I - A denúncia (anónima) não é um meio de prova nem um meio de obtenção de prova. II - A falta de fundamentação da decisão instrutória configura uma mera irregularidade, sujeita ao regime geral (de arguição e sanação) do art.123º do CPP. III - Comete um crime de Peculato, do art. 375.º, do CP, na forma consumada, o solicitador de execução que transferiu para uma conta pessoal verbas provisionadas na conta-cliente, com elas fez aplicações financeiras em seu nome e auferiu remunerações de juros, que fez suas, ainda que, quando notificado de que iria ser sujeito a uma fiscalização por parte da Câmara dos Solicitadores, tenha reposto na conta-cliente o montante inicialmente transferido.
Recurso n.º 15847/09.4TDPRT.P1 Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunta: Paula Guerreiro Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I. RELATÓRIO 1. Na Instrução n.º 15847/09.4TDPRT do 3.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, em que são: Recorrente/Arguido: B..... Recorrido: Ministério Público Recorrido/Assistente: Câmara dos Solicitadores foi proferida decisão em 2012/Out./29, a fls. 567-569 que pronunciou o arguido pela prática, como autor material, de um crime de peculato da previsão do artigo 375.º do Código Penal ou eventualmente um crime de peculato de uso da previsão do artigo 376.º do Código Penal. 2. O arguido interpôs recurso em 2012/Nov./20 a fls. 581-618 pedindo a revogação desta decisão de pronúncia e a sua substituição por outra que não o pronuncie, concluindo nos seguintes precisos termos: 1.ª) Existe nos presentes autos prova nula, ilícita e proibida, prova essa consubstanciada nas informações contidas na denúncia “anónima” de fls. 3, bem como nos documentos a ela anexos, por franca violação do disposto no n.º 8 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 126.º do Código de Processo Penal (CPP), que deu origem aos presentes autos e que, de forma irremediável, transmite esse vício de nulidade aos actos dela dependentes – inquérito, instrução e acusação, pelo que se impõe a declaração de nulidade da mesma, bem como se verifica a existência de nexo causal, evidente, necessário e determinante entre a prova proibida e a instauração e prossecução do próprio inquérito e instrução, o qual não teria início ou prosseguido não fosse a nulidade da junção e apreciação de prova proibida (documento junto com a denúncia a fls. 4 a 6), pelo que o desvalor do acto nulo ter-se-á que comunicar aos actos posteriores, máxime ao início e prosseguimento do inquérito, a todas as diligências nele realizadas, nomeadamente a todos os actos de recolha e produção de prova, com a consequente obrigatoriedade de arquivamento dos presentes autos; 2.ª) Existe nulidade da Prova Testemunhal (ilícita e proibida), consubstanciada nas declarações da testemunha inquirida a fls. 124 a 128, por violação do disposto no n.º 6 do artigo 110.º do Estatuto (da Câmara) dos Solicitadores (ECS), alínea b) do n.º 1, do artigo 110.º do ECS, artigo 135.º, n.º 1 do CPP, 182.º do CPP, artigo 126.º do Código de Processo Penal (CPP), e artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), uma vez que a testemunha depôs sobre factos relacionados com uma fiscalização efectuada por este na qualidade de membro Secção Regional Deontológica do Norte da Câmara dos Solicitadores, sendo essa fiscalização realizada por si e mais dois Colegas, ao escritório do Arguido, não restam dúvidas de que os factos sobre que depôs, sem autorização, estão abarcados por dever de sigilo profissional porquanto tais factos foram pela testemunha conhecidos no exercício da sua profissão de solicitador e membro da Secção Regional Deontológica do Norte da Câmara dos Solicitadores, que era, pelo que a valoração de do seu depoimento está eivado de nulidade, por violação do estatuído no n.º 6 do artigo 110.º do Estatuto (da Câmara) dos Solicitadores (ECS), alínea b) do n.º 1, do artigo 110.º do ECS, artigo 135.º, n.º 1 do CPP, 182.º do CPP, artigo 126.º do Código de Processo Penal (CPP), e artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), impondo-se a declaração de nulidade de tal testemunho e a sua não valoração por violadora dos preceitos legais supra mencionados, que desde já se invoca e requer; 3.ª) A decisão instrutória é nula por vício de Nulidade da Prova resultante da junção aos autos de documentação sujeita à reserva do segredo profissional, por violação do disposto nos artigos 26.º, 32.º, n.º 2, 35.º, n.º 4 e 7, n.º 8 do artigo 32.º da CRP, 126.º, n.º 3, 182.º, 140.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro de 2008) estabelece no seu artigo 140.º a natureza secreta do processo disciplinar) e artigo 10.º do Regulamento Disciplinar da Câmara dos Solicitadores (publicado no Diário da República, II.ª série, n.º 100, de 24 de Maio de 2007), uma vez que a recolha de documentos sujeitos à reserva do segredo profissional merece tutela penal no art. 182.º do respectivo Código de Processo Penal, exigindo intervenção da autoridade judiciária, e não apenas do órgão de polícia criminal, como aconteceu nos presentes autos; 4.ª) A decisão instrutória é nula por insuficiência de fundamentação da decisão para submissão do arguido a julgamento, pelo crime de peculato, previsto e punível pelo artigo 3759 do Código Penal, ou eventualmente um crime de peculato de uso, previsto e punível pelo artigo 376.2 do Código Penal, por violação do artigo 308., n.2 2, por referência ao artigo 283., n.2 3 b) do Código de Processo Penal; 5.ª) A decisão instrutória é nula por via do erro notório da apreciação da prova constante nos autos, por insuficiência dos indícios da verificação do crime de peculato ou de peculato de uso, por violação dos artigos 277.º, n.º 2 e 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, dado que da prova documental constante dos autos não deixa persistir quaisquer dúvidas acerca do não preenchimento do tipo legal do ilícito, quer a nível objectivo, quer ao nível subjectivo do crime de peculato bem como quanto ao crime de peculato de uso; 6.ª) Foram violados os artigos 26.º, 32.º, n.º 4 e n.º 8, 35.º, n.º 4 e 7 da CRP, 126.º, n.º 3, 135.º, n.º 1, 182.º, 277.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, alínea b), 308.º, n.º 1 e 2, todos do CPP e 110.º, 140.º do ECS (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro de 2008), 10.º do Regulamento Disciplinar da Câmara dos Solicitadores (publicado no Diário da República, II.ª série, n.º 100, de 24 de Maio de 2007). 3.1 O Ministério Público respondeu a fls. 621-630 pugnando pela improcedência do recurso, sustentando, em suma, que: 1.º) A denuncia anónima é legalmente permitida desde que dela se retirem indícios da prática de crime ou de constituir crime nos termos do que dispõe o artigo 246.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, porquanto os métodos de proibidos de prova encontram-se enunciados no art.126.º do CPP nos seus n.º 1 e 2. onde se encontram previstas aquelas total ou apenas relativamente proibidas, não se integrando a nossa situação em nenhuma delas (2); 2.º) Quanto à alegada utilização de prova ilegal sobre a invocada nulidade da prova testemunhal que disse ilícita e proibida por ser consubstanciada nas declarações da testemunha que depôs sobre factos relacionados com uma fiscalização enquanto membro da Câmara dos Solicitadores, não se revela qualquer violação ao segredo profissional, porquanto essa situação não integra qualquer uma das situações do artigo 135° do CPP, a qual não foi invocada pelo próprio, por não existir colisão de deveres, ou a existência de alguma quebra de confiança entre prestador de serviço e cliente, por não se tratar de um desses casos (3); 3.º) Tal como aconteceu com a invocada nulidade da prova por ter sido investigada pela polícia e não pela autoridade judiciaria e em face da documentação junta que considerou suleita à reserva do segredo profissional, porquanto foi deferida, nos termos legais e porque lhe é reservada, tal competência à Policia Judiciária, por parte da entidade titular da acção penal e a quem incumbe a direcção do inquérito (4); 4.º) Também inexiste qualquer nulidade da decisão instrutória em virtude da alegada falta de fundamentação pois o mesmo despacho, ainda que sucinto, focou todos os factos que achou relevantes e analisou os diplomas referentes à presente situação (5); 5.º) Finalmente e quanto ao alegado erro notório na apreciação da prova por falta de indícios suficientes, apenas se dirá que não estamos em sede de julgamento, ainda que mesmo aí é possível recorrer à prova indiciária e por presunções naturais, sendo certo que para que ocorra uma pronúncia basta a existência de indícios suficientes, nos termos do que dispõem os artigos 307.º e 283.º, ambos do Código de Processo Penal (6); 3.2 A assistente Câmara de Solicitadores respondeu por fax expedido em 2012/Dez./17 a fls. 632-670, sustentando igualmente a improcedência do recurso. 4. Remetidos os autos para esta Relação e registados os mesmos em 2013/Jan./07, foram com vista ao Ministério Público que em 2013/Jan./14 a fls. 679 e verso. 5. Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, colheram-se os vistos legais, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso.*O objecto do recurso passa pela existência de meios de prova proibidos (a), por existir uma denúncia anónima (i) quebra do sigilo profissional (ii) e documentação junta sem autorização judicial (iii), nulidade da decisão de pronúncia por falta de fundamentação (b) o cometimento do crime de peculato (c).* * *II. FUNDAMENTAÇÃO a) Meios de prova proibidos A Constituição enuncia no artigo 32.º n.º 1 uma cláusula geral de garantias de defesa, ao preceituar que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, precisando no seu n.º 8 que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”. Daqui decorre, desde logo, uma diferenciação constitucional entre a absoluta interdição da tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa e a relativa interdição na intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Neste último caso a garantia constitucional de defesa no âmbito da privacidade apenas incide quando essa intrusão ou ingerência se revelarem abusivas. Evidenciando-se o sentido desta reserva constitucional à privacidade, consagra-se a inviolabilidade do domicílio e da correspondência (34.º Constituição), estatuindo-se que “O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis” (n.