Processo:91/08.6TBAMM.P1
Data do Acordão: 15/12/2009Relator: JOSÉ FERRAZTribunal:trp
Decisão: Meio processual:

I – O direito de regresso conferido à seguradora que paga a indemnização ao lesado, previsto no art. 19º, al. c) do DL nº 522/85, de 31.12, exige, antes de mais, que ao condutor demandado seja imputável, a título de culpa, a verificação do acidente de que decorreram os danos indemnizados. II – Se não se prova qualquer culpa do condutor (portador de uma TAS ilícita) na produção do acidente e a eventual responsabilidade decorrer apenas do risco, a seguradora que pagou a indemnização não beneficia desse direito de regresso.

Profissão: Data de nascimento: 1/1/1970
Tipo de evento:
Descricao acidente:

Importancias a pagar seguradora:

Relator
JOSÉ FERRAZ
Descritores
ACIDENTE DE VIAÇÃO CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL DIREITO DE REGRESSO SEGURADORA
No do documento
Data do Acordão
12/16/2009
Votação
UNANIMIDADE
Texto integral
S
Meio processual
APELAÇÃO.
Decisão
CONFIRMADA.
Sumário
I – O direito de regresso conferido à seguradora que paga a indemnização ao lesado, previsto no art. 19º, al. c) do DL nº 522/85, de 31.12, exige, antes de mais, que ao condutor demandado seja imputável, a título de culpa, a verificação do acidente de que decorreram os danos indemnizados. II – Se não se prova qualquer culpa do condutor (portador de uma TAS ilícita) na produção do acidente e a eventual responsabilidade decorrer apenas do risco, a seguradora que pagou a indemnização não beneficia desse direito de regresso.
Decisão integral
Acordam no Tribunal da relação do Porto

1) - Companhia de Seguros B………., S.A. instaurou acção declarativa suaria contra C………., residente em ………., ………., Baião, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de €27.287,84, acrescida de juros vincendos contados desde a citação até total e efectivo pagamento. 

Alega que, por contrato de seguro, assumiu a responsabilidade por indemnizar terceiros dos danos decorrentes da circulação do veículo ..-..-VL, que, no dia 03.08.05, pelas 17H20M, interveio em acidente quando era conduzido pelo réu e nele transportava D………. . 

Em consequência do acidente, o D………. sofreu diversas lesões físicas, que implicaram inúmeros tratamentos médicos, hospitalares e medicamentosos, tendo a autora liquidado todas as despesas tidas pelo sinistrado. 

O acidente ficou a dever-se exclusivamente à actuação contraordenacional do réu, que conduzia sob a influência do álcool, facto que influenciou todas as suas condutas temerárias e negligentes determinantes do sinistro.

Pelo que assiste à autora o direito de regresso contra o réu, para haver deste as quantias despendidas.

O réu contestou.
Começa por excepcionar a prescrição do crédito invocado pela autora.
Impugna a descrição do acidente feita pela autora e que na sua ocorrência não teve qualquer culpa, sendo as suas manobras determinadas pelo aparecimento de outro veículo a circular ocupando a sua faixa de rodagem.
Como para o sinistro não contribuiu o grau de alcoolemia de que era portador.
Pede a improcedência da acção.

A autora respondeu pela improcedência da excepcionada prescrição.

Julgada a instância regular, foi seleccionada a matéria de facto, tendo-se elaborada a base instrutória, não reclamada.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, e decidida a matéria de facto provada e não provada, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu o réu do pedido.

Inconformada com a sentença, dela recorreu a autora.
Alegando doutamente concluiu:

………………………………………………
………………………………………………
………………………………………………

Em resposta, o apelado defende a confirmação da sentença.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

3) - É a seguinte a matéria de facto provada:
a) A Companhia de seguros B………., S.A. é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objecto a actividade seguradora. 

b) No exercício desta sua actividade e por força do contrato de seguro celebrado aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo com matrícula ..-..-VL. 

c) Tal contrato de seguro encontrava-se em vigor à data do acidente, em 03.08.05. 

d) No dia 03.08.05, pelas 17.20 h., na Estrada Municipal nº …, em ………., esta Comarca, verificou-se um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo seguro pela autora “VL” conduzido pelo réu, transportando consigo D………. . 

e) Naquele dia e hora e nos momentos que precederam o acidente, circulava o veículo “VL” na Estrada Municipal nº …, no sentido ………. – ………. . 

