa que[21] a prova deste nexo causal, no plano factual, “há-se resultar da articulação/conjugação de várias circunstâncias factuais, particularmente, da concreta taxa de alcoolemia que o condutor apresentava e do modo e circunstâncias que envolveram a eclosão do sinistro, podendo o Tribunal (os que conhecem da matéria de facto, ou seja, a 1ª e a 2ª instâncias) socorrer-se quer dos factos propriamente ditos que resultaram provados, quer de presunções judiciais ou naturais que podem ser retiradas dos mesmos”. De acordo com a noção constante do art.º 349º, presunções judiciais são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido e inserem-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica e até na intuição humana. Volvendo agora ao caso concreto, como se impõe, não abundam factos provados sobre as circunstâncias do acidente; de tal modo que a culpa do R. foi obtida por recurso à presunção juris tantum acima explicitada de que, a demonstração da ilicitude do facto faz imputar a culpa ao seu autor (prova da aparência), podendo ele elidir (e não elidiu) tal presunção. Condução pelo lado esquerdo da faixa de rodagem é, em si mesma, uma contra-ordenação que não tem necessariamente de resultar da influência alcoólica. A condução nestas circunstâncias faz presumir a culpa do condutor, mas não pode fazer presumir o direito de regresso. Trata-se de fundamentos jurídicos diversos. A responsabilidade da seguradora resulta da culpa ou do risco causado pelo veículo conduzido, nexo de causalidade e dano. O direito de regresso fundamenta-se na circunstância de o condutor seguir sob a influência do álcool, sendo este o facto constitutivo do direito da seguradora a ser reembolsada pelos prejuízos sofridos. Ora, nos termos do art.º 342.°, n.º l, cabe ao autor (seguradora, no caso) a prova de que o acidente se deu com o condutor sob a influência do álcool e que foi por isso que ele ocorreu. Logo se verifica também que o R. conduzia sob o efeito de uma taxa de álcool no sangue (0,70 g/l) muito próxima do limite máximo não punível (inferior a 0,50 g/l), de tal modo que chegou a ser consentida pelo legislador, portanto lícita, na vigência da Lei nº 3/82, de 29 de Março, onde apenas a condução sob uma TAS igual ou superior a 0,8 g/l merecia a censura do Direito. É seguro, por provado, que a taxa de alcoolemia detectada afectou a capacidade de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias do Réu, assim como a sua capacidade de reacção, os seus reflexos e a coordenação motora. Mas ficou também demonstrado que não foi possível apurar o respectivo grau de afectação. Essa afectação poderá ser mínima ou mesmo inconsequente para o efeito danoso, dada a proximidade quantitativa da TAS relativamente aos valores tolerados pela lei para o exercício da condução. Mas releva aqui, sobretudo, a análise da motivação dos factos provados, como elemento de interpretação dos mesmos, coadjuvante da possível ilação própria da presunção judicial. Desde logo se extrai dali que a prova dos referido factos, relativos aos efeitos do álcool sobre a pessoa do R. condutor (itens L, M e N dos factos provados) se fundamentou, apenas de modo abstracto --- nas palavras da motivação --- “nas regras da experiência comum, as quais demonstram que o álcool afecta a capacidade de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias, bem como a capacidade de reacção e os reflexos e a coordenação motora”. Não há na motivação qualquer referência às circunstâncias concretas do caso par afirmar aquelas conclusões. Pelo contrário, encontramos ali claramente expresso: - “Porém, o grau dessa afectação é variável de pessoa para pessoa, dependendo de múltiplos factores, designadamente, do peso, habituação, etc.” - “… in casu, a taxa de alcoolemia acusada pelo Réu afectou-lhe aquelas suas capacidades em grau que não foi de todo possível apurar, mas, necessariamente, de forma não significativa. Na verdade, o grau de alcoolemia acusado pelo Réu ascende a apenas a 0,70 g/1, estando, por isso, próximo do limite máximo legalmente permitido.” - “Por outro prisma, a testemunha H………. relata que nada de especial aconteceu no caso em análise, de tal forma que este nem sequer tem já presente o acidente em análise, afirmando que isso significa que o Réu não podia ter tido um comportamento ébrio, sequer anormal, posto que, de contrário, aquele lembrar-se-ia da situação.” - “A testemunha E………. referiu que, na altura do acidente, esteve, no local, a aguardar pela chegada do INEM e que não se apercebeu de qualquer situação anormal, designadamente, de comportamentos ébrios de quem quer que fosse.” - “… tudo indica que o Réu provinha do trabalho naquela empresa, o que significa que aquele não pode ter tido um comportamento ébrio, tanto assim, que tudo indica que aquele estivera a trabalhar até àquela hora.” - “… o que tudo demonstra que o Réu não podia ter os seus reflexos afectados de modo sensível, sequer significativo, posto que de contrário aquele, ao deparar-se com o UQ não teria mudado de forma repentina a direcção da viatura que conduzia.”