º1) e salientando-se que “É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal” (n.º 4). Por sua vez e no que concerne à liberdade de auto-determinação informática, consagra-se no artigo 35.º da Constituição que “Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei” (n.º 1), sendo ainda “A lei [que] define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente” (n.º 2), sendo “(É) proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei” (n.º 4) tratando-se, por isso, de um direito fundamental de nítida configuração legal. Aceitando-se que os direitos fundamentais, atento o seu efeito de irradiação, tanto vinculam as entidades públicas e privadas (18.º, n.º 1 da Constituição), surgindo os mesmos não só como direitos de incidência subjectiva, mas também como uma ordem objectiva de valores de um Estado de Direito Democrático (2.º Constituição), podemos extrair da leitura das referenciadas fontes normativas constitucionais que a par das provas absolutamente proibidas (i), que correspondem à tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, existem as provas relativamente proibidas (ii), as quais dizem respeito à intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações quando estas se revelarem abusivas. Por sua vez, o direito à privacidade e preservando-se tanto o princípio da intervenção mínima (18.º, n.º 2 Constituição) e o núcleo essencial da vida privada (18.º, n.º 3 da Constituição), como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida familiar mais restrita, cuja reserva se pretende acautelar e deixar fora do conhecimento das outras pessoas, encontra-se sujeito à configuração do legislador. E essa conformação legislativa podemo-la encontrar tanto no Código de Processo Penal, como no Código Penal ou ainda em legislação avulsa. Começando pelo Código de Processo Penal[1] podemos que este ao regulamentar a prova começa por definir o seu objecto, como sendo todos “os factos juridicamente relevantes” para a determinação ou exclusão da culpabilidade e da pena ou medida de segurança, assim como para a fixação ou não da responsabilidade civil (124.º), estabelece depois o princípio geral da legalidade da prova ao estatuir que só “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei” (125.º). Depois e na concretização do que considera como sendo prova proibida por lei, estabelece um catálogo de métodos proibidos de prova no subsequente artigo 126.º, onde se preceitua o seguinte: “1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas. 2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante: a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação; c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei; d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto; e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível. 3 – Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. 4 – Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.” Daqui decorre igualmente, na sequência da apontada diferenciação constitucional, a existência de provas que são absolutamente interditas, sendo aquelas adquiridas mediante tortura, coacção e mediante ofensa da integridade física ou moral das pessoas, e outras que são relativamente interditas, situando-se nestas as obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Mas neste último caso, aceita-se a admissibilidade dessa intromissão desde que a mesma esteja prevista na lei em geral ou então seja consentida pelo titular do respectivo direito. Por outro lado, existem ainda disposições específicas que disciplinam certos meios de prova, como sucede com a prova testemunhal (128.º e ss.), as declarações dos sujeitos processuais (140.º e ss.), a prova por reconhecimento (147.º e ss.), a reconstituição dos factos (150.º), a prova pericial (151.º e ss.), a prova documental (164.º e ss.) ou então de meios de obtenção de prova, como ocorre com os exames (171.º e ss.), as revistas e as buscas (174.º e ss.), as apreensões (178.º e ss.), incluindo de correspondência (179.º), as escutas telefónicas (187.º e ss.), estendendo-se o regime destas “às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes” (189.º). i) A denúncia anónima O Código de Processo Penal integra a denúncia, como uma das modalidades de aquisição da notícia de um crime (241.º), podendo aquela ser obrigatória (242.º) ou facultativa (244.º), estando a sua forma, conteúdo e espécie regulada no seu artigo 246.º, daí constando que a mesma não está sujeita a formalidades especiais (n.º 1), podendo ser efectuada por pessoa devidamente identificada (n.º 2) ou então ser anónima (n.º 5). Assim e como se regula neste último segmento normativo “A denúncia anónima só pode determinar a abertura de inquérito se: a) Dela se retirarem indícios da prática de crime; ou b) Constituir crime”. A denúncia corresponde assim a um mecanismo jurídico de participação de um crime ou de manifestação da vontade de perseguição criminal por quem tem capacidade para o fazer. Por sua vez, os meios de prova são os elementos de que se servem os tribunais para formar a sua convicção relativamente aos factos criminalmente relevantes (128.º-170.º), enquanto os meios de obtenção de prova são os instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher a prova (171.º-190.º). Daí que a denúncia de um crime não possa ser considerada como um meio de prova ou um meio de obtenção de prova, pois cada um destes institutos tem funcionalidades distintas e, naturalmente, sistematizações e regimes diferentes. Por isso, não tem o mínimo de fundamente considerar que uma denúncia anónima corresponde a uma prova e muito menos que esta seja ilícita e proibida.*ii) Quebra do sigilo profissional A Constituição estabelece no seu artigo 26.º, n.º 1 que “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” – sendo nosso o itálico neste normativo, assim como no seguinte. Por sua vez, o Estatuto da Câmara dos Solicitadores (ECS - Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26/Abr., com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 226/2008 de 20 de Novembro) estabelece no seu artigo 110.º, n.º 1 que “O solicitador é obrigado a segredo profissional no que respeita: a) A factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido revelados pelo cliente, por sua ordem ou comissão, ou conhecidos no exercício da profissão; b) A factos que, por virtude de cargo desempenhado na Câmara, qualquer colega ou advogado, obrigado, quanto aos mesmos factos, a segredo profissional, lhe tenha comunicado; c) A factos comunicados por co-autor, co-réu, co-interessado do cliente, pelo respectivo representante ou mandatário; d) A factos de que a parte contrária do cliente ou o respectivo representante ou mandatário lhe tenha dado conhecimento durante negociações com vista a acordo”. Desta enunciação resulta que o sigilo profissional abrangido por este artigo 110.º se centra exclusivamente em factos de outrem, seja do seu cliente ou seja de terceiros envolvidos com aquele, de que o solicitador vem a ter conhecimento através do exercício da profissão de solicitadoria. Isto significa que este direito de sigilo profissional acaba por ser uma decorrência do direito constitucional à reserva da vida privada (26.º, n.º 1 Constituição) dos clientes que solicitaram a prestação de um serviço de solicitadoria ou então de pessoas envolvidas como parceiros ou como concorrentes daquele, porquanto o que está sujeito àquele segredo não são os factos do próprio solicitador, mas sim os factos de terceiros. Daí que o dever de sigilo profissional não seja propriamente uma prerrogativa isolada do exercício de certo ofício, mas antes uma manifestação de deontologia profissional de modo a assegurar a confiança entre o respectivo profissional e o seu cliente e a preservar a reserva de privacidade desses mesmos clientes ou de outrem. E isto porque para assegurar a realização de certa actividade profissional, que no caso é o exercício de solicitadoria, certas pessoas se vêem na contingência de revelar pedaços da sua vida privada. Ora o que está em causa com os documentos juntos aos autos e com o depoimento das testemunhas que realizaram a investigação ao arguido, não são factos que dizem respeito a clientes do arguido ou de outrem relacionados com aquele, nem aquelas testemunhas lhe prestaram qualquer serviço de solicitadoria, sendo simplesmente actos pessoais do arguido em proveito próprio e aproveitando a sua qualidade de solicitador. Daí que a invocação de segredo profissional seja destituída de qualquer fundamento.*iii) Documentação junta sem autorização judicial O Código de Processo Penal ao disciplinar as apreensões estabelece no seu artigo 178.º, que: “1 - São apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova. 2 - Os objectos apreendidos são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto. 3 - As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária. 4 - Os órgãos de polícia criminal podem efectuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos no artigo 249.º, n.º 2, alínea c). 5 - As apreensões efectuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas. 6 - Os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 68.º, n.º 5. 7 - Se os objectos apreendidos forem susceptíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o. A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível”. Por isso as apreensões acabam por ser confiscos provisórios de objectos relacionados com o cometimento de um crime e efectuados contra a vontade do respectivo detentor ou então quando se desconhece quem é o mesmo. Daí que não se possa falar em apreensão naqueles casos em que o legítimo detentor de certo objecto entrega os mesmos, por sua livre iniciativa e vontade, às autoridades policiais ou judiciárias. Tratando-se de apreensões em escritório de advogado, consultório médico, estabelecimento de saúde ou em estabelecimento bancário, as mesmas estão sujeitas a um regime específico, sendo sempre presididas por um juiz (180.º, n.º 1; 177.º, n.º 3 e 4; 180.º) e nos três primeiros casos mediante comunicação prévia às respectivas ordens profissionais ou director do centro de saúde. Não são, no entanto admissíveis apreensões de documentos abrangidos pelo segredo profissional, “salvo se eles mesmo constituírem objecto ou elemento de um crime” (180.º, n.º 2) ou, se estiverem em estabelecimento bancário “quando [o juiz] tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova” (181.