f) Por força do contrato de seguro referido em b), a autora aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo com matrícula ..-..-VL, dentro dos limites legais, pela Apólice n.º ……… . 

g) Tendo o veículo conduzido pelo réu capotado. 

h) No seu troço inicial o local referido em e), e por virtude do ângulo acentuado que descreve, a curva apresenta reduzida visibilidade, não superior a 20/30 metros. 

i) A faixa de rodagem tem a largura total de 6,20 metros, e a ladeá-la, uma berma em terra, com cerca de 30/40 cm de largura. 

j) Berma esta que, do lado direito, atento o sentido de marcha do VL, apresenta um perfil inclinado descendente, que se acentua do meio da curva para frente. 

k) Na hemi-faixa oposta àquela em que o “VL” circulava - ………./………. -existia, à data do acidente, em toda a extensão da hemi-faixa, uma vala aberta, com cerca de 2 metros de largura, respeitante aos trabalhos de uma empreitada para instalação da rede de abastecimento de água.

l) No local e numa extensão superior a 500 metros, não existem edificações ou habitações; 

n) O “VL” possui cerca de 2 metros de largura; 

m) No momento do acidente o “VL” era conduzido pelo réu, com uma taxa de álcool no sangue de 0,73 g/l. 

o) Como consequência do embate, o passageiro do veículo seguro sofreu diversas lesões físicas, que implicaram tratamentos médicos, hospitalares e medicamentosos. 

p) Para o ocupante do veículo seguro, D…………., este acidente traduziu-se num acidente de trabalho. 

q) Tendo sido, por aquele, participado à sua seguradora de acidentes de trabalho – a “Companhia de Seguros E………., S.A.” – a verificação do acidente supra descrito e a reparação de todos os danos sofridos com a sua ocorrência. 

r) Tendo a congénere da autora, no cumprimento das suas obrigações contratuais, liquidado todas as despesas médicas, medicamentosas e hospitalares tidas pelo sinistrado. 

s) E, dessa mesma situação, deu conhecimento à autora. 

t) Tendo ficado acertado entre ambas as seguradoras que, quando o sinistrado tivesse alta e estivessem concluídos os tratamentos, os valores liquidados por aquela – seguradora de trabalho – seriam reclamados à autora, com excepção das perdas salariais e dos danos morais do sinistrado. 

u) O que veio a acontecer, sendo reclamado pela “Companhia de Seguros E………., S.A.” à autora a quantia de 17.287,84 €. 

v) Posteriormente, foram reclamados à autora, pelo sinistrado, as perdas salariais e os danos morais, tendo a autora liquidado directamente àquele o valor global de 10.000,00 €. 

w) De acordo com as condições gerais da Apólice de Seguro referida em b), no caso de o veículo “VL” ser conduzido por pessoa sob influência de álcool, a responsabilidade civil da seguradora não fica excluída perante terceiros lesados. 

4) – Perante esta factualidade que, por não impugnada, deve ser acatada, cumpre apreciar, como questão suscitada (artigo 684º/3 do CPC, na versão anterior às alterações introduzidas pelos DL 303/2007) se o apelado deve reembolsar a apelante das despesas por esta feitas em consequência do acidente descrito na matéria de facto, por virtude do apelado/condutor ser portador de uma TAS de 0,73 g/l.

5) – Na sentença ponderou-se que o “face factualidade provada não foi possível determinar a actuação culposa do Réu na produção do acidente, para além do risco inerente à condução do veículo seguro” “o circunstancialismo fáctico é insuficiente para atribuir ao Réu, objectivamente e com a certeza necessária, a culpa (exclusiva ou não) na produção do acidente (…). Sabemos apenas que, a via encontrava-se em obras, o veiculo seguro era um veículo relativamente largo e que ao descrever uma curva de curta visibilidade captou, originando ferimentos no passageiro (…) insuficiente para que se possa concluir que aquele devesse ter adoptado outro comportamento na sua condução”. Mais se entendeu “concomitantemente, na presente acção, resultou provado que o Réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida, sem que se apurasse qualquer nexo de causalidade entre tal facto e a ocorrência do acidente”. 
Entendeu-se estar-se perante mera responsabilidade objectiva ou pelo risco. Daí, conclui que não se provando a culpa do apelado e interferência do álcool no sinistro, a pretensão da apelante não poderia proceder.