[22] Decorre do exposto que a presunção judicial efectuada pelo tribunal a quo assentou em alicerces muito frágeis, nomeadamente em factos já de si obtidos por presunção e assentes em regras de experiência. Outrossim, contradiz a própria ratio decidendi da matéria de facto provada, onde o tribunal, de modo muito concreto, é peremptório no reconhecimento da insignificância da alcoolemia na condução empreendida pelo R., como causa relevante do acidente. Contraditoriamente, na sentença, a 1ª instância concluiu pelo nexo de causalidade entre a influência do álcool e o acidente, por via de uma ilação excessiva, abusiva, porquanto desautorizada pelos fundamentos da matéria de facto. Nestas circunstâncias, a multo fortiori, a ilação extraída pelo tribunal não foi uma consequência lógica, típica, necessária, de factos provados, embotando a decisão recorrida. Nenhum facto permite afirmar, em concreto, a interferência da alcoolemia no processo causal do sinistro, e não sendo, no caso sub judice, aceitável a ilação por presunção judicial efectuada pelo tribunal recorrido com vista à obtenção desse facto, falta a demonstração do nexo de causalidade adequada entre a influência alcoólica do R. e o resultado danoso. Como tal, não estão reunidos todos os pressupostos do exercício do direito de regresso pela seguradora contra o condutor alcoolizado a que alude a al. c) do nº 1 do art.º 19º da Lei do Seguro Obrigatório, aprovada pelo Decreto-lei nº 522/85, de 31 de Dezembro. Do exposto decorre a necessária procedência da apelação, com absolvição do R. do pedido. * *V. SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil): 1- Demonstrado que o condutor do veículo praticou um acto ilícito contra-ordenacional e que a norma violada se destinou a proteger o interesse, em concreto, ofendido, estabelece-se uma presunção juris tantum de que esse mesmo condutor agiu com culpa no acidente, cabendo-lhe elidir essa presunção por contra-prova demonstrando facto justificativo ou factos que façam criar a dúvida no espírito do julgador. 2- Para efeito do exercício do direito de regresso contra o segurado alcoolizado, não basta que, em abstracto, a influência alcoólica do condutor seja adequada a desencadear o efeito danoso, é necessário que a seguradora demonstre que, atentas as circunstâncias do caso concreto, o dano resultou do estado ébrio do condutor. 3- Dadas as dificuldades da prova deste nexo de causalidade, é admissível o recurso a presunções judiciais. 4- Na formação do juízo presuntivo, manda a prudência e o senso jurídico que a intelecção das ilações atenda à fundamentação das respostas à matéria da base instrutória sempre que dela se colha contributo sério e seguro para o esclarecimento das circunstâncias relevantes, de modo a evitar qualquer contradição do tribunal entre a sua convicção formada no momento das respostas em matéria de facto e a convicção subsequentemente plasmada na sentença.*VI. Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se o R. do pedido da acção.*Custas do recurso e da acção pela A. recorrida.* Porto, 7 de Outubro de 2010 Filipe Manuel Nunes Caroço Teresa Santos Maria Amália Pereira dos Santos Rocha ______________________ [1] Taxa de álcool no sangue. [2] Por certo quis escrever-se “recorrida”. [3] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem. [4] Cf. Almeida Costa, “Obrigações”, 3ª edição, pág. 388. [5] Cf. Galvão Telles, in “Manual de Direito das Obrigações”, 3ª Edição, pág. 302. [6] Cf. ob. cit., pág.s 293 e 294. [7] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I. 9ª edição, pág. 587. [8] cf. Acórdãos da Relação de Coimbra de 15/3/1983 e de 21/1/1985, Colectânea de Jurisprudência, T.s II e III, pág.s 15 e 81, respectivamente, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.11.2000, Colectânea de Jurisprudência III, pág. 105. [9] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2007, Colectânea de Jurisprudência Sup. T. I, pág. 72. [10] Em vigor na data do acidente. [11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.9.2001, www.dgsi.pt. [12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.2.1999, www.dgsi.pt. [13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2002, in www.dgsi.pt. [14] N.º 6/02, de 28 de Maio de 2002, DR, Série I-A, de 18 de Julho de 2002, pág. 5395. [15] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.5.2003 e de 9.1.2003, in www.dgsi.pt. [16] Neste sentido, acórdão desta Relação de 16.12.2009 (Relator José Ferraz), Proc. nº 91/08.6TBAMM.P1, citando ali os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/12/2003, 03/10/2006, 23/04/2009 e de 27/10/2009, naquela base de dados, proc.s 03B2757, 06A2334, 09B0132 e 752/05.1TBBJA. [17] Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pág. 865. [18] Fora de 0,8 g/l de sangue na vigência da Lei nº 3/82, de 29 de Março, antes da criminalização da TAS igual ou superior a 1,20 g/l sangue. [19] Colectânea de Jurisprudência, T. III, pág. 244. [20] P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, vol. I, 2ª edição, pág.s 502 e 503, citando, nomeadamente Vaz Serra e Manuel de Andrade. [21] Como se refere na própria sentença recorrida, citando o acórdão desta Relação de 7.7.2009, in www.dgsi.pt com remissão para Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed., pág. 310 e Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., pgs. 220 a 225; quanto à admissibilidade do recurso às presunções judiciais/naturais por parte dos Tribunais da Relação para apuramento do nexo causal em apreço, o acórdão do STJ de 09/06/2009, proc. 1582/04.3TVLSB.S1, in www.dgsi.pt e desta Relação do Porto de 07/05/2009, proc. 1475/07.2TBOVR.P1 e de 15/05/2008, proc. 0832044, ambos in www.dgsi.pt e Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª ed., pág. 217. [22] O sublinhado é nosso.