Processo:281/12.7TAVLG.P1
Data do Acordão: 09/12/2014Relator: MARIA LUÍSA ARANTESTribunal:trp
Decisão: Meio processual:

I – Padece de irregularidade, que pode ser conhecida oficiosamente [art. 123.º, n.º 2, do CPP], o despacho de não pronúncia que não enumera os factos alegados no RAI considerados suficientemente indiciados e os considerados não suficientemente indiciados. II – O cumprimento da exigência de especificação dos factos (do RAI) indiciados e não indiciados decorre do dever de fundamentação dos atos decisórios e da vinculação temática do juiz de instrução criminal e é essencial para a fixação dos efeitos de caso julgado da decisão de não pronúncia.

Profissão: Data de nascimento: 1/1/1970
Tipo de evento:
Descricao acidente:

Importancias a pagar seguradora:

Relator
MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA FACTOS INDICIADOS DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO IRREGULARIDADE
No do documento
Data do Acordão
12/10/2014
Votação
MAIORIA COM 1 DEC VOT E 1 VOT VENC
Texto integral
S
Meio processual
REC PENAL
Decisão
ANULADA A DECISÃO
Sumário
I – Padece de irregularidade, que pode ser conhecida oficiosamente [art. 123.º, n.º 2, do CPP], o despacho de não pronúncia que não enumera os factos alegados no RAI considerados suficientemente indiciados e os considerados não suficientemente indiciados. II – O cumprimento da exigência de especificação dos factos (do RAI) indiciados e não indiciados decorre do dever de fundamentação dos atos decisórios e da vinculação temática do juiz de instrução criminal e é essencial para a fixação dos efeitos de caso julgado da decisão de não pronúncia.
Decisão integral
P.281/12.7TAVLG.P1

Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
No processo n.º281/12.7TAVLG.P1 que correu termos pelo 2ºJuízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto [entretanto extinto], o assistente B…, não se conformando com o despacho de arquivamento com que o Ministério Público encerrou a fase de inquérito, requereu a abertura de instrução, no termo da qual foi proferida decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos C… e D… pelos crimes de burla qualificada e de infidelidade.
Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o assistente, extraindo da motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
I. “Vai o presente recurso interposto da decisão instrutória do juiz a quo que determinou a não pronúncia dos arguidos, pela prática dos crimes de burla qualificada e de infidelidade, p.p. respetivamente nos artigos 218.° e 224.° do CP.
II. Contrariamente ao entendimento sufragado, entende o recorrente que a partir da análise dos elementos de prova carreados para os autos é possível afirmar que há indícios suficientes para a pronúncia dos arguidos pela prática dos crimes de burla qualificada e infidelidade.
III. Para uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes basta a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito.
IV. A pretexto de ludibriar com as “auspiciosas" possibilidades de um elevado retorno financeiro do capital investido na suposta empresa “E…" (cerca de 20%), os arguidos dolosamente lesaram o património do recorrente.
V. O primeiro arguido informou ao recorrente que a empresa “E…" tinha sede no Dubai e que investia em vários sectores de atividade por todo o mundo.
VI. Algo de semelhante também dizia o sitio da Internet da “E…” «http://E1…. com».
VII. A existência de um sítio na Internet e a necessidade de registo dos investidores nesse mesmo portal conferiam à “E…” e à versão dos arguidos uma quase inabalável segurança, o que levou o recorrente a fazer a entrega do montante de 30.000€.
VIII. O recorrente só percebeu que o tipo de investimento oferecido pelos arguidos era do tipo “multinível’ mais tarde, quando se deparou com o encerramento da plataforma informática.
IX. Se o recorrente soubesse de antemão que estava perante um esquema do tipo “multinível”, informação esta omitida pelos arguidos, jamais teria tido investido.
X. Pelas declarações do segundo arguido perante o Ministério Público verifica-se que este se manteve como investidor da “E…” até Setembro/Outubro de 2010, sabendo das dificuldades de cumprimento, e mesmo assim não se coibiu de agir no sentido de prejudicar o património do recorrente e disso tirar proveito.
XI. Também em relação ao primeiro arguido, a burla tornou-se evidente quando o recorrente percebeu que a conta que aquele lhe disponibilizou já existia desde 7.07.2010 (com o pseudónimo de F…).
XII. Ficou ainda suficientemente demonstrado que o recorrente nunca teve o propósito de investir num esquema multinível nem foi nada disso que lhe foi garantido pelos arguidos.
XIII. Da prova carreada para o processo ficou demonstrado que os arguidos usaram a suposta empresa “E…” como fachada para praticarem os crimes de burla qualificada e infidelidade contra o recorrente.
XIV. Se considerarmos que ambos os arguidos eram investidores na suposta empresa "E…” – tal como alegaram nos seus depoimentos –, e que sabiam das dificuldades em reaverem o seu capital aplicado – tendo tido inclusivamente prejuízos, tal como afirmaram –, então nenhuma razão haveriam de ter para iludir o recorrente a fazer parte de um negócio que já não oferecia “vantajosos lucros", senão com o propósito de obterem para si enriquecimento (ilícito)
XV. Sabendo os arguidos que desde o dia 1 de Agosto do ano de 2011 a suposta “E…" havia deixado de aceitar novos membros, não sendo possível a inscrição de novos participantes na sua plataforma (e considerando ainda ser um negócio piramidal), não tinham outro motivo para convencerem o arguido a fazer o “investimento” de 30.000€ que não fosse o enriquecimento ilícito.
XVI. Importa também referir que a convicção formada pelo juiz de instrução desprezou a prova testemunhal arrolada pelo recorrente, ancorando a sua convicção nas declarações prestadas pelos arguidos.
XVII. Ao ter valorado as declarações dos arguidos, o despacho de não pronúncia olvidou que a natureza destas declarações como meio de prova é uma decorrência do seu direito de defesa.
XVIII. Quanto à prova testemunhal arrolada pelo assistente depuseram os seus dois filhos, G… e H… que, ainda de forma indirecta, sabiam dos factos e disso deram conhecimento ao tribunal de forma imparcial e convincente.
XIX. A testemunha H… referiu ainda um encontro com os arguidos em que esteve presente e no qual a encenação continuou.
XX. Quanto às declarações da testemunha B1…, não foi possível obter cópia do registo magnético das mesmas (impossibilidade técnica do tribunal) mas daquilo que foi tomado nota, referiu que também ele foi aliciado e enganado pelo primeiro arguido.
XXI. Face à prova produzida em sede de inquérito e também na fase de instrução não faltam indícios suficientes para a pronúncia e futura condenação dos arguidos.
XXII. Não deve subsistir dúvida quanto ao facto de os arguidos terem usado a inexperiência do recorrente no mundo do mercado de capitais para o convencer a dispor a quantia exigida de 30.000€, nomeadamente apresentando-lhe informações (falsas) e o sítio online da empresa, dando a impressão de que tudo pareceria ser legítimo.
XXIII. Do conjunto da prova resulta que a astúcia utilizada pelos arguidos prefigura “um meio de enganar, com especial habilidade, direcionada ao aproveitamento ou mesmo criação de condições que lhe confiram particular credibilidade".
XXIV. Visto de outro prisma, concluir-se-á que não fossem as várias interpelações enganosas dos arguidos, o recorrente não teria sido levado a causar prejuízos ao seu património, colocando em dificuldades financeiras o sustento de sua própria família.
XXV. Por outro lado, basta uma simples consulta à internet com as palavras-chave do nome do segundo arguido “D…” e rapidamente se chega à conclusão de que há indícios de que este arguido se dedica a esta atividade de forma habitual.
XXVI. Consequentemente, devem os arguidos responder pelo crime de burla qualificada, consoante o previsto nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 218.° do CP.
XXVII. O recorrente confiou aos arguidos a quantia de 30.000€, valor este que, mediante ao acordado, deveria ter sido investido na empresa “E…”, mas em contrapartida jamais teve qualquer retorno, o que configura o crime de infidelidade, previsto e punido pelo art. 224.° do Código Penal.
XXVIII. Face aos elementos de prova carreados aos autos verifica-se que o douto despacho de não pronúncia violou o disposto nos artigos 217.°, 218.°, n.º 1 e 224.° do Código Penal e artigo 308.° n.º 1 do CPP, porquanto foram recolhidos indícios suficientes da prática dos crimes imputados aos arguidos”.
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.347 a 371].
O arguido D… apresentou também resposta ao recurso, sustentando que a decisão recorrida deve ser confirmada [fls.379 a 384].
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º n.º1 do C.P.Penal, a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que se pronunciou pela improcedência do recurso [fls.391].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
O despacho recorrido, no que se reporta à fundamentação de facto e respectiva motivação, tem o seguinte teor:
«FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Da análise desses elementos de prova não resulta evidente, factos que permitam concluir por indícios suficientes da prática do crime de burla qualificada p.p. pelos artsº 217, 218° nº1 do Cod. Penal pelos arguidos e deste modo poder responsabilizá-los criminalmente para além dos constantes do arquivamento de fls.121 a 125.