º, n.º 1). No caso de busca e apreensões em escritórios de solicitadores e face ao disposto no artigo 105.º do ECS, aplica-se regime idêntico ao regime específico de apreensão em escritório de advogado, ao estatuir-se o seguinte: “1 - A busca e apreensão em escritório de solicitador ou em qualquer outro local onde este faça arquivo é, sob pena de nulidade, presidida por um juiz, que avisa previamente o solicitador em causa e o presidente regional competente para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar presente. 2 - Não é permitida a apreensão de documentos abrangidos pelo segredo profissional, salvo se estes constituírem objecto ou elemento dos factos relacionados com a notificação judicial ou a investigação criminal.” Também este mesmo estatuto impõe que o procedimento disciplinar seja “de natureza secreta até ao despacho de acusação” (140.º, n.º 1). Ora a razão de ser da natureza secreta do processo disciplinar reside em benefício das diligências de averiguação, porquanto o mesmo pode ser consultado, tanto pelo participante, como pelo participado, “quando não haja inconveniente para a instrução” (140.º, n.º 2) ou então “para que estes se pronunciem” (140.º, n.º 3). Por outro lado e atenta as suas finalidades, o processo disciplinar está sempre subordinado ao processo penal, para além de que as infracções disciplinares representam uma danosidade profissional enquanto os crimes consubstanciam uma danosidade social. Ora os documentos em causa não foram apreendidos, porquanto foram entregues por livre iniciativa e vontade de quem dispunha a legítima titularidade, no caso a Câmara de Solicitadores, através dos seus investigadores disciplinares, nem se encontravam em escritório de solicitador, mas na Câmara de Solicitadores, em local seu ou de outros com a sua autorização, e muito menos estavam em causa documentos de terceiros, mas documentos do arguido que não estavam cobertos pelo exercício de solicitadoria propriamente dito. Por outro lado, a divulgação de tais documentos, ainda que cobertos pela natureza secreta do processo disciplinar, tem plena justificação em serem divulgados no âmbito de um processo penal que tenha por objecto a prática dos mesmos factos, quando estes sejam susceptíveis de integrar, para além da prática de infracções disciplinares, o cometimento de crimes.*c) Nulidade da decisão de pronúncia por falta de fundamentação O dever de fundamentar uma decisão judicial é uma decorrência, em primeiro lugar, do disposto no art. 205.º, n.º 1 da Constituição, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Trata-se de uma injunção constitucional mas de configuração legal, mediante a qual se deixa ao legislador ordinário a regulação do respectivo instituto, conferindo-lhe uma ampla margem de conformação, muito embora se deva preservar a essência da respectiva directiva constitucional. No entanto, tal dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, podendo também ser perspectivado como uma dimensão do direito a um processo equitativo, com assento no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição, mas também referenciado nos artigos 10.º da DUDH, 14.º do PIDCP, 6.º, § 1 da CEDH e 47.º, n.º 2 da CDFUE – neste último sentido se tem pronunciado o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) (Acs.TEDH de 1994/Abr./19, Van de Hurk c. Holanda; 1994/Dez./09, Hiro Balani c. Espanha; Ruiz Torija c. Espanha; 1998/Fev./19 Higgins e outros c. França; 2001/Set./27, Hirvisaari c. Finlândia; 2005/Abr./28, Albina c. Roménia). A propósito tem se considerado que o dever de fundamentação tem subjacente duas funções primordiais: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão (i), permitindo simultaneamente às partes o conhecimentos da razão de ser das mesmas (ii), conferindo-lhes a possibilidade de recurso, colocando o tribunal superior numa posição em que possa exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente (iii); b) outra, de ordem extraprocessual, de modo a tornar possível um controlo externo e geral sobre a razoabilidade da argumentação do contexto descritivo e justificativo decisório, garantindo-se a transparência do processo e da decisão (Ac.TC 55/85, 322/93, 135/99, 408/2007). Daí que o dever constitucional de motivação das decisões judiciais imponha uma obrigação de fundamentação completa, mediante uma valoração crítica e racional de todas as questões essenciais ou pertinentes que importem ser resolvidas, permitindo a transparência do processo decisório, promovendo a sua compreensão e aceitação, o que só é possível se a correspondente motivação estiver devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido (Ac. TC 401/02 e 546/98). Tal implica que, ao proferir-se uma decisão judicial, se conheçam as razões que a sustentam, de modo a se aferir se a mesma está fundada na Lei e no Direito. A motivação será assim perspectivada como um elemento de transparência democrática e de qualidade da justiça, intrínseco a todo o acto jurisdicional decisório, de forma a aferir-se da sua razoabilidade e a obstar-se a decisões arbitrárias. Saliente-se, no entanto, que essa exigência de motivação varia em função das questões que são suscitadas, tudo dependendo das circunstâncias de cada caso, designadamente da sua natureza e complexidade. A motivação das decisões deve é ser clara, expondo de modo suficiente as razões que a sustentam, respondendo às questões pertinentes e controvertidas que foram suscitadas. Mas não existe nenhuma obrigação motivadora que imponha o conhecimento de todos os argumentos expendidos pelas partes, não sendo exigível que se responda a todas as questões de uma forma minuciosa. A propósito o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), partindo do artigo 6.º, § 1 da CEDH, considera que o direito a um processo equitativo tem essencialmente subjacente dois pressupostos: o primeiro é que a motivação é essencial para a qualidade e transparência da justiça, levando o juiz a controlar os fundamentos da sua decisão, ao mesmo tempo que é um factor contra o arbítrio; o segundo é que as partes tenham conhecimento das razões que levaram à decisão, permitindo àquelas um controlo dos fundamentos desta última e eventualmente, a sua impugnação mediante recurso. Isto não significa que esse dever de motivação se estenda minuciosamente a todos os argumentos invocados, mas apenas aos que sejam considerados como pertinentes ou seja, àqueles que são susceptíveis de influenciar a tomada de decisão (Acs.TEDH de 1994/Abr./19, Van de Hurk c. Holanda; 1994/Dez./09, Hiro Balani c. Espanha, Ruiz Torija/Espanha; 1998/Fev./19, Higgins e outros c. França; 2006/Jan./31, Merigaud/França). A profundidade e o nível de motivação varia em função das questões suscitadas e das circunstâncias do caso, designadamente a sua natureza e complexidade ([Acs.TEDH de 1997/Mai./29, Georgiadis/Grécia; 1997/Jul./01, Gustafson c. Suécia; 1994/Dez./09, Hiro Balani/Espanha), não podendo revestir-se de um carácter lapidar ou tabular (Ac.TEDH de 1997/Mai./29, Georgiadis c. Grécia), impondo sempre um exame efectivo dos argumentos invocados (Ac.TEDH de 2000/Mar/21, Dulaurans c. França). A partir desta leitura da vinculação constitucional do dever de fundamentação, é necessário que existam mecanismos jurídicos infra-constitucionais, que no direito público começaram por ser designadas por garantias institucionais (Institutionelle Garantien), que implementem aquela injunção constitucional e assegurem na prática judiciária o seu exercício, o qual pode assumir matizes distintas, atenta a relevância da respectiva decisão judicial. Nesta conformidade o Código de Processo Penal começa por estabelecer no seu artigo 97.º, n.º 4 que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. No entanto e em algumas situações precisa o nível e a própria estrutura da fundamentação, como sucede com os despachos de aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial (194.º, n.º 4), da decisão instrutória de pronúncia (308.º, n.º 1 e 283.º, n.º 3) e da sentença (374.º, 375.º, 376.º), cuja inobservância conduz à nulidade da correspondente decisão (194.º, n.º 4; 283.º, n.º 3; 309.º, 379.º, n.º 1). Isto não significa que, em alguns casos, não se possa efectuar essa fundamentação mediante remissão, designadamente para os motivos da promoção do M. P. ou para outras peças processuais, desde que transpareça que o juiz procedeu a uma real e efectiva ponderação das questões suscitadas, como sucede com o decretamento ou a manutenção da prisão preventiva (Ac.TC 189/99, 396/2003) ou da decisão instrutória de pronúncia mediante remissão para a acusação pública (307.º, n.º 1). Por sua vez, no regime geral da invalidade dos actos, com destaque para o seu princípio da legalidade recepcionado no artigo 118.º, n.º 1 do Código Processo Penal, e estabelece-se que “A violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, consagrando-se nitidamente um apertado princípio da taxatividade ou de “numerus clausus” das nulidades. Daí que sejam apenas irregularidades os restantes vícios não atingidos expressamente pela nulidade, tal como decorre da regra subsidiária do n.º 2 deste artigo 118.º – aqui se alude que “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular”. Tratando-se de nulidades sanáveis e de irregularidades, as mesmas têm que ser suscitadas perante o tribunal que as cometeu (120.º, n.º 1; 123.º, n.º 1). Tal não sucede se forem nulidades insanáveis, pois estas são do conhecimento oficioso (119.º, n.º 1) ou então sendo nulidade das sentenças, podem estas ser, desde logo, fundamento imediato de recurso (397.º, n.º 2). Tais nulidades ou irregularidades são dominadas pela sua característica de relatividade – em oposição à natureza absoluta das nulidades insanáveis –, pois estão condicionadas à invocação pelo interessado (i), no correspondente prazo e adequadamente perante o tribunal que as cometeu, e à possibilidade de ficarem sanadas (ii), designadamente se for ultrapassado o correspondente prazo de arguição sem que se provoque o seu conhecimento (121.º, n.º 1, por interpretação conjugada com os artigos 120.º, n.º 1 e 123.º, n.