Processo:148/11.6TBMSF.P1
Data do Acordão: 16/06/2014Relator: FERNANDO SAMÕESTribunal:trp
Decisão: Meio processual:

I - A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude dos poderes da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter quando se mostrar apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório. II - A anulação do julgamento está prevista apenas para os casos em que a decisão sobre a matéria de facto se repute “deficiente, obscura ou contraditória” e não constem do processo todos os elementos que permitam a sua reapreciação, bem como para os casos de ampliação da matéria de facto. III - A restrição imposta pelo n.º 2 do art.º 1360.º do Código Civil visa obstar ao devassamento do prédio vizinho, pelo que só é aplicável ao parapeito que permita a uma pessoa debruçar-se nele e, dessa forma, violar o direito de propriedade alheia. IV - O art.º 1351.º do Código Civil impõe restrições ao direito de propriedade sobre imóveis, impedindo o dono do prédio superior de fazer nele obras que desviem ou agravem o escoamento natural das águas que nele caiam e que derivem para o prédio inferior e permitindo ao proprietário deste, em caso de violação, obter a destruição das obras efectuadas. V - O n.º 2 do citado art.º 1351.º ressalva a possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, a qual não é admitida para as águas pluviais que caiam sobre prédios urbanos, o que também impede a constituição do mesmo tipo de servidão por usucapião. VI - A aplicação do instituto do abuso de direito depende sempre da alegação e prova dos respectivos factos pela parte que dele se quer fazer valer, mesmo que não o tenha solicitado expressamente. VII - Não litiga de má fé quem se limita a propor uma acção e a deduzir pretensão, ainda que sem fundamento, quando inexistem elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente.

Profissão: Data de nascimento: 1/1/1970
Tipo de evento:
Descricao acidente:

Importancias a pagar seguradora:

Relator
FERNANDO SAMÕES
Descritores
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PRESSUPOSTOS DA IMPUGNAÇÃO PROIBIÇÃO DE CONSTRUÇÃO PROIBIÇÃO DE OBRAS SERVIDÃO LEGAL DE ESCOAMENTO ABUSO DE DIREITO
No do documento
Data do Acordão
06/17/2014
Votação
UNANIMIDADE
Texto integral
S
Meio processual
APELAÇÃO
Decisão
REVOGADA EM PARTE
Sumário
I - A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude dos poderes da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter quando se mostrar apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório. II - A anulação do julgamento está prevista apenas para os casos em que a decisão sobre a matéria de facto se repute “deficiente, obscura ou contraditória” e não constem do processo todos os elementos que permitam a sua reapreciação, bem como para os casos de ampliação da matéria de facto. III - A restrição imposta pelo n.º 2 do art.º 1360.º do Código Civil visa obstar ao devassamento do prédio vizinho, pelo que só é aplicável ao parapeito que permita a uma pessoa debruçar-se nele e, dessa forma, violar o direito de propriedade alheia. IV - O art.º 1351.º do Código Civil impõe restrições ao direito de propriedade sobre imóveis, impedindo o dono do prédio superior de fazer nele obras que desviem ou agravem o escoamento natural das águas que nele caiam e que derivem para o prédio inferior e permitindo ao proprietário deste, em caso de violação, obter a destruição das obras efectuadas. V - O n.º 2 do citado art.º 1351.º ressalva a possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, a qual não é admitida para as águas pluviais que caiam sobre prédios urbanos, o que também impede a constituição do mesmo tipo de servidão por usucapião. VI - A aplicação do instituto do abuso de direito depende sempre da alegação e prova dos respectivos factos pela parte que dele se quer fazer valer, mesmo que não o tenha solicitado expressamente. VII - Não litiga de má fé quem se limita a propor uma acção e a deduzir pretensão, ainda que sem fundamento, quando inexistem elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente.
Decisão integral
Processo n.º 148/11.6TBMSF.P1
Do Tribunal Judicial da Comarca de Mesão Frio

Relator: Fernando Samões 
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró*Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:

I. Relatório

B… e esposa C…, residentes no …, freguesia …, concelho de Mesão Frio, instauraram, em 12/11/2011, acção com processo sumário contra D… e esposa E…, residentes no mesmo lugar, e a Herança Indivisa Aberta por Óbito de F…, representada pelos seus herdeiros G…, H… e I…, todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação solidária dos réus:
“A – A reconhecer serem os AA. legítimos proprietários do prédio identificado no art. 1º da p.i..
B - A absterem-se de, por qualquer forma ou jeito, vazar quaisquer tipo de águas salubres e/ou insalubres e pluviais, para o prédio dos AA. e consequentemente 
C - A retirarem e eliminarem as saídas e tubos que para tal efeito mantêm.
D – A destruírem o pátio cimentado existente nas traseiras dos urbanos das RR. de forma a reporem e a desobstruírem a linha de água de escoamento das águas pluviais ali sempre existente.
E - A realizar as obras necessárias e adequadas a evitar que decorram para o prédio dos AA. qualquer tipo de águas;
F - A indemnizarem os AA. por todos os prejuízos decorrentes da impossibilidade de granjeio do logradouro infestado por via do aludido vazamento de águas, bem como as despesas necessárias à recuperação de tal solo, a determinar e fixar em execução de sentença;
G - Condenar-se os RR. a edificar na parte do pátio ou quintal que deita directamente sobre o prédio dos AA. um muro com parapeito não inferior a um metro e meio;
H - A pagar aos AA., a titulo de sanção compulsória, uma quantia pecuniária nunca inferior a 10,00 € por cada dia de atraso no cumprimento do peticionado sob as anteriores alíneas B), C), D), E) e G).”
Para tanto, alegaram, em resumo, que:
São donos do prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo 707 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mesão Frio sob o nº 628/20010129, por lhes ter sido doado e por o haverem adquirido por usucapião, o qual confina, pelo lado poente, com dois prédios urbanos de que os réus são proprietários.
Cada um destes dois prédios é servido de um pátio que fazem o escoamento, através de tubos, para o seu prédio, das águas das lavagens e pluviais, causando-lhes prejuízos.
As águas foram para ali encaminhadas devido a obras feitas de que se aperceberam em 30/9/2011 e à alteração da linha de água realizada pelos primeiros réus há cerca de 9 anos.
O muro desses pátios tem a altura de cerca de 30 centímetros e é encimado por uma grade de cerca de um metro, permitindo que os réus se debrucem sobre ela e devassem o seu prédio.

Os réus contestaram, conjuntamente, por impugnação e deduziram reconvenção, alegando, em síntese, que:
Todas as situações reportadas ao escoamento das águas são do perfeito conhecimento dos autores e existem desde há mais de 20 anos.
Há cerca de 10 anos, ocorreram algumas alterações, por conveniência e a pedido dos autores, na sequência das construções que estes fizeram no seu prédio, tendo sido eles que solicitaram a colocação dos tubos e o seu posicionamento.
Assim, até então, as águas pluviais do telhado das suas casas e dos terraços sempre escorreram, através de seis canos existentes no muro delimitador, para o prédio dos autores, onde existia um rego que as recebia.
Com a implantação da casa dos autores, e sempre com a sua anuência, foram colocados canos para melhor conduzir as referidas águas. 
Tudo de forma pública, pacífica, continuada e no convencimento de que exerciam um direito de servidão de escoamento de águas pluviais. 
Concluíram pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção pedindo que:
a) se declare e os AA sejam “condenados a reconhecer que sobre o seu prédio e a favor do prédio dos RR está constituída uma servidão de escoamento de águas pluviais tanto dos telhados das casas, como do espaço fronteiro às mesmas, materializada por seis buracos de duas polegadas existentes ao longo da parte superior do muro de suporte do espaço/logradouro fronteiro à casa dos RR”;
b) os AA sejam “condenados a manter livre a face exterior do muro de suporte do espaço fronteiro/logradouro da casa dos RR., designadamente dele afastando o amontoado de lenhas que têm mantido encostado ao mesmo”.
Pediram, ainda, que os AA sejam condenados como litigantes de má fé, em multa e em indemnização não inferior a 3.000,00 €.

Os autores responderam impugnando os factos alegados, reafirmando que quer o parapeito e o gradeamento quer as aberturas e os canos foram construídos e colocados depois de 29/8/2003, sem o seu consentimento, concluindo pela improcedência da reconvenção e pela procedência da acção e pedindo a condenação dos réus/reconvintes como litigantes de má fé em multa e indemnização não inferior a 5.000,00 €.

Na fase do saneamento, foi admitida a reconvenção, elaborado o despacho saneador tabelar e organizada a condensação, com selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória de que reclamaram, com êxito parcial, os autores.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, a qual decorreu em três sessões – em 31 de Outubro, 8 e 19 de Novembro de 2013 -, com gravação da prova produzida nas duas primeiras e com inspecção ao local em 12/11/2013, após o que, em 2/1/2014, foi proferida sentença que decidiu:
1. Julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condenar os réus E…, D… e Herança Indivisa Aberta por Óbito de F… e Herdeiros a reconhecerem os autores B… e C… como legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial;
b) Condenar os réus acima identificados a absterem-se de, por qualquer forma ou jeito, vazar qualquer tipo de águas salubres e insalubres e pluviais para o prédio dos autores, sem prejuízo das águas pluviais que escorram naturalmente, sem intervenção de mão humana;
c) Condenar os réus a retirarem e eliminarem as saídas e tubos que para tal efeito mantêm;
d) Condenar os réus acima identificados a reporem e a desobstruírem a linha de água de escoamento das águas pluviais ali sempre existente;
e) Condenar os réus acima identificados a realizar as obras necessárias e adequadas a evitar que decorram para o prédio dos autores qualquer tipo de águas;
f) Condenar os réus acima identificados a edificar na parte do pátio/quintal que deita directamente sobre o prédio dos autores um muro com parapeito não inferior a um metro e meio[1];
g) Absolver os réus de indemnizarem os autores por todos os prejuízos decorrentes da impossibilidade de granjeio do logradouro infestado, bem como as despesas necessárias à recuperação de tal solo;
h) Absolver os réus acima identificados do pagamento de uma quantia pecuniária não inferior a € 10,00 diários, a título de sanção pecuniária compulsória.
2. Julgar a reconvenção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência:  
i) Absolver os reconvindos globalmente do pedido reconvencional formulado pelos reconvintes e não declarar a existência de servidão de escoamento.

Inconformados com o assim decidido, os réus interpuseram recurso de apelação para este Tribunal e apresentaram a sua alegação que concluíram de forma deficiente, obscura e complexa, o que motivou a prolação do despacho de fls. 395 e v.º, tendo, na sequência desse convite, e não obstante o seu teor, formulado as seguintes conclusões:
“1. Mesmo com base na matéria de facto dada como provada, nunca se justificariam as decisões condenatórias das als. e) e f) por manifestamente contrárias à lei.
A da al. e) por não ressalvar o escoamento natural das águas pluviais de acordo, aliás, com a condenação da al. b); a condenação da al. f) porque, em consonância com a matéria de facto provada (v. al. J) dos factos provados) uma condenação desse teor apenas se justificava em relação à extrema poente do logradouro da casa dos RR., porque apenas aí existe um gradeamento que pode ser considerado parapeito e, mesmo em relação a esse, a condenação sempre teria que ser em alternativa: retirar esse gradeamento, ou elevá-lo até à altura de metro e meio.
2. No que respeita aos pedidos correspondentes às condenações das als. c) e d) também a acção não podia ser julgada procedente na medida em que, tratando-se de situações que já se verificavam pelo menos há 4 e 9 anos respectivamente ( v. als. S) e V) dos factos provados) com pleno conhecimento dos AA. e sem qualquer contestação ou oposição (pois nada foi alegado ou provado nesse sentido, a não ser imediatamente antes da propositura da acção), as pretensões deduzidas quanto às mesmas representam e traduzem manifesto abuso de direito na modalidade de "venire contra factum proprium".
3. Caso não seja acolhido o entendimento correspondente ao constante da conclusão anterior, com base numa melhor e mais correcta análise e valoração da prova produzida, designadamente com a devida consideração dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR., deve alterar-se a decisão da matéria de facto, passando a dar-se como não provada a factualidade das als. Q), R), V), W) e DD) dos factos dados como provados na sentença recorrida (tanto com base na insuficiência e fragilidade da prova dos AA., como na prova em sentido contrário resultantes dos depoimentos das testemunhas dos RR.) e provada a matéria factual dos pontos 7, 8 e 9 (este apenas até “feitas por estes”), 13, 15, 16, 17 e 18 dos factos dados como não provados da mesma sentença recorrida (com base na prova clara e segura que nos parece resultar dos depoimentos das testemunhas dos RR. e não infirmada por qualquer outra prova em contrário, designadamente das testemunhas dos AA.) e, na decorrência dessa alteração, a acção ser julgada procedente apenas quanto ao pedido da al. b) da p.i. no tocante a águas insalubres e quanto ao pedido da al. g) apenas relativamente à parte do logradouro das casas dos RR. em que foi colocado um gradeamento com cerca de um metro de altura, devendo os demais pedidos ser julgados improcedentes e a reconvenção ser julgada procedente.
4. No entender dos recorrentes a propugnada alteração da decisão da matéria de facto impõe-se em absoluto, tanto, com base nos depoimentos das testemunhas dos RR. como nos documentos fotográficos juntos com a p.i. e com a contestação e também de acordo com as regras da experiência comum, assim como na devida consideração de factualidade notória.
De forma alguma pode ser sufragada a decisão do Sr. Juiz recorrido de desconsiderar em absoluto os depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR., tanto que as justificações aduzidas para o efeito não são minimamente aceitáveis. 
Ao contrário do que entendeu o Mmo Juiz a quo, os depoimentos dessas testemunhas revelaram-se isentos, coerentes e espontâneos e para além de se basearem nas mais válidas e sólidas razões de ciência (percepção e conhecimento directo dos factos), foram prestadas de forma clara, firme, serena e desinteressada, em termos de deverem merecer toda a credibilidade.
Mesmo que assim não se considerasse relativamente às quatro, por duas delas (a J… e a K…) serem familiares próximas dos RR., forçoso era atribuir toda a credibilidade às outras duas, L… e M….
O primeiro porque foi o empreiteiro construtor da casa dos AA. que também inicialmente o arrolaram, mas do qual vieram a prescindir no início do julgamento.
Ora, como se referiu, tendo sido o construtor da casa dos AA., ninguém melhor do que ele podia pronunciar-se sobre as situações em causa sendo que, como resulta do seu depoimento transcrito e ressalvadas algumas imprecisões de pormenor perfeitamente compreensivas, depôs de forma a merecer toda a credibilidade.
Situação semelhante ocorreu com a testemunha M…, que também não tendo qualquer ligação familiar ou de outra natureza com qualquer das partes e estando de bem com todos, prestou um depoimento baseado em intervenção e conhecimento directo das situações sobre que versou.
Tal como a testemunha anterior, nada houve que pusesse em causa a verdade e as razões de ciência do seu depoimento que prestou sempre de forma clara, descomprometida, coerente e segura, também tanto a instâncias dos mandatários, como do Sr. Juiz e em confronto com as fotografias.
Mesmo as outras duas testemunhas (J… e K…), apesar de serem da família, revelaram conhecimento directo de toda a situação desde o seu início, a segunda porque sempre viveu lá e a primeira porque morou lá 19 anos.
Tal como as anteriores, também depuseram de forma clara, segura e descomprometida em termos de também deverem ter merecido credibilidade.
A verdade dos seus depoimentos não pode questionar-se, não só pelas respectivas razões de ciência e pela forma como foram prestados, como até por não terem hesitado em afirmar factos desfavoráveis aos RR..
Referimo-nos, nomeadamente, às águas que eram escoadas para o prédio dos AA. que, ao contrário do que consta da sentença, ambas reconheceram não serem apenas das chuvas, mas também de lavar os terraços.
5. Bem diferentes foram os depoimentos das três testemunhas arroladas pelos AA. e que foram valoradas pelo Mmo Juiz a quo.
Desde logo porque só uma (N…) não é da família.
Por outro lado, para além de terem invocado razões de ciência muito menos válidas que as dos RR., depuseram de forma também muito menos isenta, segura e coerente, além de que pelo repentismo e coincidência de muitas das suas respostas, designadamente quanto a datas, justificam muitas e as mais sérias dúvidas quanto à sua verdade e isenção podendo até admitir-se terem resultado de uma preparação e concertação prévias.
De resto, a não ser a irmã do A. marido, nenhuma das outras duas (as que foram valoradas positivamente) nada disseram de definitivamente relevante quanto aos factos essenciais em discussão (tubos de escoamento e tapagem do rego das barrocas).
O N…, limitou-se a dizer que um dia que estava no café, viu lá aparecer água que vinha do lado do prédio dos RR..
O O… disse que 2004, foi às traseiras da casa dos AA. colocar uma lâmpada e não viu tubos ou buracos nenhuns na parede de suporte do terraço da casa dos RR..
Mas depois, nomeadamente ao ser confrontado com o depoimento do empreiteiro da casa dos AA., acabou por admitir que existissem e não tivesse reparado.
Quanto ao rego não só afirmou desconhecer quem o tinha tapado, como disse que só estava tapado até ao meio.
Finalmente, a P…, para além das reservas que devia merecer não só por ser irmã do A. marido, como por estar de mal com os RR., a única razão de ciência que invocou foi a circunstância de morar próximo.
De resto, depôs de forma manifestamente tendenciosa, sempre a favor dos AA, disso mesmo sendo bem revelador, para além do evidente entusiasmo e interesse com que depôs, a preocupação de dizer o que parece que já tinha preparado, mesmo sem lhe ser perguntado.
6. Para o caso de não merecer acolhimento qualquer das teses já defendidas pelos RR. sempre se imporá a anulação do julgamento, por manifestamente insuficiente inadequada e até ilegal fundamentação da decisão da matéria de facto.
Insuficiente e inadequada porque decerto ninguém questionará poder aceitar-se a justificação de não acreditar numas testemunhas (dos RR.) por já ter acreditado noutras (dos AA.), nem apenas pela qualificação negativa dos depoimentos de umas (dos RR.) e positiva dos de outras (dos AA.).
Muito menos é aceitável justificar-se o crédito atribuído às testemunhas dos AA. por "corroboraram as declarações" do A. marido.
Além de não ser aceitável essa justificação é também ilegal, uma vez que sendo o presente processo anterior ao NCPC e o depoimento do A. marido produzido a requerimento dos RR. para incidir sobre factos desfavoráveis, esse depoimento só podia ser valorado para efeitos confessórios.
Ora, conforme consta do despacho de decisão da matéria de facto, esse depoimento (referido como "declarações") serviu, não apenas por si mesmo para justificar a decisão da matéria de facto, mas também como padrão aferidor da credibilidade das testemunhas dos AA!
7. Acresce que essa valoração, novamente ressalvado o devido respeito, também nos parece ser contrária aos da imparcialidade e isenção do julgador na decisão da causa. 
Com efeito, embora, estamos certos, não intencionalmente, parece-nos que o Sr. Juiz recorrido valorou a prova em função de uma posição previamente tomada em relação às duas versões em confronto, em favor dos AA. e em prejuízo dos RR.
Em relação aos RR. bastou uma simples divergência entre o alegado por eles nos articulados e o referido pela primeira testemunha inquirida (L… - empreiteiro da casa dos AA.) quanto aos tubos sobre o telhado do barraco já existirem antes da respectiva construção, ou só terem sido colocados depois, para desacreditar por completo, tanto essa testemunha, como toda a sua (dos RR.) "posição em Juízo". 
Enquanto que em relação aos AA. foi totalmente branqueada em termos de nada os afectar uma divergência que nos parece muito mais grave, pois nos articulados alegaram que só tiveram conhecimento da situação principal objecto do litígio (a existência dos tubos e escoamento de águas através deles para o seu terreno) no próprio ano da propositura da acção, mais propriamente em 30 de Setembro de 2011 ( v. art. 27 da p.i. e quesito 6º da B.I.) quando, conforme foi dado como provado e como o próprio A. marido reconheceu no seu depoimento, esse conhecimento adveio-lhe, pelo menos no ano de 2007.
Isto, para além de muitas outras divergências e contradições, tanto no depoimento do próprio A. como das suas testemunhas, conforme ficou salientado supra pela análise que dos mesmos fizemos.
Como se referiu e ao contrário do que sucedeu com os RR., essas divergências e contradições por banda dos AA., não só não foram valoradas negativamente como, por incrível que pareça e é forçoso concluir, até reforçaram a credibilidade, tanto do próprio A. marido, como das testemunhas arroladas pelos AA..
8. Por tudo quanto fica exposto, entendem os RR. que a sentença recorrida traduz incorrecta análise e valoração da prova, violação do princípio da isenção e imparcialidade do julgador, menos correcta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, nomeadamente dos arts.334º, 1351º, nº1 (na medida em que, mesmo com base na matéria de facto provada, a condenação da al. e) da sentença recorrida devia ressalvar o escoamento natural), 1360º, nº2, do C. Civil, 552º e segs do C.P.C e 462º e 466º, estes dois últimos do NCPC, pelo que
No provimento do presente recurso, deve revogar-se a sentença recorrida e, em sua substituição ser proferida outra que julgue a acção apenas parcialmente procedente em termos de a 2ª R. altear o gradeamento referido na al. L) da Matéria de Facto Assente de forma a observar as restrições legais, retirando-o ou elevando-o a uma altura não inferior a metro e meio e todos os RR. a não escoarem para o prédio dos AA. outras águas a não ser as das chuvas caídas no terraço ou logradouro das suas casas e na procedência da reconvenção, declarar-se e serem os AA. condenados a reconhecer que sobre o seu prédio e a favor do prédio dos RR. está constituída uma servidão de escoamento de águas pluviais, tanto dos telhados das casas, como do espaço (terraço ou logradouro fronteiro às mesmas) materializada por seis buracos de duas polegadas existentes ao longo da parte superior do muro de suporte do mesmo espaço fronteiro à casa deles (RR.).
Em qualquer dos casos, tanto por se impor concluir que os AA. alegaram conscientemente contra a verdade dos factos como chegaram ao ponto de, antes do julgamento, alterar situações existentes e por eles reconhecidas nos articulados com a evidente e inegável finalidade de iludir a verdade e o próprio Tribunal, pensamos justificar-se serem os mesmos condenados como litigantes de má-fé, nos termos peticionados na contestação/reconvenção.
Para o caso de assim não se entender, tanto por insuficiente inadequada e ilegal fundamentação da decisão da matéria de facto, como por inobservância e violação dos deveres de isenção e imparcialidade do julgador, por parte do Sr. Juiz recorrido, deve anular-se o julgamento e determinar-se a sua repetição, só assim podendo resultar, a nosso ver, melhor interpretada e aplicada a lei e realizada a JUSTIÇA”. 

