Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC) I. O art.º 41.º do Dec.Lei n.º 291/2007, de 21.8 (regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), bem como os restantes artigos contidos no Capítulo III (“Da regularização dos sinistros”) do Título II (“Do seguro obrigatório”) do aludido diploma, apenas regem os padrões que as partes, em especial a seguradora, poderão ou deverão ter em conta numa fase pré-jurisdicional de regulação dos seus interesses, procurando que tal regulação chegue a bom porto de forma rápida e sem os custos inerentes à resolução jurisdicional dos litígios, não obrigando os tribunais numa eventual fase jurisdicional de resolução do conflito. II. O pedido de condenação da seguradora no pagamento ao lesado do valor do custo de reparação do seu veículo contém-se no quadro da reconstituição natural da situação que existiria se não tivesse ocorrido o sinistro. III. A privação do uso de viatura (ou, se se quiser, a privação da possibilidade de uso da viatura) é um dano patrimonial, economicamente valorizável, se necessário com recurso à equidade.
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa RELATÓRIO Em 15.12.2015 Carlos intentou ação declarativa de condenação contra P – Sucursal em Portugal. O A. alegou, em síntese, que em 13.05.2015 o veículo automóvel que conduzia, a si pertencente, foi embatido por uma outra viatura, por culpa exclusiva do respetivo condutor. A responsabilidade civil automóvel do proprietário deste veículo estava transferida para a ora R., a qual declarou assumir a responsabilidade dos danos causados pelo sinistro. Porém, a R. entendeu que o veículo do A. se encontrava em situação de perda total, por o custo da respetiva reparação, adicionado ao respetivo salvado, exceder 120% do valor venal do veículo, valor venal esse que a R., após reclamação do A., avaliou em € 6 500,00, atribuindo ao salvado o valor de € 3 235,00. Porém, o A. entendia que o valor venal do veículo à data do acidente não era inferior a € 8 000,00, e além disso entendia que devia ser compensado pela privação da viatura. Face à recusa da R. em atender a pretensão do A. este foi forçado a proceder ao reboque da viatura, da oficina onde se encontrava, para a sua residência, no que despendeu € 43,05. O A., que carece da sua viatura para o seu dia-a-dia, não tem podido utilizá-la, o que justifica, tendo em conta os valores praticados pelas empresas de rent-a-car e os fixados nas decisões judiciais, uma indemnização diária de € 12,50, a que corresponde, à data da propositura da ação, o valor de € 2 700,00. Além disso, a reparação da viatura é possível e não é excessivamente onerosa, orçando em € 8 896,47. Em consequência do acidente e do litígio com a R. o A. sofreu susto, incómodos, preocupações e ansiedade, dores de cabeça e dores no pescoço, cuja reparação deve ser computada em € 1 000,00. O A. terminou pedindo que a R. fosse condenada no pagamento da quantia de € 12 639,52. A R. contestou a ação, admitindo a sua responsabilidade pelas consequências do acidente, mas alegando que o valor venal do veículo era de € 6 500,00 e que a sua reparação, sem desmontagem, orçava em € 8 088,96 e que o valor do salvado era de € 3 235,00, pelo que a proposta da R. cumprira as normas legais. Mais impugnou os danos invocados pelo A., concluindo pela sua absolvição do pedido, embora admitisse que pudesse vir a ser condenada na quantia a título de perda total, subtraindo-se o valor do salvado, que ficaria na posse do A.. Foi proferido saneador tabelar, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova. Realizou-se audiência final e em 23.9.2016 foi proferida sentença em que se julgou a ação parcialmente procedente e consequentemente se condenou a R. no pagamento ao A. da quantia de € 3 265,00 e se absolveu a R. do remanescente pedido, com custas pelo A.. O A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões: 1 - As testemunhas oferecidas pelo A., pessoas do seu círculo nuclear e próximo depuseram com isenção e verdade. 2 - Deveriam ter sido dados como provados seguintes factos: Que o Autor tenha tido sempre grande estima pelo carro, aplicando-lhe todos os cuidados possíveis na sua utilização e procedendo às reparações e manutenções necessárias; Que não existissem veículos da mesma marca e modelo, do mesmo ano e com as mesmas características daquele que estivessem em estado de conservação idêntico ao do Autor; Que não existissem, para venda, veículos idênticos ao do Autor, com todos os seus componentes) por valor inferior a 8.000,00€; o que resulta claro dos depoimentos das testemunhas e das declarações do próprio A., que não merecem também dúvida. 3 - Não pode também o A. aceitar a conclusão do tribunal a quo de não considerar provado o custo do reboque. 