MOTIVAÇÃO DE FACTO:
A convicção do Tribunal fundou-se na análise de toda a prova documental constante dos autos, devidamente conjugada com os depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de inquérito, cujos depoimentos constam de fls. 91/93, 96 a 100 e das testemunhas ouvidas nesta fase de instrução quer através de carta precatória, quer presencialmente neste Tribunal e cujo depoimento consta de fls.221. 
Assim, e pese embora os depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de instrução, os seus depoimentos denotaram um conhecimento indireto dos factos já que tomaram conhecimento dos factos através da versão que lhes foi dada pelo assistente, não assistiram aos contornos do negócio celebrado nem de que forma foi entregue a quantia de 30.000,00. 
Também pelo menos uma das testemunhas ouvidas nesta fase disse que o arguido D… tinha referido que se tratavam de negócios que envolviam um certo risco.
Conjugados os elementos de prova sobejam dúvidas quanto à existência de uma atuação enganosa, ardilosa por parte dos arguidos porquanto resulta dos autos e da prova produzida em inquérito e nesta fase de instrução de que o assistente tinha consciência de se estava a envolver em negócio que comportava riscos. Ou seja, ao assistente foram explicados os riscos de investir num negócio do tipo multinível sendo que ainda assim o mesmo pretendeu aplicar o seu dinheiro.
Ora, face à prova recolhida entendemos, como aliás o Ministério Público no seu despacho de arquivamento, que o assistente, quando decidiu por sua livre e espontânea vontade investir no negócio, estava perfeitamente ciente dos riscos que o mesmo comportava, tanto mais que aguardou vários meses antes de ali investir procurando informar-se acerca dos contornos do mesmo. Dada a elevada rentabilidade que o negócio oferecia, decidiu arriscar tornando-se também ele investidor e parte integrante de um aparente esquema piramidal em que o modo de atuação passa pela angariação de novos potenciais investidores sem os quais, a pirâmide e os níveis que a compõem deixam de ser sustentáveis provocando o progressivo declíneo até ao total desmoronamento tal como parece ter acontecido com a E… resultando um prejuízo para quem se encontra na sua base e um benefício para quem a iniciou e se encontra no topo. Face aos contornos em que o assistente efetuou o investimento e ao facto de ter sido informado dos riscos a ele associados bem como à informação disponibilizada no site online da E… à qual tinha acesso, o assistente deixar de conhecer que estava a entrar num esquema de plataforma de alta rentabilidade mas também de grande risco ficando o seu capital dependente da entrada de novos investidores.»
Apreciação
Nos termos do art.412.º n.º1 do C.P.Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só cabendo ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo daquelas que cumpre conhecer oficiosamente.
A questão trazida à apreciação deste tribunal reconduz-se a saber se os autos fornecem indícios suficientes da prática pelos arguidos dos crimes de burla qualificada e de infidelidade p. e p., respectivamente, pelos arts.218.º n.º1 e 224.º, ambos do C.Penal.
No entanto, antes de mais, impõe-se apreciar um vício, de conhecimento oficioso, de que enferma o despacho recorrido e cuja procedência prejudica o conhecimento da questão suscitada no recurso, consubstanciando-se tal vício na falta de indicação dos factos indiciados e não indiciados por referência ao requerimento de abertura da instrução.
Estabelece o art.286.º n.º1 do C.P.Penal que «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
Abstendo-se o Ministério Público de deduzir acusação, o requerimento de instrução do assistente deve conter, além de outros, os requisitos exigidos para a acusação no art. 283.º, n.º3 do C.P.Penal [aplicável ao requerimento de instrução ex vi art.287.º n.º2 do mesmo diploma], designadamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança. Ou seja, o requerimento de abertura de instrução, quando o Ministério Público arquiva o inquérito, fixa o objecto do processo, razão pela qual nos arts. 303.º n.º3 e 309.º n.º1, ambos do C.P.Penal, se estabelece a proibição da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução.
Por outro lado, sendo o despacho de não pronúncia um acto decisório do juiz, tem de ser fundamentado, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – art.97.º n.º5 do C.P.Penal – de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
O Tribunal da Relação tem de conhecer quais os indícios tidos por assentes e não assentes pela 1ª instância para que possa proceder à sua valoração, de molde a concluir pela sua suficiência ou insuficiência para a aplicação de uma pena ou medida de segurança e desta forma poder confirmar o despacho de pronúncia ou de não pronúncia.
Porém, o interesse da fixação da factualidade não se esgota na delimitação dos poderes de cognição do Juiz de Instrução ao proferir o despacho de pronúncia nos termos do art.308.º do C.P.Penal, nem no dever de fundamentação dos actos decisórios. A sua importância é também fundamental para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia[1], quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido, ou seja, quando o tribunal conhece do mérito do requerimento instrutório. 
Há aqueles casos em que o tribunal «declara que os autos não fornecem indícios materiais da existência dos factos acusados ou que o arguido os tenha praticado e em consequência não recebe a acusação»[2]. Há ainda as situações em que o tribunal declara que os factos descritos no requerimento instrutório, embora indiciados, não são subsumíveis a qualquer tipo legal de crime. «Assim, existe decisão final quando, apesar de indiciados os factos descritos no requerimento instrutório, o Sr. Juiz de Instrução concluir que os mesmos não constituem crime ou que o arguido não pode ser responsabilizado criminalmente pelos mesmos. Nessas situações, transitada em julgado essa decisão, o processo onde foi proferida só pode ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos prevenidos nos artigos 449º, nº2, e 450º, nº1, al. b), do Código de Processo Penal (…), podendo o arguido arguir a excepção do caso julgado em qualquer outro processo que seja instaurado pelos mesmos factos.
Existe decisão final quando a não pronúncia do arguido e o consequente arquivamento do processo se deva à não indiciação de todos ou parte dos factos descritos no requerimento instrutório, os quais se apresentavam como essenciais para a integração dos elementos constitutivos do crime. Porém, porque se trata de insuficiência de prova indiciária, o processo pode ser reaberto, assim como instaurado novo processo, se surgirem novos elementos de prova que abalem o fundamento da decisão de não pronúncia. Consequentemente, a reabertura do processo arquivado pelo despacho de não pronúncia depende indubitavelmente dos respectivos pressupostos factuais. É por essa razão que o Sr. Juiz de Instrução, ao proferir despacho de não pronúncia pela não verificação dos pressupostos materiais da punibilidade do arguido, deve descrever e especificar quais os factos que considera indiciados e os que considera não indiciados, indicando os respectivos fundamentos ou motivação, pois só dessa a forma se podem definir os verdadeiros efeitos do caso julgado e se garantem cabalmente os direitos de defesa» -Ac.R.Guimarães de 27/9/2004, proc. n.º1008/04.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves.[3]
No caso em apreço, o despacho recorrido não enumera quais os factos alegados no requerimento de abertura da instrução que considera suficientemente indiciados e os não suficientemente indiciados, tendo, apenas, sido retiradas conclusões pela Sra. Juiz de Instrução Criminal da prova que analisou. 
O cumprimento dessa exigência de especificação dos factos indiciados e não indiciados do requerimento de abertura da instrução, para além de decorrer do dever de fundamentação dos actos decisórios e da vinculação temática do juiz de instrução criminal, é essencial para a fixação dos referidos efeitos do caso julgado da decisão de não pronúncia, pelo que o valor deste despacho fica afectado por via de tal omissão. 
Afigura-se-nos que esta omissão consubstancia irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto do art.123.º n.º2 do C.P.Penal [neste sentido, v., entre outros e para além dos acórdãos supra mencionados, Ac.R.Guimarães de 4/7/2005, relatado pelo Desembargador Tomé Branco, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXX, Tomo IV, pág.300, Ac.R.Guimarães de 9/7/2009, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho, in www.dgsi.pt.][4]
Face à procedência desta irregularidade, fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada no recurso.

III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar inválida a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que supra a omissão consistente na falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados, por referência ao requerimento de abertura da instrução.
Sem custas. 
[texto elaborado e revisto pela 1ªsignatária]

Porto, 10/12/2014
Maria Luísa Arantes – (relatora por vencimento)
Neto de Moura – (vencido conforme declaração junta)
Francisco Marcolino – (Presidente da secção, que junta declaração – Voto a decisão e, reponderando minha anterior posição, entendo que se trata de nulidade insanável.
Em todo o caso a decisão será sempre a que fez vencimento)
_____________
[1] O despacho de não pronúncia é uma decisão interlocutória e não uma decisão final quando, em vez de ter por efeito imediato o arquivamento do processo, determina a sua devolução à fase de instrução, pela ocorrência de um vício processual.
[2] Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol III, Editorial Verbo 2009, pág.196
[3] No mesmo sentido, Ac.R.Porto de 16/12/2009, proc.n.º568/07.0GFVNG.P1, relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino
[4] O entendimento quer na doutrina quer na jurisprudência não é unânime quanto à natureza deste vício. V., a propósito, o Ac.R.Évora de 22/4/2014, proc. n.º258/12.2T3STC, relatado pelo Desembargador Proença da Costa, onde se faz uma resenha dos vários entendimentos nesta matéria.