Diz a apelante que “a presente situação enquadra-se na responsabilidade pelo risco” (conclusão 10).
Afirma também que “não se provando em absoluto as circunstâncias do acidente, o condutor do veículo que apresentava uma taxa de alcoolémia de 0,73 g/l, terá de responder por apelo ao elemento risco” (conclusão 5), porque a “TAS apresentada releva enquanto factor de agravamento de risco” (conclusão 6), já que o “risco causado pela circulação de um veículo conduzido por um condutor alcoolizado é substancialmente superior ao risco do outro veículo, devido às consequências do álcool sobre as faculdades do condutor, designadamente rapidez de reflexos e capacidade de discernimento” (conclusão 9). 
No quadro factual descrito, concorda-se que inexiste factualidade que permita imputar subjectivamente a responsabilidade ao apelado, enquadrando-se a situação na responsabilidade pelo risco (como também concorda a apelante). Mas mesmo assim, quer esta, ao abrigo do direito de regresso previsto artigo 19º do DL 522/85, de 31/12 (com as posteriores modificações), em vigor na data do acidente em referência neste processo, que o apelado a reembolse do que pagou (quer ao D………. quer à seguradora do trabalho – já que, diz, em relação àquele, o acidente foi qualificado também como de trabalho) relacionado com as consequências do acidente.

Estabelecia o artigo 19º do DL 522/85, que “Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:
(…)
c) Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado; 
(…).

Pelo contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, o segurador assume ele, e só ele, dentro do valor da cobertura obrigatória (ou convencionada se por valor superior e não haja exclusão na apólice), a obrigação de indemnizar o terceiro lesado pelos danos resultantes de acidente em que intervenha o veículo “seguro”.
Nesse âmbito, o contrato de seguro assume a natureza de contrato favor de terceiro, recaindo sobre o segurador obrigação de indemnizar o lesado (terceiro), sem possibilidade de opor-lhe as situações referidas nas diversas alíneas do artigo 19º do citado DL. 
E dentro desses limites, satisfeita a indemnização ao lesado, não têm direito contra o tomador do seguro ou do condutor. A sua responsabilidade cai dentro dos limites da álea própria do contrato de seguro, como contrato pelo qual o segurador, mediante retribuição (o prémio de seguro) do tomador se obriga, a favor do segurado ou de terceiro) a indemnizar determinados prejuízos ou a pagar determinada quantia, no caso de ocorrência de um evento futuro e incerto). Indemnizando o lesado, o segurador cumpre a prestação a que se obrigou perante o tomador do seguro.

Porém, o segurador, mesmo na modalidade do seguro obrigatório pode eventualmente ter direito de se reembolsar do que tiver desembolsado, em execução do contrato. No que respeita ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o segurador apenas se pode reembolsar do que tiver despendido para indemnizar o lesado nos casos previstos no citado artigo 19º e, no que aqui interessa, contra “o condutor, se este … tiver agido sob a influência do álcool, …”.
E, delimitando os pressupostos da obrigação do condutor reembolsar o segurador, importa convocar a decisão uniformizadora de jurisprudência (AUJ, do STJ, publicado no DR, I-A, de 2002/07/18) “a alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do anexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.

O segurador que indemniza o lesado apenas tem direito de regresso (um direito surgido ex novo na sua esfera jurídica) contra o condutor alcoolizado se esse facto tiver contribuído, ainda que não exclusivamente, para a produção do sinistro. O dever de reembolsar a seguradora, nessa situação, não se confunde com a penalidade para a condução sob os feitos do álcool, a cuja tipificação subjaz um perigo abstracto. A essa censura corresponde antes uma coima ou uma pena criminal, embora o perigo típico da condução sob a influência do álcool e o agravamento do risco de acidente nessa circunstância e, por isso e também, uma ideia de censura do infractor não estejam ausentes na previsão do direito de regresso contra o condutor alcoolizado que, (ao menos) também por isso, vem a provocar acidente gerador dos danos indemnizados.
Mas essa “sanção” só pode encontrar justificação se a conduta lesiva do condutor (sob os efeitos do álcool) puder ser-lhe imputada a título de culpa, pois só nessa situação o acto ilícito gerador da lesão merece reprovação do direito. No demais, no que à condução em alcoolemia respeita, a censura tem de limitar-se ao campo contra-ordenacional ou penal.