º 1). Assim, a reparação oficiosa de uma irregularidade, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, só é possível enquanto esta não estiver sanada. Caso contrário, ou seja, admitir-se a reparação oficiosa de uma irregularidade que já tivesse sido convalidada, designadamente pelo decurso do tempo, estar-se-ia perante uma mera irregularidade que passaria a ter a natureza de uma nulidade insanável, o que, convenhamos, colidiria com a unidade e a harmonia do sistema jurídico, pois numa escala de invalidade dos actos aquele que representa uma imperfeição menor ou ligeira passaria a estar sujeito à mesma regulação e robustez destruidora daqueles vícios que apresentam um defeito ostensivo e insuperável (9.º, n.º 1 Código Civil). Aliás e sabendo que o actual Código de Processo Penal seguiu de perto as soluções que vieram a ser consagradas no sistema processual penal italiano, sendo, por isso, conhecedor do mesmo, temos como relevante para uma leitura do nosso regime dos vícios das decisões judiciais, que aquele não tenha estabelecido um preceito semelhante ao do artigo 125.º, do C. P. Penal Italiano, relativo à “Forme dei provvedimenti del giudice” que para a deficiência de motivação das decisões jurisdicionais catalogou as mesmas de nulidade – aí se preceitua que “Le sentenze e le ordinanze sono motivate, a pena di nullitá [177, 604, 606 lette]. I decreti sono motivati, a pena di nulllitá [181], nei casi in cui la motivazione é espressamente prescrita dalla legge [127, 132, 244, 247, 253, 267, 321, 409, 414]”. Ora a deficiência de fundamentação das decisões jurisdicionais, não surge sequer no catálogo das nulidades absolutas e como tal insanáveis do artigo 119.º ou no quadro das nulidades relativas do subsequente artigo 120.º, nem expressamente em qualquer disposição legal. No que concerne à decisão instrutória e só quando esta for de pronúncia é que está expressamente prevista a respectiva nulidade. Vejamos no entanto como é que a jurisprudência tem encarado os vícios da falta de fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia, reconhecendo-se desde já que a mesma não tem sido uniforme, já que a propósito se têm alinhado as seguintes posições: – a decisão instrutória deverá conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitem chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária, acarretando essa falta de descrição factual a nulidade da decisão instrutória (308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, al. b), do C. P. Penal;Ac.TRE de 2005/Mar./01 (Recurso n.º 1481/04-1)); – a omissão da descrição e especificação dos factos do requerimento instrutório que se devam considerar suficientemente indiciados ou não, constitui uma irregularidade que influi no conhecimento da causa, que pode ser conhecida oficiosamente (123.º, n.º 2 do C. P. Penal; Ac.TRG 2007/Fev./12 (Recurso n.º 2335/06-1), 2005/Jul./04 (CJ IV/300), 2004/Dez./06 (Recurso n.º 1823/04-1), 2004/Set./27 (Recurso n.º 1008/04-2), 2004/Jan./01 (Recurso n.º 293/04-1); - O despacho de não pronúncia não está sujeito às exigências de fundamentação das sentenças, estabelecidas no art. 374.º, n.º 2, mas apenas ao dever genérico previsto no art. 97.º, n.º 4, ambos do C. P. P., consistindo a falta de fundamentação numa irregularidade, sujeita ao regime geral do art. 123.º, devendo para o efeito ser atempadamente suscitada perante o juiz, sob pena de se considerar sanada (Ac.TRL de 2004/Jan./15 (CJ I/125), 2004/Out./14 (CJ IV/145), Ac.TRC de 2006/Jun./14 (Recurso n.º 823/06), Ac. TRP 2007/Set./01 (Recurso n.º 5119/07-1), 2008/Set./10 e 2011/Jan/05.[2] Tem sido este último posicionamento aquele que temos seguido, o qual se mostra mais consentâneo com a disciplina da legalidade ou validade dos actos em geral e com o regime específico da nulidade da decisão instrutória. É que se bem atentarmos neste último, apenas se quis revestir a decisão instrutória de nulidade quando esta for de pronúncia, como já referimos, e apenas em duas situações tipo expressamente tabeladas: a) quando represente uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública ou no requerimento para abertura da instrução conducente à pronúncia – excluiu-se a alteração não substancial (309.º) e aqui diverge-se da regulamentação específica da nulidade das sentenças; b) quando não se respeite o registo legal descritivo da acusação (283.º, n.º 3, mediante remissão do art. 308.º, n.º 2). A ser assim, não podemos estender o rigor descritivo da (in)validade da decisão de pronúncia ao despacho de não pronúncia, porquanto o segmento normativo do artigo 283.º, n.º 3 é privativo da regulação daquele libelo, já que o seu proémio apenas menciona que “A acusação contém, sob pena de nulidade:”, não estando o despacho de arquivamento do inquérito, como se pode constatar da previsão do artigo 277.º, sujeito à mesma rigidez narrativa. Aliás, caso se sustente essa interpretação extensiva do artigo 283.º, n.º 3 ao despacho de não pronúncia, estar-se-ia formalmente a “fugir” de um juízo crítico da prova, que aqui tem toda a pertinência em se fazer, atentas as finalidades do debate instrutório (298.º) e da própria instrução (286.º, n.º 1) pois esta visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito. No caso, o recorrente não suscitou o pretenso vício de irregularidade da decisão recorrida de não pronúncia no tribunal recorrido, pelo que, à partida, estaria aberto o caminho para se considerar sanado tal vício. Mas também não descortinamos que a decisão de pronúncia esteja insuficientemente motivada, pois são perceptíveis as razões as suas razões, tanto em sede de probatório (fls. 568, § 2.º e 4.º), como de facto (fls. 568.º, § 5) e de direito (fls. 568, § 3). É uma decisão sucinta, é certo, mas tem a virtude de ser clara e compreensiva.*c) O crime de peculato Tal ilícito encontra-se previsto no artigo 375.º, n.º 1 do Código Penal estipulando-se que “O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Acrescenta-se no seu n.º 2 que “Se os valores ou objectos referidos no número anterior forem de diminuto valor, nos termos da alínea c) do artigo 202º, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”, enquanto no n.º 3 se diz que “Se o funcionário der de empréstimo, empenhar ou, de qualquer forma, onerar valores ou objectos referidos no nº 1, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Com este tipo de ilícito tutela-se imediatamente o dever de probidade e fidelidade do funcionário, em relação aos dinheiros ou bens que lhe são confiados ou de que tem a sua disponibilidade, e, de modo mediato, a propriedade desses mesmos bens. Por sua vez, o conceito legal de funcionário encontra-se no artigo 386.º do Código Penal. A actuação típica integra, deste modo, dois momentos distintos: a posse por parte do funcionário desses bens e o abuso dessa disponibilidade, no sentido de que à detenção por parte do agente, que tem a obrigação de restituir ou apresentar a coisa recebida, segue-se a sua apropriação (n.º 1) ou a sua oneração indevida (n.º 3), invertendo-se o título de posse. No crime de peculato de uso da previsão do artigo 376.º do Código Penal, já se visa no seu n.º 1 “O funcionário que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”, acrescentando-se no seu n.º 2 que “Se o funcionário, sem que especiais razões de interesse público o justifiquem, der a dinheiro público destino para uso público diferente daquele a que está legalmente afectado, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”. Neste crime continua-se a tutelar imediatamente o dever de probidade e fidelidade do funcionário em relação aos bens que se encontram em seu poder, e de modo mediato, no caso do n.º 1, a integridade da administração pública no uso desses mesmos bens (veículos ou coisas móveis de valor apreciável) ou então, no caso do n.º 2, as precisas finalidades públicas a que se destinam os dinheiros públicos. A acção típica continua a integrar dois momentos, os quais passam pela entrega de veículos e outros bens móveis de valor apreciável (n.º 1) e de dinheiro público (n.º 2) ao funcionário e o uso indevido desses bens, no primeiro caso ou então a diversidade do fim público dos dinheiros, no segundo caso. Como se pode constatar o crime de peculato de uso de dinheiro só ocorre quando se trata de dinheiro público e a este é dado um destino público distinto. Assim, não haverá crime de peculato de uso quando se trata de dinheiro de privados confiados a funcionários ou então quando estes fazem uso de dinheiros públicos para fins privados. Nestes casos e atenta a natureza fungível do dinheiro, a desafectação de dinheiros públicos ou privados que estão na disposição do funcionário, em razão do exercício das suas funções públicas, para fins privados, seja no seu exclusivo interesse ou então no interesse de outrem, implica sempre e previamente a sua apropriação, mediante a transferência desses dinheiros para a sua titularidade ou então de outrem.*No caso em apreço, temos suficientemente indiciado, como resulta da prova documental que atesta as transferências bancárias, que o arguido, enquanto solicitador de execução, entre os meses de Janeiro a Junho de 2008, transferiu um total de € 1.500.000,00€ que se encontravam provisionados na conta-cliente, para uma sua conta pessoal referente aos seus honorários e despesas para demais encargos, fazendo com esse montante aplicações financeiras em seu nome pessoal, mediante as quais auferiu a título de juros a quantia de 37.152,13€, que fez sua, tendo, no entanto a 06 de Junho de 2008, após ser notificado que iria ser sujeito a uma fiscalização por parte da Câmara dos Solicitadores, reposto na conta cliente os referidos 1.500.000,00€. A ser assim, temos que o arguido transferiu para uma sua conta pessoal aquela quantia, passando a movimentá-la como se fosse o seu dono, quando o disposto nos artigos 4.º e 5.º do Regulamento da Conta Clientes de Solicitador de Execução (DR II, n.º 157, de 2007/Ago./16) não o permite fazê-lo – não são autorizadas movimentações a débito que não estejam relacionadas com processos judiciais pendentes –, fazendo igualmente seus os correspondentes juros quando os mesmos deveriam ser rateados pelos respectivos clientes (124.º, n.º 7 ECS). Nesta conformidade, não existe nenhuma censura a fazer à decisão de pronúncia, não existindo qualquer erro na apreciação da prova, pois esta fornece mais que indícios suficientes, e muito menos qualquer erro jurídico na qualificação jurídica da conduta do arguido.* * *III. DECISÃO Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido B..... e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida. Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) Ucs. (513.º n.º 1 e 514.º n.º 2 do C. P. P.). Notifique. Porto, 29 de Maio de 2013 Joaquim Arménio Correia Gomes Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro ___________ [1] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem. [2] Estando todos os acórdãos citados não publicados na Colectânea de Jurisprudência (CJ), acessíveis em www.dgsi.pt, tendo sido os dois últimos por nós relatados.
