I - Não é de alterar a matéria de facto sempre que se mostre apreciada e decidida segundo as regras e os princípios do direito probatório. II - O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, manifesta-se pela violação do princípio da confiança e a sua proibição reclama uma actuação pautada por regras éticas, de decência e respeito pelos direitos da contraparte. III - Não abusa do direito o credor que condescende com a inexecução do contrato, durante cerca de três anos, e pede a indemnização estipulada como cláusula penal decorrente da resolução do contrato com base no incumprimento do devedor. IV - O uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo art.º 812.º do Código Civil, depende do pedido do devedor da indemnização que também tem o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados, podendo o juiz, se provados, reduzir, mas não invalidar ou suprimir, a cláusula penal manifestamente excessiva.
Processo n.º 821/10.6TVPRT.P1 *Relator: Fernando Samões 1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha 2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção: I. Relatório B…, LDA., com sede na …, Campo Maior, instaurou acção declarativa com processo ordinário, em 11/10/2010, nas Varas Cíveis do Porto, onde foi distribuída à 2.ª Vara, 1.ª Secção, contra C…, LDA., com sede na …, n.º …, …, D…, residente na Rua …, n.º … – R/C – ., Porto, e E…, residente na …, n.º .. R/c, Vila Nova de Gaia, pedindo que os réus sejam condenados, solidariamente, a pagarem-lhe a quantia de 43.729,25 Euros (quarenta e três mil setecentos e vinte e nove euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a constituição em mora até integral pagamento. Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte: Em 13/12/2006, celebrou com a ré um contrato de fornecimento de café, por via do qual se comprometeu a fornecer a esta, que se obrigou a comprar-lhe, para o seu estabelecimento comercial denominado “F…”, sito na …, n.º …, em …, exclusivamente café marca …, Selecção …, nas quantidades mínimas mensais de 40 quilos, pelo prazo necessário ao consumo ininterrupto de um total de 2400 quilos. Porém, em Dezembro de 2008, a ré deixou de comprar café à autora, quando havia comprado, até então, apenas 41 quilos. Em face disso, resolveu o contrato por carta expedida em 24/11/2009 e exige o valor correspondente à cláusula penal convencionada, no montante de 15,32 € por cada quilo de café não adquirido, sendo também responsáveis pelo seu pagamento os demais réus por terem subscrito o aludido contrato na qualidade de fiadores. Os réus contestaram, por impugnação e excepção, alegando, em síntese, que: As Varas Cíveis do Porto são territorialmente incompetentes por ter sido convencionada a competência do Tribunal da Comarca de Elvas. Enquanto exerceu a sua actividade no estabelecimento de restauração denominado “F…”, a ré adquiriu, em exclusivo, o café marca …, Selecção …, ininterruptamente durante 2 anos, entre Dezembro de 2006 e Dezembro de 2008, mas apenas dois quilos por mês, sem que houvesse qualquer reclamação da autora, a qual bem sabia que não seria possível alcançar as quantidades mensais indicadas no contrato, face à dimensão daquele estabelecimento, tendo esse valor sido indicado como uma mera meta, sem obrigatoriedade, sendo-lhe apenas exigível que consumisse em exclusivo café daquela marca e selecção. Após suspensão da actividade da ré, em meados de Dezembro de 2008, o 3.º réu propôs aos responsáveis pela distribuição do café da autora passar a consumir o seu café, da mesma selecção, no restaurante que ele possuía, denominado G…, sito em …, de forma a cumprir o estabelecido no contrato em causa nestes autos, o que fez até à presente data, de forma exclusiva e ininterrupta, tendo os seus revendedores afirmado que o problema estava resolvido e que não teriam que se preocupar uma vez que o contrato estaria a ser cumprido mediante o fornecimento ao 3.º réu. A autora litiga com manifesto abuso de direito, porquanto peticiona uma indemnização com base num critério que entendeu não relevante, tanto no início do contrato como nos dois anos da sua vigência. Acresce que a cláusula penal é manifestamente excessiva e desproporcional, tendo em conta a natureza e condições da formação do contrato, bem como as respectivas contrapartidas, sendo que todo o clausulado não foi negociado livremente, traduzindo-se num contrato de adesão. Entendem que se impõe a redução equitativa do quantum da cláusula penal e, não obstante, concluem pela total improcedência da acção, bem como pela remessa do processo para o tribunal competente. A autora replicou pugnando pela improcedência da excepção da incompetência e pela procedência da acção, afirmando, para este efeito, que o contrato foi negociado entre as partes, tanto assim que, aquando da sua celebração, foi entregue aos réus a quantia de 10.330,00 €, acrescida de IVA à taxa em vigor, para observância do seu integral cumprimento, o que não veio a acontecer. Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, onde foi julgada improcedente a excepção da incompetência territorial. Seguiu-se a condensação, com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, de que não houve reclamações. Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, como gravação da prova nela produzida, finda a qual foi decidida a matéria de facto controvertida nos termos constantes do despacho de fls. 198 e 199, sem reclamações. E, em 11/2/2013, foi proferida douta sentença, onde se decidiu julgar a acção procedente e condenar, solidariamente, os réus a pagar à autora a “indemnização por incumprimento contratual no valor de 43.729,25 Euros (quarenta e três mil setecentos e vinte e nove euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a constituição em mora até integral pagamento”. Inconformados com o assim decidido, os réus interpuseram recurso de apelação para este Tribunal e apresentaram a sua alegação com as seguintes conclusões: “I) Com o devido respeito, a Sentença fez uma errónea interpretação e aplicação do direito aplicável e em contradição com parte da matéria dada como provada, tendo ainda, em nosso entender, decidido incorrectamente sobre concretos pontos da matéria de facto. II) A Sentença não decidiu correctamente sobre a resposta à matéria de facto constante dos artigos 4º a 6º da Base Instrutória, porquanto resulta provado o local, datas e quantidades de fornecimento efectuado naqueles locais; III) Resulta ainda dos depoimentos das mencionadas testemunhas que, posteriormente, foi ainda iniciado o consumo daquele café e do mesmo Lote …, no estabelecimento que a mulher do 3º Ré abriu no H…, na Faculdade …, facto omitido na matéria dada como provada. IV) O Consumo do café … no G… e, posteriormente, no H…, foi efectuado por incitativa do 3º Réu com o conhecimento dos distribuidores da A., tendo inclusive a Autora que instalado no estabelecimento do H… uma máquina de café e um moinho. V) Deveria ainda ter ficado provado que tal consumo foi fornecido pelos distribuidores da …, a I…, e com o conhecimento do representante da … no Norte, Sr. J…. VI) Pelos depoimentos prestados pelas testemunhas, bem como pelas Listagens de fornecimentos efectuados aos estabelecimentos do 3º Réu e mulher, a resposta a matéria de facto dos artigos 4º e 5º, deveria necessariamente que considerar provada nos termos constantes supra folhas 26 e 27 destas Alegações; VII) Não foram valorados os documentos juntos aos autos pelas Apelantes após a primeira sessão da Audiência de julgamento e que correspondem as Listagens dos fornecimentos efectuados pela distribuidora da Autora aos dois estabelecimentos do 3º Réu e que eram do conhecimento da … da Autora e que não foram por esta impugnados; VIII) Tais Listagens, contem a data e quantidades e preços dos fornecimentos realizados nesses estabelecimento e afiguram-se de primordial importância para a decisão da causa. IX) No que concerne à matéria vertida no artigo 6 da Base Instrutória afigura-se que face à prova documental produzida, as LISTAGENS de Fornecimentos juntas aos autos, a resposta a matéria de facto do artigo 6, deveria necessariamente que considerar provado; X) Desta forma, e com o devido respeito, consideram os Apelantes, que existem matérias que deveriam ter sido valoradas de forma diferente pelo que a Sentença recorrida violou o disposto no art.º 653º do Código de Processo Civil. XI) Ainda no que à matéria de facto diz respeito, a sua alteração permite a afeição se tal factualidade traduz um consentimento ainda que tácito da continuidade ou cessão da posição da Ré no contratos em apreço ou atesta uma continuidade do contrato; SEM PRESCINDIR: XII) Em relação à matéria de direito, o rumo decisório deveria, neste caso, conduzir à aplicação do art. 812.º do Código Civil, no sentido da redução equitativa da cláusula penal, visto que nos parece claro a existência de uma manifesta desproporcionalidade, assim como, também, uma demasiado excessiva onerosidade para os Apelantes. XIII) Os RR, aqui Apelantes, sempre tiveram como legítima expectativa o facto de que a A. nunca exigiria o cumprimento da cláusula penal com base no consumo de café inferior ao contratado face á ausência de qualquer advertência a essa desconformidade durante a vigência do contrato XIV) Como demonstrado ficou, a A. é uma das maiores empresas nacionais do ramo dos cafés, enquanto a sociedade dos aqui apelantes, possui uma dimensão substancialmente mais diminuta e de cariz familiar, o que não foi valorado na decisão XV) Não podemos olvidar, que todas as pretensões da A. se fazem com base num contrato que nunca deixou de ser cumprido, e ainda hoje o é, pelo 3º R, apenas em estabelecimento diferente do que originalmente foi contratado, o que nunca trouxe qualquer prejuízo à A.. XVI) Foram sempre consumidas quantidades de café inferiores ao contratado, nunca tendo esse facto acarretado qualquer tipo de interpelação por parte da A., sendo que esta era conhecedora desta situação, como foi demonstrado, bem como da continuidade do consumo noutro estabelecimento, continuidade essa que, como se sufragou, deverá ser considerada provada. XVII) No caso ocorrente, a cláusula penal traduz-se, supervenientemente, em valor que ultrapassa largamente o montante da indemnização pelo dano contratual positivo. XVIII) Isto porque, se afigura como manifestamente desproporcionada uma cláusula penal fixada num valor, que torna claramente mais vantajoso para a A. o incumprimento do contrato do que o seu normal cumprimento XIX) O cumprimento da exigência de pagamento do montante estipulado para a cláusula penal, consubstancia um manifesto abuso de direito, nos termos em que o prevê o art.º 334º do Código Civil, que excede em larga medida o fim social e económico desse mesmo direito. DECIDINDO EM CONFORMIDADE COM AS CONCLUSÕES AGORA ADUZIDAS, FARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS JUSTIÇA” Não foram apresentadas contra-alegações. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 707.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso. Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões dos recorrentes (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, visto que a propositura da acção é posterior a 1/1/2008 – cfr. art.º 12.º do mesmo diploma) e não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, as questões que importa dirimir consistem em saber: a) Se pode/deve ser alterada a matéria de facto; b) Se é abusivo o exercício do direito pela autora; c) E se é caso de redução da cláusula penal. II. Fundamentação 1. De facto Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (indicando-se aqui entre parêntesis a sua proveniência): 1 - A A. explora a actividade de comércio dos cafés e sucedâneos da marca … [al. A) da matéria de facto assente]. 2 - À data dos factos, entre Dezembro de 2006 e Dezembro de 2008, a Ré explorava um estabelecimento comercial denominado “F…”, sito na …, nº …, em … [al. B) da matéria de facto assente]. 3 - Em 13 de Dezembro de 2006, a A. e a Ré celebraram um contrato de fornecimento de café e publicidade da marca … cfr. doc. de fls. 8, aqui dado por integralmente reproduzido [al. C) da matéria de facto assente]. 4 - Contrato este que os Réus também subscreveram na qualidade de fiadores e principais pagadores, nos termos do ponto 2, da cl.ª 7ª do referido contrato, também aqui dada por reproduzida [al. D) da matéria de facto assente][1]. 5 - Para cumprimento da cl.ª 4ª do mencionado contrato, a A. cedeu à Ré, em regime de comodato, os bens constantes no Anexo I (duas máquinas de café, marca …, modelo …, dois moinhos de café, marca …, modelo … e uma máquina de lavar louça) [al. E) da matéria de facto assente]. 6 - Nos termos da cl.ª 2ª, do dito contrato, estipulou-se o seguinte: “comprometendo-se ainda a, durante a vigência do presente contrato, comprar café marca …, Selecção …, nas quantidades mínimas mensais de 40 kg” [al. F) da matéria de facto assente]. 7 - Ainda nos termos da cl.ª 7ª, do mesmo contrato, ficou consignado que “o presente contrato é celebrado pelo prazo necessário ao consumo ininterrupto e exclusivo de 2400Kg de café …, Selecção …, com início na data da sua assinatura” [al. G) da matéria de facto assente]. 8 - Em Dezembro de 2008, a Ré deixou de consumir café marca …, Selecção … e de comprar café à A. [al. H) da matéria de facto assente]. 9 - Nessa sequência, a A. resolveu o contrato, o que fez através de carta registada com aviso de recepção enviada à Ré em 24 de Novembro de 2009 doc. de fls. 13, aqui dado por integralmente reproduzido [al. I) da matéria de facto assente]. 10 - Nos termos da cl.ª 13ª, do contrato referido em C), foi estabelecida uma cláusula penal em caso de resolução do contrato por incumprimento, pelo que deverá a Ré indemnizar a A. no montante de 15,32 Euros, acrescidos de IVA à taxa em vigor, por cada quilo de café que faltou para o cumprimento integral do contrato [al. J) da matéria de facto assente]. 11 - A Ré apenas comprou 41 quilos de café [al. L) da matéria de facto assente]. 12 - A A. já interpelou diversas vezes os Réus, por carta e pessoalmente através dos seus representantes comerciantes, para procederem ao pagamento da indemnização, nos termos que constam dos docs. juntos de fls. 15 a 18, cujo teor se dá aqui por reproduzido [al. M) da matéria de facto assente]. 13 - A 1.ª Ré deixou de explorar o estabelecimento referido na al. B) dos factos assentes (resposta ao quesito 3.º da base instrutória). 14 - O 3.º R., em conversa tida com os responsáveis pela distribuição do café da Autora no Norte do país, propôs passar a consumir o café da A., da mesma selecção, no restaurante que possuía, denominado G…, sito em …, de forma a cumprir o estabelecido no contrato aludido em C) da matéria de facto assente (resposta ao quesito 4.º da base instrutória). 15 - No restaurante denominado G…, foi consumido café da A., marca … selecção … (resposta ao quesito 5.º da base instrutória). 16 - A A. é uma das maiores empresas nacionais de comércio de cafés (resposta ao quesito 7.º da base instrutória). 17 - A Ré é uma empresa mais familiar de menor dimensão (resposta ao quesito 8.º da base instrutória). 2. De direito Aplicando o direito aos factos tendo em vista a resolução das supramencionadas questões, importa começar, como é óbvio e lógico, pela apreciação da matéria de facto impugnada, pois só depois de esta estar assente é possível fazer o seu enquadramento jurídico. 2.1. Da alteração da matéria de facto A Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto dentro dos limites previstos no art.º 712.º, n.º 1, do CPC que contempla as seguintes situações: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; e c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou. No caso ajuizado, porque houve gravação dos depoimentos prestados em audiência e é com base neles que foi impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, estamos perante a hipótese prevista na última parte da al. a) do n.º 1 do citado art.º 712.º, o qual deve ser conjugado com o art.º 685.º-B do mesmo diploma legal. Este artigo prescreve o seguinte: 1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição. Por sua vez, este normativo preceitua que “quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos”. No caso em apreço, os recorrentes especificaram os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e indicaram os meios probatórios que entendem fundamentarem tal erro, indicando os depoimentos de duas testemunhas por si arroladas, que não localizaram nas conclusões, mas fazendo remissão para as alegações onde transcreveram alguns trechos, e reportando-se a documentos juntos após a primeira sessão da audiência de discussão e julgamento. Apesar de não ser isso que se pretende com a imposição dos ónus a que se referem os citados art.ºs 685.º-B, n.º 1, alínea b), e n.º 2 e 522.