__________
Voto Vencido

Como primitivo relator, elaborei projecto de acórdão em que conhecia da questão de fundo do recurso, qual seja, a de saber se os indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo (inquérito e instrução) são de molde a justificar que se leve os arguidos a julgamento pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução e com o enquadramento jurídico-penal que o assistente lhes deu.
Solução que propugnei não obstante reconhecer a existência na decisão instrutória de vício que afecta a sua validade.
Reúne largo consenso o entendimento de que a decisão instrutória, seja de pronúncia ou de não pronúncia, tem de enunciar os factos considerados suficientemente indiciados e aqueles em relação aos quais não se recolheu prova indiciária bastante. 
A decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia, tem de ser fundamentada, exigência que decorre, não do art.º 374.º (directamente aplicável, apenas, às sentenças), mas do dever genérico de fundamentação dos actos decisórios previsto no art.º 97.º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal. E se é certo que com a exigência de especificação no acto decisório dos “motivos de facto e de direito da decisão” não se pretende aludir à enunciação de factos, no que tange à decisão instrutória, aquela disposição normativa tem de ser conjugada com o artigo 308.º, cujo n.º 2 manda correspondentemente aplicar ao despacho referido no número anterior (que estabelece o critério orientador para o juiz proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia) o disposto nos números 2, 3 e 4 do artigo 283.º do CPP. Ora, o n.º 3 deste preceito comina a nulidade para o despacho de acusação que não contenha “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”.
Essa exigência de narração dos factos considerados suficientemente indiciados e os não indiciados não se satisfaz com a mera remissão para uma peça do processo[1] ou com a utilização de fórmulas genéricas (cfr. acórdãos do STJ de 16.01.1997, CJ/Acs. STJ, V, T. I, 202, e de 26.05.1999, Proc. n.º 98P1488). Tal como não cumpre a determinação legal de enumeração dos factos a sentença em que se diz, por exemplo, que se provaram (ou não se provaram) os factos da acusação (ou da pronúncia), também assim é quando no despacho de não pronúncia se afirma, p. ex., “considero que não se indicia a prática, pelo arguido, de factos susceptíveis de integrar o preenchimento da tipicidade objectiva e subjectiva do crime que o assistente lhe imputa”.
Mas não é pacífico na jurisprudência este entendimento sobre o conteúdo do despacho de não pronúncia.
Divergem da orientação que tem prevalecido na jurisprudência (e recolhe os favores da doutrina), entre outros, os seguintes arestos (todos acessíveis em www.dgsi.pt):
- acórdão da Relação de Guimarães, de 17/12/2013 17/12/2013 (processo n.º 74/12TAVLN.G1), relatado pela Desembargadora Ana Teixeira da Silva;
- acórdão da Relação de Coimbra de 3/07/2013 (processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/120654" target="_blank">1450/11.2TACBR.C1</a>), relatado pelo Desembargador Abílio Ramalho;
- acórdãos de 29/05/2013 (processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/140369" target="_blank">15847/09.4TDPRT.P1</a>), de 05/01/2011 (processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/143345" target="_blank">599/07.0TAOAZ.P1</a>) e de 29/05/2013 (processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/140369" target="_blank">15847/09.4TDPRT.P1</a>) da Relação do Porto, todos relatados pelo Desembargador Joaquim Gomes.
No primeiro, apesar de se reconhecer que “proceder a semelhante elenco factual seria seguramente a melhor técnica de elaboração de um despacho de não pronúncia – até sob a égide do rigor, objectividade e transparência”, acaba por concluir-se que “nada na lei exige que contenha semelhante descrição de factos «indiciados» e «não indiciados»”, conclusão que é assim justificada: “Afigura-se que a remissão feita no nº2 do artº 308º do CPP para o nº 3 do artº 283º do CPP (o qual estabelece os requisitos da acusação, “sob pena de nulidade”) só pode respeitar ao despacho de pronúncia (e não ao despacho de não pronúncia, como bem se compreende face ao teor de várias das alíneas, por exemplo, a) a f), do nº3 do artº 283.º, que não fariam qualquer sentido num despacho de não pronúncia.)”.
No segundo, considerou-se que satisfaz o dever de fundamentação previsto no n.º 5 do art.º 97.º do Cód. Proc. Penal o despacho de não pronúncia que “deixar revelar, pelo respetivo teor, de modo objetivo e comummente percetível, a respeitante linha de raciocínio lógico-argumentativo e a própria razoabilidade jurídica”, não se impondo a indicação dos factos indiciados e os não indiciados.
Nos referidos acórdãos desta Relação (do Porto), defende-se que “o despacho de não pronúncia exige apenas a fundamentação prevista no nº 4 do art. 97º do Código de Processo Penal, não tendo, designadamente, que conter a descrição de quaisquer factos”, asserção que é assim fundamentada:
“…apenas se quis revestir a decisão instrutória de nulidade quando esta for de pronúncia, como já referimos, e apenas em duas situações tipo expressamente tabeladas: a) quando represente uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública ou no requerimento para abertura da instrução conducente à pronúncia – excluiu-se a alteração não substancial (309.º) e aqui diverge-se da regulamentação específica da nulidade das sentenças; b) quando não se respeite o registo legal descritivo da acusação (283.º, n.º 3, mediante remissão do art. 308.º, n.º 2).
A ser assim, não podemos estender o rigor descritivo da (in)validade da decisão de pronúncia ao despacho de não pronúncia, porquanto o segmento normativo do artigo 283.º, n.º 3 é privativo da regulação daquele libelo, já que o seu proémio apenas menciona que “A acusação contém, sob pena de nulidade:”, não estando o despacho de arquivamento do inquérito, como se pode constatar da previsão do artigo 277.º, sujeito à mesma rigidez narrativa”. 
Argumentar que a remissão feita no n.º 2 do art.º 308.º do CPP para o n.º 3 do art.º 283.º da mesma Codificação é, apenas, para o despacho de pronúncia porque as várias alíneas daquele n.º 3 não fariam qualquer sentido num despacho de não pronúncia só pode resultar de uma leitura menos atenta dos preceitos legais pertinentes.
O n.º 2 do artigo 308.º não manda aplicar, taxativamente e em globo, ao despacho de pronúncia ou de não pronúncia o disposto no n.º 3 do artigo 283.º, pois o advérbio “correspondentemente” ali empregue há-de ter algum sentido útil.
Quando não há acusação, a decisão instrutória há-de ter por referência o requerimento de abertura de instrução (a peça processual que consubstancia materialmente uma acusação e define o âmbito da vinculação temática) e, como determina o n.º 2 do artigo 287.º do CPP, sendo a instrução requerida pelo assistente, àquele requerimento são aplicáveis, apenas, as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º e é óbvio que um despacho de não pronúncia não tem que indicar a prova a produzir. 
Por outro lado, não se pode equiparar o despacho de arquivamento do inquérito ao despacho de não pronúncia (como se faz nos citados acórdãos desta Relação para se justificar a não exigência da enunciação no despacho de não pronúncia dos factos indiciados e não indiciados), pois têm natureza diversa.
Como anota o Sr. Conselheiro Maia Costa (“Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 1024), tais decisões têm um tratamento legal diferente porque «o despacho de arquivamento constitui uma decisão “unilateral” do Ministério Público, que põe termo a uma fase processual caracterizada pela falta de contraditório. Pelo contrário, a decisão instrutória de não pronúncia é proferida após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado. Por isso, a tomada de posição sobre aqueles factos pelo juiz de instrução terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é».
O traço comum que se surpreende nos arestos a que vimos aludindo é a interpretação restritiva que advogam para o n.º 2 do artigo 308.º do CPP que, ao mandar aplicar o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º “ao despacho referido no número anterior” estaria a reportar-se, apenas, ao despacho de pronúncia.
Isto apesar de o n.º 1 do artigo 308.º se referir, clara e expressamente, ao despacho de pronúncia e ao despacho de não pronúncia.     
Nada permitindo afirmar que o legislador não soube exprimir adequadamente o seu pensamento e não se lobrigando qualquer razão válida para tal restrição, não pode aceitar-se uma interpretação que não tem na letra da lei qualquer correspondência verbal.
Aliás, afigura-se-nos óbvio que, se o legislador quisesse restringir aquela remissão ao despacho de pronúncia, não utilizaria aquela forma de expressão, mas diria, muito simplesmente, “É correspondentemente aplicável ao despacho de pronúncia…”.
Mas não podemos ficar-nos pelas palavras do texto norma, pois é sabido que o elemento literal é, apenas, um factor hermenêutico a ter em conta e nem sequer é decisivo na determinação do sentido da norma.
A questão fundamental (como já se aflorou ao citar o Sr. Conselheiro Maia Costa) sobre a qual importa reflectir é a da natureza do despacho de não pronúncia. Concretamente, o punctum crucis está em saber se o despacho de não pronúncia tem efeitos de caso julgado formal apenas, ou se, transitado em julgado, faz caso julgado material.