Como em qualquer outra situação, em que não há inversão do ónus da prova, cabe ao sujeito que invoca um direito o ónus de alegar e provar os fundamentos do direito invocado (artigo 342º/1 do CC).
E entendeu-se no referido AUJ, com que se concorda, que para haver direito de regresso, por causa da condução sob os feitos do álcool, tem a seguradora de provar (para o que deve alegar a pertinente factualidade) a causalidade entre o álcool (como causa) e o acidente (o efeito), ainda que não como sua causa exclusiva. O que significa que inexiste qualquer presunção legal que estabeleça uma relação causal entre a condução com uma TAS ilícita e o acidente verificado.
Embora entendamos que, no que concerne a esse nexo causal (a estabelecer no campo factual ou no plano naturalístico, como situação concreta, no caso específico e não abstractamente entendido), poder-se-á concluir por presunção simples ou judicial, a partir dos factos provados que, com segurança (ao menos, com a mesma que se exige para julgar provado determinado facto), permitam extrair tal ilação. E o estabelecimento da relação de causalidade entre a condução sob os efeitos do álcool e a verificação do acidente constitui questão de facto.
O que não deve suceder quando os factos para estabelecer a relação de causalidade tenham sido alegados e não se tenham julgado provados, como sucede na concreta espécie. Pelas presunções naturais integra-se ou complementa-se a matéria de facto provada, mas não se supre a falta de prova nem é meio de modificar a factualidade provada.

A seguradora que pretende exercer o direito de regresso contra o condutor alcoolizado terá, assim de alegar e provar a) que o acidente ocorreu por culpa desse condutor bem como todos os demais pressupostos da obrigação de indemnização a seu cargo (do lesante), b) que indemnizou o lesado e c) que o acidente se verificou (ainda que não como causa exclusiva) em virtude do condutor estar alcoolizado com uma TAS ilícita[1]. Para estabelecer esta causalidade não basta a alegação genérica dos malefícios da condução sob os efeitos do álcool, que assentam a qualquer condutor, mas factos relativos ao concreto condutor causador do acidente. Nem a conclusão por essa causalidade se pode bastar na verificação de uma TAS superior ao máximo legalmente permitido, uma vez que não se estabelece na lei uma tal presunção (ainda que contrariável pelo condutor).

Na concreta situação, como, de resto, a apelante concorda, desconhecem-se as circunstâncias ou o modo como se deu o acidente, nomeadamente as razões porque se verificou, daí (e ainda nisto concorda a seguradora) a responsabilidade do condutor (e da seguradora, por força do contrato de seguro) apenas poder assentar no risco e não na culpa. 
Não se provou (sem discordância de quem quer que seja) que o sinistro se tenha verificado em virtude de conduta/actuação eticamente censurável (ou culposa) do apelado/condutor, seja porque praticou conduta contraordenacional respeitante a alguma manobra, quer por violar algum dever geral (como atenção, cuidado, prudência) que devesse observar na condução, ou seja, que outra conduta lhe fosse exigível no modo como conduzia no momento do acidente.
De ilícito apenas a presença de um teor de álcool (0,73g/l) superior ao legalmente admissível. 

Ora, se por um lado, não se demonstra culpa do apelado na produção do acidente, o que desde logo afastaria a procedência da pretensão da apelante, por outro, nenhum facto permitiria afirmar, em concreto, a interferência da alcoolemia no processo causal do sinistro.
Se não se provou que alguma manobra errada foi executada ou que alguma manobra exigível a uma correcta condução foi omitida pelo condutor/apelado, não é possível concluir-se que o acidente ocorreu ou também ocorreu por causa dos efeitos do álcool.
Consequentemente, o pagamento da indemnização por parte da seguradora (não estando aqui em causa o âmbito da responsabilidade que lhe cabia) não teve (ou não se provou que tivesse) por causa a alcoolemia de que o apelado era portador, antes sendo forçoso concluir que se limitou a cumprir as obrigações que para si decorriam do contrato de seguro. 
O perigo abstracto e o risco agravado que, em geral, decorre do facto de se conduzir com alcoolemia excessiva, não fundamenta, em concreto, o direito de regresso a que a apelante se apega, pelo que bem se tendo decidido na sentença, merece inteira confirmação e improcedência a apelação.