º-C, tanto mais que o recurso não visa a repetição do julgamento, mas a reapreciação dos pontos concretos nele indicados como tendo sido incorrectamente julgados, e não obstante serem as conclusões que delimitam o seu objecto, não valendo, por isso, o conteúdo das alegações, consideramos observados satisfatoriamente tais ónus, pelo que iremos conhecer do recurso, procedendo à reapreciação da prova quanto à matéria de facto cuja alteração pretendem. Para este efeito, seguiremos uma tese mais ampla, formada há algum tempo não muito longínquo e que temos vindo a observar nos vários acórdãos que já proferimos, a qual, reconhecendo embora que a gravação dos depoimentos áudio ou vídeo não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal «a quo», designadamente, o modo como as declarações são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória e que existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, argumentos utilizados pela tese restritiva até há pouco dominante, entende, ainda assim, que na reapreciação da prova as Relações têm “a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição”. E quando um Tribunal de 2.ª instância, ao reapreciar a prova ali produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção (a que também está sujeito), “conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição” (cfr. Abrantes Geraldes, em “Reforma dos Recursos em Processo Civil”, Revista Julgar, n.º 4, Janeiro-Abril/2008, págs. 69 a 76; idem, mesmo Autor em “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2008, págs. 279 a 286, Amâncio Ferreira, em “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 2008, pág. 228, e Acs. do STJ de 01/07/2008 - processo 08A191, de 25/11/2008 - processo 08A3334, de 12/03/2009 - processo 08B3684 e de 28/05/2009 - processo 4303/05.0TBTVD.S1, e desta Relação de 17/11/2009 – processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/144906" target="_blank">140/08.8TBMDR.P1</a>, todos em www.dgsi.pt). Na reapreciação que agora importa efectuar, teremos em conta que a prova deve ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto. O Prof. Alberto dos Reis já ensinava que “prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” (cfr. Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág. 570). A essas regras de apreciação está sujeita a prova testemunhal, como expressamente dispõe o art.º 396.º do Código Civil. Dada a sua reconhecida falibilidade, impõe-se uma especial avaliação crítica com vista a uma valoração conscienciosa e prudente do conteúdo dos depoimentos e da sua força probatória, devendo sempre ter-se em consideração a razão de ciência do depoente e as suas relações pessoais ou funcionais com as partes. Há, ainda, que apreciar a prova no seu conjunto, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência, em face do princípio da aquisição processual (cfr. art.º 515.º do CPC). E, nessa apreciação global, o julgador poderá lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, isto é, no seu prudente arbítrio, poderá deduzir de certo facto conhecido um facto desconhecido (art.ºs 349.º e 351.º, ambos do C. Civil). Como corolário da sujeição das provas à regra da livre apreciação do julgador, consagrada no art.º 655.º, n.º 1 do CPC, impõe-se-lhe indicar “os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348 e Ac. da RC de 3/10/2000, CJ, ano XXV, tomo IV, pág. 27). Enunciados os princípios e as regras de direito probatório, há que averiguar se a decisão sobre a matéria de facto impugnada foi proferida em conformidade com eles. Com este desiderato, procedeu-se à audição integral da prova produzida em audiência, assim como à análise de todos os documentos juntos aos autos, e não apenas aos indicados pelos recorrentes, apesar de não estarmos perante um novo julgamento, mas uma reapreciação dos factos concretamente impugnados. Os factos que os recorrentes impugnaram são os que foram quesitados sob os n.ºs 4.º, 5.º e 6.º. Estes quesitos tinham a seguinte redacção:“4.ºPelo que, o 3º R. em conversa tida com os responsáveis pela distribuição do café da Autora no Norte do país, propôs passar a consumir o café da A., da mesma selecção, no restaurante que este possuía e possui, denominado G…, sito em …, de forma a cumprir o estabelecido no contrato aludido em C)?5.ºPassando, então, a consumir aquele café, naquele estabelecimento, desde aquela data até à hoje, de forma exclusiva e ininterrupta?6.ºCafé esse (que) adquire nas mesmas quantidades mensais e, por vezes, quantidades superiores do mesmo café e da mesma selecção, que a sociedade Ré consumiu durante os dois anos de exercício da sua actividade?” Os quesitos 4.º e 5.º obtiveram as respostas que constam dos n.ºs 14 e 15 da fundamentação de facto deste acórdão, acima transcritas, e que, por isso, nos dispensamos de repetir aqui. O quesito 6.º obteve resposta de “não provado”. Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a Ex.mª Juíza que presidiu à audiência (que foi a mesma que proferiu a sentença) escreveu: “O tribunal formou a sua convicção sobre os factos a que respondeu com base na análise de toda a prova testemunhal e documental constante dos autos. Concretamente, o tribunal, quanto à matéria dos artigos 1.º e 2.º, teve em conta o depoimento das testemunhas J… e K… que, a contrario do alegado pelos RR. e aí vertido, referiram, respectivamente, que se a A. soubesse que não seria atingível o valor do consumo do café fixado no contrato, não teria investido o mesmo dinheiro, e que, foi na base do consenso que tal valor foi fixado, considerando o potencial do local, lugares sentados, expectativas visadas, etc. Quanto à demais matéria, apurou-se, do depoimento das testemunhas K… e L…, que o estabelecimento “F…” fechou, bem como mais tarde, o G…, e bem assim que o 3.º R propôs continuar a consumir neste último estabelecimento o café …, da mesma selecção, como o fazia já, embora sem qualquer vínculo, tal como resulta também do teor de fls. 187, do p.p., sem que, no entanto, resulte ter-se verificado a respectiva concordância da A., nesse sentido, sendo certo que, tal como resulta também dos documentos juntos aos autos de fls. 184 a 186, do p.p., os consumos se mantiveram dentro do que era habitual consumir, no G…, sem nunca chegar perto dos consumos fixados no contrato em causa nestes autos, daí a resposta dada aos arts. 3.º a 6.º, da base instrutória, resultando a restante matéria do art. 7.º, do que resulta do próprio conhecimento oriundo de notícias e do que se constata do mercado, e a do art. 8.º, do atestado pela testemunha J….” Os recorrentes defendem que os quesitos por si impugnados devem obter as seguintes respostas: 4.º: “Provado que o 3º Réu em conversa tida com os responsáveis pela distribuição do café da Autora no Norte do país, propôs passar, a consumir o café da A., da mesma selecção, no restaurante que possuía, denominado G…, sito em …, bem como no H…, na Faculdade …, nas datas e quantidades referidas nas Listagens de Fornecimento, de forma a cumprir o estabelecido no contrato aludido em C), da matéria de facto assente.” 5.º: “Provado que no restaurante denominado G…, sito em …a, bem como no H…, na Faculdade …, nas datas e quantidades referidas nas Listagens de Fornecimento, foi consumido café … e do Lote …, nas datas e quantidades referidas nas Listagens de Fornecimento”. 6.º: “Provado”. E fundamentam a sua discordância nos depoimentos das testemunhas K… e M…, bem como nos documentos que constam de fls.184 a 187. Vejamos: K…, que foi, até Agosto de 2012, funcionário da “I…” que, por sua vez, era distribuidora de produtos da autora, disse que, em data que não sabe precisar, mas que pensa ter sido após o encerramento do estabelecimento “F…”, o réu E… prontificou-se a consumir o café …, no estabelecimento “G…” que, então, explorava, bem como num outro que era explorado pela sua esposa, na Faculdade …, para compensar o que não consumiu naqueloutro estabelecimento da ré, e que ele próprio falou com o Sr. da …, o J…, tendo vendido ali sempre aquele tipo de café. M…, distribuidor da “I…” até 30/8/2012, referiu que, a determinada altura, o réu E… informou-o que iam encerrar o estabelecimento da ré e, porque tinha assumido compromissos com a autora, queria falar “com alguém da … ou até com o senhor K…” para ver as hipóteses de os transferir para o “G…”, pois pretendia cumpri-los. Transmitiu essa informação ao K… e ao L… que era o “chefe da …” em … e que ouviu dizer a este que não havia problema, que ia tratar do assunto. Continuou a fornecer do mesmo lote de café ao Sr. E… no “G…” até que fechou “para tentar cumprir o contrato”, apesar de respeitar ao “F…”. Os documentos de fls. 184 a 186 são constituídos por duas listagens de fornecimentos de café …, feitos pela “N…”, sendo uma referente a E… no período compreendido entre 15/10/2009 e 23/2/2012, no valor total de 7.599,25 €, referente a 346 Kg, e outra a O… no período entre 5/7/2011 e 13/9/2012, no montante de 3.900,42 € e referente a 160 Kg. O documento de fls. 187 é uma cópia do correio electrónico remetido pelo réu E… ao departamento jurídico da autora em 17/2/2011 a informar que continuou a gastar o lote de café … durante os dois últimos anos, depois de ter falado com o Sr. J… e com conhecimento do Sr. K…, e a desejar “poder resolver este problema”. Em bom rigor, o que os recorrentes pretendem é que se dê como provado que o réu E… se propôs passar a consumir café da selecção inicialmente acordada, para além do restaurante “G…”, também no estabelecimento explorado pela sua esposa no H…, na Faculdade …o, e que fez consumos desse tipo de café nesses dois estabelecimentos de acordo com as referidas listagens. Confrontando a matéria quesitada, acima transcrita, com a que fora alegada, constatamos que ela é coincidente e em parte alguma consta a alegação que agora se pretende ver dada como provada, na parte referente ao H…. Ou seja, os apelantes querem que se dê como provada matéria de facto não alegada. Sabe-se, e temos vindo a repeti-lo, que as partes são responsáveis pela orientação e consequências decorrentes da estratégia processual que definem e adoptam e que, em princípio, lhes compete, por força do princípio dispositivo. Desde logo, face ao princípio da auto responsabilidade das partes, sendo certo que lhes incumbe pedir a resolução do conflito, enunciando-o e elegendo o meio concreto de tutela que pretendam perante a alegada violação do direito, carreando os factos e as provas que reputem adequados e formulando os pedidos correspondentes (Pereira Baptista, Reforma do Processo Civil/Princípios Fundamentais, pág. 16). Segundo o princípio dispositivo, compete às partes definir os contornos fácticos do litígio, ou seja, devem ser elas a carrear para os autos os factos em que o tribunal se pode basear para decidir. O autor deverá, pois, alegar os factos que dão consistência à pretensão por si formulada. Ao réu competirá alegar os factos que servem de base à sua defesa (cfr. artº.s 3.º, n.º 1 e 264.º, n.º 1, ambos do CPC). Por outro lado, é sabido que o juiz só pode fundar a decisão nos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art.º 264.º do CPC (cfr. art.º 664.º do CPC). Por força do princípio dispositivo, consagrado no citado art.º 264.º, cabe às partes alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (n.º 1), só podendo o juiz servir-se dos factos articulados, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito, isto é, com excepção dos factos notórios, dos factos de conhecimento oficial do tribunal e dos factos indiciadores de uso anormal do processo, bem como dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa e dos factos essenciais que sejam “complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório” (cfr. art.ºs 664.º, 514.º, 665.º e 264.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPC). Quer dizer, excepcionados estes casos, o juiz só pode servir-se dos factos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos das pretensões formuladas na acção, alegados pelas partes, seja qual for a natureza e o tipo de acção. São as partes quem define os contornos fácticos do litígio, pois devem ser elas a carrear para os autos os factos em que o tribunal se pode basear para decidir. Deste modo, o autor deverá alegar os factos que dão consistência à pretensão por si formulada, enquanto ao réu competirá alegar os factos que servem de base à sua defesa. É, portanto, monopólio das partes a conformação da instância nos seus elementos objectivos e também subjectivos [cfr. Montalvão Machado, O Novo Processo Civil, 2.ª ed., pág. 26 e Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil (revisto), págs. 53, 128 e 129 e ac. do STJ de 2/10/2001, proferido no processo n.º 02A1296, disponível em www.dgsi.pt]. É certo que, nesta temática, houve alguma limitação ao princípio dispositivo, decorrente da oficialidade resultante dos “factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa” (cfr. n.º 2 do citado art.º 264.º) e mesmo dos factos essenciais que sejam “complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado”, conquanto se verifiquem os condicionalismos já referidos, mencionados no n.º 3 do mesmo artigo. Mas esta limitação do princípio dispositivo não pode ir ao ponto de a busca da verdade material - que se traduz na coincidência entre os factos provados e os factos realmente verificados - aligeirar os cuidados que a lei põe no tocante ao ónus da alegação e da prova. Note-se, ainda, que os factos instrumentais ou indiciários são “factos que não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes, e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção (constitutivos)”, isto é, “factos que têm apenas a função possível de factos-base de presunção, e, como tais, dada a sua função instrumental e auxiliar da prova, estão subtraídos ao princípio dispositivo”, mas sempre sujeitos ao exercício do contraditório (cfr. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, págs. 275 e 276). Não há dúvida de que o direito processual civil é hoje um instrumento ou talvez mesmo uma alavanca ao serviço do direito substantivo e da muito propalada verdade material, como consta do preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro. Todavia, isso não significa fazer tábua rasa dos preceitos processuais que regulam a actividade das partes, uniformizam procedimentos e asseguram igualdade de tratamento dos litigantes que escolhem o pedido e causa de pedir que mais convém aos seus interesses. Na certeza de que o juiz não pode escusar-se a aplicar a lei sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo (cfr. art. 8.º, n.º 2, do C. Civil). Não se tratando de qualquer excepção ao princípio dispositivo e não tendo feito, oportunamente, a alegação dos respectivos factos, é evidente que jamais poderia ordenar-se a alteração da matéria de facto e dar-se como provada a pretendida matéria atinente ao H…, independentemente do que foi dito pelas referidas testemunhas e do que consta das listagens apresentadas em sede de audiência. Mas estas e aquelas nem sequer provam o teor do quesito 6.º, muito menos que houve alteração contratual nos termos pretendidos. Aquelas testemunhas prestaram os depoimentos que acima se deixaram resumidos. As referidas listagens e a cópia do correio electrónico não passam de meros documentos particulares que nem sequer se mostram assinados, muito embora nesta última conste a reprodução mecânica do nome “E…”. Como é sabido e consta do art.º 374.º, n.º 1, do Código Civil, “a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado (…)”. E, de harmonia com o disposto no art.º 376.º do mesmo Código: “1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (…). 2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (…)”. Pires de Lima e Antunes Varela no seu “Código Civil Anotado”, vol. I, 3.ª ed., pág. 330, escreveram: “O n.º l deste artigo deve ser interpretado em harmonia com o disposto no n.º 2. Só as declarações contrárias aos interesses do declarante se devem considerar plenamente provadas, e não as favoráveis…”. Menezes Cordeiro ensina, no “Tratado de Direito Civil Português”, vol. I, Tomo IV, págs. 496 e 497: “O documento particular assinado, a sua letra e assinatura ou só a assinatura consideram-se verdadeiras (374.º/l), quando reconhecidas pela parte contra quem o documento é apresentado; quando não impugnadas por essa mesma parte; quando, sendo atribuídas à parte em causa, esta declare não saber se lhe pertencem; quando sejam legal ou judicialmente havidas como verdadeiras…O documento particular cuja autoria seja reconhecida e salvo a arguição e a prova da sua falsidade, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (376.º/l). Quanto aos factos contidos na declaração: consideram-se provados na medida em que se apresentem contrários aos interesses do declarante; a declaração é, contudo, indivisível, em termos aplicáveis à confissão (376.º/2)”. Na RLJ ano101, págs. 269 e 270, acerca do art.º 376.º do Código Civil pode ler-se: “O n.º 1, no que respeita à prova da existência das declarações, e o n.