Relembremos estas noções:
Uma decisão (despacho ou sentença) transita em julgado, formando caso julgado, quando, por não ser já susceptível de alteração ou revogação mediante reclamação ou recurso ordinário (já porque não foi impugnada, já porque, tendo-o sido, se esgotaram os meios de impugnação), se tornou definitiva, esgotando-se, então, o poder jurisdicional.
Tratando-se de uma decisão de mérito, ou seja, incidindo sobre a relação material controvertida, a decisão tem força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, impondo-se aos demais tribunais e a quaisquer outras entidades, públicas ou particulares.
Diz-se, então, que a decisão produz o efeito de caso julgado material (também designado como caso julgado res judicata), o mesmo é dizer que “a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual” (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 678, de José Lebre de Freitas e outros).
Se a decisão incide sobre a relação jurídico-processual (p. ex., se julga verificado um pressuposto processual ou se rejeita um meio de prova), só vale intraprocessualmente, ou seja, é vinculativa, apenas, no próprio processo em que foi proferida e para as partes e por isso a mesma matéria pode ser diversamente apreciada noutro processo ou por outro tribunal.
Temos, então, o caso julgado formal, que constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão. Efeito este que significa que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontes­tável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação», como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada.
Volvendo ao caso concreto, a entender-se que o despacho de não pronúncia tem força vinculativa de caso julgado material, então isso implica, necessariamente, a definição de um objecto (de um “tema”) de não pronúncia, que não possa ser renovado. Ou seja, o despacho de não pronúncia tem de especificar, pelo menos, os factos considerados não suficientemente indiciados.
Como se sublinha no acórdão da Relação de Guimarães de 13.01.2003 (Des. Heitor Gonçalves), disponível em www.dgsi.pt, a importância da fixação da temática factual é fundamental “para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia, quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido” (também assim, acórdão desta Relação de 16.12.2009, Des. Francisco Marcolino, disponível no mesmo sítio).
Ora, sobre esta questão, também a doutrina e a jurisprudência se dividem.
Para o Prof. Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. III, 2.ª edição, Verbo, 182 e segs.), o despacho de não pronúncia é uma decisão meramente adjectiva, que tem, apenas, efeitos de caso julgado formal e por isso não impede a reabertura do inquérito (na jurisprudência, perfilhando este entendimento, cfr. os acórdãos do STJ, de 18.01.2006, Proc. n.º 3613/05.3.ª, e desta Relação de 14.02.2007, Proc. n.º 0646485, e de 16.01.2002).
Porém, é outro o entendimento que tem prevalecido.
Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, pág. 779), considera fundamental a narração dos factos não suficientemente indiciados porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado, razão por que “a delimitação objectiva e subjectiva rigorosa dos factos no despacho de não pronúncia constitui (…) a garantia última da segurança jurídica do arguido”.
O Sr. Conselheiro Maia Costa, em comentário ao artigo 308.º do CPP (Loc. Cit.), escreve que “o despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos considerados suficientemente indiciados. É que sobre tais factos forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (art. 279.º, n.º 1)”.
Vão no mesmo sentido as posições doutrinárias de Frederico Lacerda da Costa Pinto, “Direito Processual Penal”, edição AAFDL, 1998, pag. 164, e de J.M Damião da Cunha, “Ne bis in idem e exercício da acção penal”, in “Que futuro para o processo penal?”, p. 557) e, na jurisprudência, além dos citados arestos desta Relação e da Relação de Guimarães, alinha pela mesma tese o acórdão da Relação de Coimbra, de 29.10.2003 (CJ XXVIII, T. 4, 51).
Tenho para mim que o juiz de instrução que, pronunciando-se sobre o objecto do processo, decide que não se indiciam suficientemente os factos em que assenta a imputação do crime ou crimes que estiverem em causa e por isso determina o arquivamento do processo (a não pronúncia), não seguindo o processo para julgamento, profere uma decisão de mérito, que tem por isso força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado res judicata e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre tais factos.
Daí que não nos fiquem quaisquer dúvidas de que o despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes.
De outro modo, não se revela possível conhecer, em recurso, se foi ou não correcta a decisão de não pronunciar o arguido.  
Resta, então, saber quais as consequências da omissão no despacho de não pronúncia dessa especificação.
Também quanto a este ponto, podemos constatar profundas divergências, mas cremos ser possível afirmar a existência de uma posição dominante que considera que tal omissão fere de nulidade a decisão de não pronúncia e uma tese (minoritária) que propende para a consideração de que a falta de especificação dos factos indiciados e não indiciados constitui uma irregularidade.
Contudo, de entre os que defendem que a decisão é nula, há quem entenda que é uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, tese que tem tido acolhimento, sobretudo, na Relação de Évora (acórdãos de 20.12.2012, 26.02.2013 e de 17.06.2014), mas também já foi perfilhada na Relação do Porto (acórdão de 17.02.2010), na Relação de Lisboa (acórdão de 07.05.2013) e na Relação de Coimbra (acórdão de 13.11.2013) e quem a considere uma nulidade sanável e, portanto, dependente de arguição (acórdãos da Relação do Porto de 17.02.2010, 27.02.2013 e de 07.07.2010, da Relação de Évora de 10.12.2009, 19.11.2013 e 22.04.2014 e da Relação de Lisboa, de 10.07.2007).
É, também, como nulidade sanável que a qualifica Paulo Pinto de Albuquerque (Op. Cit., anotação 3 ao artigo 309.º, p. 780).
Também os defensores da tese da irregularidade se dividem entre os que consideram que a insuficiência de fundamentação da decisão de não pronúncia constitui uma irregularidade sujeita ao regime geral do art. 123.º, só podendo ser conhecida mediante atempada arguição (assim, os já citados acórdãos da Relação do Porto, de 29.05.2013 e da Relação de Coimbra, de 03.07.2013) e os que afirmam ser uma irregularidade que influi no conhecimento da causa e por isso advogam o seu conhecimento oficioso, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, do CPP, entendimento que vem sendo seguido na Relação de Guimarães, (acórdãos de 09.07.2009, 06.12.2010, 18.06.2007 e de 12.02.2007), mas também já foi adoptado no acórdão da Relação do Porto de 16.12.2009.  
É nesta última corrente jurisprudencial que se insere a posição que aqui prevaleceu (a Ex.ma Relatora por vencimento é, também, a relatora do referido acórdão da Relação de Guimarães, de 06.12.2010, e o Ex.mo Presidente da Secção, que desempatou, é o relator do citado acórdão da Relação do Porto, de 16.12.2009), mas de que não partilho.
Tal entendimento dá o flanco à crítica feita no citado acórdão da Relação do Porto, de 29.05.2013, de que “a reparação oficiosa de uma irregularidade, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, só é possível enquanto esta não estiver sanada. Caso contrário, ou seja, admitir-se a reparação oficiosa de uma irregularidade que já tivesse sido convalidada, designadamente pelo decurso do tempo, estar-se-ia perante uma mera irregularidade que passaria a ter a natureza de uma nulidade insanável, o que, convenhamos, colidiria com a unidade e a harmonia do sistema jurídico, pois numa escala de invalidade dos actos aquele que representa uma imperfeição menor ou ligeira passaria a estar sujeito à mesma regulação e robustez destruidora daqueles vícios que apresentam um defeito ostensivo e insuperável (9.º, n.º 1 Código Civil)”.
As exigências do cumprimento do dever de fundamentação e as consequências da falta ou insuficiência da fundamentação não são as mesmas para todos os actos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Cód. Proc. Penal) e regimes específicos para as sentenças (artigos 374.º e 379.º) e para os despachos que aplicam medidas de coacção (artigo 194.º do mesmo compêndio normativo).
Como é bem sabido, o regime geral das nulidades em processo penal está, basicamente, previsto nos artigos 118.º a 122.º do Cód. Proc. Penal e é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1).
Fora desses casos, se for cometida alguma ilegalidade susceptível de afectar o valor do acto praticado, estaremos perante uma irregularidade (n.º 2 do citado artigo 118.º).
Nos termos do n.º 3 do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal, a acusação tem de conter, “sob pena de nulidade”, além do mais, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”. E, como já foi abundantemente referido, tal disposição normativa é aplicável, por força da remissão feita no n.º 2 do artigo 308.º, ao despacho de não pronúncia, o qual deve especificar os factos considerados suficientemente indiciados e os não indiciados.
Sempre que a lei comine a nulidade de um acto sem que, expressamente, a qualifique como insanável, terá de ser havida como nulidade relativa (princípio da subsidiariedade da nulidade sanável).
O entendimento que, sobre este ponto, considero ser o correcto e por isso o perfilho, é o expresso no seguinte trecho do acórdão desta Relação de 07.07.2010 (Des. Jorge Gonçalves):
“Ainda assim, admitimos que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade – por omissão dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento - seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema.
