I - A parte que pretenda impugnar validamente a decisão da matéria de facto não pode limitar-se a fazer uma súmula de apenas alguns dos depoimentos prestados na audiência final e depois concluir, sem mais, que com base neles se devem alterar determinados pontos factuais. II - O adquirente de coisa defeituosa, quando assuma a qualidade de consumidor, beneficia especialmente da proteção que lhe é conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31/7, alterada pelo DL n.º 67/2003, de 8 de abril e pela Lei n.º 47/2014, de 28/7) e bem assim pelo regime instituído pelo DL n.º 67/2003, de 8 de abril. III - No que especialmente tange aos direitos do consumidor em caso de falta de conformidade da coisa que lhe foi entregue, o DL nº 67/2003, de 8.04 consagra no seu artigo 4º um conjunto de garantias edilícias que passam pelo direito de reparação ou substituição da coisa, redução do preço ou resolução do contrato, e isto independentemente de culpa do vendedor no cumprimento inexacto da obrigação de entregar o bem devido. IV - Não decorre desse artigo 4º qualquer hierarquia entre os direitos nele conferidas ao comprador/consumidor em consequência da desconformidade do bem com o contrato, podendo este exercer qualquer um desses remédios, mormente a resolução, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais. V - A essa luz, o comprador de veículo automóvel usado tem direito a resolver o contrato de compra e venda se a quilometragem apresentada pelo stand vendedor era de cerca de 190.000 Kms. quando na realidade já tinha uma quilometragem superior a 500.000 Kms.
Processo nº 30/17.3T8PRD.P1 Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Paredes – Juízo Local Cível, Juiz 1 Relator: Miguel Baldaia Morais 1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra 2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha*Sumário ……………………………… ……………………………… ………………………………*Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I- RELATÓRIO B… intentou a presente ação declarativa com processo comum contra C…, Ldª, pedindo que: (i) se decrete a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre as partes e que teve por objecto o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-SA e consequentemente; (ii) se condene a ré a restituir-lhe o preço da compra no montante de 13.000,00€ (treze mil euros), acrescido dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; (iii) ou quando assim se não entenda, deve o negócio ser anulado por erro, sendo a ré condenada a restituir-lhe a quantia de 13.000,00€ (treze mil euros), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; (iv) mais devendo a ré ser condenada a restituir-lhe o valor de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros) que liquidou à oficina de reparação. Para substanciar tais pretensões alegou ter celebrado contrato de compra e venda com a ré que teve por objecto mediato o identificado veículo automóvel, em estado de usado, tendo procedido ao pagamento do preço acordado no montante de € 13.000,00. Acrescenta que aquando da celebração do contrato, aparentemente e externamente o veículo encontrava-se em regular estado, tendo a ré garantido que o mesmo estava em boas condições de funcionamento e os seus órgãos essenciais, nomeadamente o motor, se encontravam impecáveis. Alegou ainda que algum tempo após a aquisição da viatura notou que a mesma era portadora de diversas anomalias, designadamente que o motor se desligava sozinho, assim como a caixa de velocidades automática começou a descontrolar-se e a engrenar a 3ª velocidade em vez de primeira e vice-versa, tendo ainda verificado que a quilometragem foi adulterada dos reais 497.063 para os fictícios 150.914. Refere ter-se sentido enganado e defraudado nas suas expectativas, pois que os Kms. que a viatura marcava no conta-quilómetros, bem como a garantia dada pela ré quanto à sua qualidade e bom estado geral, foram condição essencial para a decisão de a adquirir. Citada a ré apresentou contestação impugnando os factos alegados pelo autor, adiantando que este quando a procurou para adquirir um veículo lhe transmitiu que o seu propósito era a compra de uma viatura Mercedes Classe “.”, usada, não importando o número de anos ou quilómetros e que o fundamental era que a mesma fosse barata. Acrescenta que, por ter adquirido o ajuizado veículo a terceiro, desconhecia qualquer alteração ou adulteração de quilometragem, tendo procedido à venda do veículo na convicção de que o mesmo se encontrava em boas condições de funcionamento e com 181.785 Kms. Foi requerida e admitida a intervenção acessória provocada de D…, “E…, S.A.”, “F…, Lda”, “G…, Unipessoal, Lda”, “H…, Ldª., I… e J…. Proferiu-se despacho saneador em termos tabelares, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova. Realizou-se audiência final com observância do formalismo legal, vindo a ser proferida sentença que julgou a «acção parcialmente procedente, decidindo: . declarar a anulabilidade do contrato de compra e venda celebrado entre Autor e Ré, em 06 de Maio de 2016, que teve por objecto o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo …, com a matrícula ..-..-SA; . condenar a Ré a restituir ao Autor a quantia por este entregue, a título de preço de aquisição do referido veículo, devendo o Autor restituir à Ré o veículo em causa; . condenar a Ré no pagamento ao Autor da quantia de €480,00, a título de indemnização por danos patrimoniais; . condenar a Ré no pagamento dos juros de mora, à taxa legal, sobre as referidas quantias, desde a citação, até efectivo e integral pagamento; . absolver a Ré do demais peticionado». Não se conformando com o assim decidido, veio a ré interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES: ……………………………… ……………………………… ………………………………*Notificado o autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.*Após os vistos legais, cumpre decidir.***II- DO MÉRITO DO RECURSO 1. Definição do objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1]. Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas: . determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto; . decidir em conformidade face à alteração, ou não, da materialidade objeto de impugnação, mormente dilucidar se existe fundamento para a anulação/resolução do contrato celebrado entre as partes.***2. Recurso da matéria de facto 2.1. Factualidade considerada provada na sentença O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto: 1- A Ré dedica-se ao comércio de veículos automóveis novos e usados, peças e acessórios, lubrificantes, manutenção e reparação de veículos automóveis, das categorias ligeiros de passageiros, mistos e de mercadorias, com estabelecimento denominado “C…” sito na Rua …, n.º …, ….-… em …, Paredes. 2- Em 6 (seis) de Maio de 2016, a Ré, no exercício desta sua atividade comercial, mediante o preço global de 13.000,00€ (treze mil euros), vendeu ao ora A., que lhe comprou, em estado de usado, o veículo automóvel da categoria ligeiro de passageiros, marca Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-SA.. 3- O preço da compra foi pago pelo A. à Ré da seguinte forma: 10.000,00€ (dez mil euros) aquando da celebração do negócio, 1.000,00€ (mil euros) em Junho de 2016, 1000,00€ (mil euros) em Julho de 2016 e outros 1000,00€ (mil euros) em Agosto de 2016, encontrando-se integralmente liquidado e dada a sua devida quitação pela Ré, desde a data de 11 de Agosto de 2016, aquando do pagamento da última prestação. 4- Aparentemente e externamente o veículo encontrava-se em regular estado e a Ré garantiu isso mesmo. 5- Referiu ao A., que o veículo vendido estava em boas condições de funcionamento e os seus órgãos essenciais, nomeadamente o motor, se encontravam impecáveis. 6- Logo após a aquisição e iniciadas os primeiros KMs sob a condução do A., este notou que a viatura era portadora de anomalias, tais como: a) pernos das rodas danificados; b) todos os retrovisores danificados e fixos apenas para não cair; c) o fecho da porta do condutor danificado; 7- E como os problemas persistiam o A. contactou o representante legal da Ré, o Sr. S…, para que este diligenciasse pela resolução dos problemas que a viatura apresentava, por forma a pôr termo às mesmas. 8- Por indicação da Ré, o A. colocou para reparação e revisão a viatura “SA” na oficina “K…”, sita na Rua …, n.º .., ….-…, em … – Paredes. 9- Tendo o representante legal da Ré dito ao A. que apenas liquidaria metade do valor da reparação, ao que o A. apesar de não ser sua a responsabilidade por tal, acedeu, na esperança de resolver, de vez, os problemas que a viatura “SA” apresentava. 10- Para proceder ao levantamento da viatura, o A. liquidou à oficina K… a quantia de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros), correspondente a metade do valor total da reparação. 11- Pese embora a factura total ter sido emitida em nome do C…, Lda, sem o consentimento expresso do A. e sem que o Stand tenha liquidado o valor total. 12- Os problemas na viatura “SA” sucediam-se e o motor passou a desligar-se sozinho, assim como a caixa de velocidades automática começou a descontrolar-se e a engrenar a 3ª velocidade em vez de primeira e vice-versa. 13- Quando o A. ligou ao representante legal da Ré, e por diversas vezes, para lhe dar conta de que o motor se desligava sozinho, este, as mais das vezes não atendia, e outras tantas, maltratava-o telefonicamente, sem nunca assumir qualquer responsabilidade. 14- Confrontado com a ausência de resposta e do assumir de responsabilidades por parte da Ré, ao mesmo tempo que, a viatura continuava a apresentar diversos problemas como o motor ir abaixo, sem mais nem menos, o A. decidiu levá-la à oficina autorizada Mercedes-Benz da L…, SA, para um check-up. 15- Eis senão quando é confrontado com o seguinte diagnóstico: “viatura em mau estado”, conforme melhor consta na Factura junta sob o doc. n.º 7. 16- Foi o A., nessa data de 07/10/2016, informado pelos mecânicos da L… que dificilmente a viatura “SA” poderia apresentar o número de KM’s de 198.397, descrito na última inspeção periódica realizada em 14/09/2016, atento o mau estado em que se encontrava. 17- Uns dias mais tarde e em acto contínuo, o A. deslocou-se então ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP, sito na Avenida …, …/…, no Porto, a fim de verificar se a quilometragem do “SA” indicada pelo conta-quilómetros da viatura corresponderia ou não à real. 18- Tendo obtido a certidão junta sob os docs. n.ºs 8 e 9. 19- E da mesma se extrai a informação de que a viatura Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-SA, vendida pela Ré ao A., ao invés dos 198.397 KM inscritos no conta-quilómetros do interior e descritos na inspeção efetuada em 14/09/2016, já apresentava, em 12/07/2012, 497.063. 20- Entre 12/07/2012 e 19/07/2013 a quilometragem foi adulterada dos reais 497.063 para os fictícios 150.914, uma diferença de 346.149 KM. 21- Que é razão para o mau estado em que a viatura se encontra e atestado pela oficina autorizada Mercedes-Benz da L…. 22- O A. sentiu-se assim enganado e defraudado nas suas expectativas, pois que os Kms que a viatura marcava no conta-quilómetros, bem como a garantia dada pela Ré ao A. dos mesmos e da qualidade e bom estado geral daquela, foram condição essencial e sine quo non para que este adquirisse a viatura em causa ao C…, Lda. 23- Jamais o A. compraria uma viatura com o número real de Km de 544.546. 24- O A. apenas adquiriu o “SA” porque desconhecia a ilegalidade da mesma, o seu mau estado, a tamanha adulteração de KM de que padece, a viciação dos seus elementos identificativos. 25- Após ter tido conhecimento desta situação o A. endereçou à Ré, em 31/10/2016, através do seu mandatário, a carta registada com aviso de recepção junta sob os docs. n.º 10 e 11. 26- Na qual dava conta da viciação da viatura na sua quilometragem e solicitando a anulação do negócio outorgado com aquela. 27- Porém como resposta a Ré apenas alegou não ter sido ela a proceder a tal adulteração de quilómetros. 28- Abstendo-se de resolver o problema em questão. 29- O A. procurou a Ré manifestando o seu interesse na aquisição de uma viatura usada, Mercedes Classe “.”. 30- Para o A., o seu propósito, aquando da procura da Ré, era a aquisição de uma viatura Mercedes Classe “.”, usada. 31- Perante a manifestação de vontade do A., a Ré, através do seu sócio gerente, referiu-lhe que não tinha nas instalações uma viatura com aquelas características, mas que iria tentar encontrá-la no mercado. 32- A Ré teve conhecimento (via internet) de uma viatura, com a marca e características pretendidas pelo A., pertencente a D…. 33- A Ré, na pessoa do seu sócio gerente, acabou por adquirir a viatura a D… em Maio de 2016, pelo preço de € 9.500,00. 34- Aquando da compra, o então proprietário da viatura mencionou à Ré que o carro se encontrava em perfeitas condições de funcionamento, com cerca de 180.000 Km, facultando-lhe a certidão da última inspeção periódica, onde constava a ausência de qualquer deficiência. 35- A Ré quando vendeu a viatura ao A. fê-lo na convicção de que a mesma se encontrava em boas condições e com 181.785 Km. 36- A Ré sempre desconheceu e desconhece qualquer alteração ou adulteração de quilometragem. 37- Antes de ter comprado o carro à Ré, o Autor quis experimentá-lo, o que sucedeu. 38- A Ré informou o A. que tinha tomado conhecimento de que uma viatura marca Mercedes, usada, se encontrava à venda e que se ele quisesse, a Ré a compraria para a revender a ele. 39- A Ré mencionou ao A., que se ele pretendesse, tentaria adquirir a viatura à consignação, de forma a que ele a pudesse experimentar. 