Os autores contra-alegaram pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Remetidos os autos a este Tribunal, foram mantidos a espécie e o efeito fixados na 1.ª instância.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões dos recorrentes [cfr. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do NCPC, aqui aplicável, visto se tratar de uma sentença proferida após a data da sua entrada em vigor, numa acção instaurada depois de 1/1/2008 (cfr. art.ºs 5.º, n.º 1 e 8.º, ambos da Lei n.º 41/2013, de 26/6)], não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir consistem em saber:
a) Se pode/deve ser alterada a matéria de facto;
b) Se é caso de anulação do julgamento;
c) Se a condenação da alínea f) deve ser restringida à parte poente do logradouro da casa da 2.ª ré e decretada em alternativa;
d) Se a condenação da alínea e) é ilegal por não ressalvar o escoamento natural das águas pluviais;
e) Se existe abuso de direito na formulação dos pedidos subjacentes às condenações c) e d);
f) Se está constituída uma servidão de escoamento de águas pluviais do prédio dos autores a favor do prédio dos réus;
g) E se os autores litigam de má fé.
Apesar de os recorrentes formularem os pedidos de alteração da matéria de facto e de anulação do julgamento de forma subsidiária, como parece, visto que as respectivas conclusões são iniciadas, respectivamente, com as expressões “caso não seja acolhido o entendimento correspondente ao constante da conclusão anterior” (cfr. conclusão 3.ª) e “para o caso de não merecer acolhimento qualquer das teses já defendidas” (cfr. conclusão 6.ª), afigura-se-nos que o seu conhecimento deve preceder a apreciação de qualquer outra pretensão.
Com efeito, razões de ordem lógica impõem a definição prévia da matéria de facto provada, pois é com base nela que deve ser feito o enquadramento jurídico das restantes questões suscitadas e aquela pressupõe a realização do julgamento onde a prova tenha sido produzida.
E tal precedência é também imposta pela lei na medida em que manda discriminar, nos fundamentos do acórdão, os factos que se consideram provados e, de seguida (subentende-se), indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes (cfr. art.º 607.º, n.º 3, e 663.º, n.º 2, ambos do NCPC.
Assim, e porque se trata da aplicação das regras de direito sobre o que não estamos sujeitos às alegações das partes (art.º 5.º, n.º 3, do NCPC), seguir-se-á a ordem supra referida na apreciação das questões elencadas. 

II. Fundamentação

1. De facto  

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

A) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Mesão Frio, sob o n.º 628/20010129/freguesia …, o prédio urbano sito no …, composto por casa de rés-do-chão e andar, sendo o r/c para comércio e o andar com 6 divisões destinadas a habitação, e logradouro com 79,02 m2 e a superfície coberta de 174,98 m2, a confrontar do Norte com caminho público, Sul e Poente com Q… e Nascente com a Estrada Nacional …, inscrito na matriz sob o art.º 705 [alínea A) da matéria de facto assente].
B) A aquisição do prédio descrito em A) encontra-se inscrita a favor dos AA desde 29/01/2011, por doação [alínea B) da matéria de facto assente].
C) Desde há mais de 20, 30, 50 anos consecutivos, os AA., por si e pelos respectivos antepossuidores, usufruem do prédio referido em A), nele habitando e guardando produtos e alfaias agrícolas, transformando-o e melhorando-o como entendem, granjeando-o e colhendo os respectivos frutos, pagando sempre os impostos que lhe respeitam, continuamente, à vista e com o conhecimento de todas as pessoas do lugar sem que alguém, em algum momento, tenha posto em causa ou perturbado estes seus actos, convictos, desde sempre, de serem os proprietários do mesmo prédio [alínea C) da matéria de facto assente].
D) O prédio descrito em A) confronta, por contiguidade física imediata, pelo lado poente, com dois prédios urbanos, compostos por casas destinadas a habitação autónomas e individualizadas, que são dos 1ºs RR. e do autor da herança demandada, F… e sua esposa, G… [alínea D) da matéria de facto assente].
E) A herança aberta por óbito de F… encontra-se por partilhar [alínea E) da matéria de facto assente].
F) Cada um dos prédios urbanos referidos em D) é servido exteriormente por um pátio, deitando o pátio ou quintal dos mesmos directa e imediatamente para o prédio dos AA. [alínea F) da matéria de facto assente].
G) Os prédios urbanos referidos em D) encontram-se implantados em terreno que se situa a um nível superior, de cerca de 2 a 3 metros, relativamente ao prédio dos AA. [alínea G) da matéria de facto assente].
H) Os 1.ºs RR usufruem e ocupam um dos dois prédios urbanos referidos em D) e os 2.ºs RR o outro, dos quais se intitulam donos e legítimos possuidores, sendo como tal por todos considerados [alínea H) da matéria de facto assente].
I) Cada um dos referidos prédios urbanos faz o escoamento de águas para o prédio descrito em A) [alínea I) da matéria de facto assente].
J) Nos pátios dos prédios urbanos referidos em D), junto da extrema poente do prédio descrito em A), existe uma construção com cerca de 30 cm de altura na qual se encontra aposto um gradeamento com cerca de 1 metro de altura, que deita para aquele prédio [alínea J) da matéria de facto assente].
K) A colocação do gradeamento referido em J) parapeito foi efectuada no prédio dos 1ºs RR., há cerca de 8, 9 anos, depois de ter sido edificado o urbano descrito em A) [alínea K) da matéria de facto assente].
L) E o gradeamento do prédio dos 2.ºs RR foi efectuado há cerca de 3 anos [alínea L) da matéria de facto assente].
M) O mandatário dos AA enviou aos RR em 11/10/2011, e estes receberam, as cartas que constam de fls. 23-24 e 26-27 [alínea M) da matéria de facto assente].
N) Para o escoamento de águas referido em I), o prédio dos primeiros réus possui tubos, especificando-se que actualmente apresenta um cotovelo de tubo e a evidência de ter sido arrancado um tubo, junto a um buraco no muro (resposta ao quesito 1.º da base instrutória).
 O) E o prédio dos segundos réus saídas para o efeito (resposta ao quesito 2.º da base instrutória).
P) Os tubos e as saídas mencionadas em N) e O) projectam as águas para o prédio descrito em A) a cerca de 2 a 3 metros de altura (resposta ao quesito 3.º da base instrutória).
Q) As águas referidas em I) são as pluviais e as provenientes das lavagens dos pátios e garagens dos prédios dos réus, da roupa e de outros tipos de utilização doméstica (resposta ao quesito 4.º da base instrutória).
R) Os tubos e as saídas acima referidas foram respectivamente colocados pelos réus, sem o consentimento dos autores, sem prejuízo do encaminhamento feito pelo autor para aproveitamento das águas dos consortes para rega (resposta ao quesito 5.º da base instrutória).
S) Os autores tomaram conhecimento do descrito de N) a Q), pelo menos, no ano de 2007 (resposta ao quesito 6.º da base instrutória).
T) Detrás dos urbanos dos réus sempre existiu uma linha de água que servia de escoamento das águas pluviais provenientes dos prédios vizinhos ali existentes (resposta ao quesito 7.º da base instrutória).
U) A linha de água referida em T) é constituída por um rego que começa no …, freguesia …, passa pelas traseiras dos prédios dos réus, ladeia depois uma poça de água denominada por “S…” e vai desembocar num aqueduto da via pública ali existente (resposta ao quesito 8.º da base instrutória).
V) Há cerca de 9 anos atrás, os primeiros réus taparam a referida linha de água, rego, com a construção de um pátio em cimento (resposta ao quesito 9.º da base instrutória).
W) Obstruindo, dessa forma, o escoamento das águas pluviais provenientes dos prédios vizinhos para o referido aqueduto (resposta ao quesito 10.º da base instrutória).
X) O acima referido fez com que todas as águas provenientes dos prédios vizinhos e que circulam pela referida linha de água passassem a desaguar no prédio descrito em A) (resposta ao quesito 11.º da base instrutória).
Y) Os autores exploram no prédio descrito em A) um estabelecimento comercial denominado por “T…” (resposta ao quesito 12.º da base instrutória).
Z) O terreno do logradouro do prédio descrito em A) encontrava-se húmido (resposta ao quesito 16.º da base instrutória).
AA) No referido logradouro, para além das árvores de fruto, os autores também plantavam produtos hortícolas (resposta ao quesito 19.º da base instrutória).
BB) A construção com cerca de 30 centímetros de altura referida em J) foi efectuada há cerca de 8 anos, depois de ter sido edificado o urbano descrito em A), no prédio dos primeiros réus (resposta ao quesito 20.º da base instrutória).
CC) Os buracos no muro estão separados entre si por distância não concretamente determinada e têm larguras distintas de tamanho não concretamente apurado (resposta ao quesito 25.º da base instrutória).
DD) Os autores, aquando da construção da sua casa, e para aproveitamento da água dos consortes, que anteriormente eram encaminhadas para um tanque no seu terreno, colocaram um tubo, no limite do espaço fronteiriço dos prédios em apreço, na zona onde existira o tanque, para orientarem as ditas águas para uma caixa de água, construída para o efeito, não ligada à rede pública (resposta ao quesito 26.º da base instrutória).
EE) Os autores vêm mantendo encostados ao mesmo muro do prédio dos réus, mediante separação de placas de esferovite azuis, diversos materiais designadamente lenhas (resposta ao quesito 37.º da base instrutória).

2. De direito

2.1. Da alteração da matéria de facto

O art.º 662.º, n.º 1, do NCPC dispõe: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Desta norma resulta que a modificação da decisão de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, págs. 221 e 222).
Para tanto, os recorrentes terão que observar os ónus impostos pelo art.º 640.º do mesmo Código, o qual estabelece que:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) ….”
Na reapreciação dos meios de prova, tal como no regime anterior, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, assim assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância (cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ – STJ -, ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ – STJ -, ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt). 
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada” (Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt).
No caso sub judice, os recorrentes observaram satisfatoriamente tais ónus, pelo que se impõe a reapreciação dos factos por eles impugnados.
Tais factos são os que constam das alíneas Q), R), V), W), X) e DD) da fundamentação de facto, acima transcrita, que os recorrentes querem ver dados como não provados, e os factos dados como não provados sob os n.ºs 7, 8, 9, 13, 15, 16, 17 e 18, correspondentes, respectivamente, aos quesitos 23.º, 24.º, 27.º, 31.º, 33.º, 34.º, 35.º e 36.º, que entendem ter ficado provados.
Estes quesitos têm o seguinte teor:23.ºAs águas que escoam para o prédio dos autores são apenas as pluviais? 24.ºO escoamento das águas referido em I) sempre se fez através de seis buracos que se dispõem ao longo da parte superior do muro de suporte do espaço descoberto/logradouro da casa dos réus? 27.ºNo segundo buraco, a seguir ao referido em 26.º., os réus colocaram, a pedido dos AA., outro tubo, que ficou ligado a uma caixa de recepção feita por estes para ligação directa à rede pública?31.ºNa altura da construção do barraco referido em 28.º, os AA puseram dois pequenos tubos nos buracos existentes sobre o telhado do mesmo barraco?33.ºO escoamento das águas nos moldes descritos em 26.º e 27.º já se verificava antes da construção das casas dos RR e quando o seu terreno era utilizado para fins de cultivo?34.ºO escoamento nos moldes descritos em 26.º a 32.º já ocorre há mais de 20 anos, continuada e ininterruptamente?35.ºÀ vista e com conhecimento de toda a gente, sempre sem qualquer contestação ou oposição de alguém, incluindo os autores e os seus antecessores?36.ºSituação que os RR mantêm e sempre consideram como tradução e exercício de um direito próprio, e sem violação de qualquer direito de outrem?
Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, quanto aos factos impugnados e outros com eles relacionados, o Ex.mo Juiz que presidiu à audiência de discussão e julgamento e proferiu a sentença escreveu:
“A convicção do Tribunal, para responder à matéria de facto controvertida nos termos supra expostos, assentou na ponderação crítica e conjugada de todos os meios de prova produzidos ao longo do processo, tendo em conta, igualmente, a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
Foi ponderada toda a prova documental junta aos autos, nomeadamente, os documentos de folhas 14 a 15 (caderneta predial urbana), 16 a 17 (certidão predial permanente), 18 a 22 (fotografias), 23 a 28 (correspondência), 65 a 66 (fotografias) e 101 (alvará de utilização).
A inspecção judicial ao local permitiu ao Tribunal percepcionar a configuração do local, garantindo, em conjunto com a prova testemunhal e documental produzidas, dar como demonstrados e não demonstrados os factos como acima se elencaram e como melhor se explicitará infra.
A ponderação destes elementos pautou-se pelas regras do ónus da prova e pelas regras do normal acontecer das coisas.
…
O facto Q. assenta no depoimento de P… e no auto de inspecção ao local. Além de demonstrarem o facto em apreço, corroboram o depoimento do autor.
Com efeito, e tendo por referência configuração do espaço do pátio e do encaminhamento da água do tanque e de uma torneira para um dos buracos por onde escorre água para o prédio do autor, dúvidas não restam de que os réus escoam outras águas que não só as pluviais, como referido pela testemunha. Em face dos elementos recolhidos no auto de inspecção ao local, a conclusão a que se chega decorre igualmente das regras do normal acontecer das coisas.
O facto R. decorre como exposto dos testemunhos de P… e de O…. Vão de encontro ao declarado pelo autor e às cartas enviadas pelo mesmo aos réus e que constam de folhas 22 a 28.
Na verdade, resulta da prova produzida que antes da construção do prédio dos autores, aquele prédio destinava-se a cultivo havendo aproveitamento da água das chuvas que escorriam dos prédios mais altos. Água essa encaminhada por um rego ali existente e aproveitada num tanque que existia no prédio do autor (anteriormente do pai do autor e da testemunha P…). Aproveitamento esse que o autor, com construção de duas caixas de água, pretendeu aproveitar para o resto de terreno que sobrou da construção do urbano.
Não obstante as mencionadas cartas datem de 2011, o certo é que, da prova produzida, se baliza o dito conhecimento em 2007. Facto S.
Os factos T. a X. assentam nos testemunhos de P… e de N…, revelando conhecimento dos factos em apreço e demonstrando-os de forma verosímil. No caso da primeira testemunha referida, temos que a mesma fez a sua vida naquela localidade e é familiar e conhecida das partes neste processo e também dos prédios em apreço.
Neste ponto e para demonstração dos factos V. a X., o Tribunal valorou igual e conjuntamente as regras do normal acontecer das coisas e o auto de inspecção ao local.
Confirmou-se no local a existência do rego, como descrito pelas testemunhas que vai na direcção (entrando) do prédio dos réus e desvia para baixo para o terreno dos autores e outros consortes. Do lado de lá do terreno dos réus existe um reservatório de águas das chuvas.
Ora, considerando a origem dos prédios (em momento anterior às construções neles existentes), considerando a necessidade de escoamento de águas, atenta a inclinação dos prédios e até a necessária rega dos terrenos, temos que o rego atravessava efectivamente os prédios dos réus. Não faria sentido que o rego, descendo das barrocas entrasse no terreno dos réus e desviasse para o terreno dos autores (para baixo), não deixando qualquer água para os réus.
Acresce que, e como referido, existe do lado oposto ao que nos referimos o dito espaço onde cai a água da chuva. Faz todo o sentido que o mesmo recebesse águas do dito rego que fora interrompido.
…
O facto DD. assenta no depoimento de parte do autor em conjugação com o auto de inspecção ao local e demais prova acima referida.
…
Os factos não provados não obtiveram qualquer prova.
…
Da motivação que se vem expondo resulta exactamente o contrário do descrito no facto 7 (razão pela qual se dá o mesmo como não provado).
Em relação ao facto 8. impõe-se referir que a prova produzida e que se valora positivamente demonstra o contrário. Na verdade, o espaço em frente à casa dos réus não teve sempre a configuração que apresenta, sendo que anteriormente a água escorria pelo rego e era encaminhada para um tanque (já existente) e para o aqueduto.
Facto 9. Não ficou demonstrado que existisse qualquer ligação, feita a pedido ou não dos autores, de ligação à rede pública. Aliás, não se demonstrou (que) as duas caixas existentes na parte de trás do prédio dos autores estejam ligadas à rede pública. Nessa medida, o facto não pode dar-se como provado.
…
O facto 13 não foi referido por nenhuma testemunha. Aliás, o sentido da inquirição das testemunhas, feita pelos réus, foi no sentido de tentar demonstrar que os mesmos já existiam e não que os autores tivessem solicitado a sua colocação.
Facto que descredibiliza a posição dos réus e das testemunhas que sobre este facto depuseram.
De todo o modo, sempre se dirá que do depoimento das testemunhas acima valoradas, nomeadamente, O…, resulta que à data da construção do barraco, o topo do telhado ficou ao nível do pátio dos réus e que o canteiro hoje aí existente, não existia ainda.
A ser assim, o barraco foi construído no limite da altura do muro de separação dos prédios e não por existirem tubos que impedissem que o mesmo pudesse ser construído mais acima.
…
Os factos 15. a 18. estão em contradição com os factos que se dão como provados, não encontrando, por isso, sustento na prova que se valora positivamente.
De facto, o escoamento das águas, como já exposto, nem sempre se fez do modo alegado nos factos em apreço, não podendo darem-se os mesmos como provados, nem pelo tempo de 20 anos.
Recorde-se que existia efectivamente um rego e que o encaminhamento das águas era feito para um tanque.
Neste contexto, e estando interligados, não podem ter-se como provados os referidos factos.
…
U… não apresentou um discurso escorreito, pelo que foi afastada a sua valoração para decisão da presente decisão da matéria de facto.
M… apresentou um discurso pessoalizado, pouco escorreito e menos espontâneo do que os que se valoram positivamente. Acresce que foi contrariado pelos testemunhos e pela prova acima considerada, levando a que afastássemos a sua credibilidade e não o relevássemos para a presente decisão de facto.
Os depoimentos de J… e K… não foram valorados porque comprometidos com a verdade. Ao afirmarem que apenas escorre água das chuvas para o prédio dos autores, as mesmas ocultam o facto de que escorrem igualmente águas do tanque e de uma torneira mais acima, como o demonstra o auto de inspecção ao local e como o demonstram as demais testemunhas, como acima exposto.
Em momento algum é dada uma justificação pelas testemunhas para aquele facto e para o eventual escoamento das águas do tanque para outro local que não o prédio dos autores. Explicação expectável até pela segunda testemunha mencionada que viveu no local e ainda faz a sua vida lá, pois que é filha dos primeiros réus.
Foram prescindidos o depoimento de parte da autora mulher e dos demais testemunhos não referenciados.
…”
Importa, desde já, afirmar que, analisada toda a prova produzida, não há razões para alterar a matéria de facto no sentido pretendido pelos recorrentes. A discordância destes radica, essencialmente, numa apreciação diferente da que foi feita pelo Ex.mo Juiz e que serviu para formar a sua convicção, onde foi decisiva a imediação, pelo que se torna impossível sindicar a respectiva decisão.
A apreciação feita pelo Tribunal a quo mostra-se muito bem fundamentada e tem suporte na prova produzida, designadamente a testemunhal, com apenas uma ou outra divergência de pormenor, sem significado.
De qualquer modo, importa referir que os depoimentos das testemunhas indicadas pelos apelantes não são susceptíveis de basear a pretendida alteração, não só porque não confirmaram, na sua plenitude, a versão apresentada pelos recorrentes, tendo dela divergido, mas também porque foram contrariados pelas testemunhas indicadas pelos autores, designadamente, a P…, o O…, o N… e mesmo o U… que foi indevidamente desconsiderado na motivação de facto, os quais confirmaram a versão apresentada pelos demandantes e sustentada pelo autor em audiência de discussão e julgamento, tendo deposto com isenção e de forma convincente, mostrando-se conhecedores da realidade sobre que depuseram.
Na verdade, a P…, irmã do autor e prima dos réus, disse conhecer bem o local da contenda por viver nas proximidades e confirmou a totalidade dos factos provados e impugnados. Foi peremptória ao afirmar que no muro em questão não havia tubos antes da sua reconstrução, ocorrida há cerca de dez anos, e desmentiu, categoricamente, o L…, que a precedera na prestação do seu depoimento.
O U… também confirmou aqueles factos, dos quais revelou ter conhecimento por residir perto do local e cultivar uma horta no terreno dos autores, desde há cerca de dez anos, tendo afirmado que, no início, não havia quaisquer tubos no muro e que depois os réus fizeram nele buracos, tendo colocado tubos em quatro.
O N… referiu conhecer o local desde antes da construção das casas, que por detrás das casas dos réus existia um rego por onde passava água de consortes, o qual foi tapado com cimento, junto à casa da E…, passando a água a escorrer para o prédio dos autores, conforme teve oportunidade de constatar uma vez quando estava no café destes.
O O…, primo por afinidade do autor e cunhado do réu D…, revelou conhecer bem o local e foi peremptório ao afirmar que, em 2004, não existiam quaisquer tubos no muro, os quais foram colocados posteriormente em data que desconhece, esclarecendo que tem a certeza dessa data porque andou a electrificar o exterior da casa dos autores. 
Os depoimentos destas testemunhas contrariam os depoimentos das testemunhas arroladas pelos réus. Além disso, os depoimentos destas não se revelaram convincentes, quer pela forma como depuseram, quer pelas relações de amizade e de parentesco que mantêm com os réus.
O L…, apesar de referir que construiu a casa dos autores há mais de dez anos e que nessa altura já existiam no muro 5 ou 6 “tubinhos” que substituiu pelos actuais, referência que repetiu várias vezes, por sugestão do ilustre mandatário dos réus ao mesmo tempo que dizia “não tem dúvidas”, disse que não se recordava quando começou a construção e que entregou a obra concluída quando foi concedida a licença de habitabilidade, o que ocorreu em 29 de Agosto de 2003, conforme alvará cuja cópia está junta aos autos a fls. 101.
O M…, apesar de referir que procedeu à reconstrução do muro em 1990, data que mencionou prontamente e com certeza, revelou muita amizade para com o autor da herança ré e dos seus herdeiros, indo aos aniversários daquele até há cerca de doze anos e sendo visita da casa destes. Mesmo assim disse que o muro era encimado por uma fiada de tijolos com dois ou três tubos para escoamento.
A J…., cunhada dos réus, manifestou nervosismo e hesitação no depoimento, falando em quatro buracos debaixo do canteiro, tendo sido colocados em dois deles tubos pretos, sendo que a inspecção ao local refere a cor cinzenta, o que também é revelado pelas fotografias enviadas por correio electrónico.
Finalmente, a K…, além de ser filha dos 1.ºs réus e sobrinha da G…, manifestou interesse no desfecho do processo e manifestou animosidade para com os autores, que ocultou e prestou o depoimento em tom jocoso, pelo que nada convenceu.
Apesar de o autor ter prestado o seu depoimento, a requerimento dos réus, visando obter, como é óbvio, a confissão judicial provocada, a qual é obtida em juízo e consiste no reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (cfr. art.ºs 352.º e 356.º, n.º 2, ambos do Código Civil), e não obstante não ter sido obtida, como resulta, desde logo, da falta de redução a escrito na respectiva acta, como devia caso tivesse havido confissão (cfr. 463.º do NCPC), as suas declarações podem ser livremente apreciadas pelo tribunal (cfr. art.º 466.º, n.º 3, do NCPC).
Nem se diga que este Código não é aplicável ao presente caso, por se tratar de um processo iniciado antes da sua entrada em vigor.
Com efeito, como já se referiu, tem aqui aplicação o NCPC por força do disposto no art.º 5.º, n.º 1, da citada Lei n.º 41/2013, que manda aplicá-lo imediatamente às acções declarativas pendentes, e visto que a sentença foi proferida após a sua entrada em vigor (cfr. art.º 8.º da mesma Lei), numa acção instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, tendo também o depoimento sido prestado após 1 de Setembro de 2013 (cfr., neste sentido, o Conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 15).
E já resultava do regime geral previsto no art.º 12.º do Código Civil.
Deste artigo resulta que, na área do direito processual, a nova lei se aplica não só às acções futuras, mas também aos actos futuros praticados nas acções pendentes (cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 49).
O Prof. Alberto dos Reis já escreveu, há muito, que “A lei nova aplica-se imediatamente aos actos que houverem de praticar-se a partir do momento em que ela entra em vigor; quanto aos actos já praticados à sombra da lei antiga, subsiste o império desta lei” (in RLJ, 81.º, pág. 202, citado em nota de rodapé por aqueles autores, na pág. 54).
Ainda que se entenda que as declarações de parte só podiam valer como confessórias não reduzidas a escrito [cfr. Isabel Alexandre, num artigo sobre “A fase da instrução e os novos meios de prova no Código de Processo Civil de 2013”, publicado na Revista do Ministério Público 134 (Abril - Junho 2013 págs. 9-42)], a ausência de confissão não é bastante para alterar a matéria de facto impugnada, porquanto as declarações do autor não foram exclusivas na formação da correspondente convicção. Com exclusão do que consta da alínea DD), elas apenas serviram como referência dos depoimentos prestados e não como fundamento ou motivação da respectiva decisão. E, mesmo quanto àquela alínea, não foram exclusivas, pois na base da decisão esteve a inspecção ao local, para além do confronto de toda a prova produzida.
Nesse confronto, a prova deve ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto.
A este propósito, o Prof. Alberto dos Reis já ensinava, há muito, que “prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” (cfr. Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág. 570).
A essas regras de apreciação está sujeita a prova testemunhal, como expressamente dispõe o art.º 396.º do Código Civil.
Porém, dada a sua reconhecida falibilidade, impõe-se uma especial avaliação crítica com vista a uma valoração conscienciosa e prudente do conteúdo dos depoimentos e da sua força probatória, devendo sempre ter-se em consideração a razão de ciência do depoente e as suas relações pessoais ou funcionais com as partes.
Há, ainda, que apreciar a prova no seu conjunto, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência, em face do princípio da aquisição processual (cfr. art.º 413.º do NCPC).
E, nessa apreciação global, o julgador poderá lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, isto é, no seu prudente arbítrio, poderá deduzir de certo facto conhecido um facto desconhecido (art.ºs 349.º e 351.º, ambos do C. Civil).
Como corolário da sujeição das provas à regra da livre apreciação do julgador, consagrada no art.º 607.º, n.º 5, do NCPC, impõe-se-lhe indicar “os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348 e Ac. da RC de 3/10/2000, CJ, ano XXV, tomo IV, pág. 27).
O Ex.mo Juiz fundamentou a sua convicção, motivando-a, clara e proficientemente. 
A fundamentação da matéria de facto mostra-se criteriosa, muito bem desenvolvida, com uma apreciação cuidada, e tem suporte na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos. 
Da reapreciação efectuada por este Tribunal, considerada a prova em causa no seu conjunto, segundo critérios de valoração racional e lógica, não há razões para nos afastarmos do entendimento tido na 1.ª instância, quanto à matéria em análise, pois que não se vislumbra qualquer desconformidade entre a dita prova e a respectiva decisão, muito menos notória, em violação dos princípios e regras do direito probatório.
Da análise crítica dos depoimentos prestados, dos documentos juntos aos autos e do auto de inspecção judicial ao local não pode ficar-se com outra convicção que não seja a do tribunal recorrido.
E é esta análise crítica e integrada dos depoimentos com os outros meios de prova que os juízes devem fazer, pois a sua actividade, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos, muito menos truncados, interessados e parciais. 
Por isso, e porque não foi apresentado qualquer documento novo superveniente susceptível de destruir a prova em que aquela decisão assentou, não pode este Tribunal alterar a matéria de facto impugnada, pelo que se mantém.