Realmente, se a falta de narração dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, levando à rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.º, n.º3, alínea b)], não faria sentido que a falta de factos no despacho de pronúncia não pudesse ser objecto do mesmo tipo de conhecimento em sede de recurso.
Por outras palavras: os casos referidos no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm nas previsões das alíneas do n.º 3 do artigo 283.º reconduzem-se a uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso.
Os demais casos do n.º3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.
Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas antes de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação (e omissão de pronúncia) se traduza numa nulidade que é sanável e dependente de arguição”.
Não tendo sido arguida a nulidade do despacho de não pronúncia, quer perante o tribunal que praticou o acto, quer por via de recurso, tal nulidade tem de considerar-se sanada. 
__________
[1] Note-se que, quando o n.º 1 do artigo 307.º prevê a possibilidade de o juiz de instrução fundamentar por remissão para a acusação ou para o requerimento de abertura de instrução, essa remissão é para “as razões de facto e de direito” que, como já se assinalou, não são propriamente os factos indiciados. 

Neto de Moura

P.281/12.7TAVLG.P1 Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto: I – RELATÓRIO No processo n.º281/12.7TAVLG.P1 que correu termos pelo 2ºJuízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto [entretanto extinto], o assistente B…, não se conformando com o despacho de arquivamento com que o Ministério Público encerrou a fase de inquérito, requereu a abertura de instrução, no termo da qual foi proferida decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos C… e D… pelos crimes de burla qualificada e de infidelidade. Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o assistente, extraindo da motivação, as seguintes conclusões [transcrição]: I. “Vai o presente recurso interposto da decisão instrutória do juiz a quo que determinou a não pronúncia dos arguidos, pela prática dos crimes de burla qualificada e de infidelidade, p.p. respetivamente nos artigos 218.° e 224.° do CP. II. Contrariamente ao entendimento sufragado, entende o recorrente que a partir da análise dos elementos de prova carreados para os autos é possível afirmar que há indícios suficientes para a pronúncia dos arguidos pela prática dos crimes de burla qualificada e infidelidade. III. Para uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes basta a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito. IV. A pretexto de ludibriar com as “auspiciosas" possibilidades de um elevado retorno financeiro do capital investido na suposta empresa “E…" (cerca de 20%), os arguidos dolosamente lesaram o património do recorrente. V. O primeiro arguido informou ao recorrente que a empresa “E…" tinha sede no Dubai e que investia em vários sectores de atividade por todo o mundo. VI. Algo de semelhante também dizia o sitio da Internet da “E…” «http://E1…. com». VII. A existência de um sítio na Internet e a necessidade de registo dos investidores nesse mesmo portal conferiam à “E…” e à versão dos arguidos uma quase inabalável segurança, o que levou o recorrente a fazer a entrega do montante de 30.000€. VIII. O recorrente só percebeu que o tipo de investimento oferecido pelos arguidos era do tipo “multinível’ mais tarde, quando se deparou com o encerramento da plataforma informática. IX. Se o recorrente soubesse de antemão que estava perante um esquema do tipo “multinível”, informação esta omitida pelos arguidos, jamais teria tido investido. X. Pelas declarações do segundo arguido perante o Ministério Público verifica-se que este se manteve como investidor da “E…” até Setembro/Outubro de 2010, sabendo das dificuldades de cumprimento, e mesmo assim não se coibiu de agir no sentido de prejudicar o património do recorrente e disso tirar proveito. XI. Também em relação ao primeiro arguido, a burla tornou-se evidente quando o recorrente percebeu que a conta que aquele lhe disponibilizou já existia desde 7.07.2010 (com o pseudónimo de F…). XII. Ficou ainda suficientemente demonstrado que o recorrente nunca teve o propósito de investir num esquema multinível nem foi nada disso que lhe foi garantido pelos arguidos. XIII. Da prova carreada para o processo ficou demonstrado que os arguidos usaram a suposta empresa “E…” como fachada para praticarem os crimes de burla qualificada e infidelidade contra o recorrente. XIV. Se considerarmos que ambos os arguidos eram investidores na suposta empresa "E…” – tal como alegaram nos seus depoimentos –, e que sabiam das dificuldades em reaverem o seu capital aplicado – tendo tido inclusivamente prejuízos, tal como afirmaram –, então nenhuma razão haveriam de ter para iludir o recorrente a fazer parte de um negócio que já não oferecia “vantajosos lucros", senão com o propósito de obterem para si enriquecimento (ilícito) XV. Sabendo os arguidos que desde o dia 1 de Agosto do ano de 2011 a suposta “E…" havia deixado de aceitar novos membros, não sendo possível a inscrição de novos participantes na sua plataforma (e considerando ainda ser um negócio piramidal), não tinham outro motivo para convencerem o arguido a fazer o “investimento” de 30.000€ que não fosse o enriquecimento ilícito. XVI. Importa também referir que a convicção formada pelo juiz de instrução desprezou a prova testemunhal arrolada pelo recorrente, ancorando a sua convicção nas declarações prestadas pelos arguidos. XVII. Ao ter valorado as declarações dos arguidos, o despacho de não pronúncia olvidou que a natureza destas declarações como meio de prova é uma decorrência do seu direito de defesa. XVIII. Quanto à prova testemunhal arrolada pelo assistente depuseram os seus dois filhos, G… e H… que, ainda de forma indirecta, sabiam dos factos e disso deram conhecimento ao tribunal de forma imparcial e convincente. XIX. A testemunha H… referiu ainda um encontro com os arguidos em que esteve presente e no qual a encenação continuou. XX. Quanto às declarações da testemunha B1…, não foi possível obter cópia do registo magnético das mesmas (impossibilidade técnica do tribunal) mas daquilo que foi tomado nota, referiu que também ele foi aliciado e enganado pelo primeiro arguido. XXI. Face à prova produzida em sede de inquérito e também na fase de instrução não faltam indícios suficientes para a pronúncia e futura condenação dos arguidos. XXII. Não deve subsistir dúvida quanto ao facto de os arguidos terem usado a inexperiência do recorrente no mundo do mercado de capitais para o convencer a dispor a quantia exigida de 30.000€, nomeadamente apresentando-lhe informações (falsas) e o sítio online da empresa, dando a impressão de que tudo pareceria ser legítimo. XXIII. Do conjunto da prova resulta que a astúcia utilizada pelos arguidos prefigura “um meio de enganar, com especial habilidade, direcionada ao aproveitamento ou mesmo criação de condições que lhe confiram particular credibilidade". XXIV. Visto de outro prisma, concluir-se-á que não fossem as várias interpelações enganosas dos arguidos, o recorrente não teria sido levado a causar prejuízos ao seu património, colocando em dificuldades financeiras o sustento de sua própria família. XXV. Por outro lado, basta uma simples consulta à internet com as palavras-chave do nome do segundo arguido “D…” e rapidamente se chega à conclusão de que há indícios de que este arguido se dedica a esta atividade de forma habitual. XXVI. Consequentemente, devem os arguidos responder pelo crime de burla qualificada, consoante o previsto nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 218.° do CP. XXVII. O recorrente confiou aos arguidos a quantia de 30.000€, valor este que, mediante ao acordado, deveria ter sido investido na empresa “E…”, mas em contrapartida jamais teve qualquer retorno, o que configura o crime de infidelidade, previsto e punido pelo art. 224.° do Código Penal. XXVIII. Face aos elementos de prova carreados aos autos verifica-se que o douto despacho de não pronúncia violou o disposto nos artigos 217.°, 218.°, n.º 1 e 224.° do Código Penal e artigo 308.° n.º 1 do CPP, porquanto foram recolhidos indícios suficientes da prática dos crimes imputados aos arguidos”. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.347 a 371]. O arguido D… apresentou também resposta ao recurso, sustentando que a decisão recorrida deve ser confirmada [fls.379 a 384]. Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º n.º1 do C.P.Penal, a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que se pronunciou pela improcedência do recurso [fls.391]. Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência. II – FUNDAMENTAÇÃO Decisão recorrida O despacho recorrido, no que se reporta à fundamentação de facto e respectiva motivação, tem o seguinte teor: «FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: Da análise desses elementos de prova não resulta evidente, factos que permitam concluir por indícios suficientes da prática do crime de burla qualificada p.p. pelos artsº 217, 218° nº1 do Cod. Penal pelos arguidos e deste modo poder responsabilizá-los criminalmente para além dos constantes do arquivamento de fls.121 a 125. MOTIVAÇÃO DE FACTO: A convicção do Tribunal fundou-se na análise de toda a prova documental constante dos autos, devidamente conjugada com os depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de inquérito, cujos depoimentos constam de fls. 91/93, 96 a 100 e das testemunhas ouvidas nesta fase de instrução quer através de carta precatória, quer presencialmente neste Tribunal e cujo depoimento consta de fls.221. Assim, e pese embora os depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de instrução, os seus depoimentos denotaram um conhecimento indireto dos factos já que tomaram conhecimento dos factos através da versão que lhes foi dada pelo assistente, não assistiram aos contornos do negócio celebrado nem de que forma foi entregue a quantia de 30.000,00. Também pelo menos uma das testemunhas ouvidas nesta fase disse que o arguido D… tinha referido que se tratavam de negócios que envolviam um certo risco. Conjugados os elementos de prova sobejam dúvidas quanto à existência de uma atuação enganosa, ardilosa por parte dos arguidos porquanto resulta dos autos e da prova produzida em inquérito e nesta fase de instrução de que o assistente tinha consciência de se estava a envolver em negócio que comportava riscos. Ou seja, ao assistente foram explicados os riscos de investir num negócio do tipo multinível sendo que ainda assim o mesmo pretendeu aplicar o seu dinheiro. Ora, face à prova recolhida entendemos, como aliás o Ministério Público no seu despacho de arquivamento, que o assistente, quando decidiu por sua livre e espontânea vontade investir no negócio, estava perfeitamente ciente dos riscos que o mesmo comportava, tanto mais que aguardou vários meses antes de ali investir procurando informar-se acerca dos contornos do mesmo. Dada a elevada rentabilidade que o negócio oferecia, decidiu arriscar tornando-se também ele investidor e parte integrante de um aparente esquema piramidal em que o modo de atuação passa pela angariação de novos potenciais investidores sem os quais, a pirâmide e os níveis que a compõem deixam de ser sustentáveis provocando o progressivo declíneo até ao total desmoronamento tal como parece ter acontecido com a E… resultando um prejuízo para quem se encontra na sua base e um benefício para quem a iniciou e se encontra no topo. Face aos contornos em que o assistente efetuou o investimento e ao facto de ter sido informado dos riscos a ele associados bem como à informação disponibilizada no site online da E… à qual tinha acesso, o assistente deixar de conhecer que estava a entrar num esquema de plataforma de alta rentabilidade mas também de grande risco ficando o seu capital dependente da entrada de novos investidores.» Apreciação Nos termos do art.412.º n.º1 do C.P.Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só cabendo ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo daquelas que cumpre conhecer oficiosamente. A questão trazida à apreciação deste tribunal reconduz-se a saber se os autos fornecem indícios suficientes da prática pelos arguidos dos crimes de burla qualificada e de infidelidade p. e p., respectivamente, pelos arts.218.º n.º1 e 224.º, ambos do C.Penal. No entanto, antes de mais, impõe-se apreciar um vício, de conhecimento oficioso, de que enferma o despacho recorrido e cuja procedência prejudica o conhecimento da questão suscitada no recurso, consubstanciando-se tal vício na falta de indicação dos factos indiciados e não indiciados por referência ao requerimento de abertura da instrução. Estabelece o art.286.º n.º1 do C.P.Penal que «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». Abstendo-se o Ministério Público de deduzir acusação, o requerimento de instrução do assistente deve conter, além de outros, os requisitos exigidos para a acusação no art. 283.º, n.º3 do C.P.Penal [aplicável ao requerimento de instrução ex vi art.287.º n.º2 do mesmo diploma], designadamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança. Ou seja, o requerimento de abertura de instrução, quando o Ministério Público arquiva o inquérito, fixa o objecto do processo, razão pela qual nos arts. 303.º n.º3 e 309.º n.º1, ambos do C.P.Penal, se estabelece a proibição da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução. Por outro lado, sendo o despacho de não pronúncia um acto decisório do juiz, tem de ser fundamentado, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – art.97.º n.º5 do C.P.Penal – de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso. O Tribunal da Relação tem de conhecer quais os indícios tidos por assentes e não assentes pela 1ª instância para que possa proceder à sua valoração, de molde a concluir pela sua suficiência ou insuficiência para a aplicação de uma pena ou medida de segurança e desta forma poder confirmar o despacho de pronúncia ou de não pronúncia. Porém, o interesse da fixação da factualidade não se esgota na delimitação dos poderes de cognição do Juiz de Instrução ao proferir o despacho de pronúncia nos termos do art.308.º do C.P.Penal, nem no dever de fundamentação dos actos decisórios. A sua importância é também fundamental para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia[1], quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido, ou seja, quando o tribunal conhece do mérito do requerimento instrutório. Há aqueles casos em que o tribunal «declara que os autos não fornecem indícios materiais da existência dos factos acusados ou que o arguido os tenha praticado e em consequência não recebe a acusação»[2]. Há ainda as situações em que o tribunal declara que os factos descritos no requerimento instrutório, embora indiciados, não são subsumíveis a qualquer tipo legal de crime. «Assim, existe decisão final quando, apesar de indiciados os factos descritos no requerimento instrutório, o Sr. Juiz de Instrução concluir que os mesmos não constituem crime ou que o arguido não pode ser responsabilizado criminalmente pelos mesmos. Nessas situações, transitada em julgado essa decisão, o processo onde foi proferida só pode ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos prevenidos nos artigos 449º, nº2, e 450º, nº1, al. b), do Código de Processo Penal (…), podendo o arguido arguir a excepção do caso julgado em qualquer outro processo que seja instaurado pelos mesmos factos. Existe decisão final quando a não pronúncia do arguido e o consequente arquivamento do processo se deva à não indiciação de todos ou parte dos factos descritos no requerimento instrutório, os quais se apresentavam como essenciais para a integração dos elementos constitutivos do crime. Porém, porque se trata de insuficiência de prova indiciária, o processo pode ser reaberto, assim como instaurado novo processo, se surgirem novos elementos de prova que abalem o fundamento da decisão de não pronúncia. Consequentemente, a reabertura do processo arquivado pelo despacho de não pronúncia depende indubitavelmente dos respectivos pressupostos factuais. É por essa razão que o Sr. Juiz de Instrução, ao proferir despacho de não pronúncia pela não verificação dos pressupostos materiais da punibilidade do arguido, deve descrever e especificar quais os factos que considera indiciados e os que considera não indiciados, indicando os respectivos fundamentos ou motivação, pois só dessa a forma se podem definir os verdadeiros efeitos do caso julgado e se garantem cabalmente os direitos de defesa» -Ac.R.Guimarães de 27/9/2004, proc. n.º1008/04.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves.[3] No caso em apreço, o despacho recorrido não enumera quais os factos alegados no requerimento de abertura da instrução que considera suficientemente indiciados e os não suficientemente indiciados, tendo, apenas, sido retiradas conclusões pela Sra. Juiz de Instrução Criminal da prova que analisou. O cumprimento dessa exigência de especificação dos factos indiciados e não indiciados do requerimento de abertura da instrução, para além de decorrer do dever de fundamentação dos actos decisórios e da vinculação temática do juiz de instrução criminal, é essencial para a fixação dos referidos efeitos do caso julgado da decisão de não pronúncia, pelo que o valor deste despacho fica afectado por via de tal omissão. Afigura-se-nos que esta omissão consubstancia irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto do art.123.º n.º2 do C.P.Penal [neste sentido, v., entre outros e para além dos acórdãos supra mencionados, Ac.R.Guimarães de 4/7/2005, relatado pelo Desembargador Tomé Branco, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXX, Tomo IV, pág.300, Ac.R.Guimarães de 9/7/2009, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho, in www.dgsi.pt.][4] Face à procedência desta irregularidade, fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada no recurso. III – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar inválida a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que supra a omissão consistente na falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados, por referência ao requerimento de abertura da instrução. Sem custas. [texto elaborado e revisto pela 1ªsignatária] Porto, 10/12/2014 Maria Luísa Arantes – (relatora por vencimento) Neto de Moura – (vencido conforme declaração junta) Francisco Marcolino – (Presidente da secção, que junta declaração – Voto a decisão e, reponderando minha anterior posição, entendo que se trata de nulidade insanável. Em todo o caso a decisão será sempre a que fez vencimento) _____________ [1] O despacho de não pronúncia é uma decisão interlocutória e não uma decisão final quando, em vez de ter por efeito imediato o arquivamento do processo, determina a sua devolução à fase de instrução, pela ocorrência de um vício processual. [2] Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol III, Editorial Verbo 2009, pág.196 [3] No mesmo sentido, Ac.R.Porto de 16/12/2009, proc.n.º568/07.0GFVNG.P1, relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino [4] O entendimento quer na doutrina quer na jurisprudência não é unânime quanto à natureza deste vício. V., a propósito, o Ac.R.Évora de 22/4/2014, proc. n.º258/12.2T3STC, relatado pelo Desembargador Proença da Costa, onde se faz uma resenha dos vários entendimentos nesta matéria. __________ Voto Vencido Como primitivo relator, elaborei projecto de acórdão em que conhecia da questão de fundo do recurso, qual seja, a de saber se os indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo (inquérito e instrução) são de molde a justificar que se leve os arguidos a julgamento pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução e com o enquadramento jurídico-penal que o assistente lhes deu. Solução que propugnei não obstante reconhecer a existência na decisão instrutória de vício que afecta a sua validade. Reúne largo consenso o entendimento de que a decisão instrutória, seja de pronúncia ou de não pronúncia, tem de enunciar os factos considerados suficientemente indiciados e aqueles em relação aos quais não se recolheu prova indiciária bastante. A decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia, tem de ser fundamentada, exigência que decorre, não do art.