Recurso n.º 15847/09.4TDPRT.P1 Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunta: Paula Guerreiro Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I. RELATÓRIO 1. Na Instrução n.º 15847/09.4TDPRT do 3.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, em que são: Recorrente/Arguido: B..... Recorrido: Ministério Público Recorrido/Assistente: Câmara dos Solicitadores foi proferida decisão em 2012/Out./29, a fls. 567-569 que pronunciou o arguido pela prática, como autor material, de um crime de peculato da previsão do artigo 375.º do Código Penal ou eventualmente um crime de peculato de uso da previsão do artigo 376.º do Código Penal. 2. O arguido interpôs recurso em 2012/Nov./20 a fls. 581-618 pedindo a revogação desta decisão de pronúncia e a sua substituição por outra que não o pronuncie, concluindo nos seguintes precisos termos: 1.ª) Existe nos presentes autos prova nula, ilícita e proibida, prova essa consubstanciada nas informações contidas na denúncia “anónima” de fls. 3, bem como nos documentos a ela anexos, por franca violação do disposto no n.º 8 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 126.º do Código de Processo Penal (CPP), que deu origem aos presentes autos e que, de forma irremediável, transmite esse vício de nulidade aos actos dela dependentes – inquérito, instrução e acusação, pelo que se impõe a declaração de nulidade da mesma, bem como se verifica a existência de nexo causal, evidente, necessário e determinante entre a prova proibida e a instauração e prossecução do próprio inquérito e instrução, o qual não teria início ou prosseguido não fosse a nulidade da junção e apreciação de prova proibida (documento junto com a denúncia a fls. 4 a 6), pelo que o desvalor do acto nulo ter-se-á que comunicar aos actos posteriores, máxime ao início e prosseguimento do inquérito, a todas as diligências nele realizadas, nomeadamente a todos os actos de recolha e produção de prova, com a consequente obrigatoriedade de arquivamento dos presentes autos; 2.ª) Existe nulidade da Prova Testemunhal (ilícita e proibida), consubstanciada nas declarações da testemunha inquirida a fls. 124 a 128, por violação do disposto no n.º 6 do artigo 110.º do Estatuto (da Câmara) dos Solicitadores (ECS), alínea b) do n.º 1, do artigo 110.º do ECS, artigo 135.º, n.º 1 do CPP, 182.º do CPP, artigo 126.º do Código de Processo Penal (CPP), e artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), uma vez que a testemunha depôs sobre factos relacionados com uma fiscalização efectuada por este na qualidade de membro Secção Regional Deontológica do Norte da Câmara dos Solicitadores, sendo essa fiscalização realizada por si e mais dois Colegas, ao escritório do Arguido, não restam dúvidas de que os factos sobre que depôs, sem autorização, estão abarcados por dever de sigilo profissional porquanto tais factos foram pela testemunha conhecidos no exercício da sua profissão de solicitador e membro da Secção Regional Deontológica do Norte da Câmara dos Solicitadores, que era, pelo que a valoração de do seu depoimento está eivado de nulidade, por violação do estatuído no n.º 6 do artigo 110.º do Estatuto (da Câmara) dos Solicitadores (ECS), alínea b) do n.º 1, do artigo 110.º do ECS, artigo 135.º, n.º 1 do CPP, 182.º do CPP, artigo 126.º do Código de Processo Penal (CPP), e artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), impondo-se a declaração de nulidade de tal testemunho e a sua não valoração por violadora dos preceitos legais supra mencionados, que desde já se invoca e requer; 3.ª) A decisão instrutória é nula por vício de Nulidade da Prova resultante da junção aos autos de documentação sujeita à reserva do segredo profissional, por violação do disposto nos artigos 26.º, 32.º, n.º 2, 35.º, n.º 4 e 7, n.º 8 do artigo 32.º da CRP, 126.º, n.º 3, 182.º, 140.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro de 2008) estabelece no seu artigo 140.º a natureza secreta do processo disciplinar) e artigo 10.º do Regulamento Disciplinar da Câmara dos Solicitadores (publicado no Diário da República, II.ª série, n.º 100, de 24 de Maio de 2007), uma vez que a recolha de documentos sujeitos à reserva do segredo profissional merece tutela penal no art. 182.º do respectivo Código de Processo Penal, exigindo intervenção da autoridade judiciária, e não apenas do órgão de polícia criminal, como aconteceu nos presentes autos; 4.ª) A decisão instrutória é nula por insuficiência de fundamentação da decisão para submissão do arguido a julgamento, pelo crime de peculato, previsto e punível pelo artigo 3759 do Código Penal, ou eventualmente um crime de peculato de uso, previsto e punível pelo artigo 376.2 do Código Penal, por violação do artigo 308., n.2 2, por referência ao artigo 283., n.2 3 b) do Código de Processo Penal; 5.ª) A decisão instrutória é nula por via do erro notório da apreciação da prova constante nos autos, por insuficiência dos indícios da verificação do crime de peculato ou de peculato de uso, por violação dos artigos 277.º, n.º 2 e 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, dado que da prova documental constante dos autos não deixa persistir quaisquer dúvidas acerca do não preenchimento do tipo legal do ilícito, quer a nível objectivo, quer ao nível subjectivo do crime de peculato bem como quanto ao crime de peculato de uso; 6.ª) Foram violados os artigos 26.º, 32.º, n.º 4 e n.º 8, 35.º, n.º 4 e 7 da CRP, 126.º, n.º 3, 135.º, n.º 1, 182.º, 277.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, alínea b), 308.º, n.º 1 e 2, todos do CPP e 110.º, 140.º do ECS (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro de 2008), 10.º do Regulamento Disciplinar da Câmara dos Solicitadores (publicado no Diário da República, II.ª série, n.º 100, de 24 de Maio de 2007). 3.1 O Ministério Público respondeu a fls. 621-630 pugnando pela improcedência do recurso, sustentando, em suma, que: 1.º) A denuncia anónima é legalmente permitida desde que dela se retirem indícios da prática de crime ou de constituir crime nos termos do que dispõe o artigo 246.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, porquanto os métodos de proibidos de prova encontram-se enunciados no art.126.º do CPP nos seus n.º 1 e 2. onde se encontram previstas aquelas total ou apenas relativamente proibidas, não se integrando a nossa situação em nenhuma delas (2); 2.º) Quanto à alegada utilização de prova ilegal sobre a invocada nulidade da prova testemunhal que disse ilícita e proibida por ser consubstanciada nas declarações da testemunha que depôs sobre factos relacionados com uma fiscalização enquanto membro da Câmara dos Solicitadores, não se revela qualquer violação ao segredo profissional, porquanto essa situação não integra qualquer uma das situações do artigo 135° do CPP, a qual não foi invocada pelo próprio, por não existir colisão de deveres, ou a existência de alguma quebra de confiança entre prestador de serviço e cliente, por não se tratar de um desses casos (3); 3.º) Tal como aconteceu com a invocada nulidade da prova por ter sido investigada pela polícia e não pela autoridade judiciaria e em face da documentação junta que considerou suleita à reserva do segredo profissional, porquanto foi deferida, nos termos legais e porque lhe é reservada, tal competência à Policia Judiciária, por parte da entidade titular da acção penal e a quem incumbe a direcção do inquérito (4); 4.º) Também inexiste qualquer nulidade da decisão instrutória em virtude da alegada falta de fundamentação pois o mesmo despacho, ainda que sucinto, focou todos os factos que achou relevantes e analisou os diplomas referentes à presente situação (5); 5.º) Finalmente e quanto ao alegado erro notório na apreciação da prova por falta de indícios suficientes, apenas se dirá que não estamos em sede de julgamento, ainda que mesmo aí é possível recorrer à prova indiciária e por presunções naturais, sendo certo que para que ocorra uma pronúncia basta a existência de indícios suficientes, nos termos do que dispõem os artigos 307.º e 283.º, ambos do Código de Processo Penal (6); 3.2 A assistente Câmara de Solicitadores respondeu por fax expedido em 2012/Dez./17 a fls. 632-670, sustentando igualmente a improcedência do recurso. 4. Remetidos os autos para esta Relação e registados os mesmos em 2013/Jan./07, foram com vista ao Ministério Público que em 2013/Jan./14 a fls. 679 e verso. 5. Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, colheram-se os vistos legais, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso.*O objecto do recurso passa pela existência de meios de prova proibidos (a), por existir uma denúncia anónima (i) quebra do sigilo profissional (ii) e documentação junta sem autorização judicial (iii), nulidade da decisão de pronúncia por falta de fundamentação (b) o cometimento do crime de peculato (c).* * *II. FUNDAMENTAÇÃO a) Meios de prova proibidos A Constituição enuncia no artigo 32.º n.º 1 uma cláusula geral de garantias de defesa, ao preceituar que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, precisando no seu n.º 8 que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”. Daqui decorre, desde logo, uma diferenciação constitucional entre a absoluta interdição da tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa e a relativa interdição na intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Neste último caso a garantia constitucional de defesa no âmbito da privacidade apenas incide quando essa intrusão ou ingerência se revelarem abusivas. Evidenciando-se o sentido desta reserva constitucional à privacidade, consagra-se a inviolabilidade do domicílio e da correspondência (34.º Constituição), estatuindo-se que “O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis” (n.º1) e salientando-se que “É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal” (n.º 4). Por sua vez e no que concerne à liberdade de auto-determinação informática, consagra-se no artigo 35.º da Constituição que “Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei” (n.º 1), sendo ainda “A lei [que] define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente” (n.