Improcedem, por conseguinte, ou são irrelevantes, por descabidas, as correspondentes conclusões.
No entanto, impõe-se alterar, oficiosamente, a matéria de facto tida como assente nas alíneas J), K) e L), por não corresponder ao que fora alegado e confessado.
Na verdade, como resulta da matéria alegada, ainda que de forma deficiente e algo confusa, nos art.ºs 45.º, 46.º, 47.º, 49.º e 50.º da petição inicial, e do art.º 44.º da contestação, apenas existe um gradeamento no prédio da 2.ª ré, com cerca de um metro de altura, e um denominado parapeito com cerca de 30 centímetros de altura no prédio dos 1.ºs réus.
Nesta conformidade, procede-se à alteração daquelas alíneas nos seguintes termos:
J) Junto à extrema poente do prédio descrito em A), e a deitar para ele, no pátio do prédio urbano da 2.ª ré, existe um gradeamento com a altura de cerca de um metro, e, no pátio do prédio dos 1.ºs réus, existe uma construção com cerca de 30 centímetros de altura.
K) Esta construção foi efectuada há cerca de 8 anos, depois de ter sido edificado o prédio descrito em A).
L) E o gradeamento do prédio da 2.ª ré foi efectuado há cerca de três anos.

2.2. Da anulação do julgamento

O citado art.º 662.º, n.º 2, al. c) prevê que a Relação deve, mesmo oficiosamente, “anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Da simples leitura desta alínea extrai-se que a anulação está prevista apenas para os casos em que a decisão sobre a matéria de facto se repute “deficiente, obscura ou contraditória” e não constem do processo todos os elementos que permitam a sua reapreciação, bem como para os casos de ampliação da matéria de facto.
Naqueles casos é necessário estar perante decisões total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias e não constarem do processo os elementos em que o tribunal a quo se fundou, situação rara atenta a obrigatoriedade de gravação das audiências.
No caso de ampliação da matéria de facto, é necessário que ela seja indispensável e pressupõe a omissão dos temas da prova de factos alegados pelas partes que se revelem essenciais para a resolução do litígio, não bastando que os factos tenham conexão com alguma das “soluções plausíveis da questão de direito”.
“Em qualquer dos casos, a anulação do julgamento deve ser sempre uma medida de último recurso, apenas legítima quando de outro modo não for possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que isso determina nos vectores da celeridade e da eficácia” (cfr. Abrantes Geraldes, obra citada, págs. 239 a 241).
Os fundamentos invocados pelos recorrentes não se subsumem a algum desses casos.
Não se trata de falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, de ininteligibilidade ou imprecisão, nem de incongruências da decisão sobre a matéria de facto. Para além disso, os autos fornecem todos os elementos em que o tribunal da 1.ª instância fundou a sua decisão, necessários à sua reapreciação, a qual acabou de ser feita.
E também não é caso de ampliação da matéria de facto.
Tais fundamentos radicam exclusivamente na motivação da decisão de facto. E eles jamais poderiam ser causa de anulação.
Não se compreende, assim, a pretensão da anulação, muito menos, deduzida a título subsidiário.

Improcedem, deste modo, as conclusões atinentes a esta questão.

2.3. Do parapeito

Nos termos do art.º 1360.°, n.º 1, do Código Civil, o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.
A mesma restrição se aplica a varandas, terraços, eirados e obras semelhantes quando sejam servidos de parapeito de altura inferior a metro e meio, em toda a sua extensão ou parte dela (n.º 2).
Conforme dispõe o art.º 1362.°, n.º 1, do mesmo diploma, a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção com o disposto na lei (por exemplo, a deitarem directamente sobre o prédio vizinho) pode importar, nos termos gerais, a constituição de servidão de vistas por usucapião.
Constituída a servidão, fica onerado o prédio vizinho com este encargo, não podendo o seu dono construir nele sem que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras do vizinho o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras (n.º 2 do art.º 1362.°).
Relativamente aos terraços, que é o que importa aqui considerar, mais do que as vistas é a devassa que está em causa. Por isso, a lei exige que sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio. Os prejuízos só começam a ser atendíveis se existir um parapeito, porque as pessoas podem debruçar-se nele, ocupando parcialmente o prédio alheio. Isso mesmo se escreveu na Revista de Legislação e de Jurisprudência (ano 99.º, pág. 240) nestes termos: “isto quer dizer que não são propriamente as vistas que interessam, mas o devassamento, ou melhor, a possível ocupação do terreno vizinho. Basta que, no parapeito duma janela ou dum terraço, a pessoa se debruce, numa atitude natural, ou estenda um braço, para que haja violação do direito de propriedade alheia, e é isso o que importa evitar”[2]. 
Nesta mesma linha, os Professores Pires de Lima e Antunes Varela escreveram:
“Não pode dizer-se que a existência de um simples terraço ou eirado, a um nível superior ao do prédio vizinho, afecte mais gravemente este do que a simples contiguidade à superfície. Praticamente, a devassa é a mesma. Tanto vale estar no terraço como no solo, para poder ver o que se passa no terreno vizinho”.
E alertam para a exigência de parapeito, escrevendo: 
“Não pode, porém, esquecer-se, mesmo na nossa lei, que é exigido um parapeito, e que não pode considerar-se como tal uma parede divisória de alguns centímetros ou mesmo decímetros de altura. Ele deve ter as dimensões suficientes para que possa servir de apoio à pessoa, para que esta possa debruçar-se, apoiando-se nele, sobre o terreno do vizinho”[3].
No caso dos autos, não se verifica este parapeito, legalmente exigido, relativamente aos 1.ºs réus. 
Efectivamente, no seu terraço a deitar para o prédio dos autores apenas existe um muro com a altura de cerca de 30 centímetros, o que impossibilita qualquer pessoa de se debruçar sobre ele e assim devassar aquele prédio.
Por isso, nesta parte, não podia haver qualquer condenação dos 1.ºs réus, impondo-se antes a sua absolvição do correspondente pedido.

Quanto ao gradeamento existente no prédio da segunda ré, já permite tal devassa, visto ter cerca de um metro de altura, pelo que não pode manter-se tal como está, por violar o n.º 2 do citado art.º 1360.º.
Para evitar tal violação, tanto pode ser feito um gradeamento ou parapeito com altura não inferior a um metro e meio como pode ser, pura e simplesmente, retirado o existente.
Daí que se imponha a condenação da 2.ª ré, em conformidade, como vem pedido na apelação.
Destarte, procedem as conclusões atinentes a esta questão.

2.4. Do escoamento natural das águas

O art.º 1351.º do Código Civil estatui:
“1. Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente.
2. Nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, nos caos em que é admitida”.
Neste normativo consagra-se o princípio de que as águas devem seguir o seu curso natural, sem que os seus utentes ou os donos dos prédios imponham a outros a alteração artificial desse fluxo normal. Assim, nem o proprietário do prédio superior deve aliter aquam mittere quam natura solete, nem o proprietário do prédio inferior pode opere facto inhibere aquam, quae natura fluat, per suum agrum decurrere, abrangendo todas as águas correntes qualquer que seja a sua origem (cfr. Pires Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., págs. 191 e 192). Deste modo, não é permitida qualquer modificação na escorrência das águas, quer pelo dono do prédio inferior que estorve o defluxo natural, impedindo a torrente natural ou da chuva, quer pelo dono do prédio superior que a agrave (cfr. ac. do STJ, de 9/11/95, no processo 087242, cujo sumário é acessível em www.dgsi.pt). As águas que o prédio inferior está obrigado a receber são apenas as que decorrem naturalmente, e sem obra do homem, dos prédios superiores. Não se trata de uma servidão constituída pela natureza das coisas, mas de restrições aos poderes inerentes à propriedade de imóveis, impostas por lei.
Não obstante a obrigação de receber as águas que naturalmente derivem para o prédio inferior, o seu proprietário pode opor-se a obras que desviem o curso normal das águas ou o tornem mais gravoso para o seu prédio, contra actos que alterem ou agravem o escoamento das águas. Assim, não é permitida qualquer modificação que provoque agravamento da restrição ao direito de propriedade resultante da obrigação de receber as águas que decorrem naturalmente do prédio superior, nomeadamente quando dessas alterações advém a poluição das águas que se projectam sobre o prédio inferior, deixando de ter o direito de lançar tais águas sobre este prédio (cfr. ac. do STJ, de 9/11/95, na CJ –STJ- ano III, tomo III, pág. 104) ou provocando maior caudal. 
Como escreveu Guilherme Moreira, em As Águas, II, n.º 50, “as águas que os prédios inferiores têm de receber são: as águas pluviais que caiam directamente no prédio superior ou que para este decorram de outros prédios superiores a ele; as águas provenientes da liquefação das neves e gelos; as que se infiltrem no terreno, e as nascentes que brotam naturalmente num prédio”. 
Mário Tavarela Lobo, no Manual do Direito de Águas, volume II, 2.ª edição, pág. 418, afirma que “o nosso Código Civil de 1966 regula a matéria da servidão natural de escoamento como uma mera restrição ao direito de propriedade. 
Foi a natureza que criou esta servidão, é ela também que lhe traça os seus limites”, acrescentando em nota de rodapé, sob o n.º 3: “Consequentemente:
1.º O proprietário superior não pode modificar o escoamento das águas pluviais ou das nascentes existentes no seu terreno de forma a lançar sobre os vizinhos um curso de água mais forte; e
2.º Por maioria de razão não pode o mesmo aumentar artificialmente o volume das águas que derivam sobre os prédios inferiores”.
Na pág. 420, também escreveu que “O art.1351.º exige a ausência de obra de homem para impor ao prédio inferior o ónus de receber as águas escoadas do prédio superior, seja qual for o objectivo em vista ao proceder a tais obras”.
E na nota 4 dessa mesma página, escreveu: “Entre os numerosos exemplos de obras de homens (opus manus), refiram-se os diques ou fossas, plantação de árvores, modificações do curso natural por derivação ou canalização, obras de rebaixamento do terreno a tornar o curso de escoamento mais impetuoso, etc.”.
E, na página seguinte, acerca do objecto desta servidão imprópria regulada como restrição imposta à propriedade directamente por lei, no citado art.º 1351.º, escreveu que “constituem objecto da servidão natural de escoamento, além da aqua pluvia que cai directamente no prédio superior ou que nele decorre derivada de outros, todas as águas naturalmente fluentes como as que provêm da fusão da neve e do gelo, as derivadas duma nascente de curso regular e contínuo, de infiltração, etc.
Mas excluem-se, obviamente, do alcance do art. 1351.º as águas represadas em reservatórios ou poços e daí extraídas artificialmente por bombas ou outros instrumentos, as águas caídas dos telhados ou provenientes de fábricas, piscinas, poços artesianos, cozinhas, latrinas e esgotos e, em suma, todas as águas que surgem artificialmente encontradas pelo proprietário no seu prédio em consequência, como vimos, das escavações dum edifício ou de outras obras.
…
Se, porém, as águas do prédio superior forem derivadas do curso natural do escoamento deixando de seguir a inclinação do terreno, o proprietário do prédio inferior só pode ser coagido a sofrer o ónus mediante a construção coerciva da servidão legal de escoamento, recebendo a indemnização devida.”
A par da obrigação de receber as águas que decorrem naturalmente, há também a obrigação de receber a terra e os entulhos que essas águas arrastam na corrente, mas visa-se “apenas a terra e entulhos que correm naturalmente, e não quaisquer outras substâncias que se juntem às águas por obra do homem e que as tornem nocivas, pois ao recebimento da aqua nocens não está obrigado o prédio inferior” (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 192).
Portanto, como resulta do mesmo artigo, e como escrevem estes Mestres (na obra citada, pág. 193), “o proprietário prejudicado pode opor-se às obras feitas noutro prédio, que desviem o curso das águas ou o tornem mais gravoso, mesmo que os dois prédios se encontrem separados por uma via pública ou por um terreno particular”, acrescentando mais adiante, ainda no mesmo local, que “Do artigo 1351.º depreende-se que o proprietário do prédio inferior terá direito a ser indemnizado dos danos que lhe advenham do escoamento das águas em termos diferentes dos prescritos, tal como o proprietário do prédio superior tem direito a ver reparado o dano que lhe cause o estorvo causado ao exercício normal do seu direito. Mas do preceito resulta ainda a possibilidade de obter, independentemente de quaisquer danos que já se tenham verificado, a destruição das obras (restitutio operis) tendentes a alterar o curso normal das águas ou a estorvar ilicitamente o seu escoamento, como prevenção de danos futuros”.
Embora haja quem defenda tratar-se de responsabilidade extracontratual por factos lícitos (cfr. Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 5.ª ed., págs. 213 e 217), vem sendo maioritariamente entendido que, por um lado, a violação dos comandos insertos em tal normativo faz incorrer o infractor em responsabilidade extracontratual por factos ilícitos e, por outro lado, que nesse normativo se consagra mais uma das muitas limitações ou restrições ao exercício do direito de propriedade, expressamente previstas no art.º 1305.º, ao definir o conteúdo de tal direito (cfr., entre outros, acórdãos do STJ de 9/3/2004, na CJ – STJ -, ano XII, tomo I, pág. 107 e de 3/10/91, no BMJ n.º 410, pág. 776, da RC de 16/11/99, na CJ, Ano XXIV, Tomo 5, pág. 29 e de 15/11/2005, proferido no processo n.º 2547/05, disponível em www.dgsi.pt e da RE de 15/3/90, na CJ, Ano XV, T.2, pág. 227 e o nosso acórdão de 6/12/2011, proferido no processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/142241" target="_blank">775/09.1TBPFR.P1</a> que aqui seguimos e reproduzimos nesta parte).
Não está em causa qualquer direito de indemnização, pois o pedido referente à indemnização peticionada, formulado pelos autores, foi julgado improcedente, e aqueles conformaram-se com tal decisão.
No recurso, na parte relativa ao escoamento natural das águas, vem posta em causa a condenação da alínea e), ou seja, a condenação dos réus “a realizar as obras necessárias e adequadas a evitar que decorram para o prédio dos autores qualquer tipo de águas”, por os recorrentes entenderem que não foram ressalvadas as águas pluviais.
Resulta da matéria de facto apurada que o prédio dos autores confina com os dos réus e que o primeiro fica a uma cota de nível inferior ao dos últimos. Os 1.ºs réus procederam à construção de um muro na linha divisória, há cerca de 8 anos, e abriram nele buracos onde colocaram tubos para o escoamento das águas provenientes do seu prédio, constituído por casa de habitação e terraço, bem como das águas pluviais provenientes dos prédios vizinhos, obstruindo o aqueduto para onde estavam encaminhadas e encaminhando-as todas para o prédio dos autores. Por sua vez, a 1.ª ré fez aberturas para a saída das águas provenientes do seu prédio encaminhando-as para o prédio dos autores. Para além das águas pluviais, escorrem para os prédios dos autores águas provenientes das lavagens dos pátios e garagens dos prédios dos réus, bem como da roupa e de outros tipos de utilização doméstica. 
Os recorrentes não se insurgem contra a condenação na parte referente a estes tipos de águas, mas tão só quanto às águas pluviais, defendendo que na condenação aqui em análise deviam ser ressalvadas as águas pluviais.
A construção do referido muro, a abertura dos buracos nele e a construção das outras aberturas por onde correm todas aquelas águas para o prédio inferior, ficaram a dever-se a mão humana.
A própria construção dos edifícios, com os respectivos pátios ou terraços cimentados, e as aludidas aberturas tornaram diferente o caudal, aumentando-o, e a sua condução para o prédio dos autores, causando-lhe, necessariamente, malefícios que nunca causaria a chuva que cai naturalmente, resultaram da intervenção humana.
Assim, não há dúvidas de que a forma de escoamento das águas dos prédios urbanos dos réus para o dos autores teve lugar por obra do homem e agravaram o ónus que recai sobre o prédio destes.
E, havendo intervenção humana, não podem os autores ser obrigados a receber as águas pluviais, ao abrigo do n.º 2 do citado art.º 1351.º. 
Como a própria epígrafe deste artigo indica, nele prevê-se o escoamento natural das águas e não o escoamento com intervenção humana.
Para além de resultar claramente da lei, assim tem vindo a ser entendido pela doutrina, como já referimos, e pela jurisprudência.
É o que também afirma o acórdão deste Tribunal, de 25/10/1993, publicado na CJ, ano XVIII, tomo IV, págs. 244-247, em cujo sumário se pode ler: “O dono do prédio superior não pode fazer nele obras que agravem o escoamento natural das águas que nele caiam e que se encaminhem para um prédio inferior”.
E, citando Guilherme Moreira, acrescentou: “o espaço fixado por lei entre a beira do edifício e o prédio é o que se considerou suficiente para que as águas que caem do edifício sejam embebidas pelo terreno e se espraiem de forma que não causem grandes prejuízos aos prédios inferiores. Não sucederá, porém, o mesmo se as águas não caírem gota a gota mas forem conduzidas por caleiras ao longo dos beirais para tubos de descarga. Neste caso, os prédios inferiores não são obrigados a receber essas águas.”
Por maioria de razão, os autores não são obrigados a receber todas as aludidas águas, pluviais incluídas, conduzidas para o seu prédio, provenientes dos prédios dos réus, pelo que podem exigir destes a destruição das obras tendentes a alterar o curso normal das águas e a realização das obras adequadas a evitar o escoamento ilícito, como foi decidido, na impossibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, como abaixo se explicitará.
Improcedem, pois, as conclusões atinentes a esta questão.