Em conclusão – a) O direito de regresso conferido à seguradora que paga a indemnização ao lesado, previsto no artigo 19º, alínea c), do DL 522/85, exige, antes mais, que ao condutor demandado seja imputável, a título de culpa, a verificação do acidente, de que decorreram os danos indemnizados.
b) Se não se prova qualquer culpa do condutor (portador de uma TAS ilícita) na produção do acidente, e eventual responsabilidade decorrer apenas do risco, a seguradora que pagou a indemnização não beneficia desse direito de regresso.

6) – Pelo exposto, acorda-se neste tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 16/12/2009
José Manuel Carvalho Ferraz
António do Amaral Ferreira
Ana Paula Fonseca Lobo

_________________________
[1] Cfr. Acs. Do STJ, de 18/12/2003, 03/10/2006, 23/04/2009 e de 27/10/2009, em ITIJ/net, procs. 03B2757, 06A2334, 09B0132 e 752/05.1TBBJA.

Acordam no Tribunal da relação do Porto 1) - Companhia de Seguros B………., S.A. instaurou acção declarativa suaria contra C………., residente em ………., ………., Baião, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de €27.287,84, acrescida de juros vincendos contados desde a citação até total e efectivo pagamento. Alega que, por contrato de seguro, assumiu a responsabilidade por indemnizar terceiros dos danos decorrentes da circulação do veículo ..-..-VL, que, no dia 03.08.05, pelas 17H20M, interveio em acidente quando era conduzido pelo réu e nele transportava D………. . Em consequência do acidente, o D………. sofreu diversas lesões físicas, que implicaram inúmeros tratamentos médicos, hospitalares e medicamentosos, tendo a autora liquidado todas as despesas tidas pelo sinistrado. O acidente ficou a dever-se exclusivamente à actuação contraordenacional do réu, que conduzia sob a influência do álcool, facto que influenciou todas as suas condutas temerárias e negligentes determinantes do sinistro. Pelo que assiste à autora o direito de regresso contra o réu, para haver deste as quantias despendidas. O réu contestou. Começa por excepcionar a prescrição do crédito invocado pela autora. Impugna a descrição do acidente feita pela autora e que na sua ocorrência não teve qualquer culpa, sendo as suas manobras determinadas pelo aparecimento de outro veículo a circular ocupando a sua faixa de rodagem. Como para o sinistro não contribuiu o grau de alcoolemia de que era portador. Pede a improcedência da acção. A autora respondeu pela improcedência da excepcionada prescrição. Julgada a instância regular, foi seleccionada a matéria de facto, tendo-se elaborada a base instrutória, não reclamada. Realizada a audiência de discussão e julgamento, e decidida a matéria de facto provada e não provada, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu o réu do pedido. Inconformada com a sentença, dela recorreu a autora. Alegando doutamente concluiu: ……………………………………………… ……………………………………………… ……………………………………………… Em resposta, o apelado defende a confirmação da sentença. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. 3) - É a seguinte a matéria de facto provada: a) A Companhia de seguros B………., S.A. é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objecto a actividade seguradora. b) No exercício desta sua actividade e por força do contrato de seguro celebrado aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo com matrícula ..-..-VL. c) Tal contrato de seguro encontrava-se em vigor à data do acidente, em 03.08.05. d) No dia 03.08.05, pelas 17.20 h., na Estrada Municipal nº …, em ………., esta Comarca, verificou-se um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo seguro pela autora “VL” conduzido pelo réu, transportando consigo D………. . e) Naquele dia e hora e nos momentos que precederam o acidente, circulava o veículo “VL” na Estrada Municipal nº …, no sentido ………. – ………. . f) Por força do contrato de seguro referido em b), a autora aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo com matrícula ..-..-VL, dentro dos limites legais, pela Apólice n.