º 2, no concernente às declarações que se têm como provadas, querem dizer que os factos que são objecto da declaração se consideram provados quando contrários aos interesses do declarante, não excluindo a possibilidade de o interessado se valer dos meios gerais de impugnação da declaração documentada. Está-se perante uma presunção derivada da regra da experiência de que quem afirma factos contrários aos seus interesses o faz por saber que são verdadeiros. O interessado pode provar que a declaração não correspondeu à vontade ou que esta foi afectada por algum vício de consentimento” (cfr., ainda no mesmo sentido, Vaz Serra, RLJ 110.º-85; Gonçalves Sampaio, A Prova por documentos particulares, 2.ª ed., 115; e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 21/4/2005 e de 27/3/2007, em www.dgsi.pt). A listagem emitida em nome de O… nada interessa à matéria impugnada, aqui em discussão, por respeitar a pretensos fornecimentos, em nome daquela cliente, feitos a partir de 5/7/2011, portanto a pessoa estranha à presente acção, após a sua instauração e relativa a matéria que não é objecto dela visto não ter sido alegada. A listagem emitida em nome de E…o contém, como já se referiu, a discriminação de fornecimentos, feitos pela “I…” a esse cliente, de café …, entre 15/10/2009 e 23/2/2012, em quantidades variáveis, por regra cinco quilogramas de cada vez, num total de 346 Kg. Para além de não conter qualquer referência ao estabelecimento “G…”, nela não consta qualquer declaração feita pelos réus, designadamente pelo E…, muito menos que lhes seja desfavorável. A cópia do correio electrónico contém uma mera informação, feita pelo réu E.. ao departamento jurídico da autora, após ter sido citado para a acção, no sentido de que continuou a consumir café …, nos dois últimos anos, e a manifestar o desejo de querer “resolver este problema”. Para além de não conter declaração desfavorável a este réu, ou a algum dos restantes, o conteúdo daquela correspondência não passa de uma mera informação e manifestação de vontade em querer pôr fim ao litigio por consenso das partes. Só que este pressupõe a anuência ou aceitação da autora. E ela não se mostra que tenha sido prestada. Aliás, qualquer alteração ao contrato celebrado só poderia ser feita, nos termos da sua cláusula 15.ª, por “documento escrito e assinado por ambas as partes, excepto situações de trespasse ou cessão de exploração do estabelecimento” em que bastaria a assinatura do trespassário ou cessionário, o que não se verifica no presente caso. Apesar de não terem sido impugnados, tais documentos não têm qualquer força probatória, por não se mostrarem assinados e não conterem declarações desfavoráveis a qualquer declarante demandado, podendo, quando muito, ser apreciados livremente pelo Tribunal no confronto com a demais prova produzida. Contudo, feita a reapreciação dessa prova, e tendo presente o que acaba de ser dito, não há motivos para nos afastarmos do entendimento tido na 1.ª instância, pois que não se vislumbra qualquer desconformidade notória entre a dita prova e a respectiva decisão, em violação dos princípios supra referenciados. Da análise crítica dos depoimentos de todas as testemunhas inquiridas e dos documentos juntos aos autos não pode ficar-se com outra convicção que não seja a do tribunal recorrido. E é esta análise crítica e integrada dos depoimentos com os outros meios de prova que os juízes devem fazer, pois a sua actividade, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos, muito menos truncados. A fundamentação da matéria de facto, ainda que sintética, mostra-se criteriosa e tem perfeito suporte na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos. Acresce que a matéria do quesito 6.º é claramente conclusiva, na medida em que põe em confronto as quantidades consumidas nos dois anos de exercício da actividade da ré, dizendo-se ali que foram adquiridas as “mesmas quantidades mensais e, por vezes, quantidades superiores do mesmo café e da mesma selecção”, o que sempre levaria a considerar não escrita uma eventual resposta diferente da que foi dada, nos termos do n.º 4 do art.º 646.º do CPC. Quer tudo isto dizer que os recorrentes não podem obter a alteração da matéria de facto no sentido por si propugnado, pelo que improcedem as correspondentes conclusões. Não obstante, impõe-se uma alteração oficiosa, com base nos documentos de fls. 8 a 11 e 13, apesar de o seu conteúdo ter sido dado como integralmente reproduzido, respectivamente, nos n.ºs 3 e 9 dos factos provados, acima transcritos, cujo procedimento se nos afigura menos correcto e para uma melhor compreensão da factualidade provada. Assim, atento o teor, já dado como provado, de tais documentos e visto o disposto nos art.ºs 659.º, n.º 3 e 713.º, n.º 2, ambos do CPC, impõe-se aditar à factualidade provada os seguintes factos: 18. Na cláusula 10.ª do contrato supra referido em 3, consta: “O presente contrato poderá ser resolvido por qualquer dos contraentes nos termos gerais de direito e, ainda e designadamente pela PRIMEIRA CONTRAENTE, nos seguintes termos: a) Violação das obrigações fixadas nas cláusulas 1ª, 2ª, 3ª, 6ª. 7ª e 9º, b) Encerramento do estabelecimento comercial acima identificado por parte da SEGUNDA CONTRAENTE”. 19. Na carta aludida em 9, consta, além do mais, que: “Fomos informados pelo nosso departamento comercial que deixaram V.Exs.ª de consumir no v/estabelecimento comercial o Café marca …, “Selecção …”. Constatámos, assim, o incumprimento por parte de V.Exs.ª das obrigações a que estavam adstritos por força do contrato em epígrafe, em particular das cláusulas 2ª e 7ª, que lhes impunham o consumo mínimo mensal de 40 Kg de café D…, “Selecção …”, pelo prazo necessário ao consumo ininterrupto e exclusivo de 2.4000 Kg. Assim sendo, ao abrigo do disposto na al. a) da cláusula 10ª, resolve-se o sobredito contrato, por violação das cláusulas supra referidas, com efeitos a partir do recebimento da presente notificação”, a qual ocorreu em 30/11/2009. 2.2. Do abuso de direito Os factos provados revelam que a autora/apelada e os réus/apelantes celebraram, entre si, um contrato, nos termos do qual a ré C…, Lda., se obrigou a adquirir à primeira e vender, em regime de exclusividade, no seu estabelecimento denominado “F…”, café …e, a quantidade mínima mensal de 40 Kg, de forma ininterrupta, até perfazer o total de 2.400 Kg, com início em 13/12/2006, constituindo-se os réus E… e F… fiadores e principais pagadores das obrigações por aquela sociedade assumidas, tendo, para esse efeito, a demandante cedido à sociedade demandada determinados bens e, como contrapartida da exclusividade e publicidade, feito a entrega à mesma de 10.330,00 €, acrescida de IVA à taxa em vigor (cfr. factos supra descritos sob os n.ºs 3, 4, 5, 6 e 7 e cláusula 5.ª). Este contrato deve ser qualificado como um contrato atípico, complexo, de natureza comercial, envolvendo elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e do contrato de compra e venda de café, em exclusividade relativamente à compradora (cfr. art.ºs 2.º, 13.º e 463.º, n.º 1, do Código Comercial, 410.º, n.º 1, 874.º, 1129.º e 1154.º do Código Civil e acórdão do STJ de 4/6/2009, proferido no processo 257/09.1YFLSB, disponível em www.dgsi.pt). E assim foi qualificado pela sentença recorrida, servindo-se dos ensinamentos deste último acórdão, com o que se conformaram os recorrentes, sendo, portanto, pacífica tal qualificação. De qualquer modo, a qualificação do contrato é irrelevante para a decisão do recurso e o desfecho da acção. Os recorrentes também não põem em causa o fundamento da resolução invocado pela autora, já que questionam apenas os seus efeitos e, na medida em que pugnam pela alteração do contrato, a sua eficácia. Por isso, antes da apreciação daqueles efeitos, impõem-se algumas considerações sobre a resolução. É sabido que o direito de resolução de qualquer contrato, enquanto meio de extinção do vínculo contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado (cfr. art.º 432.º, n.º 1, do Código Civil). Por isso mesmo, a parte que invoca o direito à resolução fica obrigada a alegar e a demonstrar o fundamento que justifica a destruição do correspondente vínculo contratual. E, além de pressupor o incumprimento definitivo de uma prestação contratual, a resolução exige a gravidade da violação, sendo esta apreciada não em função da culpa do devedor mas das consequências desse incumprimento para o credor (cfr. Pedro Romano Martinez, “Da Cessação do Contrato”, 2.ª edição, pág. 146). Porém, no presente caso, estamos perante a resolução do contrato fundada em convenção das partes e não na lei. Este tipo de fundamento de resolução está previsto no n.º 1 do citado art.º 432.º e depende exclusivamente do que foi convencionado pelas partes, já que o contrato deve ser pontualmente cumprido e pode extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei (cfr. art.º 406.º, n.º 1 do mesmo Código). Essencial é que se verifiquem os termos da convenção celebrada para esse efeito pelos contraentes, no âmbito da sua liberdade contratual. Segundo a cláusula 10.ª, al. a), do contrato celebrado entre as partes, aqui aditada e transcrita no n.º 18 dos factos provados, a autora podia resolver o contrato no caso de violação das obrigações fixadas nas cláusulas 1.ª, 2,ª 3.ª, 6.ª, 7.ª e 9.ª. É indubitável que houve violação das cláusulas 2.ª e 7.ª, já que a demandada sociedade não comprou à demandante as quantidades de café marca …, selecção …, que se comprometeu adquirir-lhe, ou seja, pelo menos 40 Kg por mês, de forma ininterrupta, até perfazer o montante de 2.400 Kg, tendo deixado de comprar e consumir café dessa marca e selecção, quando havia adquirido apenas 41 quilogramas (cfr. factos n.ºs 6, 7, 8 e 11). E, com esse fundamento, a autora resolveu o contrato, por carta enviada à ré em 24/11/2009, em conformidade com o disposto na cláusula 11.ª, com efeitos a partir do dia 30 desse mesmo mês (cfr. factos provados sob os n.ºs 9 e 19). Assim, a resolução operou no dia 30 de Novembro de 2009. Operada deste modo a resolução do contrato, não vemos como é possível sustentar a sua modificação, não só porque os recorrentes não lograram obter a alteração da matéria de facto, como se deixou dito, mas também porque a mesma era impossível ter ocorrido, pois não se modifica aquilo que já está extinto e para ela poder ocorrer era necessário, antes da sua extinção, obter-se o consentimento expresso e escrito de ambas as partes (cfr. cláusula 15.ª), pelo que também não faz sentido equacionar-se qualquer consentimento tácito. Demonstrado o fundamento invocado pela autora para a resolução do contrato e comunicada à ré, em conformidade com o disposto nas cláusulas 10.ª, al. a) e 11.ª, operou a resolução, desencadeando os efeitos consignados, designadamente, na cláusula 13.ª, como, aliás, foi comunicado à ré na mesma carta e aos restantes réus por cartas datadas de 12/1/2010 (cfr. factos n.ºs 9 e 10 e cartas de fls. 13 a 18). Prevê-se ali uma indemnização estipulada como cláusula penal, de que trataremos mais abaixo, importando agora averiguar se a autora litiga com abuso de direito que os recorrentes invocam, a nosso ver incorrectamente, a propósito ou, pelo menos, em simultâneo, da redução daquela cláusula. O actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça. Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, pág. 298, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536). A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável. Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico (Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171). Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites. Tal objectividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 30/11/95, na CJ – STJ - ano III 20/5/97, tomo III, pág. 132, de 20/5/97, no BMJ n.º 467.º, pág. 557 e de 25/11/99, CJ – STJ -, ano VII, tomo III, pág. 124; da RL de 29/1/98, na CJ, ano XXIII, I, 103 e da RE de 23/4/98, CJ, XXIII, II, 278). Esta orientação jurisprudencial mereceu o aplauso do Prof. Menezes Cordeiro, que também faz depender a aplicação daquele instituto da verificação dos pressupostos processuais, justificando: “na verdade, o Tribunal não fica limitado pelas invocações jurídicas das partes: pedido um certo efeito e constando, do processo, os factos necessários, pode o juiz optar pelo abuso de direito, mesmo que este não tivesse sido expressamente invocado” (in Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 2.ª edição, pág. 247). Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara. Porém, o abuso do direito, enquanto “válvula de escape”, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito (cfr. acórdão do STJ de 15/1/2013, no processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde foi apreciado um caso idêntico ao presente, seguido pela sentença recorrida, e cujo entendimento também aqui adoptamos). Como escreveu Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, ali citado: “O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.” E ensina, lapidarmente, o mesmo Professor, na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”: “(...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.” A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte. Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural” (citado acórdão de 15/1/2013). Para que pudesse considerar-se abusivo o exercício do direito por parte da autora, era necessário demonstrar factos através dos quais se pudesse considerar que excedeu, manifestamente, clamorosamente, o fim social ou económico do direito exercido ou que com a sua pretensão violava expectativas incutidas nos réus. Ora, no presente caso, isso não se verifica. Não só não foram provados factos que permitam concluir pelo excesso manifesto, clamoroso, do fim social ou económico do direito exercido pela autora, mas também que a sua pretensão viola expectativas por ela incutidas aos réus. Mesmo os factos por estes alegados traduzem-se em meras apreciações subjectivas e conclusões sem o necessário suporte fáctico, não permitindo equacionar uma eventual ofensa clamorosa a um sentimento de justiça socialmente dominante. Aliás, a configuração que fazem do abuso de direito é apenas na sequência da alteração da matéria de facto, desiderato que não lograram alcançar, como se deixou dito. O direito que a autora exerceu baseou-se na resolução do contrato, por si efectuada, em 24/11/2009, nos termos acordados, e pediu a indemnização estipulada como cláusula penal, a qual é um mero efeito daquela resolução, deixando de parte outros efeitos, nomeadamente a restituição da contrapartida da exclusividade que entregou à ré, assim beneficiando esta e os seus fiadores! Tal resolução foi determinada pelo incumprimento da ré, pois esta, dos 2.400 Kg de café que se comprometeu comprar e vender em regime de exclusividade, numa quantidade mínima mensal de 40 Kg, apenas comprou 41 Kg no total, não obstante o decurso de quase três anos de vigência do contrato, pois havia sido celebrado em 13/12/2006. Em vez de cumprir o contrato, como se vinculou, a ré deixou de comprar e consumir café marca …, Selecção …, e, em Dezembro de 2008, deixou de explorar o estabelecimento onde o mesmo deveria ser consumido nos termos contratuais – o “F…”. O facto de a ré não ter atingido os consumos mínimos mensais e de a autora ter esperado entre Dezembro de 2008 e 24/11/2009 para proceder à resolução, sem qualquer interpelação prévia, não significa que tenha compactuado com o incumprimento ao longo da vigência do contrato. É que, havendo convenção de resolução, não se impunha qualquer interpelação prévia àquela em que se operou e a falta de consumo mínimo e o tempo decorrido não permitem, objectivamente, criar qualquer expectativa de que a autora transigia com o continuado incumprimento do contrato, não sendo, por isso, expectável que ela não resolvesse o contrato. Por maioria de razão, não faria criar essa expectativa aos réus, designadamente ao E…, com base nos fornecimentos de café que lhe foram feitos para consumo noutros estabelecimentos. Para além de tais fornecimentos terem sido efectuados para estabelecimentos diferentes do que foi objecto do contrato, eles jamais poderiam ter sido feitos ao abrigo do contrato invocado pela autora, por ter sido validamente resolvido, não podendo sustentar, por isso, qualquer expectativa de falta de resolução do contrato. Assim sendo, como nos parece, não tendo a autora condescendido com a inexecução do contrato – o qual tem cariz continuado, inerente à modalidade do contrato de fornecimento que o integra – não podem os réus invocar, muito menos ver reconhecida, actuação abusiva do direito, por não ter sido violada qualquer sua expectativa tutelável induzida pela autora. A situação económica da autora, ainda que superior à dos réus, é manifestamente irrelevante, não podendo basear uma actuação abusiva. Em suma, a resolução do contrato não evidencia por parte da autora violação, muito menos clamorosa, do direito, por não ter violado qualquer confiança que tivesse sido incutida aos réus, na perspectiva de complacência com o continuado incumprimento do contrato, nem o exercício do direito de resolução nos termos convencionados permite concluir pelo abuso desse direito. Tendo sido convencionada a resolução, no âmbito de um contrato assente na autonomia privada, cujo regime resulta, desde logo, da disciplina fixada pelos próprios contraentes, uma vez operada, resta extrair os respectivos efeitos, como fez a autora e foi reconhecido na sentença recorrida. Inexiste, por conseguinte, abuso de direito, pelo que improcedem as respectivas conclusões. 