40- O A. concordou com a sugestão do sócio gerente da Ré, e esta, contactou o então proprietário da viatura, para lha comprar, na condição de que o seu destino era a revenda, e que o contrato de compra e venda estava dependente do interesse de um terceiro, in casu, o A., na sua aquisição. 41- Concretizado o acordo entre a Ré e o anterior proprietário da viatura, aquela trouxe o Mercedes para as suas instalações e o A. experimentou, então, a viatura. 42- O A., depois de ter circulado com o carro, de ter verificado o seu estado, decidiu comprá-lo à Ré, que o vendeu. 43- A Ré comprou a viatura em 2016 a D…, tendo-a vendido no mesmo mês de Maio de 2016 ao A. 44- D… adquiriu no dia 16 de Maio de 2016, o ajuizado veiculo automóvel à empresa, E…, S.A., com o NIPC ………, com sede na Rua …, nº .., ….-…, Guimarães, representada pelo Administrador Único, M…. 45- Pelo preço de 9.000,00€, que efetivamente pagou em numerário. 46- Quando adquiriu tal veículo, o mesmo encontrava-se em perfeitas condições de funcionamento e continha cerca de 190.000 Km. 47- No dia 27 de maio de 2016, decorrido onze dias de ter adquirido o veículo, que nunca chegou a registar em seu nome, vendeu o referido veículo automóvel à empresa, C…, LDA, pelo preço de 9.500,00€. 48- Quer na qualidade de comprador, quer na qualidade de vendedor do ajuizado veículo, sempre agiu desconhecendo a existência de qualquer vício anterior ou posterior à sua intervenção negocial. 49- E…, S.A. adquiriu a viatura automóvel em causa, em 20 de Abril de 2016, ao Stand F…, LDA., com o NIPC ………, com sede na Avenida …, …, …, cave, ….-… Penafiel. 50- Pelo preço de € 8.500,00 (oito mil e quinhentos euros), que efetivamente pagou. 51- A viatura em causa marcava cerca de 190.000 kms e a mesma encontrava-se em perfeitas condições de funcionamento. 52- Tal viatura esteve pouco tempo na posse e propriedade da ora Contestante, sendo que nem decorrido um mês sobre a sua aquisição, mais propriamente em 16 de Maio de 2016, a viatura em causa foi vendida ao Sr. D…, pela quantia de € 9.000,00 (nove mil euros), que foi paga em numerário por este. 53- Enquanto a viatura foi da sua propriedade circulou escassas centenas de quilómetros e nunca teve qualquer problema mecânico ou elétrico com a viatura. 54- Quer na qualidade de compradora, quer na qualidade de vendedora da viatura em causa, sempre agiu desconhecendo a existência de qualquer vício anterior ou posterior à sua intervenção negocial. 55- F…, LDA. adquiriu o veículo automóvel com a matrícula ..-..-SA à Sociedade Comercial “G…, Unipessoal, Lda”, com o NIPC ……… e com sede na Rua … s/n, ….-… Penafiel, representada pelo Sr. N…. 56- Sendo que nessa mesma data a F…, LDA. conjuntamente à aquisição do supra mencionado veículo automóvel com a matrícula ..-..-SA, vendeu aquela Sociedade “G…, Unipessoal, Lda” a viatura automóvel de marca Volvo com a matrícula ..-IJ-.., pelo que, apesar de ter adquirido o veículo ..-..-SA, em apreço nos autos, pelo preço de 8.000,00€, pelo facto de vendido na mesma data o sobredito veículo da marca Volvo pelo preço de 13.000,00 €, recebeu da Sociedade Comercial “G…, Unipessoal, Lda” a quantia de 5.000,00 €. 57- Na data em que adquiriu o veículo automóvel supra identificado, o mesmo encontrava-se em boas condições de uso e funcionamento e continha aproximadamente 190.000 km, tendo a Sociedade Comercial Vendedora “G…, Unipessoal, Lda” exibido documento à F…, LDA. que retratava e evidenciava essa mesma quilometragem. 58- A F…, LDA. teve em seu poder a mencionada viatura somente durante 15 dias, concretamente entre 05 de Abril a 20 de Abril de 2016, e neste curto período não chegou a registar na Conservatória de Registo Automóvel o dito veículo, acabando por o negociar e vender à “E…, S.A”. 59- A F…, LDA. na qualidade de Compradora e bem assim na qualidade de Vendedora sempre agiu desconhecendo a existência de qualquer vício anterior ou posterior à sua intervenção negocial. 60- A “G…, Unipessoal, Lda”. no dia 30 de Novembro de 2015 adquiriu e comprou o veículo automóvel com a matrícula ..-..-SA à sociedade denominada “H…, Ldª., pessoa colectiva nº………, com sede na Avenida …, nº.., ….-… Braga, pelo preço de € 7.700,00. 61- À data da aquisição e compra do referido veículo, o mesmo encontrava-se em boas condições de funcionamento e continha 187.744 Km. 62- A “G…, Unipessoal, Lda”. teve na sua posse o mencionado veículo cerca de quatro meses, sendo que, durante esse referido período não chegou a registá-lo na Conservatória do Registo Automóvel. 63- No dia 5 de Abril de 2016, a “G…, Unipessoal, Lda”. vendeu o mencionado veículo à sociedade comercial denominada “F…, Ldª.. 64- O preço da venda foi pelo valor de € 8.000,00. 65- A “G…, Unipessoal, Lda”., quer na qualidade de compradora (que ocorreu em 30.11.2015) quer na qualidade de vendedora (que ocorreu em 05.04.2016) sempre agiu desconhecendo a existência de qualquer vício que existisse no referido veículo. 66- A “H…, LDA”. tem como escopo lucrativo a compra e venda de automóveis usados. 67- No exercício da sua atividade a “H…, LDA”. adquiriu, em 26/11/2015, o veículo automóvel com a matrícula ..-..-SA, marca Mercedes, a O…. 68- O Automóvel foi retomado pela “H…, LDA”., pelo valor de 7.500,00 €, para compra por O… de outro carro, nomeadamente a viatura com a matrícula ..-LS-... 69- Tudo conforme resulta do contrato de compra e venda celebrado entre a interveniente e o cliente já identificado e do recibo emitido pelo mesmo. 70- Foi verificado, antes da aquisição pela “H…, LDA”., que o carro não tinha quaisquer encargos registados e foi solicitada a ficha da última inspeção técnica periódica, realizada em 30/07/2015, através da qual se pode verificar que, naquela data, a viatura tinha 181.785 km. 71- À data da aquisição, o veículo mencionado encontrava-se em boas condições de funcionamento e continha 187.744 km. 72- O veículo foi vendido pela “H…, LDA”. três dias depois, pelo que nunca chegou a registado a seu favor, exatamente com a mesma quilometragem não tendo sequer saído das suas instalações. 73- Assim, em 30/11/2015, a “H…, LDA”. vendeu o mencionado veículo à sociedade comercial denominada “G…, Unipessoal Lda”, pelo valor de 7.700.00 €. 74- A “H…, LDA”., quer na compra, quer na venda do veículo objeto dos autos atuou sempre desconhecendo qualquer vício de que o mesmo alegadamente padecia e padece. 75- I… adquiriu no dia 12 de fevereiro de 2015, por contrato compra e venda, o veículo automóvel com a matrícula ..-..-SA (objecto dos autos), a J…, NIF ………, com morada na Rua …, …, Casa ., …, pelo preço de 11.000 euros. 76- Tal contrato de compra e venda do automóvel de matrícula ..-..-SA, celebrado entre I… e o sr. J…, foi mediado pela sociedade comercial “Q…, LDA.’’, NIF ………, com sede na Rua …, …, ….-…, Maia. 77- O preço convencionado entre I… e o mencionado J…, foi pago da seguinte forma: €6.000 (seis mil euros) em dinheiro acrescido pela entrega do veículo de marca Opel, de matrícula ..-BX-.., ao qual foi atribuído o valor de €5.000 (cinco mil euros). 78- Na data da celebração do contrato compra e venda referido, o veículo objeto dos autos, marcava no conta-quilómetros, ter percorrido, na sua existência, 172.358km. 79- A referida quilometragem do veículo automóvel, objeto dos autos, identificada no item anterior, foi condição essencial para que I…. tivesse formado a sua vontade de adquirir aquele veículo a J…, condição essa do perfeito conhecimento do referido J… e da sociedade que mediou a celebração do contrato de compra e venda. 80- J… e a sociedade que mediou o contrato compra e venda do automóvel objeto dos presentes autos, bem sabiam que se este veículo tivesse mais quilómetros dos que constavam no seu conta-quilómetros, I… nunca o teria comprado. 81- Em 26 de Novembro de 2015, I… vendeu o veículo objecto dos autos, à sociedade comercial ‘’H…, LDA., pessoa coletiva nº ………, com sede na Avenida … nº .., ….-…, Braga, com 187.744 km e pelo preço de 7.500.00€. 82- O preço deste negócio foi pago com recurso a uma retoma de outro veículo. 83- Nunca I… adulterou ou viciou os quilómetros do veículo presente nos autos. 84- I… atuou sempre – quer na qualidade de comprador, como a qualidade de vendedor do veículo objeto dos autos – desconhecendo a existência de qualquer vício anterior ou posterior à sua intervenção negocial. * 2.2. Factualidade considerada não provada na sentença O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos: 1- Pese embora (a Ré) bem saber o real estado da viatura que havia vendido ao A. 2- Quando o A. ligou ao representante legal da Ré, e por diversas vezes, para lhe dar conta dos problemas com a caixa de velocidades automática que começou a descontrolar-se e a engrenar a 3ª velocidade em vez de primeira e vice-versa, as mais das vezes não atendia, e outras tantas, maltratava-o telefonicamente, sem nunca assumir qualquer responsabilidade. 3- Não importando (para o Autor quando adquiriu a viatura à Ré) o número de anos ou quilómetros. 4- O fundamental para ele é que a referida viatura fosse barata. 5- Que o Autor antes de ter adquirido a viatura à Ré tenha experimentado a mesma durante vários dias. 6- Que o A. tenha decidido comprar a viatura, depois de ter circulado vários dias com o carro. 7- O A. quando comprou o carro sabia perfeitamente como ele se encontrava. 8- D… nunca chegou a registar em seu nome a viatura, atento o facto de nesse curto espaço de tempo, não ter tido a oportunidade de passar na Conservatória do Registo Automóvel.***2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto Nas conclusões recursivas veio a apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados provados e não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova. Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3. […]” O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova. Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação. No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e a apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugere. Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “[…] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância. No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual. A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3]. Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil. Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada. Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão. É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância. Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4]. Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão à apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela preconizados. Como emerge das respetivas conclusões recursivas, a apelante advoga que: i) deve ser alterada a redacção dos pontos nºs 5, 14 e 15 dos factos provados; ii) devem ser dadas como não provadas as afirmações de facto vertidas nos pontos nºs 12, 13, 16, 21, 22, 23, 24 e 28 dos factos provados; iii) devem ser dadas como provadas as proposições constantes dos pontos nºs 3, 4 e 7 dos factos não provados. Resulta do exposto que a impugnação da decisão da matéria de facto gira, essencialmente, em torno do conteúdo das negociações que foram entabuladas entre o autor e o legal representante da ré (S…), mormente a respeito das características e preço do veículo que o primeiro pretendia adquirir, negociações essas que vieram a culminar com a celebração do ajuizado contrato de compra e venda do veículo automóvel da marca Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-SA. Neste conspecto, a apelante argumenta fundamentalmente que os pontos factuais em crise foram alvo de errónea apreciação pelo juiz a quo, porquanto atribuiu um valor indevido as declarações do próprio autor que, na sua perspectiva, “não merecem credibilidade, tendo sido alteradas entre o momento da celebração do contrato e do julgamento, estando direccionadas, de forma claramente parcial com o escopo de obter uma decisão a seu favor”, não tendo, por outro lado, valorado devidamente as declarações prestadas pelo seu legal representante e pelas testemunhas por si arroladas (concretamente T… e U…), cujos depoimentos se “mostram isentos, desinteressados, transparentes e sinceros, sendo por conseguinte, credíveis e convincentes, o mesmo tendo acontecido com o depoimento do legal representante da ré, Sr. S…”. De seguida limita-se praticamente a transcrever excertos dos depoimentos que as pessoas que menciona prestaram na audiência final. Ora, para este efeito impugnatório, não basta a mera indicação, sem mais, de um determinado meio de prova, e também se revela insuficiente no que respeita à prova pessoal, a transcrição de alguns dos depoimentos produzidos em julgamento. Com efeito, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados. Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do nº 1 do citado art. 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante[5]. Daí que, da mesma maneira que ao tribunal de 1ª instância é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova que o conduziu a declarar quais os factos que julga provados e não provados (art. 607º, nº 4), devendo especificar, por razões de sindicabilidade e de transparência, os fundamentos que concretamente se tenham revelado decisivos para formar a sua convicção, facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretenda impugnar a decisão de facto o respetivo ónus de impugnação, devendo expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal a quo. Isso mesmo é sublinhado por ANA LUÍSA GERALDES[6], quando refere que o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, “deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos”. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal de 1ª instância (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, aos restantes meios probatórios, v.g., documentos, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada e é com esses elementos que a parte contrária deverá ser confrontada, a fim de exercer o contraditório, no âmbito do qual poderá proceder à indicação dos meios de prova que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente. Facto é que a apelante não realizou esse exercício de confronto entre (todos) os meios de prova produzidos sobre a materialidade impugnada, limitando-se, como se referiu, a transcrever excertos dos depoimentos prestados pelo seu representante legal e pelas testemunhas por si arroladas, não evidenciando em que medida os mesmos possam abalar o sentido decisório que quanto à factualidade em crise foi acolhido pelo decisor de 1ª instância, sendo que, como se enfatizou, não basta para tal efeito reproduzir excertos esses depoimentos, alguns deles de forma descontextualizada. Resulta do exposto que a apelante não deu integral cumprimento ao mencionado ónus, o que, per se, motivaria a improcedência do recurso no seu segmento de impugnação da matéria de facto. É certo que da audição do registo fonográfico dos mencionados depoimentos, mormente das declarações prestadas pelo legal representante da ré, S…, resulta ter o mesmo referido que quando o autor o procurou para comprar um veículo automóvel apenas lhe manifestou que o que pretendia era “um Mercedes …, usado, até 12.000,00€/13.000,00€”, não lhe tendo dito, em momento algum, “que queria o carro com mais ou menos Kms”. Adiantou que nunca soube dos alegados problemas com a caixa de velocidades e “quando andou a experimentar o carro com o autor esta estava boa”, desconhecendo ainda que tivesse sido adulterada a quilometragem da viatura. Já a testemunha T… (trabalhadora subordinada da ré) referiu que “o carro foi comprado propositadamente para o senhor B… [o ora autor]”, acrescentando que este “experimentou o carro para o testar, juntamente com o Sr. S…” e que, nessa ocasião, “o carro estava direitinho, bem estimado (…), tendo o mesmo sido levado ao U1… [a testemunha U…] para verificar o estado do carro”. Por seu turno, a testemunha U… (mecânico de automóveis que há vários anos a esta parte presta serviços de mecânica à ré) confirmou ter feito a revisão ao carro e que o mesmo “estava em óptimas condições”, referindo, a dado passo, que “um Mercedes como o dos autos faz até um milhão de quilómetros”. Haverá, no entanto, a registar que sobre a materialidade em crise, na audiência final, foram ainda inquiridas outras pessoas, designadamente o próprio autor e as testemunhas W…, X… e Y…. Da audição do registo fonético das declarações do autor resulta ter o mesmo referido que o estado do veículo (aparentemente sem deficiências mecânicas) e o número de quilómetros que o respectivo conta-quilómetros registava foram factores determinantes na compra do mesmo, como, aliás, transmitiu ao Sr. S… em diversas ocasiões, sendo que, ainda antes da concretização da venda, quando o carro foi levado para verificação na oficina da testemunha U…, lhe foi exibido “o livro de revisões que tinham sido feitas na Mercedes”, tendo-lhe ainda sido referido que “estava tudo direitinho, que estava tudo legal”. Adiantou que pouco tempo após ter comprado o carro o mesmo passou a apresentar um mau funcionamento, desligando sozinho em plena marcha e a caixa de velocidades automática descontrolava-se, engrenando a 3ª velocidade em vez da 1ª e vice-versa, o que causou diversos embaraços. Face a esses problemas procurou várias vezes entrar em contacto com o Sr. S…, nomeadamente por telefone, sendo que este ou não atendia as chamadas, ou então maltratava-o, dizendo-lhe peremptoriamente que não tinha nada a ver com esses problemas e que se quisesse fosse para Tribunal. Acrescentou que, em resultado desse comportamento do Sr. S…, dirigiu-se a um representante da Mercedes (a L…, S.A.) onde foi informado que o veículo em causa teria seguramente mais quilómetros do que os que eram registados no respectivo conta-quilómetros, o que veio a confirmar através dos serviços do Instituto da Mobilidade e dos Transportes. As declarações prestadas pelo autor foram, em grande medida, corroboradas pelos depoimentos das testemunhas W…, X… e Y… que revelaram conhecimento das condições que estiveram na base da compra do veículo pelo autor, tendo igualmente acompanhado de perto os problemas que a viatura passou a apresentar desde que o autor a adquiriu, presenciando conversas que o mesmo manteve com o Sr. S… a respeito dessas anomalias e da recusa deste em assumir a sua reparação. Na presença dos descritos subsídios probatórios, na sentença recorrida - concretamente no segmento em que procedeu à motivação da decisão de facto - o julgador exteriorizou o percurso lógico que o conduziu à formulação do juízo probatório sobre os factos objecto de impugnação, expondo os motivos essenciais que o determinaram a decidi-los no sentido aí acolhido, em particular na valorização (quando cotejada com a demais prova pessoal adrede produzida) dos depoimentos prestadas pelo autor e pelas testemunhas W…, X… e Y…. Portanto, tribunal recorrido e recorrente não divergem na leitura das provas, divergem na respetiva valoração, sendo que, neste ponto – tal como deflui das considerações tecidas na sentença recorrida - a manifestação desse convencimento pelo julgador revela uma tomada de posição clara e inequívoca, aí se indicando, de forma que reputamos adequada e coerente, as razões que fundaram a sua convicção, sendo certo que o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente. Na verdade, ao invés do que parece ser entendimento da apelante, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância e já não naqueles – como sucede na situação vertente - em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum. Inexiste, assim, fundamento probatório bastante que imponha (tal como se estabelece no nº 1 do art. 662º) decisão diversa relativamente às proposições factuais em crise.***3. FUNDAMENTOS DE DIREITO Vejamos agora a questão de fundo que se coloca no âmbito do presente recurso e que se traduz em saber se o substrato factual apurado permite, ou não, ao autor o direito de anular/resolver o contrato de compra e venda que celebrou com a ré. Na sentença recorrida reconheceu-se assistir ao demandante tal direito em virtude de esse negócio ter por objecto um veículo automóvel que se veio a verificar padecer de diversas anomalias que não foram reparadas pela ré vendedora, verificando-se igualmente viciação ou desconformidade entre os quilómetros efectivamente percorridos e os registados na viatura, no momento da sua aquisição. A apelante rebela-se contra esse segmento decisório, argumentando – no pressuposto na alteração do sentido decisório referente à factualidade objecto de impugnação – não ter resultado provado que o veículo em questão tivesse os defeitos que lhe são assacados e, sobretudo, que a quilometragem que o mesmo alegadamente apresentava aquando da celebração da compra e venda tivesse sido um elemento determinante na vontade de o autor realizar esse negócio, não tendo, aliás, culpa na desconformidade verificada entre os kms. percorridos e os kms. registados. Que dizer? Não é posto em crise que entre as partes foi celebrado um contrato de compra e venda que teve por objecto mediato um veículo automóvel usado, sendo que, em conformidade com a respectiva noção legal (cfr. art. 874º do Cód. Civil), este tipo negocial é aquele “pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”, tendo, pois, como efeitos essenciais (art. 879º do mesmo diploma) a transmissão da propriedade da coisa, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço. No que especialmente concerne à obrigação do vendedor, impõe o nº 1 do art. 882.º do Cód. Civil que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrar ao tempo da venda, o que implica para o comprador a obrigação de a rececionar ou levantar no lugar e no momento devidos. E, por mor das regras gerais de cumprimento da prestação (cfr. arts. 406º e 763º, do Cód. Civil), na execução da sua obrigação, o vendedor deve respeitar pontualmente (no sentido emergente desse primeiro normativo) o contrato, pela entrega da coisa convencionada, não podendo o comprador ser constrangido a receber coisa diversa da devida. Se a coisa entregue não apresentar as características – qualidade, quantidade, categoria ou tipo – supostas ou previstas pelas partes, dir-se-á em desconformidade com o contrato, e o comprador não obterá a satisfação esperada. Daí que o vendedor tenha não só a obrigação de entregar a coisa, mas também a de entregar uma coisa isenta de vícios ou defeitos, quer de vícios jurídicos (arts. 905º e seguintes do Cód. Civil) quer de vícios materiais (arts. 913º e seguintes do Cód. Civil). Isso mesmo tem sido posto em evidência na doutrina[7], que recorrentemente vem sustentando que apesar de o citado art. 879º não mencionar a garantia dos vícios da coisa, o vendedor somente cumprirá a sua obrigação pela entrega da coisa no estado em que se encontrava ao tempo da venda (art. 882º, nº 1), supostamente isenta de vícios ou defeitos de acordo com a vontade contratual (real, presumida ou hipotética) das partes complexivamente interpretada e integrada segundo a boa-fé. O vendedor encontra-se, assim, constituído no dever de entregar ou fornecer ao comprador coisa isenta de vícios e em bom estado de funcionamento, sendo que, por força do disposto no nº 1 do art. 913º do Cód. Civil “[s]e a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.” Por seu turno, preceitua o nº 2 do mesmo preceito legal que “[q]uando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.” Como a propósito do normativo transcrito comentam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[8] nele “cria-se um regime especial cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica (...) para as quatro categorias de vícios que aí são destacadas: a) vício que desvalorize a coisa; b) vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; c) falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina. Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afetadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos. Como disposição interpretativa, manda o nº 2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria (...)”. À luz destes ensinamentos, a venda da coisa pode considerar-se venda defeituosa quando, numa perspetiva de “funcionalidade”, contém vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina, ou então falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina. Nesta medida, conforme escreve CALVÃO DA SILVA[9], diz-se defeituosa “a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº2). A coisa será defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado”. Em análogo sentido se pronuncia MENEZES LEITÃO[10], o qual advoga que a aplicação do regime (geral) da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, “a lei faz incluir no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão vícios, tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que a falta de qualidades, embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato”. Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas “torna-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações.” Quando se esteja em presença de qualquer uma dessas situações, a lei substantiva (arts. 913.º, nº 1 a 915.º do Cód. Civil) confere ao comprador de coisa defeituosa determinados remédios ou garantias edilícias que se traduzem no direito de exigir do vendedor a reparação/substituição da coisa, de redução do preço, de anulação/resolução do contrato[11] e também do direito à indemnização. Descrito deste modo sumário o regime de compra e venda de coisa defeituosa vertido no Código Civil, importa ainda ter em consideração que, no nosso ordenamento jurídico, existem outras disposições legais que visam, primordialmente, proteger o comprador quando este assuma a qualidade de consumidor, disposições essas que lhe conferem um estatuto mais favorável e que, por isso, prevalece sobre aqueloutro regime[12]. Na verdade, o adquirente de coisa defeituosa, quando assuma a qualidade de consumidor, beneficia especialmente da proteção que lhe é conferida pela Lei de Defesa do Consumidor[13] (LDC) e bem assim pelo regime instituído pelo DL n.º 67/2003, de 8 de abril[14]. Portanto, como pressuposto lógico para a aplicação desses regimes, torna-se mister, desde logo, que o comprador seja um consumidor, conceito este que se mostra normativamente definido no art. 2º da LDC[15], em cujo nº 1 se postula que se “[c]onsidera consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” Por seu turno, o DL nº 67/2003, de 8 de abril tem o seu âmbito limitado às operações negociais tipicamente estabelecidas no seu art. 1º-A realizadas entre as entidades aí mencionadas, ou seja, aplica-se às pessoas que exerçam com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, e cujo fornecimento de bens ou serviços ocorra nesse âmbito e sejam destinados a uso não profissional pelo adquirente. De acordo com tais instrumentos normativos, o consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, e os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor (arts. 3.º, nº 1, al. a) e 4.