º 2), sendo “(É) proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei” (n.º 4) tratando-se, por isso, de um direito fundamental de nítida configuração legal. Aceitando-se que os direitos fundamentais, atento o seu efeito de irradiação, tanto vinculam as entidades públicas e privadas (18.º, n.º 1 da Constituição), surgindo os mesmos não só como direitos de incidência subjectiva, mas também como uma ordem objectiva de valores de um Estado de Direito Democrático (2.º Constituição), podemos extrair da leitura das referenciadas fontes normativas constitucionais que a par das provas absolutamente proibidas (i), que correspondem à tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, existem as provas relativamente proibidas (ii), as quais dizem respeito à intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações quando estas se revelarem abusivas. Por sua vez, o direito à privacidade e preservando-se tanto o princípio da intervenção mínima (18.º, n.º 2 Constituição) e o núcleo essencial da vida privada (18.º, n.º 3 da Constituição), como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida familiar mais restrita, cuja reserva se pretende acautelar e deixar fora do conhecimento das outras pessoas, encontra-se sujeito à configuração do legislador. E essa conformação legislativa podemo-la encontrar tanto no Código de Processo Penal, como no Código Penal ou ainda em legislação avulsa. Começando pelo Código de Processo Penal[1] podemos que este ao regulamentar a prova começa por definir o seu objecto, como sendo todos “os factos juridicamente relevantes” para a determinação ou exclusão da culpabilidade e da pena ou medida de segurança, assim como para a fixação ou não da responsabilidade civil (124.º), estabelece depois o princípio geral da legalidade da prova ao estatuir que só “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei” (125.º). Depois e na concretização do que considera como sendo prova proibida por lei, estabelece um catálogo de métodos proibidos de prova no subsequente artigo 126.º, onde se preceitua o seguinte: “1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas. 2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante: a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação; c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei; d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto; e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível. 3 – Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. 4 – Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.” Daqui decorre igualmente, na sequência da apontada diferenciação constitucional, a existência de provas que são absolutamente interditas, sendo aquelas adquiridas mediante tortura, coacção e mediante ofensa da integridade física ou moral das pessoas, e outras que são relativamente interditas, situando-se nestas as obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Mas neste último caso, aceita-se a admissibilidade dessa intromissão desde que a mesma esteja prevista na lei em geral ou então seja consentida pelo titular do respectivo direito. Por outro lado, existem ainda disposições específicas que disciplinam certos meios de prova, como sucede com a prova testemunhal (128.º e ss.), as declarações dos sujeitos processuais (140.º e ss.), a prova por reconhecimento (147.º e ss.), a reconstituição dos factos (150.º), a prova pericial (151.º e ss.), a prova documental (164.º e ss.) ou então de meios de obtenção de prova, como ocorre com os exames (171.º e ss.), as revistas e as buscas (174.º e ss.), as apreensões (178.º e ss.), incluindo de correspondência (179.º), as escutas telefónicas (187.º e ss.), estendendo-se o regime destas “às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes” (189.º). i) A denúncia anónima O Código de Processo Penal integra a denúncia, como uma das modalidades de aquisição da notícia de um crime (241.º), podendo aquela ser obrigatória (242.º) ou facultativa (244.º), estando a sua forma, conteúdo e espécie regulada no seu artigo 246.º, daí constando que a mesma não está sujeita a formalidades especiais (n.º 1), podendo ser efectuada por pessoa devidamente identificada (n.º 2) ou então ser anónima (n.º 5). Assim e como se regula neste último segmento normativo “A denúncia anónima só pode determinar a abertura de inquérito se: a) Dela se retirarem indícios da prática de crime; ou b) Constituir crime”. A denúncia corresponde assim a um mecanismo jurídico de participação de um crime ou de manifestação da vontade de perseguição criminal por quem tem capacidade para o fazer. Por sua vez, os meios de prova são os elementos de que se servem os tribunais para formar a sua convicção relativamente aos factos criminalmente relevantes (128.º-170.º), enquanto os meios de obtenção de prova são os instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher a prova (171.º-190.º). Daí que a denúncia de um crime não possa ser considerada como um meio de prova ou um meio de obtenção de prova, pois cada um destes institutos tem funcionalidades distintas e, naturalmente, sistematizações e regimes diferentes. Por isso, não tem o mínimo de fundamente considerar que uma denúncia anónima corresponde a uma prova e muito menos que esta seja ilícita e proibida.*ii) Quebra do sigilo profissional A Constituição estabelece no seu artigo 26.º, n.º 1 que “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” – sendo nosso o itálico neste normativo, assim como no seguinte. Por sua vez, o Estatuto da Câmara dos Solicitadores (ECS - Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26/Abr., com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 226/2008 de 20 de Novembro) estabelece no seu artigo 110.º, n.º 1 que “O solicitador é obrigado a segredo profissional no que respeita: a) A factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido revelados pelo cliente, por sua ordem ou comissão, ou conhecidos no exercício da profissão; b) A factos que, por virtude de cargo desempenhado na Câmara, qualquer colega ou advogado, obrigado, quanto aos mesmos factos, a segredo profissional, lhe tenha comunicado; c) A factos comunicados por co-autor, co-réu, co-interessado do cliente, pelo respectivo representante ou mandatário; d) A factos de que a parte contrária do cliente ou o respectivo representante ou mandatário lhe tenha dado conhecimento durante negociações com vista a acordo”. Desta enunciação resulta que o sigilo profissional abrangido por este artigo 110.º se centra exclusivamente em factos de outrem, seja do seu cliente ou seja de terceiros envolvidos com aquele, de que o solicitador vem a ter conhecimento através do exercício da profissão de solicitadoria. Isto significa que este direito de sigilo profissional acaba por ser uma decorrência do direito constitucional à reserva da vida privada (26.º, n.º 1 Constituição) dos clientes que solicitaram a prestação de um serviço de solicitadoria ou então de pessoas envolvidas como parceiros ou como concorrentes daquele, porquanto o que está sujeito àquele segredo não são os factos do próprio solicitador, mas sim os factos de terceiros. Daí que o dever de sigilo profissional não seja propriamente uma prerrogativa isolada do exercício de certo ofício, mas antes uma manifestação de deontologia profissional de modo a assegurar a confiança entre o respectivo profissional e o seu cliente e a preservar a reserva de privacidade desses mesmos clientes ou de outrem. E isto porque para assegurar a realização de certa actividade profissional, que no caso é o exercício de solicitadoria, certas pessoas se vêem na contingência de revelar pedaços da sua vida privada. Ora o que está em causa com os documentos juntos aos autos e com o depoimento das testemunhas que realizaram a investigação ao arguido, não são factos que dizem respeito a clientes do arguido ou de outrem relacionados com aquele, nem aquelas testemunhas lhe prestaram qualquer serviço de solicitadoria, sendo simplesmente actos pessoais do arguido em proveito próprio e aproveitando a sua qualidade de solicitador. Daí que a invocação de segredo profissional seja destituída de qualquer fundamento.*iii) Documentação junta sem autorização judicial O Código de Processo Penal ao disciplinar as apreensões estabelece no seu artigo 178.º, que: “1 - São apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova. 2 - Os objectos apreendidos são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto. 3 - As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária. 4 - Os órgãos de polícia criminal podem efectuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos no artigo 249.º, n.º 2, alínea c). 5 - As apreensões efectuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas. 6 - Os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 68.º, n.º 5. 7 - Se os objectos apreendidos forem susceptíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o. A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível”. Por isso as apreensões acabam por ser confiscos provisórios de objectos relacionados com o cometimento de um crime e efectuados contra a vontade do respectivo detentor ou então quando se desconhece quem é o mesmo. Daí que não se possa falar em apreensão naqueles casos em que o legítimo detentor de certo objecto entrega os mesmos, por sua livre iniciativa e vontade, às autoridades policiais ou judiciárias. Tratando-se de apreensões em escritório de advogado, consultório médico, estabelecimento de saúde ou em estabelecimento bancário, as mesmas estão sujeitas a um regime específico, sendo sempre presididas por um juiz (180.º, n.º 1; 177.º, n.º 3 e 4; 180.º) e nos três primeiros casos mediante comunicação prévia às respectivas ordens profissionais ou director do centro de saúde. Não são, no entanto admissíveis apreensões de documentos abrangidos pelo segredo profissional, “salvo se eles mesmo constituírem objecto ou elemento de um crime” (180.º, n.º 2) ou, se estiverem em estabelecimento bancário “quando [o juiz] tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova” (181.º, n.º 1). No caso de busca e apreensões em escritórios de solicitadores e face ao disposto no artigo 105.º do ECS, aplica-se regime idêntico ao regime específico de apreensão em escritório de advogado, ao estatuir-se o seguinte: “1 - A busca e apreensão em escritório de solicitador ou em qualquer outro local onde este faça arquivo é, sob pena de nulidade, presidida por um juiz, que avisa previamente o solicitador em causa e o presidente regional competente para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar presente. 