2.2. Da cláusula penal Está em causa a cláusula 13.ª, n.º 1, nos termos da qual a ré se obrigou a indemnizar a autora, em caso de resolução do contrato pelo incumprimento daquela, no “montante de € 15,32, acrescido de IVA à taxa em vigor, por cada quilo de café que faltar para o cumprimento integral do contrato” (cfr. fls. 11 e n.º 10 dos factos provados). Esta cláusula reveste a natureza de cláusula penal, a qual pode ser definida como a estipulação negocial em que uma das partes se obriga antecipadamente, perante a outra, caso não cumpra a obrigação ou não a cumpra exactamente nos termos devidos, ao pagamento de uma quantia pecuniária, a título de indemnização (cfr. A. Pinto Monteiro, in Cláusula Penal e Indemnização, pág. 44 e Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, pág. 136). O direito de estipular tal cláusula é manifestação do princípio da autonomia privada constitucionalmente tutelado e da liberdade contratual afirmada no art.º 405.º do Código Civil, segundo a qual, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver, bem como reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais contratos típicos. A cláusula penal resulta, assim, de um acordo das partes, no âmbito do princípio da liberdade contratual, e tem como finalidade a fixação antecipada de uma indemnização, compensatória ou moratória, pelo incumprimento ou retardamento no cumprimento da obrigação, com intuito de evitar dúvidas futuras e litígios entre elas, quanto à determinação do montante da indemnização (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4.ª edição, revista e actualizada, pág. 75). A mesma está regulamentada pelos art.ºs 810.º a 812.º do Código Civil. Tradicionalmente, a cláusula penal reveste duas modalidades: compensatória, quando ela é estipulada para o não cumprimento; moratória, se estipulada para o atraso no cumprimento. Em função do escopo visado pelos contraentes, ela pode classificar-se em cláusula de fixação prévia do dano ou de fixação antecipada da indemnização e cláusula penal puramente compulsória. A cláusula penal compensatória não pode, como é óbvio, cumular-se com a realização específica da obrigação principal, mas já o pode ser a cláusula penal moratória, visto esta se destinar apenas a ressarcir os danos decorrentes do atraso no cumprimento, sendo nula qualquer disposição em contrário (cfr. art.º 811.º, n.º 1 do C. Civil; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª ed., pág. 448; Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, ed. 1987, pág. 253 e os nossos acórdãos de 13/9/2011 e de 15/1/2013, proferidos, respectivamente, nos processos n.ºs 7829/09.2TBMTS.P1 e <a href="https://acordao.pt/decisoes/140911" target="_blank">2015/09.4TBPFR.P1</a>, que estamos seguindo). A dupla função que a cláusula penal é normalmente chamada a exercer, no sistema da relação obrigacional, é explicitada pelo Professor Antunes Varela do seguinte modo: “Por um lado, a cláusula penal visa constituir em regra um reforço (agravamento) da indemnização devida pelo obrigado faltoso, uma sanção calculadamente superior à que resultaria da lei, para estimular de modo especial o devedor ao cumprimento. Por isso mesmo se lhe chama penal – cláusula penal – ou pena convencional ... A cláusula penal extravasa, quando assim seja, do prosaico pensamento da reparação ou retribuição que anima o instituto da responsabilidade civil, para se aproximar da zona cominatória, repressiva ou punitiva, onde pontifica o direito criminal” (Das Obrigações em Geral, 5.ª ed., págs. 137 e 138). O Professor Calvão da Silva também define a cláusula penal como “A estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou a não cumprir exactamente nos termos devidos, maxime no tempo fixado, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária. Se estipulada para o caso de não cumprimento, chama-se cláusula penal compensatória; se estipulada para o caso de atraso no cumprimento, chama-se cláusula penal moratória”. E refere, ainda, que “Dada a sua simplicidade e comodidade, a cláusula penal é instrumento de fixação antecipada, em princípio ne varietur, da indemnização a prestar pelo devedor no caso de não cumprimento ou mora, e pode ser eficaz meio de pressão ao próprio cumprimento da obrigação. Queremos com isto dizer (sic) que, na prática, a cláusula penal desempenha uma dupla função: a função ressarcidora e a função coercitiva. No que concerne à primeira destas funções, a cláusula penal prevê antecipadamente um forfait que ressarcirá o dano resultante de eventual não cumprimento ou cumprimento inexacto (…) o que significa que o devedor, vinculado à clausula penal, não será obrigado ao ressarcimento do dano que efectivamente cause ao credor com o seu incumprimento ou cumprimento não pontual, mas ao ressarcimento do dano fixado antecipadamente e negocialmente através daquela, sempre que não tenha sido pactuada a ressarcibilidade do dano excedente (art. 811.º-2)”. Por sua vez, a segunda função (a coercitiva) constitui um “poderoso meio de pressão de que o credor se serve para determinar o seu devedor a cumprir a obrigação”, já que “o carácter elevado da pena constrange indirectamente o devedor a cumprir as suas obrigações, visto desencorajá-lo ao não cumprimento, pois este implica para si uma prestação mais onerosa do que a realização, nos termos devidos, da originária prestação a que se encontra adstrito. Esta maior onerosidade do incumprimento é de natureza a incitar o devedor a realizar a prestação devida, dada a ameaça de sanção que sobre si recai em caso de inadimplemento e, assim, reforça e garante realmente a obrigação principal, exercendo pressão sobre o devedor no sentido do seu cumprimento” (cfr. Calvão da Silva, obra citada, págs. 247 a 250). A cláusula aqui em apreciação é uma cláusula penal compensatória e tem função compulsória, na medida em que foi estipulada para o incumprimento e visou coagir a devedora, mediante a ameaça de uma sanção pecuniária, ao cumprimento pontual das obrigações que assumiu. Atenta a índole e a função da cláusula penal convencionada, não há que averiguar se a credora sofreu ou não prejuízos, como consequência da inexecução da obrigação, nem o seu valor. A cláusula penal também visa livrar o credor da indagação desses prejuízos e aplica-se desde que a violação do contrato seja imputável a culpa do obrigado. Não vem questionada a culpa da ré na violação do contrato, a qual, por estarmos no domínio da responsabilidade contratual, sempre se presume (cfr. art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil). Também não há dúvida de que estamos perante uma cláusula penal, como resulta do que se deixou dito e como tal foi qualificada na sentença impugnada, conformando-se com esse entendimento os réus/recorrentes. Estes pugnam pela sua redução, invocando o disposto no art.º 812.º do Código Civil. Este preceito permite a redução equitativa da cláusula penal nos seguintes termos: 1. A pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer disposição em contrário. 2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida. Dado que a redução aqui prevista limita os princípios gerais da autonomia privada e da liberdade contratual, tem de ser ponderada e cuidadosamente exercida, sempre dentro dos limites legais, só podendo o juiz intervir quando for solicitado para tal e reconheça que a cláusula é “manifestamente excessiva”, sob pena de inutilizar a sua própria função e razão da sua existência. Em face da natureza e da razão de ser da cláusula penal, supra referidas, tem-se entendido que o credor fica dispensado de demonstrar a efectiva verificação dos danos em consequência do incumprimento do contrato e respectivos montantes, já que a mencionada prefixação visa prescindir de averiguações sobre essa matéria. Por isso mesmo, também se vem entendendo e decidindo que o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados recai sobre o devedor (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 17/11/98, de 9/2/99 e de 5/12/2002, na CJ – STJ -, ano VI, tomo III, pág. 120 e VII, I, 99 e Sumários, 2002, 10, respectivamente). Do mesmo modo, a doutrina e a jurisprudência dominantes vêm entendendo que o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo citado art.º 812.º, não é oficioso, mas dependente de pedido do devedor da indemnização (cfr., neste sentido, nomeadamente, Pinto Monteiro, em Cláusula Penal e Indemnização, págs. 735-737; Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., pág. 81; Calvão da Silva, em Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, pág. 275; os Acs. do STJ de 17/2/98, na CJ – STJ -, ano VI, Tomo I, pág. 72 e no BMJ n.º 474, pág. 457, de 30/9/2003, de 20/11/2003 e de 17/5/2012 in http://www.dgsi.pt/jstj processos n.ºs 03A3514, 03A1738 e 3855/05.9TVLSB.L1.S1; e desta Relação de 8/4/91, de 23/11/93 e de 26/1/2000, na CJ, respectivamente, Ano XVI, tomo II, pág. 256, XVIII, V, 225 e XXV, I, 205 e o nosso citado acórdão de 15/1/2013). Aquele preceito confere ao juiz o poder de reduzir, mas não de invalidar ou suprimir, a cláusula penal manifestamente excessiva, exigindo, para tanto, que haja uma desproporção substancial e manifesta, patente e evidente, entre o dano causado e a pena estipulada, devendo cingir-se o objectivo de tal intervenção à protecção do devedor contra efeitos exorbitantes e abusivos da cláusula, sem lesar o direito do credor, pelo que, em princípio, não deverá intervir perante um caso de uma cláusula penal simplesmente excessiva (cfr. acórdão do STJ de 17/5/2012, acima citado). No caso dos autos, os réus, na contestação que apresentaram, defendem que a cláusula penal “é manifestamente excessiva e desproporcional, tendo em conta a natureza e condições da formação do contrato, como as respectivas contrapartidas”, “é chocante por manifestamente exagerado, extravasando a sua natureza compensatória”, “não retiraram qualquer vantagem no alegado incumprimento contratual” e “a autora não sofreu qualquer prejuízo advindo do eventual incumprimento do contrato uma vez que o consumo do café continuou a ser realizado pelo 3.º Réu”, concluindo, não obstante, pela improcedência total da acção. No recurso, continuam a pugnar pela redução da cláusula penal, invocando “uma manifesta desproporcionalidade, assim como, também, uma demasiado excessiva onerosidade para os Apelantes” (cfr. conclusão XII), afirmando que “…a cláusula penal traduz-se, supervenientemente, em valor que ultrapassa largamente o montante da indemnização pelo dano contratual positivo” (cfr. conclusão XVII) e “isto porque se afigura como manifestamente desproporcionada uma cláusula penal fixada num valor que torna claramente mais vantajoso para a A. o incumprimento do contrato do que o seu normal cumprimento (cfr. conclusão XVIII), para concluir que se decida em conformidade com tais conclusões. É manifestamente deficiente a alegação e a formulação do correspondente pedido, assim apresentados. O pedido de redução não foi formulado expressamente na contestação, como devia ser. E a alegação foi ali feita de forma conclusiva, quando devia traduzir-se em factos que eventualmente integrassem um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados, para que, depois de provados, o tribunal pudesse conhecer da alegada desproporcionalidade da cláusula penal. Ainda assim, não deixou de se referir à aludida desproporcionalidade e concluir pela sua inexistência ou excessividade e, consequentemente, pela não redução da cláusula penal. Tal deficiência continuou na fase de recurso, pois, não tendo sido alegados, não podiam ser dados como provados os respectivos factos, nem suprida a falta de pedido, como não foi, atento o princípio dispositivo, consagrado no art.º 264.º do CPC e visto não ser caso a ele subtraído, por o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo citado art.º 812.º, não ser de conhecimento oficioso, mas dependente de pedido do devedor da indemnização, o qual também tem o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados. E os factos provados, únicos que importa considerar, não permitem fazer este juízo de desproporcionalidade. O incumprimento contratual por parte da ré impediu a autora de obter o lucro que, notoriamente, auferiria com a venda do café que foi objecto do contrato celebrado entre as partes. Nem se diga que ela não sofreu qualquer prejuízo advindo desse incumprimento, por o consumo do café passar a ser realizado pelo réu E…. Apesar deste continuar a fazer consumos de café do mesmo tipo do que foi objecto do contrato aqui em causa, fê-lo fora do âmbito desse mesmo contrato, em quantidades e em tempo diferentes do que fora acordado. Além disso, entregou à ré a quantia de 10.330,00 €, a título de contrapartida da exclusividade, e não viu aquela cumprir o contrato como se vinculou, nem devolveu essa importância. Não há que equacionar o valor resultante do incumprimento com o que resultaria do seu normal cumprimento, já que foi a ré quem violou o contrato e deu causa à resolução, bastando que o tivesse cumprido para evitar a resolução e o funcionamento da cláusula penal. Esta reveste uma função fundamentalmente, ressarcitiva e tarifada, de natureza compulsória, actuando como meio de pressão sobre o devedor, mediante a ameaça de uma sanção pecuniária, com vista ao cumprimento pontual das obrigações que assumiu, mas cujos danos advenientes do seu incumprimento, em consequência da inexecução da obrigação ou da violação do contrato, não importa averiguar, nem determinar o seu montante, na hipótese da sua verificação, e bem assim como, igualmente, o respectivo nexo causal (cfr. acórdão do STJ de 24/4/2012, processo n.º 605/06.6TBVRL.P1.S1, disponível em ww.dgsi.pt). Não há, por isso, que atender a outros eventuais danos. Acresce que o poder do juiz conferido pelo citado art.º 812.º não se destina a invalidar ou suprimir a cláusula penal, mas a reduzi-la nos exactos termos nele previstos, isto é, “quando for manifestamente excessiva”, exigindo-se, para tanto, a verificação de uma desproporção substancial e manifesta entre o dano causado e a pena estipulada, o que não ocorre no presente caso. A autora limitou-se a pedir o valor da indemnização que lhe é conferido pela aludida cláusula, ou seja, o valor de 43.729,25 €, correspondente ao montante de 15,32 €, acrescido de IVA à taxa então em vigor, por cada quilograma de café que faltava para cumprimento integral do contrato. Com se havia comprometido consumir 2.400 Kg e só consumiu 41 Kg, restavam-lhe consumir 2.359 Kg. Multiplicando esta quantidade que faltava para cumprir o contrato pelo montante de 15,32 €, obtém-se a importância de 36.139,88 €. Fazendo incidir sobre esta importância a taxa de 21%, correspondente ao IVA, obtém-se o valor de 7.589,37 €. Finalmente, somando aquela importância e este valor, obtém-se exactamente o valor pedido. Verificado o fundamento da resolução e extinto o contrato por efeito desta, a autora nada mais fez do que exigir um dos efeitos dessa mesma resolução, qual seja a indemnização estipulada como cláusula penal compensatória, correspondente ao consumo de café em falta, acrescida dos correspondentes juros, nos termos convencionados e referidos na sentença, que não foram questionados no presente recurso, tal como não foi a responsabilidade dos réus fiadores. Nada há, pois, a objectar à pretensão da autora, pois encontra perfeito enquadramento nos art.ºs 432.º, n.º 1 e 798.º, ambos do Código Civil, não sendo caso de redução da cláusula penal estipulada e não havendo também que censurar a sentença impugnada. Improcedem, por conseguinte, as restantes conclusões e toda a apelação. Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC: I. Não é de alterar a matéria de facto sempre que se mostre apreciada e decidida segundo as regras e os princípios do direito probatório. II. O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, manifesta-se pela violação do princípio da confiança e a sua proibição reclama uma actuação pautada por regras éticas, de decência e respeito pelos direitos da contraparte. III. Não abusa do direito o credor que condescende com a inexecução do contrato, durante cerca de três anos, e pede a indemnização estipulada como cláusula penal decorrente da resolução do contrato com base no incumprimento do devedor. IV. O uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo art.º 812.º do Código Civil, depende do pedido do devedor da indemnização que também tem o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados, podendo o juiz, se provados, reduzir, mas não invalidar ou suprimir, a cláusula penal manifestamente excessiva. III. Decisão Por tudo o exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a douta sentença recorrida. *Custas pelos apelantes.*Porto, 10 de Julho de 2013 Fernando Augusto Samões José Manuel Cabrita Vieira e Cunha Maria das Dores Eiró de Araújo ___________ [1] Terá querido escrever-se cláusula 14.ª do contrato, tal como foi alegado no art.º 15.º da petição inicial e resulta do documento onde aquele foi formalizado, devendo a referência ao ponto 2 da cláusula 7.ª a mero lapso, não só porque não existe tal número, mas também porque esta cláusula não se refere à responsabilidade dos fiadores, pelo que aqui se deixa rectificado.