º da LDC). Por sua vez, o vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem. E, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato (cfr. arts. 3º e 4º, nº 1 do DL n.º 67/2003, de 8 de abril). Como é consabido, com este último diploma pretendeu-se proteger o consumidor relativamente à aquisição de bens de consumo (imóveis ou móveis, mesmo que usados), em que o bem entregue padece de desconformidade face ao contrato de compra e venda, presumindo-se (cfr. art. 2.º, nºs 1 e 2) as seguintes situações em que ocorre desconformidade com o contrato, a saber: a) não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem. Portanto, e resumindo, mesmo no âmbito dos diplomas legais citados, a sua aplicação sempre depende da existência de “vícios da coisa ou coisa defeituosa”, vendida ou adquirida, ou “desconformidade face ao contrato de compra e venda”, ou seja, perspetivando-se que o bem sofra de vício que a desvalorize ou que impeça a realização da finalidade a que a mesma se destina ou careça das qualidades necessárias e asseguradas pelo vendedor para a realização desse fim. Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio, está provado que, em 6 de maio de 2016, o autor, para seu uso pessoal, adquiriu à ré/apelante (que, por sua vez, se dedica ao comércio de veículos novos e usados), pelo preço de €13.000,00, o veículo automóvel de marca Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-SA. E mais se demonstrou que, aquando da celebração do contrato de compra e venda, a ré referiu ao autor que o identificado veículo “estava em boas condições de funcionamento e os seus órgãos essenciais, nomeadamente o motor, se encontravam impecáveis”. Resultou de igual modo provado que o veículo, passados alguns dias após a sua aquisição, começou a apresentar diversas anomalias, designadamente o motor desligava-se sozinho, assim como a caixa de velocidades automática descontrolava-se, engrenando a 3ª velocidade em vez da 1ª e vice-versa. O autor confrontou então a ré com os mencionados problemas mecânicos, a qual, todavia, não se prontificou a repará-los, vindo posteriormente o autor a ter conhecimento, através de uma oficina autorizada da Mercedes-Benz, que a quilometragem exibida no conta-quilómetros da viatura não tinha correspondência com a realidade, facto que veio a confirmar através do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP, pois de acordo com o histórico das inspecções periódicas ao veículo, este no dia 12 de julho de 2012 tinha atingido já 497.063Kms., ou seja, o veículo foi vendido pela ré ao autor como se o mesmo apresentasse apenas 181.785 Kms. percorridos quando efectivamente, nessa ocasião, contava mais de 500.000Kms. Perante esta factualidade resulta claro que a viatura apresentava vícios/desconformidades no apontado sentido normativo do termo. Ainda de acordo com a materialidade apurada, dúvidas não se colocam que o autor assume a qualidade de consumidor, enquanto a ré, por seu turno, interveio no ajuizado contrato como vendedora profissional, razão pela qual, na apreciação das pretensões por aquele aduzidas nestes autos, será aplicável o referido DL nº 67/2003, de 8.04. Como se referiu, este decreto-lei - no que especialmente tange aos direitos do consumidor em caso de falta de conformidade[16] da coisa que lhe foi entregue - consagra um conjunto de garantias edilícias que passam pelo direito de reparação ou substituição da coisa, redução do preço ou resolução do contrato (cfr. art. 4º)[17], e isto independentemente de culpa do vendedor no cumprimento inexacto da obrigação de entregar o bem devido, como, com meridiana clareza, emerge dos seus arts. 2º, nº 1 e 3º, nº 1. De facto, como sublinha CALVÃO DA SILVA[18], o diploma em causa “impõe a responsabilidade do vendedor por qualquer falta de conformidade existente no momento da entrega da coisa – independentemente de a não conformidade ser anterior, concomitante ou posterior à celebração da compra e venda – e que se manifeste dentro de dois ou cinco anos a contar dessa data”, consoante a coisa for móvel (art. 5º, nº 1) ou imóvel (art. 3º, nº 2), respectivamente. O propósito confesso do legislador traduziu-se, pois, numa mais intensa protecção do comprador, através da consagração de uma garantia legal de conformidade, alterando-se, como sublinha MENEZES LEITÃO[19], o regime tradicional que se resumia na máxima caveat emptor (o comprador que se acautele), por um regime baseado no cumprimento em conformidade e que se caracteriza pela máxima inversa: caveat venditor (o vendedor que se acautele), ou seja, a responsabilidade do vendedor não é excluída pelo simples facto de não ter tido culpa no defeito da prestação. No caso, como se referiu, em resultado das desconformidades que o veículo apresentava (e que não foram debelados pela ré, malgrado tenha sido interpelada nesse sentido), o demandante formulou uma pretensão de “anulação” do ajuizado contrato, pretensão essa que, na sequência do enquadramento jurídico supra descrito, terá, summo rigore, de ser perspectivada como de resolução desse vínculo negocial. Questão que então se coloca é a de saber se se encontra reunido o condicionalismo necessário para operar essa forma de extinção do contrato com a inerente relação liquidatória, como, a final, acabou por ser decretado no dispositivo do ato decisório recorrido. Na economia do citado art. 4º a resolução do contrato não está, propriamente, dependente da inviabilidade ou esgotamento das demais garantias edilícias[20] aí conferidas ao comprador/consumidor, podendo este exercer directamente aquele direito, salvo se, de acordo com o seu nº 5, “[t]al se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais”, isto é, o concurso eletivo apenas se encontra limitado pelo respeito pelo princípio geral da boa-fé. No sentido de neutralizar a pretensão aduzida argumenta a recorrente que desconhecia a desconformidade ou viciação de quilómetros, sendo certo que o vendedor da viatura lhe havia garantido que a mesma tinha os quilómetros que ostentava, o que prova que não teve "culpa" nesse desconhecimento. Ora, ainda que assim fosse (isto é, que tal facto lhe tenha sido assegurado pelo vendedor), isso não o inibiria da responsabilidade perante o comprador autor, o que torna totalmente irrelevante a sua prova ou não prova. Na realidade, exercendo a apelante a atividade profissional de compra e venda de veículos, em face das implicações neste domínio da referida garantia de conformidade, terá de ser ela - e não o comprador - a suportar o risco da desconformidade, em consonância com a referida regra do caveat venditor. Assim sendo, mais não resta do que concluir, face à inviabilidade de eliminação das mencionadas desconformidades - e não tendo sido alegados quaisquer factos tendentes quer à reparação/substituição do veículo, quer à redução do preço -, assistir ao autor o direito a ver resolvido o contrato. De facto, o principal fundamento por este invocado no sentido de pôr termo à ajuizada relação contratual assenta da disparidade substancial da quilometragem real percorrida e a que constava do conta-quilómetros do veículo por ocasião da celebração do ajuizado contrato de compra e venda, sendo certo outrossim que as deficiências mecânicas de que o mesmo padece (e que não foram oportunamente reparadas pela ré, malgrado as interpelações nesse sentido) são de molde a comprometer a sua normal utilização. Ora, nessas circunstâncias, não se tornaria sequer viável a reparação dessas desconformidades, em particular no que tange à primeira, pois não se pode “apagar” o número de quilómetros percorrido do veículo de modo a que tudo se passasse como se não tivesse sucedido. E quanto à substituição, tal remédio não se revela, in concreto, exercitável, na justa medida em que, como emerge do tecido fáctico apurado, a apelante não se dispôs a colocar à disposição do autor outro veículo, da mesma marca, modelo, quilometragem anunciada, estado de conservação e preço. Aliás, como já anteriormente se deu nota, o posicionamento que a ré assumiu nestes autos traduziu-se, na essência, em sustentar não ter tido culpa em tal desconformidade (por ter também adquirido o veículo com a quilometragem nele indicada), como se fosse o autor, enquanto consumidor e comprador, a assumir o risco daí emergente. Não colhe, por isso, o argumento invocado e que se traduziria na circunstância de, como a recorrente foi eventualmente enganada, estaria liberta de responsabilidade, sendo de ressaltar, de qualquer modo, que terá a possibilidade de exercer o seu direito de regresso contra quem procedeu à adulteração da quilometragem do veículo. Portanto, in casu, sendo inviável, nos termos expostos, a reparação ou substituição do veículo e provadas que foram as invocadas desconformidades, terá o demandante o direito de resolver o contrato, não se vislumbrando a ocorrência de qualquer abuso no exercício dessa garantia edilícia, dada a gravidade dos defeitos/desconformidades que o veículo apresenta e da sua repercussão negativa na aptidão para o fim a que se destina e no seu valor, o que justifica, sob um ponto de vista objectivo, a perda de interesse na ajuizada aquisição. Consequentemente, sendo os efeitos da resolução equiparados à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (cfr. art. 289º ex vi do art. 433º, ambos do Cód. Civil) - o mesmo é dizer que a resolução tem efeito retroactivo -, deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado em execução do contrato, tal como se decidiu na sentença recorrida, que não merece, assim, a censura que lhe é dirigida pela apelante.***III- DISPOSITIVO Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. Custas a cargo da apelante (art. 527º, nºs 1 e 2). Porto, 04.10.2021 Miguel Baldaia de Morais Jorge Seabra Pedro Damião e Cunha ________________ [1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem. [2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência. [3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272. [4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt. [5] Cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 15.09.2011 (processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1), de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos desta Relação de 5.11.2012 (processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/141175" target="_blank">434/09.5TTVFR.P1</a>) e de 17.03.2014 (processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/139436" target="_blank">3785/11.5TBVFR.P1</a>) e acórdãos da Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/194636" target="_blank">132/14.8T8BCL.G1</a>), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [6] Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, pág. 4 e seguinte, trabalho disponível em www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf. Idêntico entendimento vem sendo acolhido na jurisprudência, de que constituem exemplo, inter alia, os acórdãos do STJ 15.09.2011 Processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos desta Relação de 5.11.2012 (processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/141175" target="_blank">434/09.5TTVFR.P1</a>) e de 17.03.2014 (processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/139436" target="_blank">3785/11.5TBVFR.P1</a>) e acórdãos da Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/194636" target="_blank">132/14.8T8BCL.G1</a>), acessíveis em www.dgsi.pt. [7] Cfr., por todos, CALVÃO DA SILVA, in Compra e venda de coisas defeituosas, 4ª edição, Almedina, págs. 21 e seguinte e MENEZES LEITÃO, in Direito das Obrigações, vol. III, 6ª edição, Almedina, págs. 31 e seguintes. [8] In Código Civil Anotado, vol. II, 3ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, págs. 210 e seguinte. [9] Ob. citada, págs. 41 e seguintes. [10] Ob.citada, págs. 123 e seguinte; em idêntico sentido milita ROMANO MARTINEZ, in Direito das Obrigações, Parte Especial - Contratos, Almedina, 2.ª edição, págs. 135 e seguinte. [11] Como é consabido, tem sido objecto de discussão, especialmente na doutrina, a questão de saber se a matéria dos defeitos da coisa se integra no instituto geral do erro ou se deve antes ser analisada à luz da responsabilidade contratual por incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato – cfr. sobre esta temática, inter alia, ROMANO MARTINEZ, in Cumprimento defeituoso – Em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, 2001, págs. 261-269 e CALVÃO DA SILVA, ob. citada, págs. 50-58. [12] Como, a este propósito, sublinha MENEZES LEITÃO (ob. citada, págs. 135 e seguinte), “o regime civil tradicional relativo às perturbações da prestação no contrato de compra e venda tem vindo sucessivamente a perder aplicação no âmbito das relações de consumo [dado que] o regime clássico consagrado nos diversos códigos civis para o cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda apresenta quase sempre distorções em prejuízo dos consumidores”. [13] Lei n.º 24/96, de 31/7, alterada pelo DL n.º 67/2003, de 8 de abril e pela Lei n.º 47/2014, de 28/7. [14] Alterado e republicado pelo DL n.º 84/2008, de 21 de maio. [15] Definição análoga é acolhida na alínea a) do art. 1º-B do DL nº 67/2003, de 8.04, que igualmente consagra uma noção de consumidor em sentido estrito. [16] Note-se que, como tem sido enfatizado pela doutrina (cfr., inter alia, MORAIS CARVALHO, Manual de Direito do Consumo, 2ª edição, Almedina, pág. 188), com o DL nº 67/2003 – que acolheu a noção de “conformidade com o contrato” – ficou ultrapassada a sujeição da invocação da desconformidade à verificação dos requisitos legais do erro, ao contrário do que ainda acontece no regime da compra e venda de coisas defeituosas do Código Civil - isto para aqueles que defendem que a aplicabilidade dos arts. 913º a 915º está depende da ocorrência dos requisitos desse vício na formação da vontade. [17] A estes direitos acresce ainda a indemnização, nos termos estabelecidos no nº 1 do art. 12º da LDC. [18] In Venda de bens de consumo, 4ª edição revista, aumentada e actualizada, Almedina, pág. 98. [19] In O novo regime da venda de bens de consumo, Estudos do Instituto de Direito do Consumo, vol. II, 2004, Almedina, págs. 37 e seguintes. [20] Refira-se, no entanto, que tem sido objecto de discussão a questão de saber se o mencionado art. 4º estabelece, ou não, uma hierarquização no exercício desses direitos – cfr., para maior desenvolvimento, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, págs. 155-158, CALVÃO DA SILVA, Venda de bens de consumo, págs. 104-112 e MORAIS CARVALHO, ob. citada, págs. 222-233.