2.5. Do abuso de direito

Como é sabido e temos vindo a repetir noutros acórdãos (cfr., por todos, o de 10/7/2013, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/140228" target="_blank">821/10.6TVPRT.P1</a>, in www.dgsi, e o de 19/11/2013, processo n.º 1857/09.5TJVNF.S1.P1, que aqui reproduzimos nesta parte), o actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. 
Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.
Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 296, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536).
A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável.
Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico (Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171).
Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites.
Tal objectividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 30/11/95, na CJ – STJ - ano III 20/5/97, tomo III, pág. 132, de 20/5/97, no BMJ n.º 467.º, pág. 557 e de 25/11/99, CJ – STJ -, ano VII, tomo III, pág. 124; da RL de 29/1/98, na CJ, ano XXIII, I, 103 e da RE de 23/4/98, CJ, XXIII, II, 278). Porque é de conhecimento oficioso, pode ser apreciado, ainda que não o tenha sido em 1.ª instância, dependendo a sua verificação da alegação e prova dos aludidos factos.
Esta orientação jurisprudencial mereceu o aplauso do Prof. Menezes Cordeiro, que também faz depender a aplicação daquele instituto da verificação dos pressupostos processuais, justificando: “na verdade, o Tribunal não fica limitado pelas invocações jurídicas das partes: pedido um certo efeito e constando, do processo, os factos necessários, pode o juiz optar pelo abuso de direito, mesmo que este não tivesse sido expressamente invocado” (in Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 2.ª edição, pág. 247).
Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara. 
Porém, o abuso do direito, enquanto “válvula de escape”, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito (cfr. acórdão do STJ de 15/1/2013, no processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1).
Como escreveu Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, ali citado: 
“O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.” 
E ensina, lapidarmente, o mesmo Professor, na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
“ (...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.” (cfr., ainda, o mesmo autor, no Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, 2.ª reimpressão, pág. 292, onde menciona as mesmas quatro proposições para a concretização da confiança). 
A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte. 
Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural” (citado acórdão de 15/1/2013).
Para que pudesse considerar-se abusivo o exercício do direito por parte dos autores/recorridos, era necessário demonstrar factos através dos quais se pudesse considerar que excederam, manifestamente, clamorosamente, o fim social ou económico do direito por eles exercido ou que com a sua pretensão violavam expectativas incutidas nos réus. 
Ora, no presente caso, isso não se verifica.
Não só não foram provados factos que permitam concluir pelo excesso manifesto, clamoroso, do fim social ou económico do direito exercido pelos autores ao formularem os pedidos de eliminação das saídas e dos tubos e de reposição da linha de água, constantes das alíneas C) e D), que originaram as respectivas condenações decretadas sob as alíneas c) e d), mas também que essas suas pretensões violam expectativas por eles incutidas aos réus.
Os factos, por estes, invocados em sede de recurso [provados sob as alíneas S) e V)] não permitem equacionar uma eventual ofensa clamorosa a um sentimento de justiça socialmente dominante.
Note-se que ali ficou apenas provado que os autores tomaram conhecimento do escoamento das águas, através dos tubos e das aberturas, para o seu prédio, pelo menos, no ano de 2007 [al. S)], e que, há cerca de 9 anos, os primeiros réus taparam a linha de água, com a construção de um pátio em cimento [al. V)].
O simples conhecimento dessas obras e do escoamento das águas para o seu prédio e a mera inércia dos autores em exercerem os seus direitos não incutiram nos réus qualquer confiança no sentido de que não reagiriam contra o escoamento ilícito.
Note-se que nem sequer se mostra provado que tivessem dado qualquer autorização para tanto.
Os autores jamais afirmaram que autorizavam a abertura para a saída das águas e a colocação dos tubos, nem que não iriam pugnar pelos seus direitos daí decorrentes, de forma a criar uma expectativa fundada nos réus de que não proporiam a acção que tivesse por objecto tais direitos.
Por isso, nenhuma confiança há a tutelar.
Faltando o primeiro pressuposto da situação de confiança, é manifesta a falta dos restantes, acima referidos, para que se possa considerar verificado o abuso de direito na modalidade indicada.
Ao proporem a acção, os autores limitaram-se a exercer o direito conferido pelo citado art.º 1351.º, em termos que não evidencia violação, muito menos clamorosa, por não terem violado qualquer confiança que tivesse sido incutida aos réus, pelo que, salvo melhor opinião, não abusaram desse direito.
Inexiste, por conseguinte, abuso de direito, pelo que improcedem as respectivas conclusões.

2.6. Da servidão de escoamento

O art.º 1543.º define servidão predial como “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”.
Esta noção genérica de servidão evidencia o seguinte:
a) a servidão é um encargo, uma restrição ou limitação ao direito de propriedade;
b) o encargo recai sobre um prédio (o onerado ou serviente);
c) o mesmo aproveita exclusivamente a outro prédio (o dominante);
d) os prédios devem pertencer a donos diferentes (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., págs. 613 a 617).
Sobre o seu conteúdo, o art.º 1544.º prevê:
“Podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor.”
Interessa aqui considerar apenas as águas pluviais, pois só elas constituem objecto do pedido reconvencional e da pretensão reiterada, no recurso, pelos réus/recorrentes.
Estes fundamentaram esta sua pretensão na usucapião.
É sabido que a usucapião é uma forma de aquisição originária do direito.
Para se adquirir, por usucapião, um direito susceptível de ser adquirido por essa via, é imprescindível ter a posse correspondente ao direito em causa e mantê-la durante certo lapso de tempo (art.º 1287.º do Código Civil).
A posse adquire-se pelo facto e pela intenção, definindo-se, portanto, por dois elementos essenciais, a saber: o “animus” que corresponde à actuação do possuidor com a convicção de que está a exercer um direito próprio e o “corpus” que se analisa no conjunto de actos materiais correspondentes ao exercício do direito em causa [art.ºs 1251.º e 1253.º, a), ambos do C. Civil].
A relação possessória é uma relação permanente e duradoura e, por isso, os factos que a integram terão de ser exercidos por forma a que se possa concluir que aquele que os praticou pretende realizar sobre a coisa um poder permanente.
A referida posse terá ainda de ser pacífica e pública, ou seja, adquirida e mantida sem violência e de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art.ºs 1261.º, 1262.º e 1297.º, todos do C. Civil). Poderá a mesma ser de boa ou má fé, consoante o possuidor ignorava ou não, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa fé a posse titulada e de má fé a não titulada (art.º 1260.º do C. Civil).
Os réus não provaram, como lhes competia, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, os factos constitutivos do direito que invocaram. 
Aliás, a sua verificação pressupunha a alteração da matéria de facto, nos termos por si propugnados, o que não lograram alcançar, como se deixou dito.
Por isso, jamais poderiam ver reconhecido esse seu direito com base na usucapião.
Acresce que se nos afigura que a servidão de escoamento de águas pluviais sobre prédios urbanos nem sequer é susceptível de ser constituída por usucapião, atento o disposto no n.º 2 do citado art.º 1351.º, que apenas ressalva a possibilidade de constituição de servidão legal de escoamento, a qual só é permitida nos termos do art.º 1563.º do Código Civil, mediante o pagamento da correspondente indemnização.
Isto apesar de haver quem entenda que a circunstância de a lei permitir a constituição coerciva da servidão de escoamento não impede que o mesmo tipo de servidão se possa constituir por via negocial ou por usucapião (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 661).
Aquele primeiro artigo prevê o escoamento natural das águas nos seus precisos termos, regulando a servidão imprópria “fluminis recipiendi”, e só admite, como encargo excepcional sobre a propriedade, a servidão de escoamento em sentido técnico, regulada no segundo artigo, que prevê a constituição forçada da servidão de escoamento nos casos nele contemplados e precedida do pagamento duma indemnização do prejuízo ao proprietário do prédio serviente.   
É o que resulta também do conteúdo do direito de propriedade e do “numerus clausus” dos direitos reais consagrados nos art.ºs 1305.º e 1306.º, ambos do Código Civil.
Com o devido respeito, os recorrentes parecem confundir servidão de escoamento natural regulada no art.º 1351.º, que entendem ter sido violado, com servidão legal de escoamento, ainda que tenham pedido o seu reconhecimento com fundamento na usucapião, que não se verifica, como já dissemos.
Aquela “servidão” resulta directamente da lei, pelo que nunca pode ser constituída por contrato, testamento, usucapião, destinação de pai de família ou qualquer outro modo de constituição das servidões em sentido técnico. “O encargo existe independentemente da vontade expressa ou tácita dos proprietários dominante e serviente ou por imperativo de um acto judicial.
Na servidão natural de escoamento – porque natural -, não há obras ou sinais susceptíveis de dar aparência a uma eventual servidão constituída por usucapião ou por destinação do pai de família. Estes modos de constituição das servidões são somente aplicáveis às servidões propriamente ditas, cujo ónus não se revela por força duma prescrição legal” (cfr. Tavarela Lobo, obra citada, pág. 418).
E, quanto à servidão legal, já afirmava Guilherme Moreira que “A lei não impõe a servidão legal de escoamento para as águas pluviais de prédios urbanos, tendo de realizar-se sempre a construção, quando não haja acordo com os proprietários dos prédios vizinhos…” (cfr. citado acórdão da RP de 25/10/93).
Improcedem, portanto, as questões atinentes a esta questão, não podendo ser reconhecido o direito invocado pelos recorrentes.

2.7. Da litigância de má fé 

Nos termos do art.º 542.º, n.º 2, do NCPC “Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; 
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; 
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.

Tal como temos vindo a escrever em anteriores arestos, nomeadamente nos mais recentes, proferidos em 23/10/2012, 7/11/2012, 3/12/2012, 5/2/2013, 3/12/2013 e 18/3/2014, respectivamente, nos processos n.ºs 695/08.7TBESP-A.P1, 1235/10.3TBVNG-B.P1, 251531/11.2YIPRT.P1, 3028/11.1TBVCD.P1, 271/12.0TBCHV.P1 e 1762/12.8TBMTS.P1, antes da reforma de 1995/96, era entendimento uniforme na jurisprudência e na doutrina que só a lide dolosa dava lugar à condenação como litigante de má fé (cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 8/4/97, CJ – STJ-, ano V, tomo II, pág. 37; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., pág. 263 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 356).
Após aquela reforma, passaram a ser previstas e punidas não só as condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes ou grosseiras, como resulta, com clareza, da letra da lei, ao referir “com dolo ou negligência grave” e resultava do art.º 456.º, n.º 2, do anterior CPC, com conteúdo igual ao actual.
Explicando esta alteração, escreveu António Abrantes Geraldes: “é neste contexto, concerteza fruto da degradação dos padrões de actuação processual e do uso dos respectivos instrumentos, que, a par do realce dado ao princípio da cooperação e aos deveres de boa fé e de lealdade processuais, surge a necessidade de ampliar o âmbito de aplicação do instituto, assumindo-se claramente que a negligência grave também é causa de condenação como litigante de má fé” (Temas Judiciários, vol. I, pág. 313).
Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto também escreveram, em anotação ao citado art.º 456.º, que o seu n.º 2, resultante da orientação tomada pelo DL n.º 329-A/95, de 12/12, “passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má fé, com o intuito, como se lê no preâmbulo do diploma, de atingir uma maior responsabilização das partes” (cfr. Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 2.ª edição, págs. 219 e 220).
Este novo regime veio afirmar maior exigência de boa fé das partes no processo, ao alargar o tipo de comportamentos que podem ser objecto daquela censura (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 63).
O Conselheiro Rodrigues Bastos também escreveu:
“A má fé processual tinha, entre nós, como requisito essencial o dolo, não bastando a culpa, por mais grave que fosse. 
A reforma processual de 95/96 mudou esse estado de coisas, considerando reveladora da má fé no litígio tanto o dolo, como a culpa grave, que designa por negligência grave. 
A parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos arts. 266.º e 266.º-A. 
Se intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má fé. 
A doutrina tem classificado a má fé de que trata o preceito em duas variantes: a má fé material e a má fé instrumental, abrangendo a primeira os casos das alíneas a) e b) do n.º 2, e a segunda, os das alíneas c) e d) do mesmo número” (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. II, 3.ª edição – 2000 – págs. 221/222).
Entre os casos susceptíveis dessa censura figura, sem dúvida, a omissão do dever de diligência exigível a qualquer pessoa para a propositura de uma acção ou apresentação da contestação, pois as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação, não só com o tribunal, mas também entre si, concorrendo para a obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio (art.ºs 266.º, n.º 1 e 266.º-A, ambos do CPC, e art.ºs 7.º, n.º 1 e 8.º, ambos do NCPC).
Para que possa haver tal condenação, exige-se que se trate de litigância consciente (com dolo ou negligência grave) violadora do dever de probidade imposto às partes (deduzindo pretensão ou oposição que sabe não ter fundamento; alterando a verdade ou omitindo factos relevantes; omitindo gravemente o dever de cooperação; ou fazendo do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, para lograr um objectivo ilegal ou entorpecer a acção da justiça). 
Nas duas primeiras hipóteses surge a má fé material (ou substancial), enquanto nas duas últimas existe a má fé instrumental. 
Ali, está em causa o mérito (o fundo), a relação substancial, aqui põem-se em causa valores de natureza processual. 
Exige-se a má fé (dolo ou culpa grosseira) em sentido psicológico, que não apenas má fé em sentido ético (leviandade ou mera imprudência). 
Na sua apreciação, o Tribunal deve atentar, como ensinava já o Prof. Alberto dos Reis, que “o processo é uma luta e esta pressupõe, necessariamente, calor, emoção, entusiasmo, transporte e arrebatamento” (in RLJ 59.º - 51). 
Mas também deve ter por assente a existência de limites éticos e deontológicos em que se deve manter a pugna judiciária.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a condenação por litigância de má fé pressupõe a existência de dolo ou de grave negligência, não bastando uma lide temerária, ousada ou uma conduta meramente culposa, antes exigindo que o procedimento do litigante evidencie indícios de uma conduta dolosa ou gravemente negligente (cfr., entre outros, os acórdãos de 11/1/2001, processo n.º 3155/00-7.ª, Sumários, 47º e de 28/5/2009, processo n.º 09B0681, in www.dgsi.pt).
Tal é a exigência legal que deflui imediatamente, como corolário, do axioma antropológico da dignidade da pessoa humana proclamado pelo art.º 1.º da nossa Lei Fundamental, pois ninguém porá em causa o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação injusta como litigante de má fé.
Cremos ser pacífico o entendimento segundo o qual não é admissível que a parte, para convencer o tribunal de um facto ou pretensão que sabe ilegítima, distorça ou deturpe a realidade de si conhecida ou omita factos relevantes, também por si conhecidos, para a decisão, violando, clara e conscientemente, o dever de verdade, ou deduza oposição cuja falta de fundamento não ignore ou não devia ignorar, o que justifica tal censura e a condenação por litigância de má fé.
Porém, já não litiga de má fé a parte que actua fundada em erro, convencida de que lhe assiste o direito que invoca e, por isso, deduz pretensão ou oposição que acabam por naufragar por mera fragilidade da prova ou falta de convencimento do tribunal da realidade apresentada ou resultar da interpretação e aplicação da lei aos factos.
É direito de qualquer pessoa propor acções ou deduzir oposição, em defesa dos seus interesses, não sendo legítimo coarctar-lhes esse direito, sob pena de violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado constitucionalmente (cfr. art.º 20.º, n.º 1, da CRP).
E é sabido que a responsabilização por litigância de má fé não visa sancionar ou combater a propositura de acções ou a dedução de defesas objectivamente infundadas, conquanto a parte esteja convencida de que lhe assiste razão e desde que esta convicção seja razoável, não assentando ela mesma em negligência grave. 
A instauração de uma acção ou a apresentação de uma contestação, sem fundamento, não significa, por si só, que a parte tenha actuado dolosamente ou com negligência grave. É que a incerteza da lei, a dificuldade em apurar os factos e de os interpretar podem levar as consciências mais honestas a afirmar um direito que não possuem e a impugnar uma obrigação que devessem cumprir.
Para que possa haver sancionamento por má fé, é necessário que as circunstâncias apuradas permitam ao tribunal concluir que a parte deduziu pretensão ou fez oposição conscientemente infundada ou cuja falta de fundamento não podia nem devia ignorar.
Na censura a fazer para efeito de condenação por litigância de má fé, deve o tribunal agir com prudência e só deve decretá-la quando o processo fornecer elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente da parte, tendo presente que a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resulta de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque, frequentemente, assenta em provas cuja falibilidade não se pode ignorar, como é o caso da prova testemunhal.
No caso dos autos, não se mostram preenchidos os pressupostos substantivos da condenação por litigância de má fé, na medida em que inexistem quaisquer factos provados que permitam concluir que os autores agiram com dolo ou negligência grave ao instaurar a presente acção.
Eles obtiveram êxito nos pedidos essenciais que formularam e não se vislumbra que tivessem alterado a verdade dos factos.
Relativamente aos pedidos em que decaíram, a mera instauração da acção, sem fundamento, não significa, por si só, que tenham agido dolosamente ou com negligência grave. E a mera alegação da data em que tiveram conhecimento de factos diferente da que se provou, não é suficiente para tal condenação. É que a incerteza da lei e a dificuldade em apurar os factos sempre poderiam levá-los a afirmar direitos que não existem, como foi reconhecido na sentença, da qual nem sequer recorreram.
As circunstâncias apuradas (e só estas importa considerar) não permitem concluir que deduziram pretensão conscientemente infundada ou cuja falta de fundamento não podiam nem deviam ignorar.
Quer isto dizer que inexistem elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente dos autores para poderem ser censurados e condenados como litigantes de má fé.

Improcedem, assim, as conclusões atinentes a esta pretensão.

Em conclusão, é de alterar a sentença recorrida quanto à condenação referente ao parapeito e de a manter na parte restante, ainda que com fundamentos nem sempre coincidentes.

Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 663.º do CPC:

1. A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude dos poderes da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter quando se mostrar apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório.
2. A anulação do julgamento está prevista apenas para os casos em que a decisão sobre a matéria de facto se repute “deficiente, obscura ou contraditória” e não constem do processo todos os elementos que permitam a sua reapreciação, bem como para os casos de ampliação da matéria de facto.
3. A restrição imposta pelo n.º 2 do art.º 1360.º do Código Civil visa obstar ao devassamento do prédio vizinho, pelo que só é aplicável ao parapeito que permita a uma pessoa debruçar-se nele e, dessa forma, violar o direito de propriedade alheia.
4. O art.º 1351.º do Código Civil impõe restrições ao direito de propriedade sobre imóveis, impedindo o dono do prédio superior de fazer nele obras que desviem ou agravem o escoamento natural das águas que nele caiam e que derivem para o prédio inferior e permitindo ao proprietário deste, em caso de violação, obter a destruição das obras efectuadas.
5. O n.º 2 do citado art.º 1351.º ressalva a possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, a qual não é admitida para as águas pluviais que caiam sobre prédios urbanos, o que também impede a constituição do mesmo tipo de servidão por usucapião.
6. A aplicação do instituto do abuso de direito depende sempre da alegação e prova dos respectivos factos pela parte que dele se quer fazer valer, mesmo que não o tenha solicitado expressamente.
7. Não litiga de má fé quem se limita a propor uma acção e a deduzir pretensão, ainda que sem fundamento, quando inexistem elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente.

III. Decisão

Pelo exposto julga-se a apelação parcialmente procedente e em consequência:
1. Altera-se a sentença recorrida relativamente à condenação constante da alínea f), condenando-se a segunda ré a aumentar o gradeamento referido na alínea J) dos factos provados por forma a ficar com a altura não inferior a um metro e meio ou retirá-lo, absolvendo os primeiros réus do pedido formulado sob a alínea g); 
2. Confirma-se a sentença na parte restante.*Custas:
- da reconvenção pelos réus/apelantes;
- da acção e da apelação, pelos autores/apelados e pelos réus/apelantes, na proporção de 1/5 e 4/5, respectivamente.*Porto, 17 de Junho de 2014
Fernando Samões 
Vieira e Cunha
Maria Eiró
_______________
[1] Teve-se em conta a rectificação feita pelo despacho de 10/2/2014.
[2] Citação extraída do Código Civil Anotado, volume III, 2.ª edição, pág. 215, de Pires de Lima e Antunes Varela.
[3] In obra e local acabados de citar.