Processo n.º 821/10.6TVPRT.P1 *Relator: Fernando Samões 1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha 2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção: I. Relatório B…, LDA., com sede na …, Campo Maior, instaurou acção declarativa com processo ordinário, em 11/10/2010, nas Varas Cíveis do Porto, onde foi distribuída à 2.ª Vara, 1.ª Secção, contra C…, LDA., com sede na …, n.º …, …, D…, residente na Rua …, n.º … – R/C – ., Porto, e E…, residente na …, n.º .. R/c, Vila Nova de Gaia, pedindo que os réus sejam condenados, solidariamente, a pagarem-lhe a quantia de 43.729,25 Euros (quarenta e três mil setecentos e vinte e nove euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a constituição em mora até integral pagamento. Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte: Em 13/12/2006, celebrou com a ré um contrato de fornecimento de café, por via do qual se comprometeu a fornecer a esta, que se obrigou a comprar-lhe, para o seu estabelecimento comercial denominado “F…”, sito na …, n.º …, em …, exclusivamente café marca …, Selecção …, nas quantidades mínimas mensais de 40 quilos, pelo prazo necessário ao consumo ininterrupto de um total de 2400 quilos. Porém, em Dezembro de 2008, a ré deixou de comprar café à autora, quando havia comprado, até então, apenas 41 quilos. Em face disso, resolveu o contrato por carta expedida em 24/11/2009 e exige o valor correspondente à cláusula penal convencionada, no montante de 15,32 € por cada quilo de café não adquirido, sendo também responsáveis pelo seu pagamento os demais réus por terem subscrito o aludido contrato na qualidade de fiadores. Os réus contestaram, por impugnação e excepção, alegando, em síntese, que: As Varas Cíveis do Porto são territorialmente incompetentes por ter sido convencionada a competência do Tribunal da Comarca de Elvas. Enquanto exerceu a sua actividade no estabelecimento de restauração denominado “F…”, a ré adquiriu, em exclusivo, o café marca …, Selecção …, ininterruptamente durante 2 anos, entre Dezembro de 2006 e Dezembro de 2008, mas apenas dois quilos por mês, sem que houvesse qualquer reclamação da autora, a qual bem sabia que não seria possível alcançar as quantidades mensais indicadas no contrato, face à dimensão daquele estabelecimento, tendo esse valor sido indicado como uma mera meta, sem obrigatoriedade, sendo-lhe apenas exigível que consumisse em exclusivo café daquela marca e selecção. Após suspensão da actividade da ré, em meados de Dezembro de 2008, o 3.º réu propôs aos responsáveis pela distribuição do café da autora passar a consumir o seu café, da mesma selecção, no restaurante que ele possuía, denominado G…, sito em …, de forma a cumprir o estabelecido no contrato em causa nestes autos, o que fez até à presente data, de forma exclusiva e ininterrupta, tendo os seus revendedores afirmado que o problema estava resolvido e que não teriam que se preocupar uma vez que o contrato estaria a ser cumprido mediante o fornecimento ao 3.º réu. A autora litiga com manifesto abuso de direito, porquanto peticiona uma indemnização com base num critério que entendeu não relevante, tanto no início do contrato como nos dois anos da sua vigência. Acresce que a cláusula penal é manifestamente excessiva e desproporcional, tendo em conta a natureza e condições da formação do contrato, bem como as respectivas contrapartidas, sendo que todo o clausulado não foi negociado livremente, traduzindo-se num contrato de adesão. Entendem que se impõe a redução equitativa do quantum da cláusula penal e, não obstante, concluem pela total improcedência da acção, bem como pela remessa do processo para o tribunal competente. A autora replicou pugnando pela improcedência da excepção da incompetência e pela procedência da acção, afirmando, para este efeito, que o contrato foi negociado entre as partes, tanto assim que, aquando da sua celebração, foi entregue aos réus a quantia de 10.330,00 €, acrescida de IVA à taxa em vigor, para observância do seu integral cumprimento, o que não veio a acontecer. Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, onde foi julgada improcedente a excepção da incompetência territorial. Seguiu-se a condensação, com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, de que não houve reclamações. Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, como gravação da prova nela produzida, finda a qual foi decidida a matéria de facto controvertida nos termos constantes do despacho de fls. 198 e 199, sem reclamações. E, em 11/2/2013, foi proferida douta sentença, onde se decidiu julgar a acção procedente e condenar, solidariamente, os réus a pagar à autora a “indemnização por incumprimento contratual no valor de 43.729,25 Euros (quarenta e três mil setecentos e vinte e nove euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a constituição em mora até integral pagamento”. Inconformados com o assim decidido, os réus interpuseram recurso de apelação para este Tribunal e apresentaram a sua alegação com as seguintes conclusões: “I) Com o devido respeito, a Sentença fez uma errónea interpretação e aplicação do direito aplicável e em contradição com parte da matéria dada como provada, tendo ainda, em nosso entender, decidido incorrectamente sobre concretos pontos da matéria de facto. II) A Sentença não decidiu correctamente sobre a resposta à matéria de facto constante dos artigos 4º a 6º da Base Instrutória, porquanto resulta provado o local, datas e quantidades de fornecimento efectuado naqueles locais; III) Resulta ainda dos depoimentos das mencionadas testemunhas que, posteriormente, foi ainda iniciado o consumo daquele café e do mesmo Lote …, no estabelecimento que a mulher do 3º Ré abriu no H…, na Faculdade …, facto omitido na matéria dada como provada. IV) O Consumo do café … no G… e, posteriormente, no H…, foi efectuado por incitativa do 3º Réu com o conhecimento dos distribuidores da A., tendo inclusive a Autora que instalado no estabelecimento do H… uma máquina de café e um moinho. V) Deveria ainda ter ficado provado que tal consumo foi fornecido pelos distribuidores da …, a I…, e com o conhecimento do representante da … no Norte, Sr. J…. VI) Pelos depoimentos prestados pelas testemunhas, bem como pelas Listagens de fornecimentos efectuados aos estabelecimentos do 3º Réu e mulher, a resposta a matéria de facto dos artigos 4º e 5º, deveria necessariamente que considerar provada nos termos constantes supra folhas 26 e 27 destas Alegações; VII) Não foram valorados os documentos juntos aos autos pelas Apelantes após a primeira sessão da Audiência de julgamento e que correspondem as Listagens dos fornecimentos efectuados pela distribuidora da Autora aos dois estabelecimentos do 3º Réu e que eram do conhecimento da … da Autora e que não foram por esta impugnados; VIII) Tais Listagens, contem a data e quantidades e preços dos fornecimentos realizados nesses estabelecimento e afiguram-se de primordial importância para a decisão da causa. IX) No que concerne à matéria vertida no artigo 6 da Base Instrutória afigura-se que face à prova documental produzida, as LISTAGENS de Fornecimentos juntas aos autos, a resposta a matéria de facto do artigo 6, deveria necessariamente que considerar provado; X) Desta forma, e com o devido respeito, consideram os Apelantes, que existem matérias que deveriam ter sido valoradas de forma diferente pelo que a Sentença recorrida violou o disposto no art.º 653º do Código de Processo Civil. XI) Ainda no que à matéria de facto diz respeito, a sua alteração permite a afeição se tal factualidade traduz um consentimento ainda que tácito da continuidade ou cessão da posição da Ré no contratos em apreço ou atesta uma continuidade do contrato; SEM PRESCINDIR: XII) Em relação à matéria de direito, o rumo decisório deveria, neste caso, conduzir à aplicação do art. 812.º do Código Civil, no sentido da redução equitativa da cláusula penal, visto que nos parece claro a existência de uma manifesta desproporcionalidade, assim como, também, uma demasiado excessiva onerosidade para os Apelantes. XIII) Os RR, aqui Apelantes, sempre tiveram como legítima expectativa o facto de que a A. nunca exigiria o cumprimento da cláusula penal com base no consumo de café inferior ao contratado face á ausência de qualquer advertência a essa desconformidade durante a vigência do contrato XIV) Como demonstrado ficou, a A. é uma das maiores empresas nacionais do ramo dos cafés, enquanto a sociedade dos aqui apelantes, possui uma dimensão substancialmente mais diminuta e de cariz familiar, o que não foi valorado na decisão XV) Não podemos olvidar, que todas as pretensões da A. se fazem com base num contrato que nunca deixou de ser cumprido, e ainda hoje o é, pelo 3º R, apenas em estabelecimento diferente do que originalmente foi contratado, o que nunca trouxe qualquer prejuízo à A.. XVI) Foram sempre consumidas quantidades de café inferiores ao contratado, nunca tendo esse facto acarretado qualquer tipo de interpelação por parte da A., sendo que esta era conhecedora desta situação, como foi demonstrado, bem como da continuidade do consumo noutro estabelecimento, continuidade essa que, como se sufragou, deverá ser considerada provada. XVII) No caso ocorrente, a cláusula penal traduz-se, supervenientemente, em valor que ultrapassa largamente o montante da indemnização pelo dano contratual positivo. XVIII) Isto porque, se afigura como manifestamente desproporcionada uma cláusula penal fixada num valor, que torna claramente mais vantajoso para a A. o incumprimento do contrato do que o seu normal cumprimento XIX) O cumprimento da exigência de pagamento do montante estipulado para a cláusula penal, consubstancia um manifesto abuso de direito, nos termos em que o prevê o art.º 334º do Código Civil, que excede em larga medida o fim social e económico desse mesmo direito. DECIDINDO EM CONFORMIDADE COM AS CONCLUSÕES AGORA ADUZIDAS, FARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS JUSTIÇA” Não foram apresentadas contra-alegações. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 707.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso. Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões dos recorrentes (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, visto que a propositura da acção é posterior a 1/1/2008 – cfr. art.º 12.º do mesmo diploma) e não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, as questões que importa dirimir consistem em saber: a) Se pode/deve ser alterada a matéria de facto; b) Se é abusivo o exercício do direito pela autora; c) E se é caso de redução da cláusula penal. II. Fundamentação 1. De facto Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (indicando-se aqui entre parêntesis a sua proveniência): 1 - A A. explora a actividade de comércio dos cafés e sucedâneos da marca … [al. A) da matéria de facto assente]. 2 - À data dos factos, entre Dezembro de 2006 e Dezembro de 2008, a Ré explorava um estabelecimento comercial denominado “F…”, sito na …, nº …, em … [al. B) da matéria de facto assente]. 3 - Em 13 de Dezembro de 2006, a A. e a Ré celebraram um contrato de fornecimento de café e publicidade da marca … cfr. doc. de fls. 8, aqui dado por integralmente reproduzido [al. C) da matéria de facto assente]. 4 - Contrato este que os Réus também subscreveram na qualidade de fiadores e principais pagadores, nos termos do ponto 2, da cl.ª 7ª do referido contrato, também aqui dada por reproduzida [al. D) da matéria de facto assente][1]. 5 - Para cumprimento da cl.ª 4ª do mencionado contrato, a A. cedeu à Ré, em regime de comodato, os bens constantes no Anexo I (duas máquinas de café, marca …, modelo …, dois moinhos de café, marca …, modelo … e uma máquina de lavar louça) [al. E) da matéria de facto assente]. 6 - Nos termos da cl.ª 2ª, do dito contrato, estipulou-se o seguinte: “comprometendo-se ainda a, durante a vigência do presente contrato, comprar café marca …, Selecção …, nas quantidades mínimas mensais de 40 kg” [al. F) da matéria de facto assente]. 7 - Ainda nos termos da cl.ª 7ª, do mesmo contrato, ficou consignado que “o presente contrato é celebrado pelo prazo necessário ao consumo ininterrupto e exclusivo de 2400Kg de café …, Selecção …, com início na data da sua assinatura” [al. G) da matéria de facto assente]. 8 - Em Dezembro de 2008, a Ré deixou de consumir café marca …, Selecção … e de comprar café à A. [al. H) da matéria de facto assente]. 9 - Nessa sequência, a A. resolveu o contrato, o que fez através de carta registada com aviso de recepção enviada à Ré em 24 de Novembro de 2009 doc. de fls. 13, aqui dado por integralmente reproduzido [al. I) da matéria de facto assente]. 10 - Nos termos da cl.ª 13ª, do contrato referido em C), foi estabelecida uma cláusula penal em caso de resolução do contrato por incumprimento, pelo que deverá a Ré indemnizar a A. no montante de 15,32 Euros, acrescidos de IVA à taxa em vigor, por cada quilo de café que faltou para o cumprimento integral do contrato [al. J) da matéria de facto assente]. 11 - A Ré apenas comprou 41 quilos de café [al. L) da matéria de facto assente]. 12 - A A. já interpelou diversas vezes os Réus, por carta e pessoalmente através dos seus representantes comerciantes, para procederem ao pagamento da indemnização, nos termos que constam dos docs. juntos de fls. 15 a 18, cujo teor se dá aqui por reproduzido [al. M) da matéria de facto assente]. 13 - A 1.ª Ré deixou de explorar o estabelecimento referido na al. B) dos factos assentes (resposta ao quesito 3.º da base instrutória). 14 - O 3.º R., em conversa tida com os responsáveis pela distribuição do café da Autora no Norte do país, propôs passar a consumir o café da A., da mesma selecção, no restaurante que possuía, denominado G…, sito em …, de forma a cumprir o estabelecido no contrato aludido em C) da matéria de facto assente (resposta ao quesito 4.º da base instrutória). 15 - No restaurante denominado G…, foi consumido café da A., marca … selecção … (resposta ao quesito 5.º da base instrutória). 16 - A A. é uma das maiores empresas nacionais de comércio de cafés (resposta ao quesito 7.º da base instrutória). 17 - A Ré é uma empresa mais familiar de menor dimensão (resposta ao quesito 8.º da base instrutória). 2. De direito Aplicando o direito aos factos tendo em vista a resolução das supramencionadas questões, importa começar, como é óbvio e lógico, pela apreciação da matéria de facto impugnada, pois só depois de esta estar assente é possível fazer o seu enquadramento jurídico. 2.1. Da alteração da matéria de facto A Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto dentro dos limites previstos no art.º 712.º, n.º 1, do CPC que contempla as seguintes situações: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; e c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou. No caso ajuizado, porque houve gravação dos depoimentos prestados em audiência e é com base neles que foi impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, estamos perante a hipótese prevista na última parte da al. a) do n.º 1 do citado art.º 712.º, o qual deve ser conjugado com o art.º 685.º-B do mesmo diploma legal. Este artigo prescreve o seguinte: 1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição. Por sua vez, este normativo preceitua que “quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos”. No caso em apreço, os recorrentes especificaram os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e indicaram os meios probatórios que entendem fundamentarem tal erro, indicando os depoimentos de duas testemunhas por si arroladas, que não localizaram nas conclusões, mas fazendo remissão para as alegações onde transcreveram alguns trechos, e reportando-se a documentos juntos após a primeira sessão da audiência de discussão e julgamento. Apesar de não ser isso que se pretende com a imposição dos ónus a que se referem os citados art.ºs 685.º-B, n.º 1, alínea b), e n.º 2 e 522.º-C, tanto mais que o recurso não visa a repetição do julgamento, mas a reapreciação dos pontos concretos nele indicados como tendo sido incorrectamente julgados, e não obstante serem as conclusões que delimitam o seu objecto, não valendo, por isso, o conteúdo das alegações, consideramos observados satisfatoriamente tais ónus, pelo que iremos conhecer do recurso, procedendo à reapreciação da prova quanto à matéria de facto cuja alteração pretendem. Para este efeito, seguiremos uma tese mais ampla, formada há algum tempo não muito longínquo e que temos vindo a observar nos vários acórdãos que já proferimos, a qual, reconhecendo embora que a gravação dos depoimentos áudio ou vídeo não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal «a quo», designadamente, o modo como as declarações são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória e que existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, argumentos utilizados pela tese restritiva até há pouco dominante, entende, ainda assim, que na reapreciação da prova as Relações têm “a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição”. E quando um Tribunal de 2.