Processo nº 30/17.3T8PRD.P1 Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Paredes – Juízo Local Cível, Juiz 1 Relator: Miguel Baldaia Morais 1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra 2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha*Sumário ……………………………… ……………………………… ………………………………*Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I- RELATÓRIO B… intentou a presente ação declarativa com processo comum contra C…, Ldª, pedindo que: (i) se decrete a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre as partes e que teve por objecto o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-SA e consequentemente; (ii) se condene a ré a restituir-lhe o preço da compra no montante de 13.000,00€ (treze mil euros), acrescido dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; (iii) ou quando assim se não entenda, deve o negócio ser anulado por erro, sendo a ré condenada a restituir-lhe a quantia de 13.000,00€ (treze mil euros), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; (iv) mais devendo a ré ser condenada a restituir-lhe o valor de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros) que liquidou à oficina de reparação. Para substanciar tais pretensões alegou ter celebrado contrato de compra e venda com a ré que teve por objecto mediato o identificado veículo automóvel, em estado de usado, tendo procedido ao pagamento do preço acordado no montante de € 13.000,00. Acrescenta que aquando da celebração do contrato, aparentemente e externamente o veículo encontrava-se em regular estado, tendo a ré garantido que o mesmo estava em boas condições de funcionamento e os seus órgãos essenciais, nomeadamente o motor, se encontravam impecáveis. Alegou ainda que algum tempo após a aquisição da viatura notou que a mesma era portadora de diversas anomalias, designadamente que o motor se desligava sozinho, assim como a caixa de velocidades automática começou a descontrolar-se e a engrenar a 3ª velocidade em vez de primeira e vice-versa, tendo ainda verificado que a quilometragem foi adulterada dos reais 497.063 para os fictícios 150.914. Refere ter-se sentido enganado e defraudado nas suas expectativas, pois que os Kms. que a viatura marcava no conta-quilómetros, bem como a garantia dada pela ré quanto à sua qualidade e bom estado geral, foram condição essencial para a decisão de a adquirir. Citada a ré apresentou contestação impugnando os factos alegados pelo autor, adiantando que este quando a procurou para adquirir um veículo lhe transmitiu que o seu propósito era a compra de uma viatura Mercedes Classe “.”, usada, não importando o número de anos ou quilómetros e que o fundamental era que a mesma fosse barata. Acrescenta que, por ter adquirido o ajuizado veículo a terceiro, desconhecia qualquer alteração ou adulteração de quilometragem, tendo procedido à venda do veículo na convicção de que o mesmo se encontrava em boas condições de funcionamento e com 181.785 Kms. Foi requerida e admitida a intervenção acessória provocada de D…, “E…, S.A.”, “F…, Lda”, “G…, Unipessoal, Lda”, “H…, Ldª., I… e J…. Proferiu-se despacho saneador em termos tabelares, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova. Realizou-se audiência final com observância do formalismo legal, vindo a ser proferida sentença que julgou a «acção parcialmente procedente, decidindo: . declarar a anulabilidade do contrato de compra e venda celebrado entre Autor e Ré, em 06 de Maio de 2016, que teve por objecto o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo …, com a matrícula ..-..-SA; . condenar a Ré a restituir ao Autor a quantia por este entregue, a título de preço de aquisição do referido veículo, devendo o Autor restituir à Ré o veículo em causa; . condenar a Ré no pagamento ao Autor da quantia de €480,00, a título de indemnização por danos patrimoniais; . condenar a Ré no pagamento dos juros de mora, à taxa legal, sobre as referidas quantias, desde a citação, até efectivo e integral pagamento; . absolver a Ré do demais peticionado». Não se conformando com o assim decidido, veio a ré interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES: ……………………………… ……………………………… ………………………………*Notificado o autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.*Após os vistos legais, cumpre decidir.***II- DO MÉRITO DO RECURSO 1. Definição do objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1]. Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas: . determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto; . decidir em conformidade face à alteração, ou não, da materialidade objeto de impugnação, mormente dilucidar se existe fundamento para a anulação/resolução do contrato celebrado entre as partes.***2. Recurso da matéria de facto 2.1. Factualidade considerada provada na sentença O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto: 1- A Ré dedica-se ao comércio de veículos automóveis novos e usados, peças e acessórios, lubrificantes, manutenção e reparação de veículos automóveis, das categorias ligeiros de passageiros, mistos e de mercadorias, com estabelecimento denominado “C…” sito na Rua …, n.º …, ….-… em …, Paredes. 2- Em 6 (seis) de Maio de 2016, a Ré, no exercício desta sua atividade comercial, mediante o preço global de 13.000,00€ (treze mil euros), vendeu ao ora A., que lhe comprou, em estado de usado, o veículo automóvel da categoria ligeiro de passageiros, marca Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-SA.. 3- O preço da compra foi pago pelo A. à Ré da seguinte forma: 10.000,00€ (dez mil euros) aquando da celebração do negócio, 1.000,00€ (mil euros) em Junho de 2016, 1000,00€ (mil euros) em Julho de 2016 e outros 1000,00€ (mil euros) em Agosto de 2016, encontrando-se integralmente liquidado e dada a sua devida quitação pela Ré, desde a data de 11 de Agosto de 2016, aquando do pagamento da última prestação. 4- Aparentemente e externamente o veículo encontrava-se em regular estado e a Ré garantiu isso mesmo. 5- Referiu ao A., que o veículo vendido estava em boas condições de funcionamento e os seus órgãos essenciais, nomeadamente o motor, se encontravam impecáveis. 6- Logo após a aquisição e iniciadas os primeiros KMs sob a condução do A., este notou que a viatura era portadora de anomalias, tais como: a) pernos das rodas danificados; b) todos os retrovisores danificados e fixos apenas para não cair; c) o fecho da porta do condutor danificado; 7- E como os problemas persistiam o A. contactou o representante legal da Ré, o Sr. S…, para que este diligenciasse pela resolução dos problemas que a viatura apresentava, por forma a pôr termo às mesmas. 8- Por indicação da Ré, o A. colocou para reparação e revisão a viatura “SA” na oficina “K…”, sita na Rua …, n.º .., ….-…, em … – Paredes. 9- Tendo o representante legal da Ré dito ao A. que apenas liquidaria metade do valor da reparação, ao que o A. apesar de não ser sua a responsabilidade por tal, acedeu, na esperança de resolver, de vez, os problemas que a viatura “SA” apresentava. 10- Para proceder ao levantamento da viatura, o A. liquidou à oficina K… a quantia de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros), correspondente a metade do valor total da reparação. 11- Pese embora a factura total ter sido emitida em nome do C…, Lda, sem o consentimento expresso do A. e sem que o Stand tenha liquidado o valor total. 12- Os problemas na viatura “SA” sucediam-se e o motor passou a desligar-se sozinho, assim como a caixa de velocidades automática começou a descontrolar-se e a engrenar a 3ª velocidade em vez de primeira e vice-versa. 13- Quando o A. ligou ao representante legal da Ré, e por diversas vezes, para lhe dar conta de que o motor se desligava sozinho, este, as mais das vezes não atendia, e outras tantas, maltratava-o telefonicamente, sem nunca assumir qualquer responsabilidade. 14- Confrontado com a ausência de resposta e do assumir de responsabilidades por parte da Ré, ao mesmo tempo que, a viatura continuava a apresentar diversos problemas como o motor ir abaixo, sem mais nem menos, o A. decidiu levá-la à oficina autorizada Mercedes-Benz da L…, SA, para um check-up. 15- Eis senão quando é confrontado com o seguinte diagnóstico: “viatura em mau estado”, conforme melhor consta na Factura junta sob o doc. n.º 7. 16- Foi o A., nessa data de 07/10/2016, informado pelos mecânicos da L… que dificilmente a viatura “SA” poderia apresentar o número de KM’s de 198.397, descrito na última inspeção periódica realizada em 14/09/2016, atento o mau estado em que se encontrava. 17- Uns dias mais tarde e em acto contínuo, o A. deslocou-se então ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP, sito na Avenida …, …/…, no Porto, a fim de verificar se a quilometragem do “SA” indicada pelo conta-quilómetros da viatura corresponderia ou não à real. 18- Tendo obtido a certidão junta sob os docs. n.ºs 8 e 9. 19- E da mesma se extrai a informação de que a viatura Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-SA, vendida pela Ré ao A., ao invés dos 198.397 KM inscritos no conta-quilómetros do interior e descritos na inspeção efetuada em 14/09/2016, já apresentava, em 12/07/2012, 497.063. 20- Entre 12/07/2012 e 19/07/2013 a quilometragem foi adulterada dos reais 497.063 para os fictícios 150.914, uma diferença de 346.149 KM. 21- Que é razão para o mau estado em que a viatura se encontra e atestado pela oficina autorizada Mercedes-Benz da L…. 22- O A. sentiu-se assim enganado e defraudado nas suas expectativas, pois que os Kms que a viatura marcava no conta-quilómetros, bem como a garantia dada pela Ré ao A. dos mesmos e da qualidade e bom estado geral daquela, foram condição essencial e sine quo non para que este adquirisse a viatura em causa ao C…, Lda. 23- Jamais o A. compraria uma viatura com o número real de Km de 544.546. 24- O A. apenas adquiriu o “SA” porque desconhecia a ilegalidade da mesma, o seu mau estado, a tamanha adulteração de KM de que padece, a viciação dos seus elementos identificativos. 25- Após ter tido conhecimento desta situação o A. endereçou à Ré, em 31/10/2016, através do seu mandatário, a carta registada com aviso de recepção junta sob os docs. n.º 10 e 11. 26- Na qual dava conta da viciação da viatura na sua quilometragem e solicitando a anulação do negócio outorgado com aquela. 27- Porém como resposta a Ré apenas alegou não ter sido ela a proceder a tal adulteração de quilómetros. 28- Abstendo-se de resolver o problema em questão. 29- O A. procurou a Ré manifestando o seu interesse na aquisição de uma viatura usada, Mercedes Classe “.”. 30- Para o A., o seu propósito, aquando da procura da Ré, era a aquisição de uma viatura Mercedes Classe “.”, usada. 31- Perante a manifestação de vontade do A., a Ré, através do seu sócio gerente, referiu-lhe que não tinha nas instalações uma viatura com aquelas características, mas que iria tentar encontrá-la no mercado. 32- A Ré teve conhecimento (via internet) de uma viatura, com a marca e características pretendidas pelo A., pertencente a D…. 33- A Ré, na pessoa do seu sócio gerente, acabou por adquirir a viatura a D… em Maio de 2016, pelo preço de € 9.500,00. 34- Aquando da compra, o então proprietário da viatura mencionou à Ré que o carro se encontrava em perfeitas condições de funcionamento, com cerca de 180.000 Km, facultando-lhe a certidão da última inspeção periódica, onde constava a ausência de qualquer deficiência. 35- A Ré quando vendeu a viatura ao A. fê-lo na convicção de que a mesma se encontrava em boas condições e com 181.785 Km. 36- A Ré sempre desconheceu e desconhece qualquer alteração ou adulteração de quilometragem. 37- Antes de ter comprado o carro à Ré, o Autor quis experimentá-lo, o que sucedeu. 38- A Ré informou o A. que tinha tomado conhecimento de que uma viatura marca Mercedes, usada, se encontrava à venda e que se ele quisesse, a Ré a compraria para a revender a ele. 39- A Ré mencionou ao A., que se ele pretendesse, tentaria adquirir a viatura à consignação, de forma a que ele a pudesse experimentar. 40- O A. concordou com a sugestão do sócio gerente da Ré, e esta, contactou o então proprietário da viatura, para lha comprar, na condição de que o seu destino era a revenda, e que o contrato de compra e venda estava dependente do interesse de um terceiro, in casu, o A., na sua aquisição. 41- Concretizado o acordo entre a Ré e o anterior proprietário da viatura, aquela trouxe o Mercedes para as suas instalações e o A. experimentou, então, a viatura. 42- O A., depois de ter circulado com o carro, de ter verificado o seu estado, decidiu comprá-lo à Ré, que o vendeu. 