º ……… . g) Tendo o veículo conduzido pelo réu capotado. h) No seu troço inicial o local referido em e), e por virtude do ângulo acentuado que descreve, a curva apresenta reduzida visibilidade, não superior a 20/30 metros. i) A faixa de rodagem tem a largura total de 6,20 metros, e a ladeá-la, uma berma em terra, com cerca de 30/40 cm de largura. j) Berma esta que, do lado direito, atento o sentido de marcha do VL, apresenta um perfil inclinado descendente, que se acentua do meio da curva para frente. k) Na hemi-faixa oposta àquela em que o “VL” circulava - ………./………. -existia, à data do acidente, em toda a extensão da hemi-faixa, uma vala aberta, com cerca de 2 metros de largura, respeitante aos trabalhos de uma empreitada para instalação da rede de abastecimento de água. l) No local e numa extensão superior a 500 metros, não existem edificações ou habitações; n) O “VL” possui cerca de 2 metros de largura; m) No momento do acidente o “VL” era conduzido pelo réu, com uma taxa de álcool no sangue de 0,73 g/l. o) Como consequência do embate, o passageiro do veículo seguro sofreu diversas lesões físicas, que implicaram tratamentos médicos, hospitalares e medicamentosos. p) Para o ocupante do veículo seguro, D…………., este acidente traduziu-se num acidente de trabalho. q) Tendo sido, por aquele, participado à sua seguradora de acidentes de trabalho – a “Companhia de Seguros E………., S.A.” – a verificação do acidente supra descrito e a reparação de todos os danos sofridos com a sua ocorrência. r) Tendo a congénere da autora, no cumprimento das suas obrigações contratuais, liquidado todas as despesas médicas, medicamentosas e hospitalares tidas pelo sinistrado. s) E, dessa mesma situação, deu conhecimento à autora. t) Tendo ficado acertado entre ambas as seguradoras que, quando o sinistrado tivesse alta e estivessem concluídos os tratamentos, os valores liquidados por aquela – seguradora de trabalho – seriam reclamados à autora, com excepção das perdas salariais e dos danos morais do sinistrado. u) O que veio a acontecer, sendo reclamado pela “Companhia de Seguros E………., S.A.” à autora a quantia de 17.287,84 €. v) Posteriormente, foram reclamados à autora, pelo sinistrado, as perdas salariais e os danos morais, tendo a autora liquidado directamente àquele o valor global de 10.000,00 €. w) De acordo com as condições gerais da Apólice de Seguro referida em b), no caso de o veículo “VL” ser conduzido por pessoa sob influência de álcool, a responsabilidade civil da seguradora não fica excluída perante terceiros lesados. 4) – Perante esta factualidade que, por não impugnada, deve ser acatada, cumpre apreciar, como questão suscitada (artigo 684º/3 do CPC, na versão anterior às alterações introduzidas pelos DL 303/2007) se o apelado deve reembolsar a apelante das despesas por esta feitas em consequência do acidente descrito na matéria de facto, por virtude do apelado/condutor ser portador de uma TAS de 0,73 g/l. 5) – Na sentença ponderou-se que o “face factualidade provada não foi possível determinar a actuação culposa do Réu na produção do acidente, para além do risco inerente à condução do veículo seguro” “o circunstancialismo fáctico é insuficiente para atribuir ao Réu, objectivamente e com a certeza necessária, a culpa (exclusiva ou não) na produção do acidente (…). Sabemos apenas que, a via encontrava-se em obras, o veiculo seguro era um veículo relativamente largo e que ao descrever uma curva de curta visibilidade captou, originando ferimentos no passageiro (…) insuficiente para que se possa concluir que aquele devesse ter adoptado outro comportamento na sua condução”. Mais se entendeu “concomitantemente, na presente acção, resultou provado que o Réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida, sem que se apurasse qualquer nexo de causalidade entre tal facto e a ocorrência do acidente”. Entendeu-se estar-se perante mera responsabilidade objectiva ou pelo risco. Daí, conclui que não se provando a culpa do apelado e interferência do álcool no sinistro, a pretensão da apelante não poderia proceder. Diz a apelante que “a presente situação enquadra-se na responsabilidade pelo risco” (conclusão 10). Afirma também que “não se provando em absoluto as circunstâncias do acidente, o condutor do veículo que apresentava uma taxa de alcoolémia de 0,73 g/l, terá de responder por apelo ao elemento risco” (conclusão 5), porque a “TAS apresentada releva enquanto factor de agravamento de risco” (conclusão 6), já que o “risco causado pela circulação de um veículo conduzido por um condutor alcoolizado é substancialmente superior ao risco do outro veículo, devido às consequências do álcool sobre as faculdades do condutor, designadamente rapidez de reflexos e capacidade de discernimento” (conclusão 9). No quadro factual descrito, concorda-se que inexiste factualidade que permita imputar subjectivamente a responsabilidade ao apelado, enquadrando-se a situação na responsabilidade pelo risco (como também concorda a apelante). Mas mesmo assim, quer esta, ao