ª instância, ao reapreciar a prova ali produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção (a que também está sujeito), “conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição” (cfr. Abrantes Geraldes, em “Reforma dos Recursos em Processo Civil”, Revista Julgar, n.º 4, Janeiro-Abril/2008, págs. 69 a 76; idem, mesmo Autor em “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2008, págs. 279 a 286, Amâncio Ferreira, em “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 2008, pág. 228, e Acs. do STJ de 01/07/2008 - processo 08A191, de 25/11/2008 - processo 08A3334, de 12/03/2009 - processo 08B3684 e de 28/05/2009 - processo 4303/05.0TBTVD.S1, e desta Relação de 17/11/2009 – processo 140/08.8TBMDR.P1, todos em www.dgsi.pt). Na reapreciação que agora importa efectuar, teremos em conta que a prova deve ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto. O Prof. Alberto dos Reis já ensinava que “prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” (cfr. Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág. 570). A essas regras de apreciação está sujeita a prova testemunhal, como expressamente dispõe o art.º 396.º do Código Civil. Dada a sua reconhecida falibilidade, impõe-se uma especial avaliação crítica com vista a uma valoração conscienciosa e prudente do conteúdo dos depoimentos e da sua força probatória, devendo sempre ter-se em consideração a razão de ciência do depoente e as suas relações pessoais ou funcionais com as partes. Há, ainda, que apreciar a prova no seu conjunto, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência, em face do princípio da aquisição processual (cfr. art.º 515.º do CPC). E, nessa apreciação global, o julgador poderá lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, isto é, no seu prudente arbítrio, poderá deduzir de certo facto conhecido um facto desconhecido (art.ºs 349.º e 351.º, ambos do C. Civil). Como corolário da sujeição das provas à regra da livre apreciação do julgador, consagrada no art.º 655.º, n.º 1 do CPC, impõe-se-lhe indicar “os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348 e Ac. da RC de 3/10/2000, CJ, ano XXV, tomo IV, pág. 27). Enunciados os princípios e as regras de direito probatório, há que averiguar se a decisão sobre a matéria de facto impugnada foi proferida em conformidade com eles. Com este desiderato, procedeu-se à audição integral da prova produzida em audiência, assim como à análise de todos os documentos juntos aos autos, e não apenas aos indicados pelos recorrentes, apesar de não estarmos perante um novo julgamento, mas uma reapreciação dos factos concretamente impugnados. Os factos que os recorrentes impugnaram são os que foram quesitados sob os n.ºs 4.º, 5.º e 6.º. Estes quesitos tinham a seguinte redacção:“4.ºPelo que, o 3º R. em conversa tida com os responsáveis pela distribuição do café da Autora no Norte do país, propôs passar a consumir o café da A., da mesma selecção, no restaurante que este possuía e possui, denominado G…, sito em …, de forma a cumprir o estabelecido no contrato aludido em C)?5.ºPassando, então, a consumir aquele café, naquele estabelecimento, desde aquela data até à hoje, de forma exclusiva e ininterrupta?6.ºCafé esse (que) adquire nas mesmas quantidades mensais e, por vezes, quantidades superiores do mesmo café e da mesma selecção, que a sociedade Ré consumiu durante os dois anos de exercício da sua actividade?” Os quesitos 4.º e 5.º obtiveram as respostas que constam dos n.ºs 14 e 15 da fundamentação de facto deste acórdão, acima transcritas, e que, por isso, nos dispensamos de repetir aqui. O quesito 6.º obteve resposta de “não provado”. Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a Ex.mª Juíza que presidiu à audiência (que foi a mesma que proferiu a sentença) escreveu: “O tribunal formou a sua convicção sobre os factos a que respondeu com base na análise de toda a prova testemunhal e documental constante dos autos. Concretamente, o tribunal, quanto à matéria dos artigos 1.º e 2.º, teve em conta o depoimento das testemunhas J… e K… que, a contrario do alegado pelos RR. e aí vertido, referiram, respectivamente, que se a A. soubesse que não seria atingível o valor do consumo do café fixado no contrato, não teria investido o mesmo dinheiro, e que, foi na base do consenso que tal valor foi fixado, considerando o potencial do local, lugares sentados, expectativas visadas, etc. Quanto à demais matéria, apurou-se, do depoimento das testemunhas K… e L…, que o estabelecimento “F…” fechou, bem como mais tarde, o G…, e bem assim que o 3.º R propôs continuar a consumir neste último estabelecimento o café …, da mesma selecção, como o fazia já, embora sem qualquer vínculo, tal como resulta também do teor de fls. 187, do p.p., sem que, no entanto, resulte ter-se verificado a respectiva concordância da A., nesse sentido, sendo certo que, tal como resulta também dos documentos juntos aos autos de fls. 184 a 186, do p.p., os consumos se mantiveram dentro do que era habitual consumir, no G…, sem nunca chegar perto dos consumos fixados no contrato em causa nestes autos, daí a resposta dada aos arts. 3.º a 6.º, da base instrutória, resultando a restante matéria do art. 7.º, do que resulta do próprio conhecimento oriundo de notícias e do que se constata do mercado, e a do art. 8.º, do atestado pela testemunha J….” Os recorrentes defendem que os quesitos por si impugnados devem obter as seguintes respostas: 4.º: “Provado que o 3º Réu em conversa tida com os responsáveis pela distribuição do café da Autora no Norte do país, propôs passar, a consumir o café da A., da mesma selecção, no restaurante que possuía, denominado G…, sito em …, bem como no H…, na Faculdade …, nas datas e quantidades referidas nas Listagens de Fornecimento, de forma a cumprir o estabelecido no contrato aludido em C), da matéria de facto assente.” 5.º: “Provado que no restaurante denominado G…, sito em …a, bem como no H…, na Faculdade …, nas datas e quantidades referidas nas Listagens de Fornecimento, foi consumido café … e do Lote …, nas datas e quantidades referidas nas Listagens de Fornecimento”. 6.º: “Provado”. E fundamentam a sua discordância nos depoimentos das testemunhas K… e M…, bem como nos documentos que constam de fls.184 a 187. Vejamos: K…, que foi, até Agosto de 2012, funcionário da “I…” que, por sua vez, era distribuidora de produtos da autora, disse que, em data que não sabe precisar, mas que pensa ter sido após o encerramento do estabelecimento “F…”, o réu E… prontificou-se a consumir o café …, no estabelecimento “G…” que, então, explorava, bem como num outro que era explorado pela sua esposa, na Faculdade …, para compensar o que não consumiu naqueloutro estabelecimento da ré, e que ele próprio falou com o Sr. da …, o J…, tendo vendido ali sempre aquele tipo de café. M…, distribuidor da “I…” até 30/8/2012, referiu que, a determinada altura, o réu E… informou-o que iam encerrar o estabelecimento da ré e, porque tinha assumido compromissos com a autora, queria falar “com alguém da … ou até com o senhor K…” para ver as hipóteses de os transferir para o “G…”, pois pretendia cumpri-los. Transmitiu essa informação ao K… e ao L… que era o “chefe da …” em … e que ouviu dizer a este que não havia problema, que ia tratar do assunto. Continuou a fornecer do mesmo lote de café ao Sr. E… no “G…” até que fechou “para tentar cumprir o contrato”, apesar de respeitar ao “F…”. Os documentos de fls. 184 a 186 são constituídos por duas listagens de fornecimentos de café …, feitos pela “N…”, sendo uma referente a E… no período compreendido entre 15/10/2009 e 23/2/2012, no valor total de 7.599,25 €, referente a 346 Kg, e outra a O… no período entre 5/7/2011 e 13/9/2012, no montante de 3.900,42 € e referente a 160 Kg. O documento de fls. 187 é uma cópia do correio electrónico remetido pelo réu E… ao departamento jurídico da autora em 17/2/2011 a informar que continuou a gastar o lote de café … durante os dois últimos anos, depois de ter falado com o Sr. J… e com conhecimento do Sr. K…, e a desejar “poder resolver este problema”. Em bom rigor, o que os recorrentes pretendem é que se dê como provado que o réu E… se propôs passar a consumir café da selecção inicialmente acordada, para além do restaurante “G…”, também no estabelecimento explorado pela sua esposa no H…, na Faculdade …o, e que fez consumos desse tipo de café nesses dois estabelecimentos de acordo com as referidas listagens. Confrontando a matéria quesitada, acima transcrita, com a que fora alegada, constatamos que ela é coincidente e em parte alguma consta a alegação que agora se pretende ver dada como provada, na parte referente ao H…. Ou seja, os apelantes querem que se dê como provada matéria de facto não alegada. Sabe-se, e temos vindo a repeti-lo, que as partes são responsáveis pela orientação e consequências decorrentes da estratégia processual que definem e adoptam e que, em princípio, lhes compete, por força do princípio dispositivo. Desde logo, face ao princípio da auto responsabilidade das partes, sendo certo que lhes incumbe pedir a resolução do conflito, enunciando-o e elegendo o meio concreto de tutela que pretendam perante a alegada violação do direito, carreando os factos e as provas que reputem adequados e formulando os pedidos correspondentes (Pereira Baptista, Reforma do Processo Civil/Princípios Fundamentais, pág. 16). Segundo o princípio dispositivo, compete às partes definir os contornos fácticos do litígio, ou seja, devem ser elas a carrear para os autos os factos em que o tribunal se pode basear para decidir. O autor deverá, pois, alegar os factos que dão consistência à pretensão por si formulada. Ao réu competirá alegar os factos que servem de base à sua defesa (cfr. artº.s 3.º, n.º 1 e 264.º, n.º 1, ambos do CPC). Por outro lado, é sabido que o juiz só pode fundar a decisão nos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art.º 264.º do CPC (cfr. art.º 664.º do CPC). Por força do princípio dispositivo, consagrado no citado art.º 264.º, cabe às partes alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (n.º 1), só podendo o juiz servir-se dos factos articulados, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito, isto é, com excepção dos factos notórios, dos factos de conhecimento oficial do tribunal e dos factos indiciadores de uso anormal do processo, bem como dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa e dos factos essenciais que sejam “complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório” (cfr. art.ºs 664.º, 514.º, 665.º e 264.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPC). Quer dizer, excepcionados estes casos, o juiz só pode servir-se dos factos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos das pretensões formuladas na acção, alegados pelas partes, seja qual for a natureza e o tipo de acção. São as partes quem define os contornos fácticos do litígio, pois devem ser elas a carrear para os autos os factos em que o tribunal se pode basear para decidir. Deste modo, o autor deverá alegar os factos que dão consistência à pretensão por si formulada, enquanto ao réu competirá alegar os factos que servem de base à sua defesa. É, portanto, monopólio das partes a conformação da instância nos seus elementos objectivos e também subjectivos [cfr. Montalvão Machado, O Novo Processo Civil, 2.ª ed., pág. 26 e Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil (revisto), págs. 53, 128 e 129 e ac. do STJ de 2/10/2001, proferido no processo n.º 02A1296, disponível em www.dgsi.pt]. É certo que, nesta temática, houve alguma limitação ao princípio dispositivo, decorrente da oficialidade resultante dos “factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa” (cfr. n.º 2 do citado art.º 264.º) e mesmo dos factos essenciais que sejam “complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado”, conquanto se verifiquem os condicionalismos já referidos, mencionados no n.º 3 do mesmo artigo. Mas esta limitação do princípio dispositivo não pode ir ao ponto de a busca da verdade material - que se traduz na coincidência entre os factos provados e os factos realmente verificados - aligeirar os cuidados que a lei põe no tocante ao ónus da alegação e da prova. Note-se, ainda, que os factos instrumentais ou indiciários são “factos que não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes, e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção (constitutivos)”, isto é, “factos que têm apenas a função possível de factos-base de presunção, e, como tais, dada a sua função instrumental e auxiliar da prova, estão subtraídos ao princípio dispositivo”, mas sempre sujeitos ao exercício do contraditório (cfr. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, págs. 275 e 276). Não há dúvida de que o direito processual civil é hoje um instrumento ou talvez mesmo uma alavanca ao serviço do direito substantivo e da muito propalada verdade material, como consta do preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro. Todavia, isso não significa fazer tábua rasa dos preceitos processuais que regulam a actividade das partes, uniformizam procedimentos e asseguram igualdade de tratamento dos litigantes que escolhem o pedido e causa de pedir que mais convém aos seus interesses. Na certeza de que o juiz não pode escusar-se a aplicar a lei sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo (cfr. art. 8.º, n.º 2, do C. Civil). Não se tratando de qualquer excepção ao princípio dispositivo e não tendo feito, oportunamente, a alegação dos respectivos factos, é evidente que jamais poderia ordenar-se a alteração da matéria de facto e dar-se como provada a pretendida matéria atinente ao H…, independentemente do que foi dito pelas referidas testemunhas e do que consta das listagens apresentadas em sede de audiência. Mas estas e aquelas nem sequer provam o teor do quesito 6.º, muito menos que houve alteração contratual nos termos pretendidos. Aquelas testemunhas prestaram os depoimentos que acima se deixaram resumidos. As referidas listagens e a cópia do correio electrónico não passam de meros documentos particulares que nem sequer se mostram assinados, muito embora nesta última conste a reprodução mecânica do nome “E…”. Como é sabido e consta do art.º 374.º, n.º 1, do Código Civil, “a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado (…)”. E, de harmonia com o disposto no art.º 376.º do mesmo Código: “1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (…). 2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (…)”. Pires de Lima e Antunes Varela no seu “Código Civil Anotado”, vol. I, 3.ª ed., pág. 330, escreveram: “O n.º l deste artigo deve ser interpretado em harmonia com o disposto no n.º 2. Só as declarações contrárias aos interesses do declarante se devem considerar plenamente provadas, e não as favoráveis…”. Menezes Cordeiro ensina, no “Tratado de Direito Civil Português”, vol. I, Tomo IV, págs. 496 e 497: “O documento particular assinado, a sua letra e assinatura ou só a assinatura consideram-se verdadeiras (374.º/l), quando reconhecidas pela parte contra quem o documento é apresentado; quando não impugnadas por essa mesma parte; quando, sendo atribuídas à parte em causa, esta declare não saber se lhe pertencem; quando sejam legal ou judicialmente havidas como verdadeiras…O documento particular cuja autoria seja reconhecida e salvo a arguição e a prova da sua falsidade, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (376.º/l). Quanto aos factos contidos na declaração: consideram-se provados na medida em que se apresentem contrários aos interesses do declarante; a declaração é, contudo, indivisível, em termos aplicáveis à confissão (376.º/2)”. Na RLJ ano101, págs. 269 e 270, acerca do art.º 376.º do Código Civil pode ler-se: “O n.º 1, no que respeita à prova da existência das declarações, e o n.º 2, no concernente às declarações que se têm como provadas, querem dizer que os factos que são objecto da declaração se consideram provados quando contrários aos interesses do declarante, não excluindo a possibilidade de o interessado se valer dos meios gerais de impugnação da declaração documentada. Está-se perante uma presunção derivada da regra da experiência de que quem afirma factos contrários aos seus interesses o faz por saber que são verdadeiros. O interessado pode provar que a declaração não correspondeu à vontade ou que esta foi afectada por algum vício de consentimento” (cfr., ainda no mesmo sentido, Vaz Serra, RLJ 110.º-85; Gonçalves Sampaio, A Prova por documentos particulares, 2.