43- A Ré comprou a viatura em 2016 a D…, tendo-a vendido no mesmo mês de Maio de 2016 ao A. 44- D… adquiriu no dia 16 de Maio de 2016, o ajuizado veiculo automóvel à empresa, E…, S.A., com o NIPC ………, com sede na Rua …, nº .., ….-…, Guimarães, representada pelo Administrador Único, M…. 45- Pelo preço de 9.000,00€, que efetivamente pagou em numerário. 46- Quando adquiriu tal veículo, o mesmo encontrava-se em perfeitas condições de funcionamento e continha cerca de 190.000 Km. 47- No dia 27 de maio de 2016, decorrido onze dias de ter adquirido o veículo, que nunca chegou a registar em seu nome, vendeu o referido veículo automóvel à empresa, C…, LDA, pelo preço de 9.500,00€. 48- Quer na qualidade de comprador, quer na qualidade de vendedor do ajuizado veículo, sempre agiu desconhecendo a existência de qualquer vício anterior ou posterior à sua intervenção negocial. 49- E…, S.A. adquiriu a viatura automóvel em causa, em 20 de Abril de 2016, ao Stand F…, LDA., com o NIPC ………, com sede na Avenida …, …, …, cave, ….-… Penafiel. 50- Pelo preço de € 8.500,00 (oito mil e quinhentos euros), que efetivamente pagou. 51- A viatura em causa marcava cerca de 190.000 kms e a mesma encontrava-se em perfeitas condições de funcionamento. 52- Tal viatura esteve pouco tempo na posse e propriedade da ora Contestante, sendo que nem decorrido um mês sobre a sua aquisição, mais propriamente em 16 de Maio de 2016, a viatura em causa foi vendida ao Sr. D…, pela quantia de € 9.000,00 (nove mil euros), que foi paga em numerário por este. 53- Enquanto a viatura foi da sua propriedade circulou escassas centenas de quilómetros e nunca teve qualquer problema mecânico ou elétrico com a viatura. 54- Quer na qualidade de compradora, quer na qualidade de vendedora da viatura em causa, sempre agiu desconhecendo a existência de qualquer vício anterior ou posterior à sua intervenção negocial. 55- F…, LDA. adquiriu o veículo automóvel com a matrícula ..-..-SA à Sociedade Comercial “G…, Unipessoal, Lda”, com o NIPC ……… e com sede na Rua … s/n, ….-… Penafiel, representada pelo Sr. N…. 56- Sendo que nessa mesma data a F…, LDA. conjuntamente à aquisição do supra mencionado veículo automóvel com a matrícula ..-..-SA, vendeu aquela Sociedade “G…, Unipessoal, Lda” a viatura automóvel de marca Volvo com a matrícula ..-IJ-.., pelo que, apesar de ter adquirido o veículo ..-..-SA, em apreço nos autos, pelo preço de 8.000,00€, pelo facto de vendido na mesma data o sobredito veículo da marca Volvo pelo preço de 13.000,00 €, recebeu da Sociedade Comercial “G…, Unipessoal, Lda” a quantia de 5.000,00 €. 57- Na data em que adquiriu o veículo automóvel supra identificado, o mesmo encontrava-se em boas condições de uso e funcionamento e continha aproximadamente 190.000 km, tendo a Sociedade Comercial Vendedora “G…, Unipessoal, Lda” exibido documento à F…, LDA. que retratava e evidenciava essa mesma quilometragem. 58- A F…, LDA. teve em seu poder a mencionada viatura somente durante 15 dias, concretamente entre 05 de Abril a 20 de Abril de 2016, e neste curto período não chegou a registar na Conservatória de Registo Automóvel o dito veículo, acabando por o negociar e vender à “E…, S.A”. 59- A F…, LDA. na qualidade de Compradora e bem assim na qualidade de Vendedora sempre agiu desconhecendo a existência de qualquer vício anterior ou posterior à sua intervenção negocial. 60- A “G…, Unipessoal, Lda”. no dia 30 de Novembro de 2015 adquiriu e comprou o veículo automóvel com a matrícula ..-..-SA à sociedade denominada “H…, Ldª., pessoa colectiva nº………, com sede na Avenida …, nº.., ….-… Braga, pelo preço de € 7.700,00. 61- À data da aquisição e compra do referido veículo, o mesmo encontrava-se em boas condições de funcionamento e continha 187.744 Km. 62- A “G…, Unipessoal, Lda”. teve na sua posse o mencionado veículo cerca de quatro meses, sendo que, durante esse referido período não chegou a registá-lo na Conservatória do Registo Automóvel. 63- No dia 5 de Abril de 2016, a “G…, Unipessoal, Lda”. vendeu o mencionado veículo à sociedade comercial denominada “F…, Ldª.. 64- O preço da venda foi pelo valor de € 8.000,00. 65- A “G…, Unipessoal, Lda”., quer na qualidade de compradora (que ocorreu em 30.11.2015) quer na qualidade de vendedora (que ocorreu em 05.04.2016) sempre agiu desconhecendo a existência de qualquer vício que existisse no referido veículo. 66- A “H…, LDA”. tem como escopo lucrativo a compra e venda de automóveis usados. 67- No exercício da sua atividade a “H…, LDA”. adquiriu, em 26/11/2015, o veículo automóvel com a matrícula ..-..-SA, marca Mercedes, a O…. 68- O Automóvel foi retomado pela “H…, LDA”., pelo valor de 7.500,00 €, para compra por O… de outro carro, nomeadamente a viatura com a matrícula ..-LS-... 69- Tudo conforme resulta do contrato de compra e venda celebrado entre a interveniente e o cliente já identificado e do recibo emitido pelo mesmo. 70- Foi verificado, antes da aquisição pela “H…, LDA”., que o carro não tinha quaisquer encargos registados e foi solicitada a ficha da última inspeção técnica periódica, realizada em 30/07/2015, através da qual se pode verificar que, naquela data, a viatura tinha 181.785 km. 71- À data da aquisição, o veículo mencionado encontrava-se em boas condições de funcionamento e continha 187.744 km. 72- O veículo foi vendido pela “H…, LDA”. três dias depois, pelo que nunca chegou a registado a seu favor, exatamente com a mesma quilometragem não tendo sequer saído das suas instalações. 73- Assim, em 30/11/2015, a “H…, LDA”. vendeu o mencionado veículo à sociedade comercial denominada “G…, Unipessoal Lda”, pelo valor de 7.700.00 €. 74- A “H…, LDA”., quer na compra, quer na venda do veículo objeto dos autos atuou sempre desconhecendo qualquer vício de que o mesmo alegadamente padecia e padece. 75- I… adquiriu no dia 12 de fevereiro de 2015, por contrato compra e venda, o veículo automóvel com a matrícula ..-..-SA (objecto dos autos), a J…, NIF ………, com morada na Rua …, …, Casa ., …, pelo preço de 11.000 euros. 76- Tal contrato de compra e venda do automóvel de matrícula ..-..-SA, celebrado entre I… e o sr. J…, foi mediado pela sociedade comercial “Q…, LDA.’’, NIF ………, com sede na Rua …, …, ….-…, Maia. 77- O preço convencionado entre I… e o mencionado J…, foi pago da seguinte forma: €6.000 (seis mil euros) em dinheiro acrescido pela entrega do veículo de marca Opel, de matrícula ..-BX-.., ao qual foi atribuído o valor de €5.000 (cinco mil euros). 78- Na data da celebração do contrato compra e venda referido, o veículo objeto dos autos, marcava no conta-quilómetros, ter percorrido, na sua existência, 172.358km. 79- A referida quilometragem do veículo automóvel, objeto dos autos, identificada no item anterior, foi condição essencial para que I…. tivesse formado a sua vontade de adquirir aquele veículo a J…, condição essa do perfeito conhecimento do referido J… e da sociedade que mediou a celebração do contrato de compra e venda. 80- J… e a sociedade que mediou o contrato compra e venda do automóvel objeto dos presentes autos, bem sabiam que se este veículo tivesse mais quilómetros dos que constavam no seu conta-quilómetros, I… nunca o teria comprado. 81- Em 26 de Novembro de 2015, I… vendeu o veículo objecto dos autos, à sociedade comercial ‘’H…, LDA., pessoa coletiva nº ………, com sede na Avenida … nº .., ….-…, Braga, com 187.744 km e pelo preço de 7.500.00€. 82- O preço deste negócio foi pago com recurso a uma retoma de outro veículo. 83- Nunca I… adulterou ou viciou os quilómetros do veículo presente nos autos. 84- I… atuou sempre – quer na qualidade de comprador, como a qualidade de vendedor do veículo objeto dos autos – desconhecendo a existência de qualquer vício anterior ou posterior à sua intervenção negocial. * 2.2. Factualidade considerada não provada na sentença O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos: 1- Pese embora (a Ré) bem saber o real estado da viatura que havia vendido ao A. 2- Quando o A. ligou ao representante legal da Ré, e por diversas vezes, para lhe dar conta dos problemas com a caixa de velocidades automática que começou a descontrolar-se e a engrenar a 3ª velocidade em vez de primeira e vice-versa, as mais das vezes não atendia, e outras tantas, maltratava-o telefonicamente, sem nunca assumir qualquer responsabilidade. 3- Não importando (para o Autor quando adquiriu a viatura à Ré) o número de anos ou quilómetros. 4- O fundamental para ele é que a referida viatura fosse barata. 5- Que o Autor antes de ter adquirido a viatura à Ré tenha experimentado a mesma durante vários dias. 6- Que o A. tenha decidido comprar a viatura, depois de ter circulado vários dias com o carro. 7- O A. quando comprou o carro sabia perfeitamente como ele se encontrava. 8- D… nunca chegou a registar em seu nome a viatura, atento o facto de nesse curto espaço de tempo, não ter tido a oportunidade de passar na Conservatória do Registo Automóvel.***2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto Nas conclusões recursivas veio a apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados provados e não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova. Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3. […]” O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova. Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação. No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e a apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugere. Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “[…] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância. No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual. A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3]. Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil. Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada. Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão. É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância. Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4]. Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão à apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela preconizados. Como emerge das respetivas conclusões recursivas, a apelante advoga que: i) deve ser alterada a redacção dos pontos nºs 5, 14 e 15 dos factos provados; ii) devem ser dadas como não provadas as afirmações de facto vertidas nos pontos nºs 12, 13, 16, 21, 22, 23, 24 e 28 dos factos provados; iii) devem ser dadas como provadas as proposições constantes dos pontos nºs 3, 4 e 7 dos factos não provados. Resulta do exposto que a impugnação da decisão da matéria de facto gira, essencialmente, em torno do conteúdo das negociações que foram entabuladas entre o autor e o legal representante da ré (S…), mormente a respeito das características e preço do veículo que o primeiro pretendia adquirir, negociações essas que vieram a culminar com a celebração do ajuizado contrato de compra e venda do veículo automóvel da marca Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-SA. Neste conspecto, a apelante argumenta fundamentalmente que os pontos factuais em crise foram alvo de errónea apreciação pelo juiz a quo, porquanto atribuiu um valor indevido as declarações do próprio autor que, na sua perspectiva, “não merecem credibilidade, tendo sido alteradas entre o momento da celebração do contrato e do julgamento, estando direccionadas, de forma claramente parcial com o escopo de obter uma decisão a seu favor”, não tendo, por outro lado, valorado devidamente as declarações prestadas pelo seu legal representante e pelas testemunhas por si arroladas (concretamente T… e U…), cujos depoimentos se “mostram isentos, desinteressados, transparentes e sinceros, sendo por conseguinte, credíveis e convincentes, o mesmo tendo acontecido com o depoimento do legal representante da ré, Sr. S…”. De seguida limita-se praticamente a transcrever excertos dos depoimentos que as pessoas que menciona prestaram na audiência final. Ora, para este efeito impugnatório, não basta a mera indicação, sem mais, de um determinado meio de prova, e também se revela insuficiente no que respeita à prova pessoal, a transcrição de alguns dos depoimentos produzidos em julgamento. Com efeito, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados. Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do nº 1 do citado art. 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante[5]. Daí que, da mesma maneira que ao tribunal de 1ª instância é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova que o conduziu a declarar quais os factos que julga provados e não provados (art. 607º, nº 4), devendo especificar, por razões de sindicabilidade e de transparência, os fundamentos que concretamente se tenham revelado decisivos para formar a sua convicção, facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretenda impugnar a decisão de facto o respetivo ónus de impugnação, devendo expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal a quo. Isso mesmo é sublinhado por ANA LUÍSA GERALDES[6], quando refere que o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, “deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos”. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal de 1ª instância (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, aos restantes meios probatórios, v.g., documentos, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada e é com esses elementos que a parte contrária deverá ser confrontada, a fim de exercer o contraditório, no âmbito do qual poderá proceder à indicação dos meios de prova que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente. Facto é que a apelante não realizou esse exercício de confronto entre (todos) os meios de prova produzidos sobre a materialidade impugnada, limitando-se, como se referiu, a transcrever excertos dos depoimentos prestados pelo seu representante legal e pelas testemunhas por si arroladas, não evidenciando em que medida os mesmos possam abalar o sentido decisório que quanto à factualidade em crise foi acolhido pelo decisor de 1ª instância, sendo que, como se enfatizou, não basta para tal efeito reproduzir excertos esses depoimentos, alguns deles de forma descontextualizada. Resulta do exposto que a apelante não deu integral cumprimento ao mencionado ónus, o que, per se, motivaria a improcedência do recurso no seu segmento de impugnação da matéria de facto. É certo que da audição do registo fonográfico dos mencionados depoimentos, mormente das declarações prestadas pelo legal representante da ré, S…, resulta ter o mesmo referido que quando o autor o procurou para comprar um veículo automóvel apenas lhe manifestou que o que pretendia era “um Mercedes …, usado, até 12.000,00€/13.000,00€”, não lhe tendo dito, em momento algum, “que queria o carro com mais ou menos Kms”. Adiantou que nunca soube dos alegados problemas com a caixa de velocidades e “quando andou a experimentar o carro com o autor esta estava boa”, desconhecendo ainda que tivesse sido adulterada a quilometragem da viatura. Já a testemunha T… (trabalhadora subordinada da ré) referiu que “o carro foi comprado propositadamente para o senhor B… [o ora autor]”, acrescentando que este “experimentou o carro para o testar, juntamente com o Sr. S…” e que, nessa ocasião, “o carro estava direitinho, bem estimado (…), tendo o mesmo sido levado ao U1… [a testemunha U…] para verificar o estado do carro”. Por seu turno, a testemunha U… (mecânico de automóveis que há vários anos a esta parte presta serviços de mecânica à ré) confirmou ter feito a revisão ao carro e que o mesmo “estava em óptimas condições”, referindo, a dado passo, que “um Mercedes como o dos autos faz até um milhão de quilómetros”. Haverá, no entanto, a registar que sobre a materialidade em crise, na audiência final, foram ainda inquiridas outras pessoas, designadamente o próprio autor e as testemunhas W…, X… e Y…. Da audição do registo fonético das declarações do autor resulta ter o mesmo referido que o estado do veículo (aparentemente sem deficiências mecânicas) e o número de quilómetros que o respectivo conta-quilómetros registava foram factores determinantes na compra do mesmo, como, aliás, transmitiu ao Sr. S… em diversas ocasiões, sendo que, ainda antes da concretização da venda, quando o carro foi levado para verificação na oficina da testemunha U…, lhe foi exibido “o livro de revisões que tinham sido feitas na Mercedes”, tendo-lhe ainda sido referido que “estava tudo direitinho, que estava tudo legal”. Adiantou que pouco tempo após ter comprado o carro o mesmo passou a apresentar um mau funcionamento, desligando sozinho em plena marcha e a caixa de velocidades automática descontrolava-se, engrenando a 3ª velocidade em vez da 1ª e vice-versa, o que causou diversos embaraços. Face a esses problemas procurou várias vezes entrar em contacto com o Sr. S…, nomeadamente por telefone, sendo que este ou não atendia as chamadas, ou então maltratava-o, dizendo-lhe peremptoriamente que não tinha nada a ver com esses problemas e que se quisesse fosse para Tribunal. Acrescentou que, em resultado desse comportamento do Sr. S…, dirigiu-se a um representante da Mercedes (a L…, S.A.) onde foi informado que o veículo em causa teria seguramente mais quilómetros do que os que eram registados no respectivo conta-quilómetros, o que veio a confirmar através dos serviços do Instituto da Mobilidade e dos Transportes. As declarações prestadas pelo autor foram, em grande medida, corroboradas pelos depoimentos das testemunhas W…, X… e Y… que revelaram conhecimento das condições que estiveram na base da compra do veículo pelo autor, tendo igualmente acompanhado de perto os problemas que a viatura passou a apresentar desde que o autor a adquiriu, presenciando conversas que o mesmo manteve com o Sr. S… a respeito dessas anomalias e da recusa deste em assumir a sua reparação. Na presença dos descritos subsídios probatórios, na sentença recorrida - concretamente no segmento em que procedeu à motivação da decisão de facto - o julgador exteriorizou o percurso lógico que o conduziu à formulação do juízo probatório sobre os factos objecto de impugnação, expondo os motivos essenciais que o determinaram a decidi-los no sentido aí acolhido, em particular na valorização (quando cotejada com a demais prova pessoal adrede produzida) dos depoimentos prestadas pelo autor e pelas testemunhas W…, X… e Y…. Portanto, tribunal recorrido e recorrente não divergem na leitura das provas, divergem na respetiva valoração, sendo que, neste ponto – tal como deflui das considerações tecidas na sentença recorrida - a manifestação desse convencimento pelo julgador revela uma tomada de posição clara e inequívoca, aí se indicando, de forma que reputamos adequada e coerente, as razões que fundaram a sua convicção, sendo certo que o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente. Na verdade, ao invés do que parece ser entendimento da apelante, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância e já não naqueles – como sucede na situação vertente - em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum. Inexiste, assim, fundamento probatório bastante que imponha (tal como se estabelece no nº 1 do art. 662º) decisão diversa relativamente às proposições factuais em crise.***3. FUNDAMENTOS DE DIREITO Vejamos agora a questão de fundo que se coloca no âmbito do presente recurso e que se traduz em saber se o substrato factual apurado permite, ou não, ao autor o direito de anular/resolver o contrato de compra e venda que celebrou com a ré. Na sentença recorrida reconheceu-se assistir ao demandante tal direito em virtude de esse negócio ter por objecto um veículo automóvel que se veio a verificar padecer de diversas anomalias que não foram reparadas pela ré vendedora, verificando-se igualmente viciação ou desconformidade entre os quilómetros efectivamente percorridos e os registados na viatura, no momento da sua aquisição. A apelante rebela-se contra esse segmento decisório, argumentando – no pressuposto na alteração do sentido decisório referente à factualidade objecto de impugnação – não ter resultado provado que o veículo em questão tivesse os defeitos que lhe são assacados e, sobretudo, que a quilometragem que o mesmo alegadamente apresentava aquando da celebração da compra e venda tivesse sido um elemento determinante na vontade de o autor realizar esse negócio, não tendo, aliás, culpa na desconformidade verificada entre os kms. percorridos e os kms. registados. Que dizer? Não é posto em crise que entre as partes foi celebrado um contrato de compra e venda que teve por objecto mediato um veículo automóvel usado, sendo que, em conformidade com a respectiva noção legal (cfr. art. 874º do Cód. Civil), este tipo negocial é aquele “pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”, tendo, pois, como efeitos essenciais (art. 879º do mesmo diploma) a transmissão da propriedade da coisa, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço. No que especialmente concerne à obrigação do vendedor, impõe o nº 1 do art. 882.º do Cód. Civil que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrar ao tempo da venda, o que implica para o comprador a obrigação de a rececionar ou levantar no lugar e no momento devidos. E, por mor das regras gerais de cumprimento da prestação (cfr. arts. 406º e 763º, do Cód. Civil), na execução da sua obrigação, o vendedor deve respeitar pontualmente (no sentido emergente desse primeiro normativo) o contrato, pela entrega da coisa convencionada, não podendo o comprador ser constrangido a receber coisa diversa da devida. Se a coisa entregue não apresentar as características – qualidade, quantidade, categoria ou tipo – supostas ou previstas pelas partes, dir-se-á em desconformidade com o contrato, e o comprador não obterá a satisfação esperada. Daí que o vendedor tenha não só a obrigação de entregar a coisa, mas também a de entregar uma coisa isenta de vícios ou defeitos, quer de vícios jurídicos (arts. 905º e seguintes do Cód. Civil) quer de vícios materiais (arts. 913º e seguintes do Cód. Civil). Isso mesmo tem sido posto em evidência na doutrina[7], que recorrentemente vem sustentando que apesar de o citado art. 879º não mencionar a garantia dos vícios da coisa, o vendedor somente cumprirá a sua obrigação pela entrega da coisa no estado em que se encontrava ao tempo da venda (art. 882º, nº 1), supostamente isenta de vícios ou defeitos de acordo com a vontade contratual (real, presumida ou hipotética) das partes complexivamente interpretada e integrada segundo a boa-fé. O vendedor encontra-se, assim, constituído no dever de entregar ou fornecer ao comprador coisa isenta de vícios e em bom estado de funcionamento, sendo que, por força do disposto no nº 1 do art. 913º do Cód. Civil “[s]e a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.” Por seu turno, preceitua o nº 2 do mesmo preceito legal que “[q]uando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.” Como a propósito do normativo transcrito comentam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[8] nele “cria-se um regime especial cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica (...) para as quatro categorias de vícios que aí são destacadas: a) vício que desvalorize a coisa; b) vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; c) falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina. Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afetadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos. Como disposição interpretativa, manda o nº 2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria (...)”. À luz destes ensinamentos, a venda da coisa pode considerar-se venda defeituosa quando, numa perspetiva de “funcionalidade”, contém vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina, ou então falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina. Nesta medida, conforme escreve CALVÃO DA SILVA[9], diz-se defeituosa “a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº2). A coisa será defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado”. Em análogo sentido se pronuncia MENEZES LEITÃO[10], o qual advoga que a aplicação do regime (geral) da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, “a lei faz incluir no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão vícios, tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que a falta de qualidades, embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato”. Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas “torna-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações.” Quando se esteja em presença de qualquer uma dessas situações, a lei substantiva (arts. 913.º, nº 1 a 915.º do Cód. Civil) confere ao comprador de coisa defeituosa determinados remédios ou garantias edilícias que se traduzem no direito de exigir do vendedor a reparação/substituição da coisa, de redução do preço, de anulação/resolução do contrato[11] e também do direito à indemnização. Descrito deste modo sumário o regime de compra e venda de coisa defeituosa vertido no Código Civil, importa ainda ter em consideração que, no nosso ordenamento jurídico, existem outras disposições legais que visam, primordialmente, proteger o comprador quando este assuma a qualidade de consumidor, disposições essas que lhe conferem um estatuto mais favorável e que, por isso, prevalece sobre aqueloutro regime[12]. Na verdade, o adquirente de coisa defeituosa, quando assuma a qualidade de consumidor, beneficia especialmente da proteção que lhe é conferida pela Lei de Defesa do Consumidor[13] (LDC) e bem assim pelo regime instituído pelo DL n.º 67/2003, de 8 de abril[14]. Portanto, como pressuposto lógico para a aplicação desses regimes, torna-se mister, desde logo, que o comprador seja um consumidor, conceito este que se mostra normativamente definido no art. 2º da LDC[15], em cujo nº 1 se postula que se “[c]onsidera consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” Por seu turno, o DL nº 67/2003, de 8 de abril tem o seu âmbito limitado às operações negociais tipicamente estabelecidas no seu art. 1º-A realizadas entre as entidades aí mencionadas, ou seja, aplica-se às pessoas que exerçam com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, e cujo fornecimento de bens ou serviços ocorra nesse âmbito e sejam destinados a uso não profissional pelo adquirente. De acordo com tais instrumentos normativos, o consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, e os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor (arts. 3.º, nº 1, al. a) e 4.º da LDC). Por sua vez, o vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem. E, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato (cfr. arts. 3º e 4º, nº 1 do DL n.º 67/2003, de 8 de abril). Como é consabido, com este último diploma pretendeu-se proteger o consumidor relativamente à aquisição de bens de consumo (imóveis ou móveis, mesmo que usados), em que o bem entregue padece de desconformidade face ao contrato de compra e venda, presumindo-se (cfr. art. 2.