abrigo do direito de regresso previsto artigo 19º do DL 522/85, de 31/12 (com as posteriores modificações), em vigor na data do acidente em referência neste processo, que o apelado a reembolse do que pagou (quer ao D………. quer à seguradora do trabalho – já que, diz, em relação àquele, o acidente foi qualificado também como de trabalho) relacionado com as consequências do acidente. Estabelecia o artigo 19º do DL 522/85, que “Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso: (…) c) Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado; (…). Pelo contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, o segurador assume ele, e só ele, dentro do valor da cobertura obrigatória (ou convencionada se por valor superior e não haja exclusão na apólice), a obrigação de indemnizar o terceiro lesado pelos danos resultantes de acidente em que intervenha o veículo “seguro”. Nesse âmbito, o contrato de seguro assume a natureza de contrato favor de terceiro, recaindo sobre o segurador obrigação de indemnizar o lesado (terceiro), sem possibilidade de opor-lhe as situações referidas nas diversas alíneas do artigo 19º do citado DL. E dentro desses limites, satisfeita a indemnização ao lesado, não têm direito contra o tomador do seguro ou do condutor. A sua responsabilidade cai dentro dos limites da álea própria do contrato de seguro, como contrato pelo qual o segurador, mediante retribuição (o prémio de seguro) do tomador se obriga, a favor do segurado ou de terceiro) a indemnizar determinados prejuízos ou a pagar determinada quantia, no caso de ocorrência de um evento futuro e incerto). Indemnizando o lesado, o segurador cumpre a prestação a que se obrigou perante o tomador do seguro. Porém, o segurador, mesmo na modalidade do seguro obrigatório pode eventualmente ter direito de se reembolsar do que tiver desembolsado, em execução do contrato. No que respeita ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o segurador apenas se pode reembolsar do que tiver despendido para indemnizar o lesado nos casos previstos no citado artigo 19º e, no que aqui interessa, contra “o condutor, se este … tiver agido sob a influência do álcool, …”. E, delimitando os pressupostos da obrigação do condutor reembolsar o segurador, importa convocar a decisão uniformizadora de jurisprudência (AUJ, do STJ, publicado no DR, I-A, de 2002/07/18) “a alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do anexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”. O segurador que indemniza o lesado apenas tem direito de regresso (um direito surgido ex novo na sua esfera jurídica) contra o condutor alcoolizado se esse facto tiver contribuído, ainda que não exclusivamente, para a produção do sinistro. O dever de reembolsar a seguradora, nessa situação, não se confunde com a penalidade para a condução sob os feitos do álcool, a cuja tipificação subjaz um perigo abstracto. A essa censura corresponde antes uma coima ou uma pena criminal, embora o perigo típico da condução sob a influência do álcool e o agravamento do risco de acidente nessa circunstância e, por isso e também, uma ideia de censura do infractor não estejam ausentes na previsão do direito de regresso contra o condutor alcoolizado que, (ao menos) também por isso, vem a provocar acidente gerador dos danos indemnizados. Mas essa “sanção” só pode encontrar justificação se a conduta lesiva do condutor (sob os efeitos do álcool) puder ser-lhe imputada a título de culpa, pois só nessa situação o acto ilícito gerador da lesão merece reprovação do direito. No demais, no que à condução em alcoolemia respeita, a censura tem de limitar-se ao campo contra-ordenacional ou penal. Como em qualquer outra situação, em que não há inversão do ónus da prova, cabe ao sujeito que invoca um direito o ónus de alegar e provar os fundamentos do direito invocado (artigo 342º/1 do CC). E entendeu-se no referido AUJ, com que se concorda, que para haver direito de regresso, por causa da condução sob os feitos do álcool, tem a seguradora de provar (para o que deve alegar a pertinente factualidade) a causalidade entre o álcool (como causa) e o acidente (o efeito), ainda que não como sua causa exclusiva. O que significa que inexiste qualquer presunção legal que estabeleça uma relação causal entre a condução com uma TAS ilícita e o acidente verificado. Embora entendamos que, no que concerne a esse nexo causal (a estabelecer no campo factual ou no plano naturalístico, como situação concreta, no caso específico e não abstractamente