2 - Não é permitida a apreensão de documentos abrangidos pelo segredo profissional, salvo se estes constituírem objecto ou elemento dos factos relacionados com a notificação judicial ou a investigação criminal.” Também este mesmo estatuto impõe que o procedimento disciplinar seja “de natureza secreta até ao despacho de acusação” (140.º, n.º 1). Ora a razão de ser da natureza secreta do processo disciplinar reside em benefício das diligências de averiguação, porquanto o mesmo pode ser consultado, tanto pelo participante, como pelo participado, “quando não haja inconveniente para a instrução” (140.º, n.º 2) ou então “para que estes se pronunciem” (140.º, n.º 3). Por outro lado e atenta as suas finalidades, o processo disciplinar está sempre subordinado ao processo penal, para além de que as infracções disciplinares representam uma danosidade profissional enquanto os crimes consubstanciam uma danosidade social. Ora os documentos em causa não foram apreendidos, porquanto foram entregues por livre iniciativa e vontade de quem dispunha a legítima titularidade, no caso a Câmara de Solicitadores, através dos seus investigadores disciplinares, nem se encontravam em escritório de solicitador, mas na Câmara de Solicitadores, em local seu ou de outros com a sua autorização, e muito menos estavam em causa documentos de terceiros, mas documentos do arguido que não estavam cobertos pelo exercício de solicitadoria propriamente dito. Por outro lado, a divulgação de tais documentos, ainda que cobertos pela natureza secreta do processo disciplinar, tem plena justificação em serem divulgados no âmbito de um processo penal que tenha por objecto a prática dos mesmos factos, quando estes sejam susceptíveis de integrar, para além da prática de infracções disciplinares, o cometimento de crimes.*c) Nulidade da decisão de pronúncia por falta de fundamentação O dever de fundamentar uma decisão judicial é uma decorrência, em primeiro lugar, do disposto no art. 205.º, n.º 1 da Constituição, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Trata-se de uma injunção constitucional mas de configuração legal, mediante a qual se deixa ao legislador ordinário a regulação do respectivo instituto, conferindo-lhe uma ampla margem de conformação, muito embora se deva preservar a essência da respectiva directiva constitucional. No entanto, tal dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, podendo também ser perspectivado como uma dimensão do direito a um processo equitativo, com assento no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição, mas também referenciado nos artigos 10.º da DUDH, 14.º do PIDCP, 6.º, § 1 da CEDH e 47.º, n.º 2 da CDFUE – neste último sentido se tem pronunciado o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) (Acs.TEDH de 1994/Abr./19, Van de Hurk c. Holanda; 1994/Dez./09, Hiro Balani c. Espanha; Ruiz Torija c. Espanha; 1998/Fev./19 Higgins e outros c. França; 2001/Set./27, Hirvisaari c. Finlândia; 2005/Abr./28, Albina c. Roménia). A propósito tem se considerado que o dever de fundamentação tem subjacente duas funções primordiais: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão (i), permitindo simultaneamente às partes o conhecimentos da razão de ser das mesmas (ii), conferindo-lhes a possibilidade de recurso, colocando o tribunal superior numa posição em que possa exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente (iii); b) outra, de ordem extraprocessual, de modo a tornar possível um controlo externo e geral sobre a razoabilidade da argumentação do contexto descritivo e justificativo decisório, garantindo-se a transparência do processo e da decisão (Ac.TC 55/85, 322/93, 135/99, 408/2007). Daí que o dever constitucional de motivação das decisões judiciais imponha uma obrigação de fundamentação completa, mediante uma valoração crítica e racional de todas as questões essenciais ou pertinentes que importem ser resolvidas, permitindo a transparência do processo decisório, promovendo a sua compreensão e aceitação, o que só é possível se a correspondente motivação estiver devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido (Ac. TC 401/02 e 546/98). Tal implica que, ao proferir-se uma decisão judicial, se conheçam as razões que a sustentam, de modo a se aferir se a mesma está fundada na Lei e no Direito. A motivação será assim perspectivada como um elemento de transparência democrática e de qualidade da justiça, intrínseco a todo o acto jurisdicional decisório, de forma a aferir-se da sua razoabilidade e a obstar-se a decisões arbitrárias. Saliente-se, no entanto, que essa exigência de motivação varia em função das questões que são suscitadas, tudo dependendo das circunstâncias de cada caso, designadamente da sua natureza e complexidade. A motivação das decisões deve é ser clara, expondo de modo suficiente as razões que a sustentam, respondendo às questões pertinentes e controvertidas que foram suscitadas. Mas não existe nenhuma obrigação motivadora que imponha o conhecimento de todos os argumentos expendidos pelas partes, não sendo exigível que se responda a todas as questões de uma forma minuciosa. A propósito o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), partindo do artigo 6.º, § 1 da CEDH, considera que o direito a um processo equitativo tem essencialmente subjacente dois pressupostos: o primeiro é que a motivação é essencial para a qualidade e transparência da justiça, levando o juiz a controlar os fundamentos da sua decisão, ao mesmo tempo que é um factor contra o arbítrio; o segundo é que as partes tenham conhecimento das razões que levaram à decisão, permitindo àquelas um controlo dos fundamentos desta última e eventualmente, a sua impugnação mediante recurso. Isto não significa que esse dever de motivação se estenda minuciosamente a todos os argumentos invocados, mas apenas aos que sejam considerados como pertinentes ou seja, àqueles que são susceptíveis de influenciar a tomada de decisão (Acs.TEDH de 1994/Abr./19, Van de Hurk c. Holanda; 1994/Dez./09, Hiro Balani c. Espanha, Ruiz Torija/Espanha; 1998/Fev./19, Higgins e outros c. França; 2006/Jan./31, Merigaud/França). A profundidade e o nível de motivação varia em função das questões suscitadas e das circunstâncias do caso, designadamente a sua natureza e complexidade ([Acs.TEDH de 1997/Mai./29, Georgiadis/Grécia; 1997/Jul./01, Gustafson c. Suécia; 1994/Dez./09, Hiro Balani/Espanha), não podendo revestir-se de um carácter lapidar ou tabular (Ac.TEDH de 1997/Mai./29, Georgiadis c. Grécia), impondo sempre um exame efectivo dos argumentos invocados (Ac.TEDH de 2000/Mar/21, Dulaurans c. França). A partir desta leitura da vinculação constitucional do dever de fundamentação, é necessário que existam mecanismos jurídicos infra-constitucionais, que no direito público começaram por ser designadas por garantias institucionais (Institutionelle Garantien), que implementem aquela injunção constitucional e assegurem na prática judiciária o seu exercício, o qual pode assumir matizes distintas, atenta a relevância da respectiva decisão judicial. Nesta conformidade o Código de Processo Penal começa por estabelecer no seu artigo 97.º, n.º 4 que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. No entanto e em algumas situações precisa o nível e a própria estrutura da fundamentação, como sucede com os despachos de aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial (194.º, n.º 4), da decisão instrutória de pronúncia (308.º, n.º 1 e 283.º, n.º 3) e da sentença (374.º, 375.º, 376.º), cuja inobservância conduz à nulidade da correspondente decisão (194.º, n.º 4; 283.º, n.º 3; 309.º, 379.º, n.º 1). Isto não significa que, em alguns casos, não se possa efectuar essa fundamentação mediante remissão, designadamente para os motivos da promoção do M. P. ou para outras peças processuais, desde que transpareça que o juiz procedeu a uma real e efectiva ponderação das questões suscitadas, como sucede com o decretamento ou a manutenção da prisão preventiva (Ac.TC 189/99, 396/2003) ou da decisão instrutória de pronúncia mediante remissão para a acusação pública (307.º, n.º 1). Por sua vez, no regime geral da invalidade dos actos, com destaque para o seu princípio da legalidade recepcionado no artigo 118.º, n.º 1 do Código Processo Penal, e estabelece-se que “A violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, consagrando-se nitidamente um apertado princípio da taxatividade ou de “numerus clausus” das nulidades. Daí que sejam apenas irregularidades os restantes vícios não atingidos expressamente pela nulidade, tal como decorre da regra subsidiária do n.º 2 deste artigo 118.º – aqui se alude que “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular”. Tratando-se de nulidades sanáveis e de irregularidades, as mesmas têm que ser suscitadas perante o tribunal que as cometeu (120.º, n.º 1; 123.º, n.º 1). Tal não sucede se forem nulidades insanáveis, pois estas são do conhecimento oficioso (119.º, n.º 1) ou então sendo nulidade das sentenças, podem estas ser, desde logo, fundamento imediato de recurso (397.º, n.º 2). Tais nulidades ou irregularidades são dominadas pela sua característica de relatividade – em oposição à natureza absoluta das nulidades insanáveis –, pois estão condicionadas à invocação pelo interessado (i), no correspondente prazo e adequadamente perante o tribunal que as cometeu, e à possibilidade de ficarem sanadas (ii), designadamente se for ultrapassado o correspondente prazo de arguição sem que se provoque o seu conhecimento (121.º, n.º 1, por interpretação conjugada com os artigos 120.º, n.º 1 e 123.º, n.º 1). Assim, a reparação oficiosa de uma irregularidade, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, só é possível enquanto esta não estiver sanada. Caso contrário, ou seja, admitir-se a reparação oficiosa de uma irregularidade que já tivesse sido convalidada, designadamente pelo decurso do tempo, estar-se-ia perante uma mera irregularidade que passaria a ter a natureza de uma nulidade insanável, o que, convenhamos, colidiria com a unidade e a harmonia do sistema jurídico, pois numa escala de invalidade dos actos aquele que representa uma imperfeição menor ou ligeira passaria a estar sujeito à mesma regulação e robustez destruidora daqueles vícios que apresentam um defeito ostensivo e insuperável (9.