º, nºs 1 e 2) as seguintes situações em que ocorre desconformidade com o contrato, a saber: a) não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem. Portanto, e resumindo, mesmo no âmbito dos diplomas legais citados, a sua aplicação sempre depende da existência de “vícios da coisa ou coisa defeituosa”, vendida ou adquirida, ou “desconformidade face ao contrato de compra e venda”, ou seja, perspetivando-se que o bem sofra de vício que a desvalorize ou que impeça a realização da finalidade a que a mesma se destina ou careça das qualidades necessárias e asseguradas pelo vendedor para a realização desse fim. Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio, está provado que, em 6 de maio de 2016, o autor, para seu uso pessoal, adquiriu à ré/apelante (que, por sua vez, se dedica ao comércio de veículos novos e usados), pelo preço de €13.000,00, o veículo automóvel de marca Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-SA. E mais se demonstrou que, aquando da celebração do contrato de compra e venda, a ré referiu ao autor que o identificado veículo “estava em boas condições de funcionamento e os seus órgãos essenciais, nomeadamente o motor, se encontravam impecáveis”. Resultou de igual modo provado que o veículo, passados alguns dias após a sua aquisição, começou a apresentar diversas anomalias, designadamente o motor desligava-se sozinho, assim como a caixa de velocidades automática descontrolava-se, engrenando a 3ª velocidade em vez da 1ª e vice-versa. O autor confrontou então a ré com os mencionados problemas mecânicos, a qual, todavia, não se prontificou a repará-los, vindo posteriormente o autor a ter conhecimento, através de uma oficina autorizada da Mercedes-Benz, que a quilometragem exibida no conta-quilómetros da viatura não tinha correspondência com a realidade, facto que veio a confirmar através do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP, pois de acordo com o histórico das inspecções periódicas ao veículo, este no dia 12 de julho de 2012 tinha atingido já 497.063Kms., ou seja, o veículo foi vendido pela ré ao autor como se o mesmo apresentasse apenas 181.785 Kms. percorridos quando efectivamente, nessa ocasião, contava mais de 500.000Kms. Perante esta factualidade resulta claro que a viatura apresentava vícios/desconformidades no apontado sentido normativo do termo. Ainda de acordo com a materialidade apurada, dúvidas não se colocam que o autor assume a qualidade de consumidor, enquanto a ré, por seu turno, interveio no ajuizado contrato como vendedora profissional, razão pela qual, na apreciação das pretensões por aquele aduzidas nestes autos, será aplicável o referido DL nº 67/2003, de 8.04. Como se referiu, este decreto-lei - no que especialmente tange aos direitos do consumidor em caso de falta de conformidade[16] da coisa que lhe foi entregue - consagra um conjunto de garantias edilícias que passam pelo direito de reparação ou substituição da coisa, redução do preço ou resolução do contrato (cfr. art. 4º)[17], e isto independentemente de culpa do vendedor no cumprimento inexacto da obrigação de entregar o bem devido, como, com meridiana clareza, emerge dos seus arts. 2º, nº 1 e 3º, nº 1. De facto, como sublinha CALVÃO DA SILVA[18], o diploma em causa “impõe a responsabilidade do vendedor por qualquer falta de conformidade existente no momento da entrega da coisa – independentemente de a não conformidade ser anterior, concomitante ou posterior à celebração da compra e venda – e que se manifeste dentro de dois ou cinco anos a contar dessa data”, consoante a coisa for móvel (art. 5º, nº 1) ou imóvel (art. 3º, nº 2), respectivamente. O propósito confesso do legislador traduziu-se, pois, numa mais intensa protecção do comprador, através da consagração de uma garantia legal de conformidade, alterando-se, como sublinha MENEZES LEITÃO[19], o regime tradicional que se resumia na máxima caveat emptor (o comprador que se acautele), por um regime baseado no cumprimento em conformidade e que se caracteriza pela máxima inversa: caveat venditor (o vendedor que se acautele), ou seja, a responsabilidade do vendedor não é excluída pelo simples facto de não ter tido culpa no defeito da prestação. No caso, como se referiu, em resultado das desconformidades que o veículo apresentava (e que não foram debelados pela ré, malgrado tenha sido interpelada nesse sentido), o demandante formulou uma pretensão de “anulação” do ajuizado contrato, pretensão essa que, na sequência do enquadramento jurídico supra descrito, terá, summo rigore, de ser perspectivada como de resolução desse vínculo negocial. Questão que então se coloca é a de saber se se encontra reunido o condicionalismo necessário para operar essa forma de extinção do contrato com a inerente relação liquidatória, como, a final, acabou por ser decretado no dispositivo do ato decisório recorrido. Na economia do citado art. 4º a resolução do contrato não está, propriamente, dependente da inviabilidade ou esgotamento das demais garantias edilícias[20] aí conferidas ao comprador/consumidor, podendo este exercer directamente aquele direito, salvo se, de acordo com o seu nº 5, “[t]al se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais”, isto é, o concurso eletivo apenas se encontra limitado pelo respeito pelo princípio geral da boa-fé. No sentido de neutralizar a pretensão aduzida argumenta a recorrente que desconhecia a desconformidade ou viciação de quilómetros, sendo certo que o vendedor da viatura lhe havia garantido que a mesma tinha os quilómetros que ostentava, o que prova que não teve "culpa" nesse desconhecimento. Ora, ainda que assim fosse (isto é, que tal facto lhe tenha sido assegurado pelo vendedor), isso não o inibiria da responsabilidade perante o comprador autor, o que torna totalmente irrelevante a sua prova ou não prova. Na realidade, exercendo a apelante a atividade profissional de compra e venda de veículos, em face das implicações neste domínio da referida garantia de conformidade, terá de ser ela - e não o comprador - a suportar o risco da desconformidade, em consonância com a referida regra do caveat venditor. Assim sendo, mais não resta do que concluir, face à inviabilidade de eliminação das mencionadas desconformidades - e não tendo sido alegados quaisquer factos tendentes quer à reparação/substituição do veículo, quer à redução do preço -, assistir ao autor o direito a ver resolvido o contrato. De facto, o principal fundamento por este invocado no sentido de pôr termo à ajuizada relação contratual assenta da disparidade substancial da quilometragem real percorrida e a que constava do conta-quilómetros do veículo por ocasião da celebração do ajuizado contrato de compra e venda, sendo certo outrossim que as deficiências mecânicas de que o mesmo padece (e que não foram oportunamente reparadas pela ré, malgrado as interpelações nesse sentido) são de molde a comprometer a sua normal utilização. Ora, nessas circunstâncias, não se tornaria sequer viável a reparação dessas desconformidades, em particular no que tange à primeira, pois não se pode “apagar” o número de quilómetros percorrido do veículo de modo a que tudo se passasse como se não tivesse sucedido. E quanto à substituição, tal remédio não se revela, in concreto, exercitável, na justa medida em que, como emerge do tecido fáctico apurado, a apelante não se dispôs a colocar à disposição do autor outro veículo, da mesma marca, modelo, quilometragem anunciada, estado de conservação e preço. Aliás, como já anteriormente se deu nota, o posicionamento que a ré assumiu nestes autos traduziu-se, na essência, em sustentar não ter tido culpa em tal desconformidade (por ter também adquirido o veículo com a quilometragem nele indicada), como se fosse o autor, enquanto consumidor e comprador, a assumir o risco daí emergente. Não colhe, por isso, o argumento invocado e que se traduziria na circunstância de, como a recorrente foi eventualmente enganada, estaria liberta de responsabilidade, sendo de ressaltar, de qualquer modo, que terá a possibilidade de exercer o seu direito de regresso contra quem procedeu à adulteração da quilometragem do veículo. Portanto, in casu, sendo inviável, nos termos expostos, a reparação ou substituição do veículo e provadas que foram as invocadas desconformidades, terá o demandante o direito de resolver o contrato, não se vislumbrando a ocorrência de qualquer abuso no exercício dessa garantia edilícia, dada a gravidade dos defeitos/desconformidades que o veículo apresenta e da sua repercussão negativa na aptidão para o fim a que se destina e no seu valor, o que justifica, sob um ponto de vista objectivo, a perda de interesse na ajuizada aquisição. Consequentemente, sendo os efeitos da resolução equiparados à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (cfr. art. 289º ex vi do art. 433º, ambos do Cód. Civil) - o mesmo é dizer que a resolução tem efeito retroactivo -, deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado em execução do contrato, tal como se decidiu na sentença recorrida, que não merece, assim, a censura que lhe é dirigida pela apelante.***III- DISPOSITIVO Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. Custas a cargo da apelante (art. 527º, nºs 1 e 2). Porto, 04.10.2021 Miguel Baldaia de Morais Jorge Seabra Pedro Damião e Cunha ________________ [1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem. [2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência. [3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272. [4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt. [5] Cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 15.09.2011 (processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1), de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos desta Relação de 5.11.2012 (processo nº 434/09.5TTVFR.P1) e de 17.03.2014 (processo nº 3785/11.5TBVFR.P1) e acórdãos da Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº 132/14.8T8BCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [6] Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, pág. 4 e seguinte, trabalho disponível em www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf. Idêntico entendimento vem sendo acolhido na jurisprudência, de que constituem exemplo, inter alia, os acórdãos do STJ 15.09.2011 Processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos desta Relação de 5.11.2012 (processo nº 434/09.5TTVFR.P1) e de 17.03.2014 (processo nº 3785/11.5TBVFR.P1) e acórdãos da Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº 132/14.8T8BCL.G1), acessíveis em www.dgsi.pt. [7] Cfr., por todos, CALVÃO DA SILVA, in Compra e venda de coisas defeituosas, 4ª edição, Almedina, págs. 21 e seguinte e MENEZES LEITÃO, in Direito das Obrigações, vol. III, 6ª edição, Almedina, págs. 31 e seguintes. [8] In Código Civil Anotado, vol. II, 3ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, págs. 210 e seguinte. [9] Ob. citada, págs. 41 e seguintes. [10] Ob.citada, págs. 123 e seguinte; em idêntico sentido milita ROMANO MARTINEZ, in Direito das Obrigações, Parte Especial - Contratos, Almedina, 2.ª edição, págs. 135 e seguinte. [11] Como é consabido, tem sido objecto de discussão, especialmente na doutrina, a questão de saber se a matéria dos defeitos da coisa se integra no instituto geral do erro ou se deve antes ser analisada à luz da responsabilidade contratual por incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato – cfr. sobre esta temática, inter alia, ROMANO MARTINEZ, in Cumprimento defeituoso – Em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, 2001, págs. 261-269 e CALVÃO DA SILVA, ob. citada, págs. 50-58. [12] Como, a este propósito, sublinha MENEZES LEITÃO (ob. citada, págs. 135 e seguinte), “o regime civil tradicional relativo às perturbações da prestação no contrato de compra e venda tem vindo sucessivamente a perder aplicação no âmbito das relações de consumo [dado que] o regime clássico consagrado nos diversos códigos civis para o cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda apresenta quase sempre distorções em prejuízo dos consumidores”. [13] Lei n.º 24/96, de 31/7, alterada pelo DL n.º 67/2003, de 8 de abril e pela Lei n.º 47/2014, de 28/7. [14] Alterado e republicado pelo DL n.º 84/2008, de 21 de maio. [15] Definição análoga é acolhida na alínea a) do art. 1º-B do DL nº 67/2003, de 8.04, que igualmente consagra uma noção de consumidor em sentido estrito. [16] Note-se que, como tem sido enfatizado pela doutrina (cfr., inter alia, MORAIS CARVALHO, Manual de Direito do Consumo, 2ª edição, Almedina, pág. 188), com o DL nº 67/2003 – que acolheu a noção de “conformidade com o contrato” – ficou ultrapassada a sujeição da invocação da desconformidade à verificação dos requisitos legais do erro, ao contrário do que ainda acontece no regime da compra e venda de coisas defeituosas do Código Civil - isto para aqueles que defendem que a aplicabilidade dos arts. 913º a 915º está depende da ocorrência dos requisitos desse vício na formação da vontade. [17] A estes direitos acresce ainda a indemnização, nos termos estabelecidos no nº 1 do art. 12º da LDC. [18] In Venda de bens de consumo, 4ª edição revista, aumentada e actualizada, Almedina, pág. 98. [19] In O novo regime da venda de bens de consumo, Estudos do Instituto de Direito do Consumo, vol. II, 2004, Almedina, págs. 37 e seguintes. [20] Refira-se, no entanto, que tem sido objecto de discussão a questão de saber se o mencionado art. 4º estabelece, ou não, uma hierarquização no exercício desses direitos – cfr., para maior desenvolvimento, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, págs. 155-158, CALVÃO DA SILVA, Venda de bens de consumo, págs. 104-112 e MORAIS CARVALHO, ob. citada, págs. 222-233.