entendido), poder-se-á concluir por presunção simples ou judicial, a partir dos factos provados que, com segurança (ao menos, com a mesma que se exige para julgar provado determinado facto), permitam extrair tal ilação. E o estabelecimento da relação de causalidade entre a condução sob os efeitos do álcool e a verificação do acidente constitui questão de facto. O que não deve suceder quando os factos para estabelecer a relação de causalidade tenham sido alegados e não se tenham julgado provados, como sucede na concreta espécie. Pelas presunções naturais integra-se ou complementa-se a matéria de facto provada, mas não se supre a falta de prova nem é meio de modificar a factualidade provada. A seguradora que pretende exercer o direito de regresso contra o condutor alcoolizado terá, assim de alegar e provar a) que o acidente ocorreu por culpa desse condutor bem como todos os demais pressupostos da obrigação de indemnização a seu cargo (do lesante), b) que indemnizou o lesado e c) que o acidente se verificou (ainda que não como causa exclusiva) em virtude do condutor estar alcoolizado com uma TAS ilícita[1]. Para estabelecer esta causalidade não basta a alegação genérica dos malefícios da condução sob os efeitos do álcool, que assentam a qualquer condutor, mas factos relativos ao concreto condutor causador do acidente. Nem a conclusão por essa causalidade se pode bastar na verificação de uma TAS superior ao máximo legalmente permitido, uma vez que não se estabelece na lei uma tal presunção (ainda que contrariável pelo condutor). Na concreta situação, como, de resto, a apelante concorda, desconhecem-se as circunstâncias ou o modo como se deu o acidente, nomeadamente as razões porque se verificou, daí (e ainda nisto concorda a seguradora) a responsabilidade do condutor (e da seguradora, por força do contrato de seguro) apenas poder assentar no risco e não na culpa. Não se provou (sem discordância de quem quer que seja) que o sinistro se tenha verificado em virtude de conduta/actuação eticamente censurável (ou culposa) do apelado/condutor, seja porque praticou conduta contraordenacional respeitante a alguma manobra, quer por violar algum dever geral (como atenção, cuidado, prudência) que devesse observar na condução, ou seja, que outra conduta lhe fosse exigível no modo como conduzia no momento do acidente. De ilícito apenas a presença de um teor de álcool (0,73g/l) superior ao legalmente admissível. Ora, se por um lado, não se demonstra culpa do apelado na produção do acidente, o que desde logo afastaria a procedência da pretensão da apelante, por outro, nenhum facto permitiria afirmar, em concreto, a interferência da alcoolemia no processo causal do sinistro. Se não se provou que alguma manobra errada foi executada ou que alguma manobra exigível a uma correcta condução foi omitida pelo condutor/apelado, não é possível concluir-se que o acidente ocorreu ou também ocorreu por causa dos efeitos do álcool. Consequentemente, o pagamento da indemnização por parte da seguradora (não estando aqui em causa o âmbito da responsabilidade que lhe cabia) não teve (ou não se provou que tivesse) por causa a alcoolemia de que o apelado era portador, antes sendo forçoso concluir que se limitou a cumprir as obrigações que para si decorriam do contrato de seguro. O perigo abstracto e o risco agravado que, em geral, decorre do facto de se conduzir com alcoolemia excessiva, não fundamenta, em concreto, o direito de regresso a que a apelante se apega, pelo que bem se tendo decidido na sentença, merece inteira confirmação e improcedência a apelação. Em conclusão – a) O direito de regresso conferido à seguradora que paga a indemnização ao lesado, previsto no artigo 19º, alínea c), do DL 522/85, exige, antes mais, que ao condutor demandado seja imputável, a título de culpa, a verificação do acidente, de que decorreram os danos indemnizados. b) Se não se prova qualquer culpa do condutor (portador de uma TAS ilícita) na produção do acidente, e eventual responsabilidade decorrer apenas do risco, a seguradora que pagou a indemnização não beneficia desse direito de regresso. 6) – Pelo exposto, acorda-se neste tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida. Custas pela apelante. Porto, 16/12/2009 José Manuel Carvalho Ferraz António do Amaral Ferreira Ana Paula Fonseca Lobo _________________________ [1] Cfr. Acs. Do STJ, de 18/12/2003, 03/10/2006, 23/04/2009 e de 27/10/2009, em ITIJ/net, procs. 03B2757, 06A2334, 09B0132 e 752/05.1TBBJA.