ª ed., 115; e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 21/4/2005 e de 27/3/2007, em www.dgsi.pt). A listagem emitida em nome de O… nada interessa à matéria impugnada, aqui em discussão, por respeitar a pretensos fornecimentos, em nome daquela cliente, feitos a partir de 5/7/2011, portanto a pessoa estranha à presente acção, após a sua instauração e relativa a matéria que não é objecto dela visto não ter sido alegada. A listagem emitida em nome de E…o contém, como já se referiu, a discriminação de fornecimentos, feitos pela “I…” a esse cliente, de café …, entre 15/10/2009 e 23/2/2012, em quantidades variáveis, por regra cinco quilogramas de cada vez, num total de 346 Kg. Para além de não conter qualquer referência ao estabelecimento “G…”, nela não consta qualquer declaração feita pelos réus, designadamente pelo E…, muito menos que lhes seja desfavorável. A cópia do correio electrónico contém uma mera informação, feita pelo réu E.. ao departamento jurídico da autora, após ter sido citado para a acção, no sentido de que continuou a consumir café …, nos dois últimos anos, e a manifestar o desejo de querer “resolver este problema”. Para além de não conter declaração desfavorável a este réu, ou a algum dos restantes, o conteúdo daquela correspondência não passa de uma mera informação e manifestação de vontade em querer pôr fim ao litigio por consenso das partes. Só que este pressupõe a anuência ou aceitação da autora. E ela não se mostra que tenha sido prestada. Aliás, qualquer alteração ao contrato celebrado só poderia ser feita, nos termos da sua cláusula 15.ª, por “documento escrito e assinado por ambas as partes, excepto situações de trespasse ou cessão de exploração do estabelecimento” em que bastaria a assinatura do trespassário ou cessionário, o que não se verifica no presente caso. Apesar de não terem sido impugnados, tais documentos não têm qualquer força probatória, por não se mostrarem assinados e não conterem declarações desfavoráveis a qualquer declarante demandado, podendo, quando muito, ser apreciados livremente pelo Tribunal no confronto com a demais prova produzida. Contudo, feita a reapreciação dessa prova, e tendo presente o que acaba de ser dito, não há motivos para nos afastarmos do entendimento tido na 1.ª instância, pois que não se vislumbra qualquer desconformidade notória entre a dita prova e a respectiva decisão, em violação dos princípios supra referenciados. Da análise crítica dos depoimentos de todas as testemunhas inquiridas e dos documentos juntos aos autos não pode ficar-se com outra convicção que não seja a do tribunal recorrido. E é esta análise crítica e integrada dos depoimentos com os outros meios de prova que os juízes devem fazer, pois a sua actividade, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos, muito menos truncados. A fundamentação da matéria de facto, ainda que sintética, mostra-se criteriosa e tem perfeito suporte na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos. Acresce que a matéria do quesito 6.º é claramente conclusiva, na medida em que põe em confronto as quantidades consumidas nos dois anos de exercício da actividade da ré, dizendo-se ali que foram adquiridas as “mesmas quantidades mensais e, por vezes, quantidades superiores do mesmo café e da mesma selecção”, o que sempre levaria a considerar não escrita uma eventual resposta diferente da que foi dada, nos termos do n.º 4 do art.º 646.º do CPC. Quer tudo isto dizer que os recorrentes não podem obter a alteração da matéria de facto no sentido por si propugnado, pelo que improcedem as correspondentes conclusões. Não obstante, impõe-se uma alteração oficiosa, com base nos documentos de fls. 8 a 11 e 13, apesar de o seu conteúdo ter sido dado como integralmente reproduzido, respectivamente, nos n.ºs 3 e 9 dos factos provados, acima transcritos, cujo procedimento se nos afigura menos correcto e para uma melhor compreensão da factualidade provada. Assim, atento o teor, já dado como provado, de tais documentos e visto o disposto nos art.ºs 659.º, n.º 3 e 713.º, n.º 2, ambos do CPC, impõe-se aditar à factualidade provada os seguintes factos: 18. Na cláusula 10.ª do contrato supra referido em 3, consta: “O presente contrato poderá ser resolvido por qualquer dos contraentes nos termos gerais de direito e, ainda e designadamente pela PRIMEIRA CONTRAENTE, nos seguintes termos: a) Violação das obrigações fixadas nas cláusulas 1ª, 2ª, 3ª, 6ª. 7ª e 9º, b) Encerramento do estabelecimento comercial acima identificado por parte da SEGUNDA CONTRAENTE”. 19. Na carta aludida em 9, consta, além do mais, que: “Fomos informados pelo nosso departamento comercial que deixaram V.Exs.ª de consumir no v/estabelecimento comercial o Café marca …, “Selecção …”. Constatámos, assim, o incumprimento por parte de V.Exs.ª das obrigações a que estavam adstritos por força do contrato em epígrafe, em particular das cláusulas 2ª e 7ª, que lhes impunham o consumo mínimo mensal de 40 Kg de café D…, “Selecção …”, pelo prazo necessário ao consumo ininterrupto e exclusivo de 2.4000 Kg. Assim sendo, ao abrigo do disposto na al. a) da cláusula 10ª, resolve-se o sobredito contrato, por violação das cláusulas supra referidas, com efeitos a partir do recebimento da presente notificação”, a qual ocorreu em 30/11/2009. 2.2. Do abuso de direito Os factos provados revelam que a autora/apelada e os réus/apelantes celebraram, entre si, um contrato, nos termos do qual a ré C…, Lda., se obrigou a adquirir à primeira e vender, em regime de exclusividade, no seu estabelecimento denominado “F…”, café …e, a quantidade mínima mensal de 40 Kg, de forma ininterrupta, até perfazer o total de 2.400 Kg, com início em 13/12/2006, constituindo-se os réus E… e F… fiadores e principais pagadores das obrigações por aquela sociedade assumidas, tendo, para esse efeito, a demandante cedido à sociedade demandada determinados bens e, como contrapartida da exclusividade e publicidade, feito a entrega à mesma de 10.330,00 €, acrescida de IVA à taxa em vigor (cfr. factos supra descritos sob os n.ºs 3, 4, 5, 6 e 7 e cláusula 5.ª). Este contrato deve ser qualificado como um contrato atípico, complexo, de natureza comercial, envolvendo elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e do contrato de compra e venda de café, em exclusividade relativamente à compradora (cfr. art.ºs 2.º, 13.º e 463.º, n.º 1, do Código Comercial, 410.º, n.º 1, 874.º, 1129.º e 1154.º do Código Civil e acórdão do STJ de 4/6/2009, proferido no processo 257/09.1YFLSB, disponível em www.dgsi.pt). E assim foi qualificado pela sentença recorrida, servindo-se dos ensinamentos deste último acórdão, com o que se conformaram os recorrentes, sendo, portanto, pacífica tal qualificação. De qualquer modo, a qualificação do contrato é irrelevante para a decisão do recurso e o desfecho da acção. Os recorrentes também não põem em causa o fundamento da resolução invocado pela autora, já que questionam apenas os seus efeitos e, na medida em que pugnam pela alteração do contrato, a sua eficácia. Por isso, antes da apreciação daqueles efeitos, impõem-se algumas considerações sobre a resolução. É sabido que o direito de resolução de qualquer contrato, enquanto meio de extinção do vínculo contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado (cfr. art.º 432.º, n.º 1, do Código Civil). Por isso mesmo, a parte que invoca o direito à resolução fica obrigada a alegar e a demonstrar o fundamento que justifica a destruição do correspondente vínculo contratual. E, além de pressupor o incumprimento definitivo de uma prestação contratual, a resolução exige a gravidade da violação, sendo esta apreciada não em função da culpa do devedor mas das consequências desse incumprimento para o credor (cfr. Pedro Romano Martinez, “Da Cessação do Contrato”, 2.ª edição, pág. 146). Porém, no presente caso, estamos perante a resolução do contrato fundada em convenção das partes e não na lei. Este tipo de fundamento de resolução está previsto no n.º 1 do citado art.º 432.º e depende exclusivamente do que foi convencionado pelas partes, já que o contrato deve ser pontualmente cumprido e pode extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei (cfr. art.º 406.º, n.º 1 do mesmo Código). Essencial é que se verifiquem os termos da convenção celebrada para esse efeito pelos contraentes, no âmbito da sua liberdade contratual. Segundo a cláusula 10.ª, al. a), do contrato celebrado entre as partes, aqui aditada e transcrita no n.º 18 dos factos provados, a autora podia resolver o contrato no caso de violação das obrigações fixadas nas cláusulas 1.ª, 2,ª 3.ª, 6.ª, 7.ª e 9.ª. É indubitável que houve violação das cláusulas 2.ª e 7.ª, já que a demandada sociedade não comprou à demandante as quantidades de café marca …, selecção …, que se comprometeu adquirir-lhe, ou seja, pelo menos 40 Kg por mês, de forma ininterrupta, até perfazer o montante de 2.400 Kg, tendo deixado de comprar e consumir café dessa marca e selecção, quando havia adquirido apenas 41 quilogramas (cfr. factos n.ºs 6, 7, 8 e 11). E, com esse fundamento, a autora resolveu o contrato, por carta enviada à ré em 24/11/2009, em conformidade com o disposto na cláusula 11.ª, com efeitos a partir do dia 30 desse mesmo mês (cfr. factos provados sob os n.ºs 9 e 19). Assim, a resolução operou no dia 30 de Novembro de 2009. Operada deste modo a resolução do contrato, não vemos como é possível sustentar a sua modificação, não só porque os recorrentes não lograram obter a alteração da matéria de facto, como se deixou dito, mas também porque a mesma era impossível ter ocorrido, pois não se modifica aquilo que já está extinto e para ela poder ocorrer era necessário, antes da sua extinção, obter-se o consentimento expresso e escrito de ambas as partes (cfr. cláusula 15.ª), pelo que também não faz sentido equacionar-se qualquer consentimento tácito. Demonstrado o fundamento invocado pela autora para a resolução do contrato e comunicada à ré, em conformidade com o disposto nas cláusulas 10.ª, al. a) e 11.ª, operou a resolução, desencadeando os efeitos consignados, designadamente, na cláusula 13.ª, como, aliás, foi comunicado à ré na mesma carta e aos restantes réus por cartas datadas de 12/1/2010 (cfr. factos n.ºs 9 e 10 e cartas de fls. 13 a 18). Prevê-se ali uma indemnização estipulada como cláusula penal, de que trataremos mais abaixo, importando agora averiguar se a autora litiga com abuso de direito que os recorrentes invocam, a nosso ver incorrectamente, a propósito ou, pelo menos, em simultâneo, da redução daquela cláusula. O actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça. Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, pág. 298, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536). A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável. Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico (Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171). Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites. Tal objectividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 30/11/95, na CJ – STJ - ano III 20/5/97, tomo III, pág. 132, de 20/5/97, no BMJ n.º 467.º, pág. 557 e de 25/11/99, CJ – STJ -, ano VII, tomo III, pág. 124; da RL de 29/1/98, na CJ, ano XXIII, I, 103 e da RE de 23/4/98, CJ, XXIII, II, 278). Esta orientação jurisprudencial mereceu o aplauso do Prof. Menezes Cordeiro, que também faz depender a aplicação daquele instituto da verificação dos pressupostos processuais, justificando: “na verdade, o Tribunal não fica limitado pelas invocações jurídicas das partes: pedido um certo efeito e constando, do processo, os factos necessários, pode o juiz optar pelo abuso de direito, mesmo que este não tivesse sido expressamente invocado” (in Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 2.ª edição, pág. 247). Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara. Porém, o abuso do direito, enquanto “válvula de escape”, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito (cfr. acórdão do STJ de 15/1/2013, no processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde foi apreciado um caso idêntico ao presente, seguido pela sentença recorrida, e cujo entendimento também aqui adoptamos). Como escreveu Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, ali citado: “O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.” E ensina, lapidarmente, o mesmo Professor, na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”: “(...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.” A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte. Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural” (citado acórdão de 15/1/2013). Para que pudesse considerar-se abusivo o exercício do direito por parte da autora, era necessário demonstrar factos através dos quais se pudesse considerar que excedeu, manifestamente, clamorosamente, o fim social ou económico do direito exercido ou que com a sua pretensão violava expectativas incutidas nos réus. Ora, no presente caso, isso não se verifica. Não só não foram provados factos que permitam concluir pelo excesso manifesto, clamoroso, do fim social ou económico do direito exercido pela autora, mas também que a sua pretensão viola expectativas por ela incutidas aos réus. Mesmo os factos por estes alegados traduzem-se em meras apreciações subjectivas e conclusões sem o necessário suporte fáctico, não permitindo equacionar uma eventual ofensa clamorosa a um sentimento de justiça socialmente dominante. Aliás, a configuração que fazem do abuso de direito é apenas na sequência da alteração da matéria de facto, desiderato que não lograram alcançar, como se deixou dito. O direito que a autora exerceu baseou-se na resolução do contrato, por si efectuada, em 24/11/2009, nos termos acordados, e pediu a indemnização estipulada como cláusula penal, a qual é um mero efeito daquela resolução, deixando de parte outros efeitos, nomeadamente a restituição da contrapartida da exclusividade que entregou à ré, assim beneficiando esta e os seus fiadores! Tal resolução foi determinada pelo incumprimento da ré, pois esta, dos 2.400 Kg de café que se comprometeu comprar e vender em regime de exclusividade, numa quantidade mínima mensal de 40 Kg, apenas comprou 41 Kg no total, não obstante o decurso de quase três anos de vigência do contrato, pois havia sido celebrado em 13/12/2006. Em vez de cumprir o contrato, como se vinculou, a ré deixou de comprar e consumir café marca …, Selecção …, e, em Dezembro de 2008, deixou de explorar o estabelecimento onde o mesmo deveria ser consumido nos termos contratuais – o “F…”. O facto de a ré não ter atingido os consumos mínimos mensais e de a autora ter esperado entre Dezembro de 2008 e 24/11/2009 para proceder à resolução, sem qualquer interpelação prévia, não significa que tenha compactuado com o incumprimento ao longo da vigência do contrato. É que, havendo convenção de resolução, não se impunha qualquer interpelação prévia àquela em que se operou e a falta de consumo mínimo e o tempo decorrido não permitem, objectivamente, criar qualquer expectativa de que a autora transigia com o continuado incumprimento do contrato, não sendo, por isso, expectável que ela não resolvesse o contrato. Por maioria de razão, não faria criar essa expectativa aos réus, designadamente ao E…, com base nos fornecimentos de café que lhe foram feitos para consumo noutros estabelecimentos. Para além de tais fornecimentos terem sido efectuados para estabelecimentos diferentes do que foi objecto do contrato, eles jamais poderiam ter sido feitos ao abrigo do contrato invocado pela autora, por ter sido validamente resolvido, não podendo sustentar, por isso, qualquer expectativa de falta de resolução do contrato. Assim sendo, como nos parece, não tendo a autora condescendido com a inexecução do contrato – o qual tem cariz continuado, inerente à modalidade do contrato de fornecimento que o integra – não podem os réus invocar, muito menos ver reconhecida, actuação abusiva do direito, por não ter sido violada qualquer sua expectativa tutelável induzida pela autora. A situação económica da autora, ainda que superior à dos réus, é manifestamente irrelevante, não podendo basear uma actuação abusiva. Em suma, a resolução do contrato não evidencia por parte da autora violação, muito menos clamorosa, do direito, por não ter violado qualquer confiança que tivesse sido incutida aos réus, na perspectiva de complacência com o continuado incumprimento do contrato, nem o exercício do direito de resolução nos termos convencionados permite concluir pelo abuso desse direito. Tendo sido convencionada a resolução, no âmbito de um contrato assente na autonomia privada, cujo regime resulta, desde logo, da disciplina fixada pelos próprios contraentes, uma vez operada, resta extrair os respectivos efeitos, como fez a autora e foi reconhecido na sentença recorrida. Inexiste, por conseguinte, abuso de direito, pelo que improcedem as respectivas conclusões. 2.2. Da cláusula penal Está em causa a cláusula 13.ª, n.