º, n.º 1 Código Civil). Aliás e sabendo que o actual Código de Processo Penal seguiu de perto as soluções que vieram a ser consagradas no sistema processual penal italiano, sendo, por isso, conhecedor do mesmo, temos como relevante para uma leitura do nosso regime dos vícios das decisões judiciais, que aquele não tenha estabelecido um preceito semelhante ao do artigo 125.º, do C. P. Penal Italiano, relativo à “Forme dei provvedimenti del giudice” que para a deficiência de motivação das decisões jurisdicionais catalogou as mesmas de nulidade – aí se preceitua que “Le sentenze e le ordinanze sono motivate, a pena di nullitá [177, 604, 606 lette]. I decreti sono motivati, a pena di nulllitá [181], nei casi in cui la motivazione é espressamente prescrita dalla legge [127, 132, 244, 247, 253, 267, 321, 409, 414]”. Ora a deficiência de fundamentação das decisões jurisdicionais, não surge sequer no catálogo das nulidades absolutas e como tal insanáveis do artigo 119.º ou no quadro das nulidades relativas do subsequente artigo 120.º, nem expressamente em qualquer disposição legal. No que concerne à decisão instrutória e só quando esta for de pronúncia é que está expressamente prevista a respectiva nulidade. Vejamos no entanto como é que a jurisprudência tem encarado os vícios da falta de fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia, reconhecendo-se desde já que a mesma não tem sido uniforme, já que a propósito se têm alinhado as seguintes posições: – a decisão instrutória deverá conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitem chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária, acarretando essa falta de descrição factual a nulidade da decisão instrutória (308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, al. b), do C. P. Penal;Ac.TRE de 2005/Mar./01 (Recurso n.º 1481/04-1)); – a omissão da descrição e especificação dos factos do requerimento instrutório que se devam considerar suficientemente indiciados ou não, constitui uma irregularidade que influi no conhecimento da causa, que pode ser conhecida oficiosamente (123.º, n.º 2 do C. P. Penal; Ac.TRG 2007/Fev./12 (Recurso n.º 2335/06-1), 2005/Jul./04 (CJ IV/300), 2004/Dez./06 (Recurso n.º 1823/04-1), 2004/Set./27 (Recurso n.º 1008/04-2), 2004/Jan./01 (Recurso n.º 293/04-1); - O despacho de não pronúncia não está sujeito às exigências de fundamentação das sentenças, estabelecidas no art. 374.º, n.º 2, mas apenas ao dever genérico previsto no art. 97.º, n.º 4, ambos do C. P. P., consistindo a falta de fundamentação numa irregularidade, sujeita ao regime geral do art. 123.º, devendo para o efeito ser atempadamente suscitada perante o juiz, sob pena de se considerar sanada (Ac.TRL de 2004/Jan./15 (CJ I/125), 2004/Out./14 (CJ IV/145), Ac.TRC de 2006/Jun./14 (Recurso n.º 823/06), Ac. TRP 2007/Set./01 (Recurso n.º 5119/07-1), 2008/Set./10 e 2011/Jan/05.[2] Tem sido este último posicionamento aquele que temos seguido, o qual se mostra mais consentâneo com a disciplina da legalidade ou validade dos actos em geral e com o regime específico da nulidade da decisão instrutória. É que se bem atentarmos neste último, apenas se quis revestir a decisão instrutória de nulidade quando esta for de pronúncia, como já referimos, e apenas em duas situações tipo expressamente tabeladas: a) quando represente uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública ou no requerimento para abertura da instrução conducente à pronúncia – excluiu-se a alteração não substancial (309.º) e aqui diverge-se da regulamentação específica da nulidade das sentenças; b) quando não se respeite o registo legal descritivo da acusação (283.º, n.º 3, mediante remissão do art. 308.º, n.º 2). A ser assim, não podemos estender o rigor descritivo da (in)validade da decisão de pronúncia ao despacho de não pronúncia, porquanto o segmento normativo do artigo 283.º, n.º 3 é privativo da regulação daquele libelo, já que o seu proémio apenas menciona que “A acusação contém, sob pena de nulidade:”, não estando o despacho de arquivamento do inquérito, como se pode constatar da previsão do artigo 277.º, sujeito à mesma rigidez narrativa. Aliás, caso se sustente essa interpretação extensiva do artigo 283.º, n.º 3 ao despacho de não pronúncia, estar-se-ia formalmente a “fugir” de um juízo crítico da prova, que aqui tem toda a pertinência em se fazer, atentas as finalidades do debate instrutório (298.º) e da própria instrução (286.º, n.º 1) pois esta visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito. No caso, o recorrente não suscitou o pretenso vício de irregularidade da decisão recorrida de não pronúncia no tribunal recorrido, pelo que, à partida, estaria aberto o caminho para se considerar sanado tal vício. Mas também não descortinamos que a decisão de pronúncia esteja insuficientemente motivada, pois são perceptíveis as razões as suas razões, tanto em sede de probatório (fls. 568, § 2.º e 4.º), como de facto (fls. 568.º, § 5) e de direito (fls. 568, § 3). É uma decisão sucinta, é certo, mas tem a virtude de ser clara e compreensiva.*c) O crime de peculato Tal ilícito encontra-se previsto no artigo 375.º, n.º 1 do Código Penal estipulando-se que “O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Acrescenta-se no seu n.º 2 que “Se os valores ou objectos referidos no número anterior forem de diminuto valor, nos termos da alínea c) do artigo 202º, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”, enquanto no n.º 3 se diz que “Se o funcionário der de empréstimo, empenhar ou, de qualquer forma, onerar valores ou objectos referidos no nº 1, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Com este tipo de ilícito tutela-se imediatamente o dever de probidade e fidelidade do funcionário, em relação aos dinheiros ou bens que lhe são confiados ou de que tem a sua disponibilidade, e, de modo mediato, a propriedade desses mesmos bens. Por sua vez, o conceito legal de funcionário encontra-se no artigo 386.º do Código Penal. A actuação típica integra, deste modo, dois momentos distintos: a posse por parte do funcionário desses bens e o abuso dessa disponibilidade, no sentido de que à detenção por parte do agente, que tem a obrigação de restituir ou apresentar a coisa recebida, segue-se a sua apropriação (n.º 1) ou a sua oneração indevida (n.º 3), invertendo-se o título de posse. No crime de peculato de uso da previsão do artigo 376.º do Código Penal, já se visa no seu n.º 1 “O funcionário que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”, acrescentando-se no seu n.º 2 que “Se o funcionário, sem que especiais razões de interesse público o justifiquem, der a dinheiro público destino para uso público diferente daquele a que está legalmente afectado, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”. Neste crime continua-se a tutelar imediatamente o dever de probidade e fidelidade do funcionário em relação aos bens que se encontram em seu poder, e de modo mediato, no caso do n.º 1, a integridade da administração pública no uso desses mesmos bens (veículos ou coisas móveis de valor apreciável) ou então, no caso do n.º 2, as precisas finalidades públicas a que se destinam os dinheiros públicos. A acção típica continua a integrar dois momentos, os quais passam pela entrega de veículos e outros bens móveis de valor apreciável (n.º 1) e de dinheiro público (n.º 2) ao funcionário e o uso indevido desses bens, no primeiro caso ou então a diversidade do fim público dos dinheiros, no segundo caso. Como se pode constatar o crime de peculato de uso de dinheiro só ocorre quando se trata de dinheiro público e a este é dado um destino público distinto. Assim, não haverá crime de peculato de uso quando se trata de dinheiro de privados confiados a funcionários ou então quando estes fazem uso de dinheiros públicos para fins privados. Nestes casos e atenta a natureza fungível do dinheiro, a desafectação de dinheiros públicos ou privados que estão na disposição do funcionário, em razão do exercício das suas funções públicas, para fins privados, seja no seu exclusivo interesse ou então no interesse de outrem, implica sempre e previamente a sua apropriação, mediante a transferência desses dinheiros para a sua titularidade ou então de outrem.*No caso em apreço, temos suficientemente indiciado, como resulta da prova documental que atesta as transferências bancárias, que o arguido, enquanto solicitador de execução, entre os meses de Janeiro a Junho de 2008, transferiu um total de € 1.500.000,00€ que se encontravam provisionados na conta-cliente, para uma sua conta pessoal referente aos seus honorários e despesas para demais encargos, fazendo com esse montante aplicações financeiras em seu nome pessoal, mediante as quais auferiu a título de juros a quantia de 37.152,13€, que fez sua, tendo, no entanto a 06 de Junho de 2008, após ser notificado que iria ser sujeito a uma fiscalização por parte da Câmara dos Solicitadores, reposto na conta cliente os referidos 1.500.000,00€. A ser assim, temos que o arguido transferiu para uma sua conta pessoal aquela quantia, passando a movimentá-la como se fosse o seu dono, quando o disposto nos artigos 4.º e 5.º do Regulamento da Conta Clientes de Solicitador de Execução (DR II, n.º 157, de 2007/Ago./16) não o permite fazê-lo – não são autorizadas movimentações a débito que não estejam relacionadas com processos judiciais pendentes –, fazendo igualmente seus os correspondentes juros quando os mesmos deveriam ser rateados pelos respectivos clientes (124.º, n.º 7 ECS). Nesta conformidade, não existe nenhuma censura a fazer à decisão de pronúncia, não existindo qualquer erro na apreciação da prova, pois esta fornece mais que indícios suficientes, e muito menos qualquer erro jurídico na qualificação jurídica da conduta do arguido.* * *III. DECISÃO Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido B..... e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida. Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) Ucs. (513.º n.º 1 e 514.º n.º 2 do C. P. P.). Notifique. Porto, 29 de Maio de 2013 Joaquim Arménio Correia Gomes Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro ___________ [1] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem. [2] Estando todos os acórdãos citados não publicados na Colectânea de Jurisprudência (CJ), acessíveis em www.dgsi.pt, tendo sido os dois últimos por nós relatados.