Processo n.º 148/11.6TBMSF.P1 Do Tribunal Judicial da Comarca de Mesão Frio Relator: Fernando Samões 1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha 2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró*Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção: I. Relatório B… e esposa C…, residentes no …, freguesia …, concelho de Mesão Frio, instauraram, em 12/11/2011, acção com processo sumário contra D… e esposa E…, residentes no mesmo lugar, e a Herança Indivisa Aberta por Óbito de F…, representada pelos seus herdeiros G…, H… e I…, todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação solidária dos réus: “A – A reconhecer serem os AA. legítimos proprietários do prédio identificado no art. 1º da p.i.. B - A absterem-se de, por qualquer forma ou jeito, vazar quaisquer tipo de águas salubres e/ou insalubres e pluviais, para o prédio dos AA. e consequentemente C - A retirarem e eliminarem as saídas e tubos que para tal efeito mantêm. D – A destruírem o pátio cimentado existente nas traseiras dos urbanos das RR. de forma a reporem e a desobstruírem a linha de água de escoamento das águas pluviais ali sempre existente. E - A realizar as obras necessárias e adequadas a evitar que decorram para o prédio dos AA. qualquer tipo de águas; F - A indemnizarem os AA. por todos os prejuízos decorrentes da impossibilidade de granjeio do logradouro infestado por via do aludido vazamento de águas, bem como as despesas necessárias à recuperação de tal solo, a determinar e fixar em execução de sentença; G - Condenar-se os RR. a edificar na parte do pátio ou quintal que deita directamente sobre o prédio dos AA. um muro com parapeito não inferior a um metro e meio; H - A pagar aos AA., a titulo de sanção compulsória, uma quantia pecuniária nunca inferior a 10,00 € por cada dia de atraso no cumprimento do peticionado sob as anteriores alíneas B), C), D), E) e G).” Para tanto, alegaram, em resumo, que: São donos do prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo 707 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mesão Frio sob o nº 628/20010129, por lhes ter sido doado e por o haverem adquirido por usucapião, o qual confina, pelo lado poente, com dois prédios urbanos de que os réus são proprietários. Cada um destes dois prédios é servido de um pátio que fazem o escoamento, através de tubos, para o seu prédio, das águas das lavagens e pluviais, causando-lhes prejuízos. As águas foram para ali encaminhadas devido a obras feitas de que se aperceberam em 30/9/2011 e à alteração da linha de água realizada pelos primeiros réus há cerca de 9 anos. O muro desses pátios tem a altura de cerca de 30 centímetros e é encimado por uma grade de cerca de um metro, permitindo que os réus se debrucem sobre ela e devassem o seu prédio. Os réus contestaram, conjuntamente, por impugnação e deduziram reconvenção, alegando, em síntese, que: Todas as situações reportadas ao escoamento das águas são do perfeito conhecimento dos autores e existem desde há mais de 20 anos. Há cerca de 10 anos, ocorreram algumas alterações, por conveniência e a pedido dos autores, na sequência das construções que estes fizeram no seu prédio, tendo sido eles que solicitaram a colocação dos tubos e o seu posicionamento. Assim, até então, as águas pluviais do telhado das suas casas e dos terraços sempre escorreram, através de seis canos existentes no muro delimitador, para o prédio dos autores, onde existia um rego que as recebia. Com a implantação da casa dos autores, e sempre com a sua anuência, foram colocados canos para melhor conduzir as referidas águas. Tudo de forma pública, pacífica, continuada e no convencimento de que exerciam um direito de servidão de escoamento de águas pluviais. Concluíram pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção pedindo que: a) se declare e os AA sejam “condenados a reconhecer que sobre o seu prédio e a favor do prédio dos RR está constituída uma servidão de escoamento de águas pluviais tanto dos telhados das casas, como do espaço fronteiro às mesmas, materializada por seis buracos de duas polegadas existentes ao longo da parte superior do muro de suporte do espaço/logradouro fronteiro à casa dos RR”; b) os AA sejam “condenados a manter livre a face exterior do muro de suporte do espaço fronteiro/logradouro da casa dos RR., designadamente dele afastando o amontoado de lenhas que têm mantido encostado ao mesmo”. Pediram, ainda, que os AA sejam condenados como litigantes de má fé, em multa e em indemnização não inferior a 3.000,00 €. Os autores responderam impugnando os factos alegados, reafirmando que quer o parapeito e o gradeamento quer as aberturas e os canos foram construídos e colocados depois de 29/8/2003, sem o seu consentimento, concluindo pela improcedência da reconvenção e pela procedência da acção e pedindo a condenação dos réus/reconvintes como litigantes de má fé em multa e indemnização não inferior a 5.000,00 €. Na fase do saneamento, foi admitida a reconvenção, elaborado o despacho saneador tabelar e organizada a condensação, com selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória de que reclamaram, com êxito parcial, os autores. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, a qual decorreu em três sessões – em 31 de Outubro, 8 e 19 de Novembro de 2013 -, com gravação da prova produzida nas duas primeiras e com inspecção ao local em 12/11/2013, após o que, em 2/1/2014, foi proferida sentença que decidiu: 1. Julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência: a) Condenar os réus E…, D… e Herança Indivisa Aberta por Óbito de F… e Herdeiros a reconhecerem os autores B… e C… como legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial; b) Condenar os réus acima identificados a absterem-se de, por qualquer forma ou jeito, vazar qualquer tipo de águas salubres e insalubres e pluviais para o prédio dos autores, sem prejuízo das águas pluviais que escorram naturalmente, sem intervenção de mão humana; c) Condenar os réus a retirarem e eliminarem as saídas e tubos que para tal efeito mantêm; d) Condenar os réus acima identificados a reporem e a desobstruírem a linha de água de escoamento das águas pluviais ali sempre existente; e) Condenar os réus acima identificados a realizar as obras necessárias e adequadas a evitar que decorram para o prédio dos autores qualquer tipo de águas; f) Condenar os réus acima identificados a edificar na parte do pátio/quintal que deita directamente sobre o prédio dos autores um muro com parapeito não inferior a um metro e meio[1]; g) Absolver os réus de indemnizarem os autores por todos os prejuízos decorrentes da impossibilidade de granjeio do logradouro infestado, bem como as despesas necessárias à recuperação de tal solo; h) Absolver os réus acima identificados do pagamento de uma quantia pecuniária não inferior a € 10,00 diários, a título de sanção pecuniária compulsória. 2. Julgar a reconvenção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência: i) Absolver os reconvindos globalmente do pedido reconvencional formulado pelos reconvintes e não declarar a existência de servidão de escoamento. Inconformados com o assim decidido, os réus interpuseram recurso de apelação para este Tribunal e apresentaram a sua alegação que concluíram de forma deficiente, obscura e complexa, o que motivou a prolação do despacho de fls. 395 e v.º, tendo, na sequência desse convite, e não obstante o seu teor, formulado as seguintes conclusões: “1. Mesmo com base na matéria de facto dada como provada, nunca se justificariam as decisões condenatórias das als. e) e f) por manifestamente contrárias à lei. A da al. e) por não ressalvar o escoamento natural das águas pluviais de acordo, aliás, com a condenação da al. b); a condenação da al. f) porque, em consonância com a matéria de facto provada (v. al. J) dos factos provados) uma condenação desse teor apenas se justificava em relação à extrema poente do logradouro da casa dos RR., porque apenas aí existe um gradeamento que pode ser considerado parapeito e, mesmo em relação a esse, a condenação sempre teria que ser em alternativa: retirar esse gradeamento, ou elevá-lo até à altura de metro e meio. 2. No que respeita aos pedidos correspondentes às condenações das als. c) e d) também a acção não podia ser julgada procedente na medida em que, tratando-se de situações que já se verificavam pelo menos há 4 e 9 anos respectivamente ( v. als. S) e V) dos factos provados) com pleno conhecimento dos AA. e sem qualquer contestação ou oposição (pois nada foi alegado ou provado nesse sentido, a não ser imediatamente antes da propositura da acção), as pretensões deduzidas quanto às mesmas representam e traduzem manifesto abuso de direito na modalidade de "venire contra factum proprium". 3. Caso não seja acolhido o entendimento correspondente ao constante da conclusão anterior, com base numa melhor e mais correcta análise e valoração da prova produzida, designadamente com a devida consideração dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR., deve alterar-se a decisão da matéria de facto, passando a dar-se como não provada a factualidade das als. Q), R), V), W) e DD) dos factos dados como provados na sentença recorrida (tanto com base na insuficiência e fragilidade da prova dos AA., como na prova em sentido contrário resultantes dos depoimentos das testemunhas dos RR.) e provada a matéria factual dos pontos 7, 8 e 9 (este apenas até “feitas por estes”), 13, 15, 16, 17 e 18 dos factos dados como não provados da mesma sentença recorrida (com base na prova clara e segura que nos parece resultar dos depoimentos das testemunhas dos RR. e não infirmada por qualquer outra prova em contrário, designadamente das testemunhas dos AA.) e, na decorrência dessa alteração, a acção ser julgada procedente apenas quanto ao pedido da al. b) da p.i. no tocante a águas insalubres e quanto ao pedido da al. g) apenas relativamente à parte do logradouro das casas dos RR. em que foi colocado um gradeamento com cerca de um metro de altura, devendo os demais pedidos ser julgados improcedentes e a reconvenção ser julgada procedente. 4. No entender dos recorrentes a propugnada alteração da decisão da matéria de facto impõe-se em absoluto, tanto, com base nos depoimentos das testemunhas dos RR. como nos documentos fotográficos juntos com a p.i. e com a contestação e também de acordo com as regras da experiência comum, assim como na devida consideração de factualidade notória. De forma alguma pode ser sufragada a decisão do Sr. Juiz recorrido de desconsiderar em absoluto os depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR., tanto que as justificações aduzidas para o efeito não são minimamente aceitáveis. Ao contrário do que entendeu o Mmo Juiz a quo, os depoimentos dessas testemunhas revelaram-se isentos, coerentes e espontâneos e para além de se basearem nas mais válidas e sólidas razões de ciência (percepção e conhecimento directo dos factos), foram prestadas de forma clara, firme, serena e desinteressada, em termos de deverem merecer toda a credibilidade. Mesmo que assim não se considerasse relativamente às quatro, por duas delas (a J… e a K…) serem familiares próximas dos RR., forçoso era atribuir toda a credibilidade às outras duas, L… e M…. O primeiro porque foi o empreiteiro construtor da casa dos AA. que também inicialmente o arrolaram, mas do qual vieram a prescindir no início do julgamento. Ora, como se referiu, tendo sido o construtor da casa dos AA., ninguém melhor do que ele podia pronunciar-se sobre as situações em causa sendo que, como resulta do seu depoimento transcrito e ressalvadas algumas imprecisões de pormenor perfeitamente compreensivas, depôs de forma a merecer toda a credibilidade. Situação semelhante ocorreu com a testemunha M…, que também não tendo qualquer ligação familiar ou de outra natureza com qualquer das partes e estando de bem com todos, prestou um depoimento baseado em intervenção e conhecimento directo das situações sobre que versou. Tal como a testemunha anterior, nada houve que pusesse em causa a verdade e as razões de ciência do seu depoimento que prestou sempre de forma clara, descomprometida, coerente e segura, também tanto a instâncias dos mandatários, como do Sr. Juiz e em confronto com as fotografias. Mesmo as outras duas testemunhas (J… e K…), apesar de serem da família, revelaram conhecimento directo de toda a situação desde o seu início, a segunda porque sempre viveu lá e a primeira porque morou lá 19 anos. Tal como as anteriores, também depuseram de forma clara, segura e descomprometida em termos de também deverem ter merecido credibilidade. A verdade dos seus depoimentos não pode questionar-se, não só pelas respectivas razões de ciência e pela forma como foram prestados, como até por não terem hesitado em afirmar factos desfavoráveis aos RR.. Referimo-nos, nomeadamente, às águas que eram escoadas para o prédio dos AA. que, ao contrário do que consta da sentença, ambas reconheceram não serem apenas das chuvas, mas também de lavar os terraços. 5. Bem diferentes foram os depoimentos das três testemunhas arroladas pelos AA. e que foram valoradas pelo Mmo Juiz a quo. Desde logo porque só uma (N…) não é da família. Por outro lado, para além de terem invocado razões de ciência muito menos válidas que as dos RR., depuseram de forma também muito menos isenta, segura e coerente, além de que pelo repentismo e coincidência de muitas das suas respostas, designadamente quanto a datas, justificam muitas e as mais sérias dúvidas quanto à sua verdade e isenção podendo até admitir-se terem resultado de uma preparação e concertação prévias. De resto, a não ser a irmã do A. marido, nenhuma das outras duas (as que foram valoradas positivamente) nada disseram de definitivamente relevante quanto aos factos essenciais em discussão (tubos de escoamento e tapagem do rego das barrocas). O N…, limitou-se a dizer que um dia que estava no café, viu lá aparecer água que vinha do lado do prédio dos RR.. O O… disse que 2004, foi às traseiras da casa dos AA. colocar uma lâmpada e não viu tubos ou buracos nenhuns na parede de suporte do terraço da casa dos RR.. Mas depois, nomeadamente ao ser confrontado com o depoimento do empreiteiro da casa dos AA., acabou por admitir que existissem e não tivesse reparado. Quanto ao rego não só afirmou desconhecer quem o tinha tapado, como disse que só estava tapado até ao meio. Finalmente, a P…, para além das reservas que devia merecer não só por ser irmã do A. marido, como por estar de mal com os RR., a única razão de ciência que invocou foi a circunstância de morar próximo. De resto, depôs de forma manifestamente tendenciosa, sempre a favor dos AA, disso mesmo sendo bem revelador, para além do evidente entusiasmo e interesse com que depôs, a preocupação de dizer o que parece que já tinha preparado, mesmo sem lhe ser perguntado. 6. Para o caso de não merecer acolhimento qualquer das teses já defendidas pelos RR. sempre se imporá a anulação do julgamento, por manifestamente insuficiente inadequada e até ilegal fundamentação da decisão da matéria de facto. Insuficiente e inadequada porque decerto ninguém questionará poder aceitar-se a justificação de não acreditar numas testemunhas (dos RR.) por já ter acreditado noutras (dos AA.), nem apenas pela qualificação negativa dos depoimentos de umas (dos RR.) e positiva dos de outras (dos AA.). Muito menos é aceitável justificar-se o crédito atribuído às testemunhas dos AA. por "corroboraram as declarações" do A. marido. Além de não ser aceitável essa justificação é também ilegal, uma vez que sendo o presente processo anterior ao NCPC e o depoimento do A. marido produzido a requerimento dos RR. para incidir sobre factos desfavoráveis, esse depoimento só podia ser valorado para efeitos confessórios. Ora, conforme consta do despacho de decisão da matéria de facto, esse depoimento (referido como "declarações") serviu, não apenas por si mesmo para justificar a decisão da matéria de facto, mas também como padrão aferidor da credibilidade das testemunhas dos AA! 7. Acresce que essa valoração, novamente ressalvado o devido respeito, também nos parece ser contrária aos da imparcialidade e isenção do julgador na decisão da causa. Com efeito, embora, estamos certos, não intencionalmente, parece-nos que o Sr. Juiz recorrido valorou a prova em função de uma posição previamente tomada em relação às duas versões em confronto, em favor dos AA. e em prejuízo dos RR. Em relação aos RR. bastou uma simples divergência entre o alegado por eles nos articulados e o referido pela primeira testemunha inquirida (L… - empreiteiro da casa dos AA.) quanto aos tubos sobre o telhado do barraco já existirem antes da respectiva construção, ou só terem sido colocados depois, para desacreditar por completo, tanto essa testemunha, como toda a sua (dos RR.) "posição em Juízo". Enquanto que em relação aos AA. foi totalmente branqueada em termos de nada os afectar uma divergência que nos parece muito mais grave, pois nos articulados alegaram que só tiveram conhecimento da situação principal objecto do litígio (a existência dos tubos e escoamento de águas através deles para o seu terreno) no próprio ano da propositura da acção, mais propriamente em 30 de Setembro de 2011 ( v. art. 27 da p.i. e quesito 6º da B.I.) quando, conforme foi dado como provado e como o próprio A. marido reconheceu no seu depoimento, esse conhecimento adveio-lhe, pelo menos no ano de 2007. Isto, para além de muitas outras divergências e contradições, tanto no depoimento do próprio A. como das suas testemunhas, conforme ficou salientado supra pela análise que dos mesmos fizemos. Como se referiu e ao contrário do que sucedeu com os RR., essas divergências e contradições por banda dos AA., não só não foram valoradas negativamente como, por incrível que pareça e é forçoso concluir, até reforçaram a credibilidade, tanto do próprio A. marido, como das testemunhas arroladas pelos AA.. 8. Por tudo quanto fica exposto, entendem os RR. que a sentença recorrida traduz incorrecta análise e valoração da prova, violação do princípio da isenção e imparcialidade do julgador, menos correcta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, nomeadamente dos arts.334º, 1351º, nº1 (na medida em que, mesmo com base na matéria de facto provada, a condenação da al. e) da sentença recorrida devia ressalvar o escoamento natural), 1360º, nº2, do C. Civil, 552º e segs do C.P.C e 462º e 466º, estes dois últimos do NCPC, pelo que No provimento do presente recurso, deve revogar-se a sentença recorrida e, em sua substituição ser proferida outra que julgue a acção apenas parcialmente procedente em termos de a 2ª R. altear o gradeamento referido na al. L) da Matéria de Facto Assente de forma a observar as restrições legais, retirando-o ou elevando-o a uma altura não inferior a metro e meio e todos os RR. a não escoarem para o prédio dos AA. outras águas a não ser as das chuvas caídas no terraço ou logradouro das suas casas e na procedência da reconvenção, declarar-se e serem os AA. condenados a reconhecer que sobre o seu prédio e a favor do prédio dos RR. está constituída uma servidão de escoamento de águas pluviais, tanto dos telhados das casas, como do espaço (terraço ou logradouro fronteiro às mesmas) materializada por seis buracos de duas polegadas existentes ao longo da parte superior do muro de suporte do mesmo espaço fronteiro à casa deles (RR.). Em qualquer dos casos, tanto por se impor concluir que os AA. alegaram conscientemente contra a verdade dos factos como chegaram ao ponto de, antes do julgamento, alterar situações existentes e por eles reconhecidas nos articulados com a evidente e inegável finalidade de iludir a verdade e o próprio Tribunal, pensamos justificar-se serem os mesmos condenados como litigantes de má-fé, nos termos peticionados na contestação/reconvenção. Para o caso de assim não se entender, tanto por insuficiente inadequada e ilegal fundamentação da decisão da matéria de facto, como por inobservância e violação dos deveres de isenção e imparcialidade do julgador, por parte do Sr. Juiz recorrido, deve anular-se o julgamento e determinar-se a sua repetição, só assim podendo resultar, a nosso ver, melhor interpretada e aplicada a lei e realizada a JUSTIÇA”. Os autores contra-alegaram pugnando pela confirmação da sentença recorrida. O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Remetidos os autos a este Tribunal, foram mantidos a espécie e o efeito fixados na 1.ª instância. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso. Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões dos recorrentes [cfr. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do NCPC, aqui aplicável, visto se tratar de uma sentença proferida após a data da sua entrada em vigor, numa acção instaurada depois de 1/1/2008 (cfr. art.ºs 5.º, n.º 1 e 8.º, ambos da Lei n.º 41/2013, de 26/6)], não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir consistem em saber: a) Se pode/deve ser alterada a matéria de facto; b) Se é caso de anulação do julgamento; c) Se a condenação da alínea f) deve ser restringida à parte poente do logradouro da casa da 2.ª ré e decretada em alternativa; d) Se a condenação da alínea e) é ilegal por não ressalvar o escoamento natural das águas pluviais; e) Se existe abuso de direito na formulação dos pedidos subjacentes às condenações c) e d); f) Se está constituída uma servidão de escoamento de águas pluviais do prédio dos autores a favor do prédio dos réus; g) E se os autores litigam de má fé. Apesar de os recorrentes formularem os pedidos de alteração da matéria de facto e de anulação do julgamento de forma subsidiária, como parece, visto que as respectivas conclusões são iniciadas, respectivamente, com as expressões “caso não seja acolhido o entendimento correspondente ao constante da conclusão anterior” (cfr. conclusão 3.ª) e “para o caso de não merecer acolhimento qualquer das teses já defendidas” (cfr. conclusão 6.ª), afigura-se-nos que o seu conhecimento deve preceder a apreciação de qualquer outra pretensão. Com efeito, razões de ordem lógica impõem a definição prévia da matéria de facto provada, pois é com base nela que deve ser feito o enquadramento jurídico das restantes questões suscitadas e aquela pressupõe a realização do julgamento onde a prova tenha sido produzida. E tal precedência é também imposta pela lei na medida em que manda discriminar, nos fundamentos do acórdão, os factos que se consideram provados e, de seguida (subentende-se), indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes (cfr. art.º 607.º, n.º 3, e 663.º, n.º 2, ambos do NCPC. Assim, e porque se trata da aplicação das regras de direito sobre o que não estamos sujeitos às alegações das partes (art.º 5.º, n.º 3, do NCPC), seguir-se-á a ordem supra referida na apreciação das questões elencadas. II. Fundamentação 1. De facto Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos: A) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Mesão Frio, sob o n.º 628/20010129/freguesia …, o prédio urbano sito no …, composto por casa de rés-do-chão e andar, sendo o r/c para comércio e o andar com 6 divisões destinadas a habitação, e logradouro com 79,02 m2 e a superfície coberta de 174,98 m2, a confrontar do Norte com caminho público, Sul e Poente com Q… e Nascente com a Estrada Nacional …, inscrito na matriz sob o art.º 705 [alínea A) da matéria de facto assente]. B) A aquisição do prédio descrito em A) encontra-se inscrita a favor dos AA desde 29/01/2011, por doação [alínea B) da matéria de facto assente]. C) Desde há mais de 20, 30, 50 anos consecutivos, os AA., por si e pelos respectivos antepossuidores, usufruem do prédio referido em A), nele habitando e guardando produtos e alfaias agrícolas, transformando-o e melhorando-o como entendem, granjeando-o e colhendo os respectivos frutos, pagando sempre os impostos que lhe respeitam, continuamente, à vista e com o conhecimento de todas as pessoas do lugar sem que alguém, em algum momento, tenha posto em causa ou perturbado estes seus actos, convictos, desde sempre, de serem os proprietários do mesmo prédio [alínea C) da matéria de facto assente]. D) O prédio descrito em A) confronta, por contiguidade física imediata, pelo lado poente, com dois prédios urbanos, compostos por casas destinadas a habitação autónomas e individualizadas, que são dos 1ºs RR. e do autor da herança demandada, F… e sua esposa, G… [alínea D) da matéria de facto assente]. E) A herança aberta por óbito de F… encontra-se por partilhar [alínea E) da matéria de facto assente]. F) Cada um dos prédios urbanos referidos em D) é servido exteriormente por um pátio, deitando o pátio ou quintal dos mesmos directa e imediatamente para o prédio dos AA. [alínea F) da matéria de facto assente]. G) Os prédios urbanos referidos em D) encontram-se implantados em terreno que se situa a um nível superior, de cerca de 2 a 3 metros, relativamente ao prédio dos AA. [alínea G) da matéria de facto assente]. H) Os 1.ºs RR usufruem e ocupam um dos dois prédios urbanos referidos em D) e os 2.ºs RR o outro, dos quais se intitulam donos e legítimos possuidores, sendo como tal por todos considerados [alínea H) da matéria de facto assente]. I) Cada um dos referidos prédios urbanos faz o escoamento de águas para o prédio descrito em A) [alínea I) da matéria de facto assente]. J) Nos pátios dos prédios urbanos referidos em D), junto da extrema poente do prédio descrito em A), existe uma construção com cerca de 30 cm de altura na qual se encontra aposto um gradeamento com cerca de 1 metro de altura, que deita para aquele prédio [alínea J) da matéria de facto assente]. K) A colocação do gradeamento referido em J) parapeito foi efectuada no prédio dos 1ºs RR., há cerca de 8, 9 anos, depois de ter sido edificado o urbano descrito em A) [alínea K) da matéria de facto assente]. L) E o gradeamento do prédio dos 2.ºs RR foi efectuado há cerca de 3 anos [alínea L) da matéria de facto assente]. M) O mandatário dos AA enviou aos RR em 11/10/2011, e estes receberam, as cartas que constam de fls. 23-24 e 26-27 [alínea M) da matéria de facto assente]. N) Para o escoamento de águas referido em I), o prédio dos primeiros réus possui tubos, especificando-se que actualmente apresenta um cotovelo de tubo e a evidência de ter sido arrancado um tubo, junto a um buraco no muro (resposta ao quesito 1.º da base instrutória). O) E o prédio dos segundos réus saídas para o efeito (resposta ao quesito 2.º da base instrutória). P) Os tubos e as saídas mencionadas em N) e O) projectam as águas para o prédio descrito em A) a cerca de 2 a 3 metros de altura (resposta ao quesito 3.º da base instrutória). Q) As águas referidas em I) são as pluviais e as provenientes das lavagens dos pátios e garagens dos prédios dos réus, da roupa e de outros tipos de utilização doméstica (resposta ao quesito 4.º da base instrutória). R) Os tubos e as saídas acima referidas foram respectivamente colocados pelos réus, sem o consentimento dos autores, sem prejuízo do encaminhamento feito pelo autor para aproveitamento das águas dos consortes para rega (resposta ao quesito 5.º da base instrutória). S) Os autores tomaram conhecimento do descrito de N) a Q), pelo menos, no ano de 2007 (resposta ao quesito 6.º da base instrutória). T) Detrás dos urbanos dos réus sempre existiu uma linha de água que servia de escoamento das águas pluviais provenientes dos prédios vizinhos ali existentes (resposta ao quesito 7.º da base instrutória). U) A linha de água referida em T) é constituída por um rego que começa no …, freguesia …, passa pelas traseiras dos prédios dos réus, ladeia depois uma poça de água denominada por “S…” e vai desembocar num aqueduto da via pública ali existente (resposta ao quesito 8.º da base instrutória). V) Há cerca de 9 anos atrás, os primeiros réus taparam a referida linha de água, rego, com a construção de um pátio em cimento (resposta ao quesito 9.º da base instrutória). W) Obstruindo, dessa forma, o escoamento das águas pluviais provenientes dos prédios vizinhos para o referido aqueduto (resposta ao quesito 10.º da base instrutória). X) O acima referido fez com que todas as águas provenientes dos prédios vizinhos e que circulam pela referida linha de água passassem a desaguar no prédio descrito em A) (resposta ao quesito 11.º da base instrutória). Y) Os autores exploram no prédio descrito em A) um estabelecimento comercial denominado por “T…” (resposta ao quesito 12.º da base instrutória). Z) O terreno do logradouro do prédio descrito em A) encontrava-se húmido (resposta ao quesito 16.º da base instrutória). AA) No referido logradouro, para além das árvores de fruto, os autores também plantavam produtos hortícolas (resposta ao quesito 19.º da base instrutória). BB) A construção com cerca de 30 centímetros de altura referida em J) foi efectuada há cerca de 8 anos, depois de ter sido edificado o urbano descrito em A), no prédio dos primeiros réus (resposta ao quesito 20.º da base instrutória). CC) Os buracos no muro estão separados entre si por distância não concretamente determinada e têm larguras distintas de tamanho não concretamente apurado (resposta ao quesito 25.º da base instrutória). DD) Os autores, aquando da construção da sua casa, e para aproveitamento da água dos consortes, que anteriormente eram encaminhadas para um tanque no seu terreno, colocaram um tubo, no limite do espaço fronteiriço dos prédios em apreço, na zona onde existira o tanque, para orientarem as ditas águas para uma caixa de água, construída para o efeito, não ligada à rede pública (resposta ao quesito 26.º da base instrutória). EE) Os autores vêm mantendo encostados ao mesmo muro do prédio dos réus, mediante separação de placas de esferovite azuis, diversos materiais designadamente lenhas (resposta ao quesito 37.º da base instrutória). 2. De direito 2.1. Da alteração da matéria de facto O art.º 662.º, n.º 1, do NCPC dispõe: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Desta norma resulta que a modificação da decisão de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, págs. 221 e 222). Para tanto, os recorrentes terão que observar os ónus impostos pelo art.º 640.