º 374.º (directamente aplicável, apenas, às sentenças), mas do dever genérico de fundamentação dos actos decisórios previsto no art.º 97.º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal. E se é certo que com a exigência de especificação no acto decisório dos “motivos de facto e de direito da decisão” não se pretende aludir à enunciação de factos, no que tange à decisão instrutória, aquela disposição normativa tem de ser conjugada com o artigo 308.º, cujo n.º 2 manda correspondentemente aplicar ao despacho referido no número anterior (que estabelece o critério orientador para o juiz proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia) o disposto nos números 2, 3 e 4 do artigo 283.º do CPP. Ora, o n.º 3 deste preceito comina a nulidade para o despacho de acusação que não contenha “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”. Essa exigência de narração dos factos considerados suficientemente indiciados e os não indiciados não se satisfaz com a mera remissão para uma peça do processo[1] ou com a utilização de fórmulas genéricas (cfr. acórdãos do STJ de 16.01.1997, CJ/Acs. STJ, V, T. I, 202, e de 26.05.1999, Proc. n.º 98P1488). Tal como não cumpre a determinação legal de enumeração dos factos a sentença em que se diz, por exemplo, que se provaram (ou não se provaram) os factos da acusação (ou da pronúncia), também assim é quando no despacho de não pronúncia se afirma, p. ex., “considero que não se indicia a prática, pelo arguido, de factos susceptíveis de integrar o preenchimento da tipicidade objectiva e subjectiva do crime que o assistente lhe imputa”. Mas não é pacífico na jurisprudência este entendimento sobre o conteúdo do despacho de não pronúncia. Divergem da orientação que tem prevalecido na jurisprudência (e recolhe os favores da doutrina), entre outros, os seguintes arestos (todos acessíveis em www.dgsi.pt): - acórdão da Relação de Guimarães, de 17/12/2013 17/12/2013 (processo n.º 74/12TAVLN.G1), relatado pela Desembargadora Ana Teixeira da Silva; - acórdão da Relação de Coimbra de 3/07/2013 (processo n.º 1450/11.2TACBR.C1), relatado pelo Desembargador Abílio Ramalho; - acórdãos de 29/05/2013 (processo 15847/09.4TDPRT.P1), de 05/01/2011 (processo 599/07.0TAOAZ.P1) e de 29/05/2013 (processo 15847/09.4TDPRT.P1) da Relação do Porto, todos relatados pelo Desembargador Joaquim Gomes. No primeiro, apesar de se reconhecer que “proceder a semelhante elenco factual seria seguramente a melhor técnica de elaboração de um despacho de não pronúncia – até sob a égide do rigor, objectividade e transparência”, acaba por concluir-se que “nada na lei exige que contenha semelhante descrição de factos «indiciados» e «não indiciados»”, conclusão que é assim justificada: “Afigura-se que a remissão feita no nº2 do artº 308º do CPP para o nº 3 do artº 283º do CPP (o qual estabelece os requisitos da acusação, “sob pena de nulidade”) só pode respeitar ao despacho de pronúncia (e não ao despacho de não pronúncia, como bem se compreende face ao teor de várias das alíneas, por exemplo, a) a f), do nº3 do artº 283.º, que não fariam qualquer sentido num despacho de não pronúncia.)”. No segundo, considerou-se que satisfaz o dever de fundamentação previsto no n.º 5 do art.º 97.º do Cód. Proc. Penal o despacho de não pronúncia que “deixar revelar, pelo respetivo teor, de modo objetivo e comummente percetível, a respeitante linha de raciocínio lógico-argumentativo e a própria razoabilidade jurídica”, não se impondo a indicação dos factos indiciados e os não indiciados. Nos referidos acórdãos desta Relação (do Porto), defende-se que “o despacho de não pronúncia exige apenas a fundamentação prevista no nº 4 do art. 97º do Código de Processo Penal, não tendo, designadamente, que conter a descrição de quaisquer factos”, asserção que é assim fundamentada: “…apenas se quis revestir a decisão instrutória de nulidade quando esta for de pronúncia, como já referimos, e apenas em duas situações tipo expressamente tabeladas: a) quando represente uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública ou no requerimento para abertura da instrução conducente à pronúncia – excluiu-se a alteração não substancial (309.º) e aqui diverge-se da regulamentação específica da nulidade das sentenças; b) quando não se respeite o registo legal descritivo da acusação (283.º, n.º 3, mediante remissão do art. 308.º, n.º 2). A ser assim, não podemos estender o rigor descritivo da (in)validade da decisão de pronúncia ao despacho de não pronúncia, porquanto o segmento normativo do artigo 283.º, n.º 3 é privativo da regulação daquele libelo, já que o seu proémio apenas menciona que “A acusação contém, sob pena de nulidade:”, não estando o despacho de arquivamento do inquérito, como se pode constatar da previsão do artigo 277.º, sujeito à mesma rigidez narrativa”. Argumentar que a remissão feita no n.º 2 do art.º 308.º do CPP para o n.º 3 do art.º 283.º da mesma Codificação é, apenas, para o despacho de pronúncia porque as várias alíneas daquele n.º 3 não fariam qualquer sentido num despacho de não pronúncia só pode resultar de uma leitura menos atenta dos preceitos legais pertinentes. O n.º 2 do artigo 308.º não manda aplicar, taxativamente e em globo, ao despacho de pronúncia ou de não pronúncia o disposto no n.º 3 do artigo 283.º, pois o advérbio “correspondentemente” ali empregue há-de ter algum sentido útil. Quando não há acusação, a decisão instrutória há-de ter por referência o requerimento de abertura de instrução (a peça processual que consubstancia materialmente uma acusação e define o âmbito da vinculação temática) e, como determina o n.º 2 do artigo 287.º do CPP, sendo a instrução requerida pelo assistente, àquele requerimento são aplicáveis, apenas, as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º e é óbvio que um despacho de não pronúncia não tem que indicar a prova a produzir. Por outro lado, não se pode equiparar o despacho de arquivamento do inquérito ao despacho de não pronúncia (como se faz nos citados acórdãos desta Relação para se justificar a não exigência da enunciação no despacho de não pronúncia dos factos indiciados e não indiciados), pois têm natureza diversa. Como anota o Sr. Conselheiro Maia Costa (“Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 1024), tais decisões têm um tratamento legal diferente porque «o despacho de arquivamento constitui uma decisão “unilateral” do Ministério Público, que põe termo a uma fase processual caracterizada pela falta de contraditório. Pelo contrário, a decisão instrutória de não pronúncia é proferida após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado. Por isso, a tomada de posição sobre aqueles factos pelo juiz de instrução terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é». O traço comum que se surpreende nos arestos a que vimos aludindo é a interpretação restritiva que advogam para o n.º 2 do artigo 308.º do CPP que, ao mandar aplicar o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º “ao despacho referido no número anterior” estaria a reportar-se, apenas, ao despacho de pronúncia. Isto apesar de o n.º 1 do artigo 308.º se referir, clara e expressamente, ao despacho de pronúncia e ao despacho de não pronúncia. Nada permitindo afirmar que o legislador não soube exprimir adequadamente o seu pensamento e não se lobrigando qualquer razão válida para tal restrição, não pode aceitar-se uma interpretação que não tem na letra da lei qualquer correspondência verbal. Aliás, afigura-se-nos óbvio que, se o legislador quisesse restringir aquela remissão ao despacho de pronúncia, não utilizaria aquela forma de expressão, mas diria, muito simplesmente, “É correspondentemente aplicável ao despacho de pronúncia…”. Mas não podemos ficar-nos pelas palavras do texto norma, pois é sabido que o elemento literal é, apenas, um factor hermenêutico a ter em conta e nem sequer é decisivo na determinação do sentido da norma. A questão fundamental (como já se aflorou ao citar o Sr. Conselheiro Maia Costa) sobre a qual importa reflectir é a da natureza do despacho de não pronúncia. Concretamente, o punctum crucis está em saber se o despacho de não pronúncia tem efeitos de caso julgado formal apenas, ou se, transitado em julgado, faz caso julgado material. Relembremos estas noções: Uma decisão (despacho ou sentença) transita em julgado, formando caso julgado, quando, por não ser já susceptível de alteração ou revogação mediante reclamação ou recurso ordinário (já porque não foi impugnada, já porque, tendo-o sido, se esgotaram os meios de impugnação), se tornou definitiva, esgotando-se, então, o poder jurisdicional. Tratando-se de uma decisão de mérito, ou seja, incidindo sobre a relação material controvertida, a decisão tem força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, impondo-se aos demais tribunais e a quaisquer outras entidades, públicas ou particulares. Diz-se, então, que a decisão produz o efeito de caso julgado material (também designado como caso julgado res judicata), o mesmo é dizer que “a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual” (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 678, de José Lebre de Freitas e outros). Se a decisão incide sobre a relação jurídico-processual (p. ex., se julga verificado um pressuposto processual ou se rejeita um meio de prova), só vale intraprocessualmente, ou seja, é vinculativa, apenas, no próprio processo em que foi proferida e para as partes e por isso a mesma matéria pode ser diversamente apreciada noutro processo ou por outro tribunal. Temos, então, o caso julgado formal, que constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão. Efeito este que significa que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontes­tável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação», como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada. Volvendo ao caso concreto, a entender-se que o despacho de não pronúncia tem força vinculativa de caso julgado material, então isso implica, necessariamente, a definição de um objecto (de um “tema”) de não pronúncia, que não possa ser renovado. Ou seja, o despacho de não pronúncia tem de especificar, pelo menos, os factos considerados não suficientemente indiciados. Como se sublinha no acórdão da Relação de Guimarães de 13.01.2003 (Des. Heitor Gonçalves), disponível em www.dgsi.pt, a importância da fixação da temática factual é fundamental “para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia, quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido” (também assim, acórdão desta Relação de 16.12.2009, Des. Francisco Marcolino, disponível no mesmo sítio). Ora, sobre esta questão, também a doutrina e a jurisprudência se dividem. Para o Prof. Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. III, 2.ª edição, Verbo, 182 e segs.), o despacho de não pronúncia é uma decisão meramente adjectiva, que tem, apenas, efeitos de caso julgado formal e por isso não impede a reabertura do inquérito (na jurisprudência, perfilhando este entendimento, cfr. os acórdãos do STJ, de 18.01.2006, Proc. n.º 3613/05.3.ª, e desta Relação de 14.02.2007, Proc. n.º 0646485, e de 16.01.2002). Porém, é outro o entendimento que tem prevalecido. Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, pág. 779), considera fundamental a narração dos factos não suficientemente indiciados porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado, razão por que “a delimitação objectiva e subjectiva rigorosa dos factos no despacho de não pronúncia constitui (…) a garantia última da segurança jurídica do arguido”. O Sr. Conselheiro Maia Costa, em comentário ao artigo 308.º do CPP (Loc. Cit.), escreve que “o despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos considerados suficientemente indiciados. É que sobre tais factos forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (art. 279.º, n.º 1)”. Vão no mesmo sentido as posições doutrinárias de Frederico Lacerda da Costa Pinto, “Direito Processual Penal”, edição AAFDL, 1998, pag. 164, e de J.M Damião da Cunha, “Ne bis in idem e exercício da acção penal”, in “Que futuro para o processo penal?”, p. 557) e, na jurisprudência, além dos citados arestos desta Relação e da Relação de Guimarães, alinha pela mesma tese o acórdão da Relação de Coimbra, de 29.10.2003 (CJ XXVIII, T. 4, 51). Tenho para mim que o juiz de instrução que, pronunciando-se sobre o objecto do processo, decide que não se indiciam suficientemente os factos em que assenta a imputação do crime ou crimes que estiverem em causa e por isso determina o arquivamento do processo (a não pronúncia), não seguindo o processo para julgamento, profere uma decisão de mérito, que tem por isso força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado res judicata e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre tais factos. Daí que não nos fiquem quaisquer dúvidas de que o despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes. De outro modo, não se revela possível conhecer, em recurso, se foi ou não correcta a decisão de não pronunciar o arguido. Resta, então, saber quais as consequências da omissão no despacho de não pronúncia dessa especificação. Também quanto a este ponto, podemos constatar profundas divergências, mas cremos ser possível afirmar a existência de uma posição dominante que considera que tal omissão fere de nulidade a decisão de não pronúncia e uma tese (minoritária) que propende para a consideração de que a falta de especificação dos factos indiciados e não indiciados constitui uma irregularidade. Contudo, de entre os que defendem que a decisão é nula, há quem entenda que é uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, tese que tem tido acolhimento, sobretudo, na Relação de Évora (acórdãos de 20.12.2012, 26.02.2013 e de 17.06.2014), mas também já foi perfilhada na Relação do Porto (acórdão de 17.02.2010), na Relação de Lisboa (acórdão de 07.05.2013) e na Relação de Coimbra (acórdão de 13.11.2013) e quem a considere uma nulidade sanável e, portanto, dependente de arguição (acórdãos da Relação do Porto de 17.02.2010, 27.02.2013 e de 07.07.2010, da Relação de Évora de 10.12.2009, 19.11.2013 e 22.04.2014 e da Relação de Lisboa, de 10.07.2007). É, também, como nulidade sanável que a qualifica Paulo Pinto de Albuquerque (Op. Cit., anotação 3 ao artigo 309.º, p. 780). Também os defensores da tese da irregularidade se dividem entre os que consideram que a insuficiência de fundamentação da decisão de não pronúncia constitui uma irregularidade sujeita ao regime geral do art. 123.º, só podendo ser conhecida mediante atempada arguição (assim, os já citados acórdãos da Relação do Porto, de 29.05.2013 e da Relação de Coimbra, de 03.07.2013) e os que afirmam ser uma irregularidade que influi no conhecimento da causa e por isso advogam o seu conhecimento oficioso, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, do CPP, entendimento que vem sendo seguido na Relação de Guimarães, (acórdãos de 09.07.2009, 06.12.2010, 18.06.2007 e de 12.02.2007), mas também já foi adoptado no acórdão da Relação do Porto de 16.12.2009. É nesta última corrente jurisprudencial que se insere a posição que aqui prevaleceu (a Ex.ma Relatora por vencimento é, também, a relatora do referido acórdão da Relação de Guimarães, de 06.12.2010, e o Ex.mo Presidente da Secção, que desempatou, é o relator do citado acórdão da Relação do Porto, de 16.12.2009), mas de que não partilho. Tal entendimento dá o flanco à crítica feita no citado acórdão da Relação do Porto, de 29.05.2013, de que “a reparação oficiosa de uma irregularidade, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, só é possível enquanto esta não estiver sanada. Caso contrário, ou seja, admitir-se a reparação oficiosa de uma irregularidade que já tivesse sido convalidada, designadamente pelo decurso do tempo, estar-se-ia perante uma mera irregularidade que passaria a ter a natureza de uma nulidade insanável, o que, convenhamos, colidiria com a unidade e a harmonia do sistema jurídico, pois numa escala de invalidade dos actos aquele que representa uma imperfeição menor ou ligeira passaria a estar sujeito à mesma regulação e robustez destruidora daqueles vícios que apresentam um defeito ostensivo e insuperável (9.º, n.º 1 Código Civil)”. As exigências do cumprimento do dever de fundamentação e as consequências da falta ou insuficiência da fundamentação não são as mesmas para todos os actos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Cód. Proc. Penal) e regimes específicos para as sentenças (artigos 374.º e 379.º) e para os despachos que aplicam medidas de coacção (artigo 194.º do mesmo compêndio normativo). Como é bem sabido, o regime geral das nulidades em processo penal está, basicamente, previsto nos artigos 118.º a 122.º do Cód. Proc. Penal e é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1). Fora desses casos, se for cometida alguma ilegalidade susceptível de afectar o valor do acto praticado, estaremos perante uma irregularidade (n.º 2 do citado artigo 118.º). Nos termos do n.º 3 do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal, a acusação tem de conter, “sob pena de nulidade”, além do mais, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”. E, como já foi abundantemente referido, tal disposição normativa é aplicável, por força da remissão feita no n.º 2 do artigo 308.º, ao despacho de não pronúncia, o qual deve especificar os factos considerados suficientemente indiciados e os não indiciados. Sempre que a lei comine a nulidade de um acto sem que, expressamente, a qualifique como insanável, terá de ser havida como nulidade relativa (princípio da subsidiariedade da nulidade sanável). O entendimento que, sobre este ponto, considero ser o correcto e por isso o perfilho, é o expresso no seguinte trecho do acórdão desta Relação de 07.07.2010 (Des. Jorge Gonçalves): “Ainda assim, admitimos que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade – por omissão dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento - seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema. Realmente, se a falta de narração dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, levando à rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.º, n.º3, alínea b)], não faria sentido que a falta de factos no despacho de pronúncia não pudesse ser objecto do mesmo tipo de conhecimento em sede de recurso. Por outras palavras: os casos referidos no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm nas previsões das alíneas do n.º 3 do artigo 283.º reconduzem-se a uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso. Os demais casos do n.º3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição. Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas antes de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação (e omissão de pronúncia) se traduza numa nulidade que é sanável e dependente de arguição”. Não tendo sido arguida a nulidade do despacho de não pronúncia, quer perante o tribunal que praticou o acto, quer por via de recurso, tal nulidade tem de considerar-se sanada. __________ [1] Note-se que, quando o n.º 1 do artigo 307.º prevê a possibilidade de o juiz de instrução fundamentar por remissão para a acusação ou para o requerimento de abertura de instrução, essa remissão é para “as razões de facto e de direito” que, como já se assinalou, não são propriamente os factos indiciados. Neto de Moura