º 1, nos termos da qual a ré se obrigou a indemnizar a autora, em caso de resolução do contrato pelo incumprimento daquela, no “montante de € 15,32, acrescido de IVA à taxa em vigor, por cada quilo de café que faltar para o cumprimento integral do contrato” (cfr. fls. 11 e n.º 10 dos factos provados). Esta cláusula reveste a natureza de cláusula penal, a qual pode ser definida como a estipulação negocial em que uma das partes se obriga antecipadamente, perante a outra, caso não cumpra a obrigação ou não a cumpra exactamente nos termos devidos, ao pagamento de uma quantia pecuniária, a título de indemnização (cfr. A. Pinto Monteiro, in Cláusula Penal e Indemnização, pág. 44 e Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, pág. 136). O direito de estipular tal cláusula é manifestação do princípio da autonomia privada constitucionalmente tutelado e da liberdade contratual afirmada no art.º 405.º do Código Civil, segundo a qual, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver, bem como reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais contratos típicos. A cláusula penal resulta, assim, de um acordo das partes, no âmbito do princípio da liberdade contratual, e tem como finalidade a fixação antecipada de uma indemnização, compensatória ou moratória, pelo incumprimento ou retardamento no cumprimento da obrigação, com intuito de evitar dúvidas futuras e litígios entre elas, quanto à determinação do montante da indemnização (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4.ª edição, revista e actualizada, pág. 75). A mesma está regulamentada pelos art.ºs 810.º a 812.º do Código Civil. Tradicionalmente, a cláusula penal reveste duas modalidades: compensatória, quando ela é estipulada para o não cumprimento; moratória, se estipulada para o atraso no cumprimento. Em função do escopo visado pelos contraentes, ela pode classificar-se em cláusula de fixação prévia do dano ou de fixação antecipada da indemnização e cláusula penal puramente compulsória. A cláusula penal compensatória não pode, como é óbvio, cumular-se com a realização específica da obrigação principal, mas já o pode ser a cláusula penal moratória, visto esta se destinar apenas a ressarcir os danos decorrentes do atraso no cumprimento, sendo nula qualquer disposição em contrário (cfr. art.º 811.º, n.º 1 do C. Civil; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª ed., pág. 448; Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, ed. 1987, pág. 253 e os nossos acórdãos de 13/9/2011 e de 15/1/2013, proferidos, respectivamente, nos processos n.ºs 7829/09.2TBMTS.P1 e 2015/09.4TBPFR.P1, que estamos seguindo). A dupla função que a cláusula penal é normalmente chamada a exercer, no sistema da relação obrigacional, é explicitada pelo Professor Antunes Varela do seguinte modo: “Por um lado, a cláusula penal visa constituir em regra um reforço (agravamento) da indemnização devida pelo obrigado faltoso, uma sanção calculadamente superior à que resultaria da lei, para estimular de modo especial o devedor ao cumprimento. Por isso mesmo se lhe chama penal – cláusula penal – ou pena convencional ... A cláusula penal extravasa, quando assim seja, do prosaico pensamento da reparação ou retribuição que anima o instituto da responsabilidade civil, para se aproximar da zona cominatória, repressiva ou punitiva, onde pontifica o direito criminal” (Das Obrigações em Geral, 5.ª ed., págs. 137 e 138). O Professor Calvão da Silva também define a cláusula penal como “A estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou a não cumprir exactamente nos termos devidos, maxime no tempo fixado, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária. Se estipulada para o caso de não cumprimento, chama-se cláusula penal compensatória; se estipulada para o caso de atraso no cumprimento, chama-se cláusula penal moratória”. E refere, ainda, que “Dada a sua simplicidade e comodidade, a cláusula penal é instrumento de fixação antecipada, em princípio ne varietur, da indemnização a prestar pelo devedor no caso de não cumprimento ou mora, e pode ser eficaz meio de pressão ao próprio cumprimento da obrigação. Queremos com isto dizer (sic) que, na prática, a cláusula penal desempenha uma dupla função: a função ressarcidora e a função coercitiva. No que concerne à primeira destas funções, a cláusula penal prevê antecipadamente um forfait que ressarcirá o dano resultante de eventual não cumprimento ou cumprimento inexacto (…) o que significa que o devedor, vinculado à clausula penal, não será obrigado ao ressarcimento do dano que efectivamente cause ao credor com o seu incumprimento ou cumprimento não pontual, mas ao ressarcimento do dano fixado antecipadamente e negocialmente através daquela, sempre que não tenha sido pactuada a ressarcibilidade do dano excedente (art. 811.º-2)”. Por sua vez, a segunda função (a coercitiva) constitui um “poderoso meio de pressão de que o credor se serve para determinar o seu devedor a cumprir a obrigação”, já que “o carácter elevado da pena constrange indirectamente o devedor a cumprir as suas obrigações, visto desencorajá-lo ao não cumprimento, pois este implica para si uma prestação mais onerosa do que a realização, nos termos devidos, da originária prestação a que se encontra adstrito. Esta maior onerosidade do incumprimento é de natureza a incitar o devedor a realizar a prestação devida, dada a ameaça de sanção que sobre si recai em caso de inadimplemento e, assim, reforça e garante realmente a obrigação principal, exercendo pressão sobre o devedor no sentido do seu cumprimento” (cfr. Calvão da Silva, obra citada, págs. 247 a 250). A cláusula aqui em apreciação é uma cláusula penal compensatória e tem função compulsória, na medida em que foi estipulada para o incumprimento e visou coagir a devedora, mediante a ameaça de uma sanção pecuniária, ao cumprimento pontual das obrigações que assumiu. Atenta a índole e a função da cláusula penal convencionada, não há que averiguar se a credora sofreu ou não prejuízos, como consequência da inexecução da obrigação, nem o seu valor. A cláusula penal também visa livrar o credor da indagação desses prejuízos e aplica-se desde que a violação do contrato seja imputável a culpa do obrigado. Não vem questionada a culpa da ré na violação do contrato, a qual, por estarmos no domínio da responsabilidade contratual, sempre se presume (cfr. art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil). Também não há dúvida de que estamos perante uma cláusula penal, como resulta do que se deixou dito e como tal foi qualificada na sentença impugnada, conformando-se com esse entendimento os réus/recorrentes. Estes pugnam pela sua redução, invocando o disposto no art.º 812.º do Código Civil. Este preceito permite a redução equitativa da cláusula penal nos seguintes termos: 1. A pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer disposição em contrário. 2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida. Dado que a redução aqui prevista limita os princípios gerais da autonomia privada e da liberdade contratual, tem de ser ponderada e cuidadosamente exercida, sempre dentro dos limites legais, só podendo o juiz intervir quando for solicitado para tal e reconheça que a cláusula é “manifestamente excessiva”, sob pena de inutilizar a sua própria função e razão da sua existência. Em face da natureza e da razão de ser da cláusula penal, supra referidas, tem-se entendido que o credor fica dispensado de demonstrar a efectiva verificação dos danos em consequência do incumprimento do contrato e respectivos montantes, já que a mencionada prefixação visa prescindir de averiguações sobre essa matéria. Por isso mesmo, também se vem entendendo e decidindo que o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados recai sobre o devedor (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 17/11/98, de 9/2/99 e de 5/12/2002, na CJ – STJ -, ano VI, tomo III, pág. 120 e VII, I, 99 e Sumários, 2002, 10, respectivamente). Do mesmo modo, a doutrina e a jurisprudência dominantes vêm entendendo que o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo citado art.º 812.º, não é oficioso, mas dependente de pedido do devedor da indemnização (cfr., neste sentido, nomeadamente, Pinto Monteiro, em Cláusula Penal e Indemnização, págs. 735-737; Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., pág. 81; Calvão da Silva, em Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, pág. 275; os Acs. do STJ de 17/2/98, na CJ – STJ -, ano VI, Tomo I, pág. 72 e no BMJ n.º 474, pág. 457, de 30/9/2003, de 20/11/2003 e de 17/5/2012 in http://www.dgsi.pt/jstj processos n.ºs 03A3514, 03A1738 e 3855/05.9TVLSB.L1.S1; e desta Relação de 8/4/91, de 23/11/93 e de 26/1/2000, na CJ, respectivamente, Ano XVI, tomo II, pág. 256, XVIII, V, 225 e XXV, I, 205 e o nosso citado acórdão de 15/1/2013). Aquele preceito confere ao juiz o poder de reduzir, mas não de invalidar ou suprimir, a cláusula penal manifestamente excessiva, exigindo, para tanto, que haja uma desproporção substancial e manifesta, patente e evidente, entre o dano causado e a pena estipulada, devendo cingir-se o objectivo de tal intervenção à protecção do devedor contra efeitos exorbitantes e abusivos da cláusula, sem lesar o direito do credor, pelo que, em princípio, não deverá intervir perante um caso de uma cláusula penal simplesmente excessiva (cfr. acórdão do STJ de 17/5/2012, acima citado). No caso dos autos, os réus, na contestação que apresentaram, defendem que a cláusula penal “é manifestamente excessiva e desproporcional, tendo em conta a natureza e condições da formação do contrato, como as respectivas contrapartidas”, “é chocante por manifestamente exagerado, extravasando a sua natureza compensatória”, “não retiraram qualquer vantagem no alegado incumprimento contratual” e “a autora não sofreu qualquer prejuízo advindo do eventual incumprimento do contrato uma vez que o consumo do café continuou a ser realizado pelo 3.º Réu”, concluindo, não obstante, pela improcedência total da acção. No recurso, continuam a pugnar pela redução da cláusula penal, invocando “uma manifesta desproporcionalidade, assim como, também, uma demasiado excessiva onerosidade para os Apelantes” (cfr. conclusão XII), afirmando que “…a cláusula penal traduz-se, supervenientemente, em valor que ultrapassa largamente o montante da indemnização pelo dano contratual positivo” (cfr. conclusão XVII) e “isto porque se afigura como manifestamente desproporcionada uma cláusula penal fixada num valor que torna claramente mais vantajoso para a A. o incumprimento do contrato do que o seu normal cumprimento (cfr. conclusão XVIII), para concluir que se decida em conformidade com tais conclusões. É manifestamente deficiente a alegação e a formulação do correspondente pedido, assim apresentados. O pedido de redução não foi formulado expressamente na contestação, como devia ser. E a alegação foi ali feita de forma conclusiva, quando devia traduzir-se em factos que eventualmente integrassem um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados, para que, depois de provados, o tribunal pudesse conhecer da alegada desproporcionalidade da cláusula penal. Ainda assim, não deixou de se referir à aludida desproporcionalidade e concluir pela sua inexistência ou excessividade e, consequentemente, pela não redução da cláusula penal. Tal deficiência continuou na fase de recurso, pois, não tendo sido alegados, não podiam ser dados como provados os respectivos factos, nem suprida a falta de pedido, como não foi, atento o princípio dispositivo, consagrado no art.º 264.º do CPC e visto não ser caso a ele subtraído, por o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo citado art.º 812.º, não ser de conhecimento oficioso, mas dependente de pedido do devedor da indemnização, o qual também tem o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados. E os factos provados, únicos que importa considerar, não permitem fazer este juízo de desproporcionalidade. O incumprimento contratual por parte da ré impediu a autora de obter o lucro que, notoriamente, auferiria com a venda do café que foi objecto do contrato celebrado entre as partes. Nem se diga que ela não sofreu qualquer prejuízo advindo desse incumprimento, por o consumo do café passar a ser realizado pelo réu E…. Apesar deste continuar a fazer consumos de café do mesmo tipo do que foi objecto do contrato aqui em causa, fê-lo fora do âmbito desse mesmo contrato, em quantidades e em tempo diferentes do que fora acordado. Além disso, entregou à ré a quantia de 10.330,00 €, a título de contrapartida da exclusividade, e não viu aquela cumprir o contrato como se vinculou, nem devolveu essa importância. Não há que equacionar o valor resultante do incumprimento com o que resultaria do seu normal cumprimento, já que foi a ré quem violou o contrato e deu causa à resolução, bastando que o tivesse cumprido para evitar a resolução e o funcionamento da cláusula penal. Esta reveste uma função fundamentalmente, ressarcitiva e tarifada, de natureza compulsória, actuando como meio de pressão sobre o devedor, mediante a ameaça de uma sanção pecuniária, com vista ao cumprimento pontual das obrigações que assumiu, mas cujos danos advenientes do seu incumprimento, em consequência da inexecução da obrigação ou da violação do contrato, não importa averiguar, nem determinar o seu montante, na hipótese da sua verificação, e bem assim como, igualmente, o respectivo nexo causal (cfr. acórdão do STJ de 24/4/2012, processo n.º 605/06.6TBVRL.P1.S1, disponível em ww.dgsi.pt). Não há, por isso, que atender a outros eventuais danos. Acresce que o poder do juiz conferido pelo citado art.º 812.º não se destina a invalidar ou suprimir a cláusula penal, mas a reduzi-la nos exactos termos nele previstos, isto é, “quando for manifestamente excessiva”, exigindo-se, para tanto, a verificação de uma desproporção substancial e manifesta entre o dano causado e a pena estipulada, o que não ocorre no presente caso. A autora limitou-se a pedir o valor da indemnização que lhe é conferido pela aludida cláusula, ou seja, o valor de 43.729,25 €, correspondente ao montante de 15,32 €, acrescido de IVA à taxa então em vigor, por cada quilograma de café que faltava para cumprimento integral do contrato. Com se havia comprometido consumir 2.400 Kg e só consumiu 41 Kg, restavam-lhe consumir 2.359 Kg. Multiplicando esta quantidade que faltava para cumprir o contrato pelo montante de 15,32 €, obtém-se a importância de 36.139,88 €. Fazendo incidir sobre esta importância a taxa de 21%, correspondente ao IVA, obtém-se o valor de 7.589,37 €. Finalmente, somando aquela importância e este valor, obtém-se exactamente o valor pedido. Verificado o fundamento da resolução e extinto o contrato por efeito desta, a autora nada mais fez do que exigir um dos efeitos dessa mesma resolução, qual seja a indemnização estipulada como cláusula penal compensatória, correspondente ao consumo de café em falta, acrescida dos correspondentes juros, nos termos convencionados e referidos na sentença, que não foram questionados no presente recurso, tal como não foi a responsabilidade dos réus fiadores. Nada há, pois, a objectar à pretensão da autora, pois encontra perfeito enquadramento nos art.ºs 432.º, n.º 1 e 798.º, ambos do Código Civil, não sendo caso de redução da cláusula penal estipulada e não havendo também que censurar a sentença impugnada. Improcedem, por conseguinte, as restantes conclusões e toda a apelação. Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC: I. Não é de alterar a matéria de facto sempre que se mostre apreciada e decidida segundo as regras e os princípios do direito probatório. II. O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, manifesta-se pela violação do princípio da confiança e a sua proibição reclama uma actuação pautada por regras éticas, de decência e respeito pelos direitos da contraparte. III. Não abusa do direito o credor que condescende com a inexecução do contrato, durante cerca de três anos, e pede a indemnização estipulada como cláusula penal decorrente da resolução do contrato com base no incumprimento do devedor. IV. O uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo art.º 812.º do Código Civil, depende do pedido do devedor da indemnização que também tem o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados, podendo o juiz, se provados, reduzir, mas não invalidar ou suprimir, a cláusula penal manifestamente excessiva. III. Decisão Por tudo o exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a douta sentença recorrida. *Custas pelos apelantes.*Porto, 10 de Julho de 2013 Fernando Augusto Samões José Manuel Cabrita Vieira e Cunha Maria das Dores Eiró de Araújo ___________ [1] Terá querido escrever-se cláusula 14.ª do contrato, tal como foi alegado no art.º 15.º da petição inicial e resulta do documento onde aquele foi formalizado, devendo a referência ao ponto 2 da cláusula 7.ª a mero lapso, não só porque não existe tal número, mas também porque esta cláusula não se refere à responsabilidade dos fiadores, pelo que aqui se deixa rectificado.