º do mesmo Código, o qual estabelece que: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) ….” Na reapreciação dos meios de prova, tal como no regime anterior, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, assim assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância (cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ – STJ -, ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ – STJ -, ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt). Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada” (Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt). No caso sub judice, os recorrentes observaram satisfatoriamente tais ónus, pelo que se impõe a reapreciação dos factos por eles impugnados. Tais factos são os que constam das alíneas Q), R), V), W), X) e DD) da fundamentação de facto, acima transcrita, que os recorrentes querem ver dados como não provados, e os factos dados como não provados sob os n.ºs 7, 8, 9, 13, 15, 16, 17 e 18, correspondentes, respectivamente, aos quesitos 23.º, 24.º, 27.º, 31.º, 33.º, 34.º, 35.º e 36.º, que entendem ter ficado provados. Estes quesitos têm o seguinte teor:23.ºAs águas que escoam para o prédio dos autores são apenas as pluviais? 24.ºO escoamento das águas referido em I) sempre se fez através de seis buracos que se dispõem ao longo da parte superior do muro de suporte do espaço descoberto/logradouro da casa dos réus? 27.ºNo segundo buraco, a seguir ao referido em 26.º., os réus colocaram, a pedido dos AA., outro tubo, que ficou ligado a uma caixa de recepção feita por estes para ligação directa à rede pública?31.ºNa altura da construção do barraco referido em 28.º, os AA puseram dois pequenos tubos nos buracos existentes sobre o telhado do mesmo barraco?33.ºO escoamento das águas nos moldes descritos em 26.º e 27.º já se verificava antes da construção das casas dos RR e quando o seu terreno era utilizado para fins de cultivo?34.ºO escoamento nos moldes descritos em 26.º a 32.º já ocorre há mais de 20 anos, continuada e ininterruptamente?35.ºÀ vista e com conhecimento de toda a gente, sempre sem qualquer contestação ou oposição de alguém, incluindo os autores e os seus antecessores?36.ºSituação que os RR mantêm e sempre consideram como tradução e exercício de um direito próprio, e sem violação de qualquer direito de outrem? Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, quanto aos factos impugnados e outros com eles relacionados, o Ex.mo Juiz que presidiu à audiência de discussão e julgamento e proferiu a sentença escreveu: “A convicção do Tribunal, para responder à matéria de facto controvertida nos termos supra expostos, assentou na ponderação crítica e conjugada de todos os meios de prova produzidos ao longo do processo, tendo em conta, igualmente, a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento. Foi ponderada toda a prova documental junta aos autos, nomeadamente, os documentos de folhas 14 a 15 (caderneta predial urbana), 16 a 17 (certidão predial permanente), 18 a 22 (fotografias), 23 a 28 (correspondência), 65 a 66 (fotografias) e 101 (alvará de utilização). A inspecção judicial ao local permitiu ao Tribunal percepcionar a configuração do local, garantindo, em conjunto com a prova testemunhal e documental produzidas, dar como demonstrados e não demonstrados os factos como acima se elencaram e como melhor se explicitará infra. A ponderação destes elementos pautou-se pelas regras do ónus da prova e pelas regras do normal acontecer das coisas. … O facto Q. assenta no depoimento de P… e no auto de inspecção ao local. Além de demonstrarem o facto em apreço, corroboram o depoimento do autor. Com efeito, e tendo por referência configuração do espaço do pátio e do encaminhamento da água do tanque e de uma torneira para um dos buracos por onde escorre água para o prédio do autor, dúvidas não restam de que os réus escoam outras águas que não só as pluviais, como referido pela testemunha. Em face dos elementos recolhidos no auto de inspecção ao local, a conclusão a que se chega decorre igualmente das regras do normal acontecer das coisas. O facto R. decorre como exposto dos testemunhos de P… e de O…. Vão de encontro ao declarado pelo autor e às cartas enviadas pelo mesmo aos réus e que constam de folhas 22 a 28. Na verdade, resulta da prova produzida que antes da construção do prédio dos autores, aquele prédio destinava-se a cultivo havendo aproveitamento da água das chuvas que escorriam dos prédios mais altos. Água essa encaminhada por um rego ali existente e aproveitada num tanque que existia no prédio do autor (anteriormente do pai do autor e da testemunha P…). Aproveitamento esse que o autor, com construção de duas caixas de água, pretendeu aproveitar para o resto de terreno que sobrou da construção do urbano. Não obstante as mencionadas cartas datem de 2011, o certo é que, da prova produzida, se baliza o dito conhecimento em 2007. Facto S. Os factos T. a X. assentam nos testemunhos de P… e de N…, revelando conhecimento dos factos em apreço e demonstrando-os de forma verosímil. No caso da primeira testemunha referida, temos que a mesma fez a sua vida naquela localidade e é familiar e conhecida das partes neste processo e também dos prédios em apreço. Neste ponto e para demonstração dos factos V. a X., o Tribunal valorou igual e conjuntamente as regras do normal acontecer das coisas e o auto de inspecção ao local. Confirmou-se no local a existência do rego, como descrito pelas testemunhas que vai na direcção (entrando) do prédio dos réus e desvia para baixo para o terreno dos autores e outros consortes. Do lado de lá do terreno dos réus existe um reservatório de águas das chuvas. Ora, considerando a origem dos prédios (em momento anterior às construções neles existentes), considerando a necessidade de escoamento de águas, atenta a inclinação dos prédios e até a necessária rega dos terrenos, temos que o rego atravessava efectivamente os prédios dos réus. Não faria sentido que o rego, descendo das barrocas entrasse no terreno dos réus e desviasse para o terreno dos autores (para baixo), não deixando qualquer água para os réus. Acresce que, e como referido, existe do lado oposto ao que nos referimos o dito espaço onde cai a água da chuva. Faz todo o sentido que o mesmo recebesse águas do dito rego que fora interrompido. … O facto DD. assenta no depoimento de parte do autor em conjugação com o auto de inspecção ao local e demais prova acima referida. … Os factos não provados não obtiveram qualquer prova. … Da motivação que se vem expondo resulta exactamente o contrário do descrito no facto 7 (razão pela qual se dá o mesmo como não provado). Em relação ao facto 8. impõe-se referir que a prova produzida e que se valora positivamente demonstra o contrário. Na verdade, o espaço em frente à casa dos réus não teve sempre a configuração que apresenta, sendo que anteriormente a água escorria pelo rego e era encaminhada para um tanque (já existente) e para o aqueduto. Facto 9. Não ficou demonstrado que existisse qualquer ligação, feita a pedido ou não dos autores, de ligação à rede pública. Aliás, não se demonstrou (que) as duas caixas existentes na parte de trás do prédio dos autores estejam ligadas à rede pública. Nessa medida, o facto não pode dar-se como provado. … O facto 13 não foi referido por nenhuma testemunha. Aliás, o sentido da inquirição das testemunhas, feita pelos réus, foi no sentido de tentar demonstrar que os mesmos já existiam e não que os autores tivessem solicitado a sua colocação. Facto que descredibiliza a posição dos réus e das testemunhas que sobre este facto depuseram. De todo o modo, sempre se dirá que do depoimento das testemunhas acima valoradas, nomeadamente, O…, resulta que à data da construção do barraco, o topo do telhado ficou ao nível do pátio dos réus e que o canteiro hoje aí existente, não existia ainda. A ser assim, o barraco foi construído no limite da altura do muro de separação dos prédios e não por existirem tubos que impedissem que o mesmo pudesse ser construído mais acima. … Os factos 15. a 18. estão em contradição com os factos que se dão como provados, não encontrando, por isso, sustento na prova que se valora positivamente. De facto, o escoamento das águas, como já exposto, nem sempre se fez do modo alegado nos factos em apreço, não podendo darem-se os mesmos como provados, nem pelo tempo de 20 anos. Recorde-se que existia efectivamente um rego e que o encaminhamento das águas era feito para um tanque. Neste contexto, e estando interligados, não podem ter-se como provados os referidos factos. … U… não apresentou um discurso escorreito, pelo que foi afastada a sua valoração para decisão da presente decisão da matéria de facto. M… apresentou um discurso pessoalizado, pouco escorreito e menos espontâneo do que os que se valoram positivamente. Acresce que foi contrariado pelos testemunhos e pela prova acima considerada, levando a que afastássemos a sua credibilidade e não o relevássemos para a presente decisão de facto. Os depoimentos de J… e K… não foram valorados porque comprometidos com a verdade. Ao afirmarem que apenas escorre água das chuvas para o prédio dos autores, as mesmas ocultam o facto de que escorrem igualmente águas do tanque e de uma torneira mais acima, como o demonstra o auto de inspecção ao local e como o demonstram as demais testemunhas, como acima exposto. Em momento algum é dada uma justificação pelas testemunhas para aquele facto e para o eventual escoamento das águas do tanque para outro local que não o prédio dos autores. Explicação expectável até pela segunda testemunha mencionada que viveu no local e ainda faz a sua vida lá, pois que é filha dos primeiros réus. Foram prescindidos o depoimento de parte da autora mulher e dos demais testemunhos não referenciados. …” Importa, desde já, afirmar que, analisada toda a prova produzida, não há razões para alterar a matéria de facto no sentido pretendido pelos recorrentes. A discordância destes radica, essencialmente, numa apreciação diferente da que foi feita pelo Ex.mo Juiz e que serviu para formar a sua convicção, onde foi decisiva a imediação, pelo que se torna impossível sindicar a respectiva decisão. A apreciação feita pelo Tribunal a quo mostra-se muito bem fundamentada e tem suporte na prova produzida, designadamente a testemunhal, com apenas uma ou outra divergência de pormenor, sem significado. De qualquer modo, importa referir que os depoimentos das testemunhas indicadas pelos apelantes não são susceptíveis de basear a pretendida alteração, não só porque não confirmaram, na sua plenitude, a versão apresentada pelos recorrentes, tendo dela divergido, mas também porque foram contrariados pelas testemunhas indicadas pelos autores, designadamente, a P…, o O…, o N… e mesmo o U… que foi indevidamente desconsiderado na motivação de facto, os quais confirmaram a versão apresentada pelos demandantes e sustentada pelo autor em audiência de discussão e julgamento, tendo deposto com isenção e de forma convincente, mostrando-se conhecedores da realidade sobre que depuseram. Na verdade, a P…, irmã do autor e prima dos réus, disse conhecer bem o local da contenda por viver nas proximidades e confirmou a totalidade dos factos provados e impugnados. Foi peremptória ao afirmar que no muro em questão não havia tubos antes da sua reconstrução, ocorrida há cerca de dez anos, e desmentiu, categoricamente, o L…, que a precedera na prestação do seu depoimento. O U… também confirmou aqueles factos, dos quais revelou ter conhecimento por residir perto do local e cultivar uma horta no terreno dos autores, desde há cerca de dez anos, tendo afirmado que, no início, não havia quaisquer tubos no muro e que depois os réus fizeram nele buracos, tendo colocado tubos em quatro. O N… referiu conhecer o local desde antes da construção das casas, que por detrás das casas dos réus existia um rego por onde passava água de consortes, o qual foi tapado com cimento, junto à casa da E…, passando a água a escorrer para o prédio dos autores, conforme teve oportunidade de constatar uma vez quando estava no café destes. O O…, primo por afinidade do autor e cunhado do réu D…, revelou conhecer bem o local e foi peremptório ao afirmar que, em 2004, não existiam quaisquer tubos no muro, os quais foram colocados posteriormente em data que desconhece, esclarecendo que tem a certeza dessa data porque andou a electrificar o exterior da casa dos autores. Os depoimentos destas testemunhas contrariam os depoimentos das testemunhas arroladas pelos réus. Além disso, os depoimentos destas não se revelaram convincentes, quer pela forma como depuseram, quer pelas relações de amizade e de parentesco que mantêm com os réus. O L…, apesar de referir que construiu a casa dos autores há mais de dez anos e que nessa altura já existiam no muro 5 ou 6 “tubinhos” que substituiu pelos actuais, referência que repetiu várias vezes, por sugestão do ilustre mandatário dos réus ao mesmo tempo que dizia “não tem dúvidas”, disse que não se recordava quando começou a construção e que entregou a obra concluída quando foi concedida a licença de habitabilidade, o que ocorreu em 29 de Agosto de 2003, conforme alvará cuja cópia está junta aos autos a fls. 101. O M…, apesar de referir que procedeu à reconstrução do muro em 1990, data que mencionou prontamente e com certeza, revelou muita amizade para com o autor da herança ré e dos seus herdeiros, indo aos aniversários daquele até há cerca de doze anos e sendo visita da casa destes. Mesmo assim disse que o muro era encimado por uma fiada de tijolos com dois ou três tubos para escoamento. A J…., cunhada dos réus, manifestou nervosismo e hesitação no depoimento, falando em quatro buracos debaixo do canteiro, tendo sido colocados em dois deles tubos pretos, sendo que a inspecção ao local refere a cor cinzenta, o que também é revelado pelas fotografias enviadas por correio electrónico. Finalmente, a K…, além de ser filha dos 1.ºs réus e sobrinha da G…, manifestou interesse no desfecho do processo e manifestou animosidade para com os autores, que ocultou e prestou o depoimento em tom jocoso, pelo que nada convenceu. Apesar de o autor ter prestado o seu depoimento, a requerimento dos réus, visando obter, como é óbvio, a confissão judicial provocada, a qual é obtida em juízo e consiste no reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (cfr. art.ºs 352.º e 356.º, n.º 2, ambos do Código Civil), e não obstante não ter sido obtida, como resulta, desde logo, da falta de redução a escrito na respectiva acta, como devia caso tivesse havido confissão (cfr. 463.º do NCPC), as suas declarações podem ser livremente apreciadas pelo tribunal (cfr. art.º 466.º, n.º 3, do NCPC). Nem se diga que este Código não é aplicável ao presente caso, por se tratar de um processo iniciado antes da sua entrada em vigor. Com efeito, como já se referiu, tem aqui aplicação o NCPC por força do disposto no art.º 5.º, n.º 1, da citada Lei n.º 41/2013, que manda aplicá-lo imediatamente às acções declarativas pendentes, e visto que a sentença foi proferida após a sua entrada em vigor (cfr. art.º 8.º da mesma Lei), numa acção instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, tendo também o depoimento sido prestado após 1 de Setembro de 2013 (cfr., neste sentido, o Conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 15). E já resultava do regime geral previsto no art.º 12.º do Código Civil. Deste artigo resulta que, na área do direito processual, a nova lei se aplica não só às acções futuras, mas também aos actos futuros praticados nas acções pendentes (cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 49). O Prof. Alberto dos Reis já escreveu, há muito, que “A lei nova aplica-se imediatamente aos actos que houverem de praticar-se a partir do momento em que ela entra em vigor; quanto aos actos já praticados à sombra da lei antiga, subsiste o império desta lei” (in RLJ, 81.º, pág. 202, citado em nota de rodapé por aqueles autores, na pág. 54). Ainda que se entenda que as declarações de parte só podiam valer como confessórias não reduzidas a escrito [cfr. Isabel Alexandre, num artigo sobre “A fase da instrução e os novos meios de prova no Código de Processo Civil de 2013”, publicado na Revista do Ministério Público 134 (Abril - Junho 2013 págs. 9-42)], a ausência de confissão não é bastante para alterar a matéria de facto impugnada, porquanto as declarações do autor não foram exclusivas na formação da correspondente convicção. Com exclusão do que consta da alínea DD), elas apenas serviram como referência dos depoimentos prestados e não como fundamento ou motivação da respectiva decisão. E, mesmo quanto àquela alínea, não foram exclusivas, pois na base da decisão esteve a inspecção ao local, para além do confronto de toda a prova produzida. Nesse confronto, a prova deve ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto. A este propósito, o Prof. Alberto dos Reis já ensinava, há muito, que “prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” (cfr. Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág. 570). A essas regras de apreciação está sujeita a prova testemunhal, como expressamente dispõe o art.º 396.º do Código Civil. Porém, dada a sua reconhecida falibilidade, impõe-se uma especial avaliação crítica com vista a uma valoração conscienciosa e prudente do conteúdo dos depoimentos e da sua força probatória, devendo sempre ter-se em consideração a razão de ciência do depoente e as suas relações pessoais ou funcionais com as partes. Há, ainda, que apreciar a prova no seu conjunto, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência, em face do princípio da aquisição processual (cfr. art.º 413.º do NCPC). E, nessa apreciação global, o julgador poderá lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, isto é, no seu prudente arbítrio, poderá deduzir de certo facto conhecido um facto desconhecido (art.ºs 349.º e 351.º, ambos do C. Civil). Como corolário da sujeição das provas à regra da livre apreciação do julgador, consagrada no art.º 607.º, n.º 5, do NCPC, impõe-se-lhe indicar “os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348 e Ac. da RC de 3/10/2000, CJ, ano XXV, tomo IV, pág. 27). O Ex.mo Juiz fundamentou a sua convicção, motivando-a, clara e proficientemente. A fundamentação da matéria de facto mostra-se criteriosa, muito bem desenvolvida, com uma apreciação cuidada, e tem suporte na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos. Da reapreciação efectuada por este Tribunal, considerada a prova em causa no seu conjunto, segundo critérios de valoração racional e lógica, não há razões para nos afastarmos do entendimento tido na 1.ª instância, quanto à matéria em análise, pois que não se vislumbra qualquer desconformidade entre a dita prova e a respectiva decisão, muito menos notória, em violação dos princípios e regras do direito probatório. Da análise crítica dos depoimentos prestados, dos documentos juntos aos autos e do auto de inspecção judicial ao local não pode ficar-se com outra convicção que não seja a do tribunal recorrido. E é esta análise crítica e integrada dos depoimentos com os outros meios de prova que os juízes devem fazer, pois a sua actividade, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos, muito menos truncados, interessados e parciais. Por isso, e porque não foi apresentado qualquer documento novo superveniente susceptível de destruir a prova em que aquela decisão assentou, não pode este Tribunal alterar a matéria de facto impugnada, pelo que se mantém. Improcedem, por conseguinte, ou são irrelevantes, por descabidas, as correspondentes conclusões. No entanto, impõe-se alterar, oficiosamente, a matéria de facto tida como assente nas alíneas J), K) e L), por não corresponder ao que fora alegado e confessado. Na verdade, como resulta da matéria alegada, ainda que de forma deficiente e algo confusa, nos art.ºs 45.º, 46.º, 47.º, 49.º e 50.º da petição inicial, e do art.º 44.º da contestação, apenas existe um gradeamento no prédio da 2.ª ré, com cerca de um metro de altura, e um denominado parapeito com cerca de 30 centímetros de altura no prédio dos 1.ºs réus. Nesta conformidade, procede-se à alteração daquelas alíneas nos seguintes termos: J) Junto à extrema poente do prédio descrito em A), e a deitar para ele, no pátio do prédio urbano da 2.ª ré, existe um gradeamento com a altura de cerca de um metro, e, no pátio do prédio dos 1.ºs réus, existe uma construção com cerca de 30 centímetros de altura. K) Esta construção foi efectuada há cerca de 8 anos, depois de ter sido edificado o prédio descrito em A). L) E o gradeamento do prédio da 2.ª ré foi efectuado há cerca de três anos. 2.2. Da anulação do julgamento O citado art.º 662.º, n.º 2, al. c) prevê que a Relação deve, mesmo oficiosamente, “anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”. Da simples leitura desta alínea extrai-se que a anulação está prevista apenas para os casos em que a decisão sobre a matéria de facto se repute “deficiente, obscura ou contraditória” e não constem do processo todos os elementos que permitam a sua reapreciação, bem como para os casos de ampliação da matéria de facto. Naqueles casos é necessário estar perante decisões total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias e não constarem do processo os elementos em que o tribunal a quo se fundou, situação rara atenta a obrigatoriedade de gravação das audiências. No caso de ampliação da matéria de facto, é necessário que ela seja indispensável e pressupõe a omissão dos temas da prova de factos alegados pelas partes que se revelem essenciais para a resolução do litígio, não bastando que os factos tenham conexão com alguma das “soluções plausíveis da questão de direito”. “Em qualquer dos casos, a anulação do julgamento deve ser sempre uma medida de último recurso, apenas legítima quando de outro modo não for possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que isso determina nos vectores da celeridade e da eficácia” (cfr. Abrantes Geraldes, obra citada, págs. 239 a 241). Os fundamentos invocados pelos recorrentes não se subsumem a algum desses casos. Não se trata de falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, de ininteligibilidade ou imprecisão, nem de incongruências da decisão sobre a matéria de facto. Para além disso, os autos fornecem todos os elementos em que o tribunal da 1.ª instância fundou a sua decisão, necessários à sua reapreciação, a qual acabou de ser feita. E também não é caso de ampliação da matéria de facto. Tais fundamentos radicam exclusivamente na motivação da decisão de facto. E eles jamais poderiam ser causa de anulação. Não se compreende, assim, a pretensão da anulação, muito menos, deduzida a título subsidiário. Improcedem, deste modo, as conclusões atinentes a esta questão. 2.3. Do parapeito Nos termos do art.º 1360.°, n.º 1, do Código Civil, o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio. A mesma restrição se aplica a varandas, terraços, eirados e obras semelhantes quando sejam servidos de parapeito de altura inferior a metro e meio, em toda a sua extensão ou parte dela (n.º 2). Conforme dispõe o art.º 1362.°, n.º 1, do mesmo diploma, a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção com o disposto na lei (por exemplo, a deitarem directamente sobre o prédio vizinho) pode importar, nos termos gerais, a constituição de servidão de vistas por usucapião. Constituída a servidão, fica onerado o prédio vizinho com este encargo, não podendo o seu dono construir nele sem que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras do vizinho o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras (n.º 2 do art.º 1362.°). Relativamente aos terraços, que é o que importa aqui considerar, mais do que as vistas é a devassa que está em causa. Por isso, a lei exige que sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio. Os prejuízos só começam a ser atendíveis se existir um parapeito, porque as pessoas podem debruçar-se nele, ocupando parcialmente o prédio alheio. Isso mesmo se escreveu na Revista de Legislação e de Jurisprudência (ano 99.º, pág. 240) nestes termos: “isto quer dizer que não são propriamente as vistas que interessam, mas o devassamento, ou melhor, a possível ocupação do terreno vizinho. Basta que, no parapeito duma janela ou dum terraço, a pessoa se debruce, numa atitude natural, ou estenda um braço, para que haja violação do direito de propriedade alheia, e é isso o que importa evitar”[2]. Nesta mesma linha, os Professores Pires de Lima e Antunes Varela escreveram: “Não pode dizer-se que a existência de um simples terraço ou eirado, a um nível superior ao do prédio vizinho, afecte mais gravemente este do que a simples contiguidade à superfície. Praticamente, a devassa é a mesma. Tanto vale estar no terraço como no solo, para poder ver o que se passa no terreno vizinho”. E alertam para a exigência de parapeito, escrevendo: “Não pode, porém, esquecer-se, mesmo na nossa lei, que é exigido um parapeito, e que não pode considerar-se como tal uma parede divisória de alguns centímetros ou mesmo decímetros de altura. Ele deve ter as dimensões suficientes para que possa servir de apoio à pessoa, para que esta possa debruçar-se, apoiando-se nele, sobre o terreno do vizinho”[3]. No caso dos autos, não se verifica este parapeito, legalmente exigido, relativamente aos 1.ºs réus. Efectivamente, no seu terraço a deitar para o prédio dos autores apenas existe um muro com a altura de cerca de 30 centímetros, o que impossibilita qualquer pessoa de se debruçar sobre ele e assim devassar aquele prédio. Por isso, nesta parte, não podia haver qualquer condenação dos 1.ºs réus, impondo-se antes a sua absolvição do correspondente pedido. Quanto ao gradeamento existente no prédio da segunda ré, já permite tal devassa, visto ter cerca de um metro de altura, pelo que não pode manter-se tal como está, por violar o n.º 2 do citado art.º 1360.º. Para evitar tal violação, tanto pode ser feito um gradeamento ou parapeito com altura não inferior a um metro e meio como pode ser, pura e simplesmente, retirado o existente. Daí que se imponha a condenação da 2.ª ré, em conformidade, como vem pedido na apelação. Destarte, procedem as conclusões atinentes a esta questão. 2.4. Do escoamento natural das águas O art.º 1351.º do Código Civil estatui: “1. Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente. 2. Nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, nos caos em que é admitida”. Neste normativo consagra-se o princípio de que as águas devem seguir o seu curso natural, sem que os seus utentes ou os donos dos prédios imponham a outros a alteração artificial desse fluxo normal. Assim, nem o proprietário do prédio superior deve aliter aquam mittere quam natura solete, nem o proprietário do prédio inferior pode opere facto inhibere aquam, quae natura fluat, per suum agrum decurrere, abrangendo todas as águas correntes qualquer que seja a sua origem (cfr. Pires Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., págs. 191 e 192). Deste modo, não é permitida qualquer modificação na escorrência das águas, quer pelo dono do prédio inferior que estorve o defluxo natural, impedindo a torrente natural ou da chuva, quer pelo dono do prédio superior que a agrave (cfr. ac. do STJ, de 9/11/95, no processo 087242, cujo sumário é acessível em www.dgsi.pt). As águas que o prédio inferior está obrigado a receber são apenas as que decorrem naturalmente, e sem obra do homem, dos prédios superiores. Não se trata de uma servidão constituída pela natureza das coisas, mas de restrições aos poderes inerentes à propriedade de imóveis, impostas por lei. Não obstante a obrigação de receber as águas que naturalmente derivem para o prédio inferior, o seu proprietário pode opor-se a obras que desviem o curso normal das águas ou o tornem mais gravoso para o seu prédio, contra actos que alterem ou agravem o escoamento das águas. Assim, não é permitida qualquer modificação que provoque agravamento da restrição ao direito de propriedade resultante da obrigação de receber as águas que decorrem naturalmente do prédio superior, nomeadamente quando dessas alterações advém a poluição das águas que se projectam sobre o prédio inferior, deixando de ter o direito de lançar tais águas sobre este prédio (cfr. ac. do STJ, de 9/11/95, na CJ –STJ- ano III, tomo III, pág. 104) ou provocando maior caudal. Como escreveu Guilherme Moreira, em As Águas, II, n.º 50, “as águas que os prédios inferiores têm de receber são: as águas pluviais que caiam directamente no prédio superior ou que para este decorram de outros prédios superiores a ele; as águas provenientes da liquefação das neves e gelos; as que se infiltrem no terreno, e as nascentes que brotam naturalmente num prédio”. Mário Tavarela Lobo, no Manual do Direito de Águas, volume II, 2.ª edição, pág. 418, afirma que “o nosso Código Civil de 1966 regula a matéria da servidão natural de escoamento como uma mera restrição ao direito de propriedade. Foi a natureza que criou esta servidão, é ela também que lhe traça os seus limites”, acrescentando em nota de rodapé, sob o n.º 3: “Consequentemente: 1.º O proprietário superior não pode modificar o escoamento das águas pluviais ou das nascentes existentes no seu terreno de forma a lançar sobre os vizinhos um curso de água mais forte; e 2.º Por maioria de razão não pode o mesmo aumentar artificialmente o volume das águas que derivam sobre os prédios inferiores”. Na pág. 420, também escreveu que “O art.1351.º exige a ausência de obra de homem para impor ao prédio inferior o ónus de receber as águas escoadas do prédio superior, seja qual for o objectivo em vista ao proceder a tais obras”. E na nota 4 dessa mesma página, escreveu: “Entre os numerosos exemplos de obras de homens (opus manus), refiram-se os diques ou fossas, plantação de árvores, modificações do curso natural por derivação ou canalização, obras de rebaixamento do terreno a tornar o curso de escoamento mais impetuoso, etc.”. E, na página seguinte, acerca do objecto desta servidão imprópria regulada como restrição imposta à propriedade directamente por lei, no citado art.º 1351.º, escreveu que “constituem objecto da servidão natural de escoamento, além da aqua pluvia que cai directamente no prédio superior ou que nele decorre derivada de outros, todas as águas naturalmente fluentes como as que provêm da fusão da neve e do gelo, as derivadas duma nascente de curso regular e contínuo, de infiltração, etc. Mas excluem-se, obviamente, do alcance do art. 1351.º as águas represadas em reservatórios ou poços e daí extraídas artificialmente por bombas ou outros instrumentos, as águas caídas dos telhados ou provenientes de fábricas, piscinas, poços artesianos, cozinhas, latrinas e esgotos e, em suma, todas as águas que surgem artificialmente encontradas pelo proprietário no seu prédio em consequência, como vimos, das escavações dum edifício ou de outras obras. … Se, porém, as águas do prédio superior forem derivadas do curso natural do escoamento deixando de seguir a inclinação do terreno, o proprietário do prédio inferior só pode ser coagido a sofrer o ónus mediante a construção coerciva da servidão legal de escoamento, recebendo a indemnização devida.” A par da obrigação de receber as águas que decorrem naturalmente, há também a obrigação de receber a terra e os entulhos que essas águas arrastam na corrente, mas visa-se “apenas a terra e entulhos que correm naturalmente, e não quaisquer outras substâncias que se juntem às águas por obra do homem e que as tornem nocivas, pois ao recebimento da aqua nocens não está obrigado o prédio inferior” (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 192). Portanto, como resulta do mesmo artigo, e como escrevem estes Mestres (na obra citada, pág. 193), “o proprietário prejudicado pode opor-se às obras feitas noutro prédio, que desviem o curso das águas ou o tornem mais gravoso, mesmo que os dois prédios se encontrem separados por uma via pública ou por um terreno particular”, acrescentando mais adiante, ainda no mesmo local, que “Do artigo 1351.º depreende-se que o proprietário do prédio inferior terá direito a ser indemnizado dos danos que lhe advenham do escoamento das águas em termos diferentes dos prescritos, tal como o proprietário do prédio superior tem direito a ver reparado o dano que lhe cause o estorvo causado ao exercício normal do seu direito. Mas do preceito resulta ainda a possibilidade de obter, independentemente de quaisquer danos que já se tenham verificado, a destruição das obras (restitutio operis) tendentes a alterar o curso normal das águas ou a estorvar ilicitamente o seu escoamento, como prevenção de danos futuros”. Embora haja quem defenda tratar-se de responsabilidade extracontratual por factos lícitos (cfr. Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 5.ª ed., págs. 213 e 217), vem sendo maioritariamente entendido que, por um lado, a violação dos comandos insertos em tal normativo faz incorrer o infractor em responsabilidade extracontratual por factos ilícitos e, por outro lado, que nesse normativo se consagra mais uma das muitas limitações ou restrições ao exercício do direito de propriedade, expressamente previstas no art.º 1305.º, ao definir o conteúdo de tal direito (cfr., entre outros, acórdãos do STJ de 9/3/2004, na CJ – STJ -, ano XII, tomo I, pág. 107 e de 3/10/91, no BMJ n.º 410, pág. 776, da RC de 16/11/99, na CJ, Ano XXIV, Tomo 5, pág. 29 e de 15/11/2005, proferido no processo n.º 2547/05, disponível em www.dgsi.pt e da RE de 15/3/90, na CJ, Ano XV, T.2, pág. 227 e o nosso acórdão de 6/12/2011, proferido no processo n.º 775/09.1TBPFR.P1 que aqui seguimos e reproduzimos nesta parte). Não está em causa qualquer direito de indemnização, pois o pedido referente à indemnização peticionada, formulado pelos autores, foi julgado improcedente, e aqueles conformaram-se com tal decisão. No recurso, na parte relativa ao escoamento natural das águas, vem posta em causa a condenação da alínea e), ou seja, a condenação dos réus “a realizar as obras necessárias e adequadas a evitar que decorram para o prédio dos autores qualquer tipo de águas”, por os recorrentes entenderem que não foram ressalvadas as águas pluviais. Resulta da matéria de facto apurada que o prédio dos autores confina com os dos réus e que o primeiro fica a uma cota de nível inferior ao dos últimos. Os 1.ºs réus procederam à construção de um muro na linha divisória, há cerca de 8 anos, e abriram nele buracos onde colocaram tubos para o escoamento das águas provenientes do seu prédio, constituído por casa de habitação e terraço, bem como das águas pluviais provenientes dos prédios vizinhos, obstruindo o aqueduto para onde estavam encaminhadas e encaminhando-as todas para o prédio dos autores. Por sua vez, a 1.ª ré fez aberturas para a saída das águas provenientes do seu prédio encaminhando-as para o prédio dos autores. Para além das águas pluviais, escorrem para os prédios dos autores águas provenientes das lavagens dos pátios e garagens dos prédios dos réus, bem como da roupa e de outros tipos de utilização doméstica. Os recorrentes não se insurgem contra a condenação na parte referente a estes tipos de águas, mas tão só quanto às águas pluviais, defendendo que na condenação aqui em análise deviam ser ressalvadas as águas pluviais. A construção do referido muro, a abertura dos buracos nele e a construção das outras aberturas por onde correm todas aquelas águas para o prédio inferior, ficaram a dever-se a mão humana. A própria construção dos edifícios, com os respectivos pátios ou terraços cimentados, e as aludidas aberturas tornaram diferente o caudal, aumentando-o, e a sua condução para o prédio dos autores, causando-lhe, necessariamente, malefícios que nunca causaria a chuva que cai naturalmente, resultaram da intervenção humana. Assim, não há dúvidas de que a forma de escoamento das águas dos prédios urbanos dos réus para o dos autores teve lugar por obra do homem e agravaram o ónus que recai sobre o prédio destes. E, havendo intervenção humana, não podem os autores ser obrigados a receber as águas pluviais, ao abrigo do n.º 2 do citado art.º 1351.º. Como a própria epígrafe deste artigo indica, nele prevê-se o escoamento natural das águas e não o escoamento com intervenção humana. Para além de resultar claramente da lei, assim tem vindo a ser entendido pela doutrina, como já referimos, e pela jurisprudência. É o que também afirma o acórdão deste Tribunal, de 25/10/1993, publicado na CJ, ano XVIII, tomo IV, págs. 244-247, em cujo sumário se pode ler: “O dono do prédio superior não pode fazer nele obras que agravem o escoamento natural das águas que nele caiam e que se encaminhem para um prédio inferior”. E, citando Guilherme Moreira, acrescentou: “o espaço fixado por lei entre a beira do edifício e o prédio é o que se considerou suficiente para que as águas que caem do edifício sejam embebidas pelo terreno e se espraiem de forma que não causem grandes prejuízos aos prédios inferiores. Não sucederá, porém, o mesmo se as águas não caírem gota a gota mas forem conduzidas por caleiras ao longo dos beirais para tubos de descarga. Neste caso, os prédios inferiores não são obrigados a receber essas águas.” Por maioria de razão, os autores não são obrigados a receber todas as aludidas águas, pluviais incluídas, conduzidas para o seu prédio, provenientes dos prédios dos réus, pelo que podem exigir destes a destruição das obras tendentes a alterar o curso normal das águas e a realização das obras adequadas a evitar o escoamento ilícito, como foi decidido, na impossibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, como abaixo se explicitará. Improcedem, pois, as conclusões atinentes a esta questão. 2.5. Do abuso de direito Como é sabido e temos vindo a repetir noutros acórdãos (cfr., por todos, o de 10/7/2013, processo n.º 821/10.6TVPRT.P1, in www.dgsi, e o de 19/11/2013, processo n.º 1857/09.5TJVNF.S1.P1, que aqui reproduzimos nesta parte), o actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça. Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 296, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536). A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável. Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico (Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171). Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites. Tal objectividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 30/11/95, na CJ – STJ - ano III 20/5/97, tomo III, pág. 132, de 20/5/97, no BMJ n.º 467.º, pág. 557 e de 25/11/99, CJ – STJ -, ano VII, tomo III, pág. 124; da RL de 29/1/98, na CJ, ano XXIII, I, 103 e da RE de 23/4/98, CJ, XXIII, II, 278). Porque é de conhecimento oficioso, pode ser apreciado, ainda que não o tenha sido em 1.ª instância, dependendo a sua verificação da alegação e prova dos aludidos factos. Esta orientação jurisprudencial mereceu o aplauso do Prof. Menezes Cordeiro, que também faz depender a aplicação daquele instituto da verificação dos pressupostos processuais, justificando: “na verdade, o Tribunal não fica limitado pelas invocações jurídicas das partes: pedido um certo efeito e constando, do processo, os factos necessários, pode o juiz optar pelo abuso de direito, mesmo que este não tivesse sido expressamente invocado” (in Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 2.ª edição, pág. 247). Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara. Porém, o abuso do direito, enquanto “válvula de escape”, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito (cfr. acórdão do STJ de 15/1/2013, no processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1). Como escreveu Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, ali citado: “O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.” E ensina, lapidarmente, o mesmo Professor, na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”: “ (...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.” (cfr., ainda, o mesmo autor, no Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, 2.ª reimpressão, pág. 292, onde menciona as mesmas quatro proposições para a concretização da confiança). A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte. Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural” (citado acórdão de 15/1/2013). Para que pudesse considerar-se abusivo o exercício do direito por parte dos autores/recorridos, era necessário demonstrar factos através dos quais se pudesse considerar que excederam, manifestamente, clamorosamente, o fim social ou económico do direito por eles exercido ou que com a sua pretensão violavam expectativas incutidas nos réus. Ora, no presente caso, isso não se verifica. Não só não foram provados factos que permitam concluir pelo excesso manifesto, clamoroso, do fim social ou económico do direito exercido pelos autores ao formularem os pedidos de eliminação das saídas e dos tubos e de reposição da linha de água, constantes das alíneas C) e D), que originaram as respectivas condenações decretadas sob as alíneas c) e d), mas também que essas suas pretensões violam expectativas por eles incutidas aos réus. Os factos, por estes, invocados em sede de recurso [provados sob as alíneas S) e V)] não permitem equacionar uma eventual ofensa clamorosa a um sentimento de justiça socialmente dominante. Note-se que ali ficou apenas provado que os autores tomaram conhecimento do escoamento das águas, através dos tubos e das aberturas, para o seu prédio, pelo menos, no ano de 2007 [al. S)], e que, há cerca de 9 anos, os primeiros réus taparam a linha de água, com a construção de um pátio em cimento [al. V)]. O simples conhecimento dessas obras e do escoamento das águas para o seu prédio e a mera inércia dos autores em exercerem os seus direitos não incutiram nos réus qualquer confiança no sentido de que não reagiriam contra o escoamento ilícito. Note-se que nem sequer se mostra provado que tivessem dado qualquer autorização para tanto. Os autores jamais afirmaram que autorizavam a abertura para a saída das águas e a colocação dos tubos, nem que não iriam pugnar pelos seus direitos daí decorrentes, de forma a criar uma expectativa fundada nos réus de que não proporiam a acção que tivesse por objecto tais direitos. Por isso, nenhuma confiança há a tutelar. Faltando o primeiro pressuposto da situação de confiança, é manifesta a falta dos restantes, acima referidos, para que se possa considerar verificado o abuso de direito na modalidade indicada. Ao proporem a acção, os autores limitaram-se a exercer o direito conferido pelo citado art.º 1351.º, em termos que não evidencia violação, muito menos clamorosa, por não terem violado qualquer confiança que tivesse sido incutida aos réus, pelo que, salvo melhor opinião, não abusaram desse direito. Inexiste, por conseguinte, abuso de direito, pelo que improcedem as respectivas conclusões. 2.6. Da servidão de escoamento O art.º 1543.º define servidão predial como “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”. Esta noção genérica de servidão evidencia o seguinte: a) a servidão é um encargo, uma restrição ou limitação ao direito de propriedade; b) o encargo recai sobre um prédio (o onerado ou serviente); c) o mesmo aproveita exclusivamente a outro prédio (o dominante); d) os prédios devem pertencer a donos diferentes (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., págs. 613 a 617). Sobre o seu conteúdo, o art.º 1544.º prevê: “Podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor.” Interessa aqui considerar apenas as águas pluviais, pois só elas constituem objecto do pedido reconvencional e da pretensão reiterada, no recurso, pelos réus/recorrentes. Estes fundamentaram esta sua pretensão na usucapião. É sabido que a usucapião é uma forma de aquisição originária do direito. Para se adquirir, por usucapião, um direito susceptível de ser adquirido por essa via, é imprescindível ter a posse correspondente ao direito em causa e mantê-la durante certo lapso de tempo (art.º 1287.º do Código Civil). A posse adquire-se pelo facto e pela intenção, definindo-se, portanto, por dois elementos essenciais, a saber: o “animus” que corresponde à actuação do possuidor com a convicção de que está a exercer um direito próprio e o “corpus” que se analisa no conjunto de actos materiais correspondentes ao exercício do direito em causa [art.ºs 1251.º e 1253.º, a), ambos do C. Civil]. A relação possessória é uma relação permanente e duradoura e, por isso, os factos que a integram terão de ser exercidos por forma a que se possa concluir que aquele que os praticou pretende realizar sobre a coisa um poder permanente. A referida posse terá ainda de ser pacífica e pública, ou seja, adquirida e mantida sem violência e de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art.ºs 1261.º, 1262.º e 1297.º, todos do C. Civil). Poderá a mesma ser de boa ou má fé, consoante o possuidor ignorava ou não, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa fé a posse titulada e de má fé a não titulada (art.º 1260.º do C. Civil). Os réus não provaram, como lhes competia, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, os factos constitutivos do direito que invocaram. Aliás, a sua verificação pressupunha a alteração da matéria de facto, nos termos por si propugnados, o que não lograram alcançar, como se deixou dito. Por isso, jamais poderiam ver reconhecido esse seu direito com base na usucapião. Acresce que se nos afigura que a servidão de escoamento de águas pluviais sobre prédios urbanos nem sequer é susceptível de ser constituída por usucapião, atento o disposto no n.º 2 do citado art.º 1351.º, que apenas ressalva a possibilidade de constituição de servidão legal de escoamento, a qual só é permitida nos termos do art.º 1563.º do Código Civil, mediante o pagamento da correspondente indemnização. Isto apesar de haver quem entenda que a circunstância de a lei permitir a constituição coerciva da servidão de escoamento não impede que o mesmo tipo de servidão se possa constituir por via negocial ou por usucapião (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 661). Aquele primeiro artigo prevê o escoamento natural das águas nos seus precisos termos, regulando a servidão imprópria “fluminis recipiendi”, e só admite, como encargo excepcional sobre a propriedade, a servidão de escoamento em sentido técnico, regulada no segundo artigo, que prevê a constituição forçada da servidão de escoamento nos casos nele contemplados e precedida do pagamento duma indemnização do prejuízo ao proprietário do prédio serviente. É o que resulta também do conteúdo do direito de propriedade e do “numerus clausus” dos direitos reais consagrados nos art.ºs 1305.º e 1306.º, ambos do Código Civil. Com o devido respeito, os recorrentes parecem confundir servidão de escoamento natural regulada no art.º 1351.º, que entendem ter sido violado, com servidão legal de escoamento, ainda que tenham pedido o seu reconhecimento com fundamento na usucapião, que não se verifica, como já dissemos. Aquela “servidão” resulta directamente da lei, pelo que nunca pode ser constituída por contrato, testamento, usucapião, destinação de pai de família ou qualquer outro modo de constituição das servidões em sentido técnico. “O encargo existe independentemente da vontade expressa ou tácita dos proprietários dominante e serviente ou por imperativo de um acto judicial. Na servidão natural de escoamento – porque natural -, não há obras ou sinais susceptíveis de dar aparência a uma eventual servidão constituída por usucapião ou por destinação do pai de família. Estes modos de constituição das servidões são somente aplicáveis às servidões propriamente ditas, cujo ónus não se revela por força duma prescrição legal” (cfr. Tavarela Lobo, obra citada, pág. 418). E, quanto à servidão legal, já afirmava Guilherme Moreira que “A lei não impõe a servidão legal de escoamento para as águas pluviais de prédios urbanos, tendo de realizar-se sempre a construção, quando não haja acordo com os proprietários dos prédios vizinhos…” (cfr. citado acórdão da RP de 25/10/93). Improcedem, portanto, as questões atinentes a esta questão, não podendo ser reconhecido o direito invocado pelos recorrentes. 2.7. Da litigância de má fé Nos termos do art.º 542.º, n.º 2, do NCPC “Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”. Tal como temos vindo a escrever em anteriores arestos, nomeadamente nos mais recentes, proferidos em 23/10/2012, 7/11/2012, 3/12/2012, 5/2/2013, 3/12/2013 e 18/3/2014, respectivamente, nos processos n.ºs 695/08.7TBESP-A.P1, 1235/10.3TBVNG-B.P1, 251531/11.2YIPRT.P1, 3028/11.1TBVCD.P1, 271/12.0TBCHV.P1 e 1762/12.8TBMTS.P1, antes da reforma de 1995/96, era entendimento uniforme na jurisprudência e na doutrina que só a lide dolosa dava lugar à condenação como litigante de má fé (cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 8/4/97, CJ – STJ-, ano V, tomo II, pág. 37; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., pág. 263 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 356). Após aquela reforma, passaram a ser previstas e punidas não só as condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes ou grosseiras, como resulta, com clareza, da letra da lei, ao referir “com dolo ou negligência grave” e resultava do art.º 456.º, n.º 2, do anterior CPC, com conteúdo igual ao actual. Explicando esta alteração, escreveu António Abrantes Geraldes: “é neste contexto, concerteza fruto da degradação dos padrões de actuação processual e do uso dos respectivos instrumentos, que, a par do realce dado ao princípio da cooperação e aos deveres de boa fé e de lealdade processuais, surge a necessidade de ampliar o âmbito de aplicação do instituto, assumindo-se claramente que a negligência grave também é causa de condenação como litigante de má fé” (Temas Judiciários, vol. I, pág. 313). Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto também escreveram, em anotação ao citado art.º 456.º, que o seu n.º 2, resultante da orientação tomada pelo DL n.º 329-A/95, de 12/12, “passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má fé, com o intuito, como se lê no preâmbulo do diploma, de atingir uma maior responsabilização das partes” (cfr. Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 2.ª edição, págs. 219 e 220). Este novo regime veio afirmar maior exigência de boa fé das partes no processo, ao alargar o tipo de comportamentos que podem ser objecto daquela censura (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 63). O Conselheiro Rodrigues Bastos também escreveu: “A má fé processual tinha, entre nós, como requisito essencial o dolo, não bastando a culpa, por mais grave que fosse. A reforma processual de 95/96 mudou esse estado de coisas, considerando reveladora da má fé no litígio tanto o dolo, como a culpa grave, que designa por negligência grave. A parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos arts. 266.º e 266.º-A. Se intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má fé. A doutrina tem classificado a má fé de que trata o preceito em duas variantes: a má fé material e a má fé instrumental, abrangendo a primeira os casos das alíneas a) e b) do n.º 2, e a segunda, os das alíneas c) e d) do mesmo número” (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. II, 3.ª edição – 2000 – págs. 221/222). Entre os casos susceptíveis dessa censura figura, sem dúvida, a omissão do dever de diligência exigível a qualquer pessoa para a propositura de uma acção ou apresentação da contestação, pois as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação, não só com o tribunal, mas também entre si, concorrendo para a obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio (art.ºs 266.º, n.º 1 e 266.º-A, ambos do CPC, e art.ºs 7.º, n.º 1 e 8.º, ambos do NCPC). Para que possa haver tal condenação, exige-se que se trate de litigância consciente (com dolo ou negligência grave) violadora do dever de probidade imposto às partes (deduzindo pretensão ou oposição que sabe não ter fundamento; alterando a verdade ou omitindo factos relevantes; omitindo gravemente o dever de cooperação; ou fazendo do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, para lograr um objectivo ilegal ou entorpecer a acção da justiça). Nas duas primeiras hipóteses surge a má fé material (ou substancial), enquanto nas duas últimas existe a má fé instrumental. Ali, está em causa o mérito (o fundo), a relação substancial, aqui põem-se em causa valores de natureza processual. Exige-se a má fé (dolo ou culpa grosseira) em sentido psicológico, que não apenas má fé em sentido ético (leviandade ou mera imprudência). Na sua apreciação, o Tribunal deve atentar, como ensinava já o Prof. Alberto dos Reis, que “o processo é uma luta e esta pressupõe, necessariamente, calor, emoção, entusiasmo, transporte e arrebatamento” (in RLJ 59.º - 51). Mas também deve ter por assente a existência de limites éticos e deontológicos em que se deve manter a pugna judiciária. O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a condenação por litigância de má fé pressupõe a existência de dolo ou de grave negligência, não bastando uma lide temerária, ousada ou uma conduta meramente culposa, antes exigindo que o procedimento do litigante evidencie indícios de uma conduta dolosa ou gravemente negligente (cfr., entre outros, os acórdãos de 11/1/2001, processo n.º 3155/00-7.ª, Sumários, 47º e de 28/5/2009, processo n.º 09B0681, in www.dgsi.pt). Tal é a exigência legal que deflui imediatamente, como corolário, do axioma antropológico da dignidade da pessoa humana proclamado pelo art.º 1.º da nossa Lei Fundamental, pois ninguém porá em causa o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação injusta como litigante de má fé. Cremos ser pacífico o entendimento segundo o qual não é admissível que a parte, para convencer o tribunal de um facto ou pretensão que sabe ilegítima, distorça ou deturpe a realidade de si conhecida ou omita factos relevantes, também por si conhecidos, para a decisão, violando, clara e conscientemente, o dever de verdade, ou deduza oposição cuja falta de fundamento não ignore ou não devia ignorar, o que justifica tal censura e a condenação por litigância de má fé. Porém, já não litiga de má fé a parte que actua fundada em erro, convencida de que lhe assiste o direito que invoca e, por isso, deduz pretensão ou oposição que acabam por naufragar por mera fragilidade da prova ou falta de convencimento do tribunal da realidade apresentada ou resultar da interpretação e aplicação da lei aos factos. É direito de qualquer pessoa propor acções ou deduzir oposição, em defesa dos seus interesses, não sendo legítimo coarctar-lhes esse direito, sob pena de violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado constitucionalmente (cfr. art.º 20.º, n.º 1, da CRP). E é sabido que a responsabilização por litigância de má fé não visa sancionar ou combater a propositura de acções ou a dedução de defesas objectivamente infundadas, conquanto a parte esteja convencida de que lhe assiste razão e desde que esta convicção seja razoável, não assentando ela mesma em negligência grave. A instauração de uma acção ou a apresentação de uma contestação, sem fundamento, não significa, por si só, que a parte tenha actuado dolosamente ou com negligência grave. É que a incerteza da lei, a dificuldade em apurar os factos e de os interpretar podem levar as consciências mais honestas a afirmar um direito que não possuem e a impugnar uma obrigação que devessem cumprir. Para que possa haver sancionamento por má fé, é necessário que as circunstâncias apuradas permitam ao tribunal concluir que a parte deduziu pretensão ou fez oposição conscientemente infundada ou cuja falta de fundamento não podia nem devia ignorar. Na censura a fazer para efeito de condenação por litigância de má fé, deve o tribunal agir com prudência e só deve decretá-la quando o processo fornecer elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente da parte, tendo presente que a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resulta de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque, frequentemente, assenta em provas cuja falibilidade não se pode ignorar, como é o caso da prova testemunhal. No caso dos autos, não se mostram preenchidos os pressupostos substantivos da condenação por litigância de má fé, na medida em que inexistem quaisquer factos provados que permitam concluir que os autores agiram com dolo ou negligência grave ao instaurar a presente acção. Eles obtiveram êxito nos pedidos essenciais que formularam e não se vislumbra que tivessem alterado a verdade dos factos. Relativamente aos pedidos em que decaíram, a mera instauração da acção, sem fundamento, não significa, por si só, que tenham agido dolosamente ou com negligência grave. E a mera alegação da data em que tiveram conhecimento de factos diferente da que se provou, não é suficiente para tal condenação. É que a incerteza da lei e a dificuldade em apurar os factos sempre poderiam levá-los a afirmar direitos que não existem, como foi reconhecido na sentença, da qual nem sequer recorreram. As circunstâncias apuradas (e só estas importa considerar) não permitem concluir que deduziram pretensão conscientemente infundada ou cuja falta de fundamento não podiam nem deviam ignorar. Quer isto dizer que inexistem elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente dos autores para poderem ser censurados e condenados como litigantes de má fé. Improcedem, assim, as conclusões atinentes a esta pretensão. Em conclusão, é de alterar a sentença recorrida quanto à condenação referente ao parapeito e de a manter na parte restante, ainda que com fundamentos nem sempre coincidentes. Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 663.º do CPC: 1. A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude dos poderes da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter quando se mostrar apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório. 2. A anulação do julgamento está prevista apenas para os casos em que a decisão sobre a matéria de facto se repute “deficiente, obscura ou contraditória” e não constem do processo todos os elementos que permitam a sua reapreciação, bem como para os casos de ampliação da matéria de facto. 3. A restrição imposta pelo n.º 2 do art.º 1360.º do Código Civil visa obstar ao devassamento do prédio vizinho, pelo que só é aplicável ao parapeito que permita a uma pessoa debruçar-se nele e, dessa forma, violar o direito de propriedade alheia. 4. O art.º 1351.º do Código Civil impõe restrições ao direito de propriedade sobre imóveis, impedindo o dono do prédio superior de fazer nele obras que desviem ou agravem o escoamento natural das águas que nele caiam e que derivem para o prédio inferior e permitindo ao proprietário deste, em caso de violação, obter a destruição das obras efectuadas. 5. O n.º 2 do citado art.º 1351.º ressalva a possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, a qual não é admitida para as águas pluviais que caiam sobre prédios urbanos, o que também impede a constituição do mesmo tipo de servidão por usucapião. 6. A aplicação do instituto do abuso de direito depende sempre da alegação e prova dos respectivos factos pela parte que dele se quer fazer valer, mesmo que não o tenha solicitado expressamente. 7. Não litiga de má fé quem se limita a propor uma acção e a deduzir pretensão, ainda que sem fundamento, quando inexistem elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente. III. Decisão Pelo exposto julga-se a apelação parcialmente procedente e em consequência: 1. Altera-se a sentença recorrida relativamente à condenação constante da alínea f), condenando-se a segunda ré a aumentar o gradeamento referido na alínea J) dos factos provados por forma a ficar com a altura não inferior a um metro e meio ou retirá-lo, absolvendo os primeiros réus do pedido formulado sob a alínea g); 2. Confirma-se a sentença na parte restante.*Custas: - da reconvenção pelos réus/apelantes; - da acção e da apelação, pelos autores/apelados e pelos réus/apelantes, na proporção de 1/5 e 4/5, respectivamente.*Porto, 17 de Junho de 2014 Fernando Samões Vieira e Cunha Maria Eiró _______________ [1] Teve-se em conta a rectificação feita pelo despacho de 10/2/2014. [2] Citação extraída do Código Civil Anotado, volume III, 2.ª edição, pág. 215, de Pires de Lima e Antunes Varela. [3] In obra e local acabados de citar.