4 - O documento que se junta para prova do alegado – despesa de €43,05 pelo serviço de reboque desde o Entreposto Feijó para Charneca Caparica – foi objecto de impugnação por parte da R. por alegar desconhecer sem ter obrigação de conhecer, o que se aceita. 5 - Em termos probatórios, a consequência é de conferir àquele documento a força probatória sujeita à livre apreciação. 6 - Não fundamenta o tribunal a quo o motivo pelo qual não considera a informação que está naquela folha. 6 – [número repetido, no texto original] Não se pode aceitar que o tribunal a quo avalie os factos concluindo pela não existência de dano de privação do uso do veículo. 7 - O próprio A. afirmou nas suas declarações que usava o veículo nas suas deslocações do dia-a-dia, bem como o fez o seu irmão. 8 - O A. viu-se privado do uso do veículo durante um determinado período e, na realidade, usa de momento o veículo, embora o mesmo não esteja reparado na totalidade. 9 - Durante o período em que o veículo esteve imobilizado, tal situação originou a perda de utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente. 10 - Não pode aceitar o A. a conclusão que o tribunal a quo determinou, devendo ser fixado um quantum indemnizatório com recurso às regras de equidade, avaliando designadamente o depoimento de Hugo Fernandes e as declarações do A. 11 – Andou mal também o tribunal a quo por desconsiderar os danos físicos e o sofrimento psicológico do A.em consequência do sinistro. 12 - Mais refere o tribunal que duvida da palavra do mesmo que, no decorrer das suas declarações depôs que no próprio dia não sentiu qualquer desconforto, mas que foi no dia seguinte que tal se verificou. 13 - Para além dos depoimentos do irmão e dos amigos, as próprias declarações do A. são ricos para apurar os danos sofridos pelo A. em resultado do sinistro. 14 - Ao contrário do sufragado pelo tribunal a quo a páginas 9 da douta sentença recorrida, o artigo 41º do DL n.º 291/2007 de 21.08 restringe-se ao procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da proposta razoável, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade. Tem sido este o entendimento maioritário da jurisprudência portuguesa, que bem não tem obrigado os lesados a aceitarem perdas patrimoniais de grande valor face as intenções das seguradoras. 15 - Mais, andou mal também o tribunal a quo ao entender que há um qualquer problema em o A. peticionar a condenação da R. no pagamento da despesa de reparação do veículo e que tal facto gera a aplicabilidade imediata da supra mencionada norma. 16 - Ao contrário do pretendido não inviabiliza a obrigação de indemnizar que impende sobre a R. relativa ao custo da reparação (valor que foi dado como provado) a circunstância de a mesma se mostrar já ou ainda não paga (o que em concreto nem sequer se apurou, até porque o que ficou demonstrado é que o A. já tinha gasto algumas verbas em peças) nem mesmo a circunstância dessa reparação se mostrar já ou ainda não efectuada. 17 - Devem as mencionadas nulidades ser julgadas procedentes por provadas, atendendo a que a decisão de que se recorre foi proferida sem apoio na produção da prova testemunhal, bem como dos documentos. 18 - Mais, a fundamentação de direito carece de correcção e como tal incorre em nulidade processual, que deve também ser sanada. O apelante terminou pedindo que a sentença fosse revogada e substituída por outra que julgasse a ação totalmente provada e procedente e consequentemente condenasse a R. no pedido. A R. contra-alegou, tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões: 1ª – O Recorrente não elencou minimamente quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nos termos da alínea a) do nº 1, do art. 640º do CPC, pois não discriminou/identificou qual ou quais os pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, limitando-se a identificar os mesmos por capítulo e não para o elenco dos factos considerados provados e/ou não provados, em clara violação aos requisitos formais e processuais do recurso e que, não sendo cumpridos, implicam a rejeição do mesmo, nos termos do nº 1 do citado preceito legal; 2ª Por outro lado, o Recorrente não observou os ditames constantes do art. 640º, nº 2, alínea a) do CPC, pois tal normativo exige – sob pena de rejeição do recurso na respectiva parte – a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, tendo apenas o Recorrente indicado o início e o fim de cada depoimento, e não as passagens exactas que entende deverem ser apreciadas em sede de impugnação de prova, limitando-se a emitir considerações sobre os depoimentos prestados e nada mais - não tendo assim, cumprindo o disposto no citado artigo 640º, nº 2, al.a), do CPC; 3ª Pelo que, e atendendo à cominação legal constante do nº 1 e do nº 2 do art. 640º do CPC, não tendo o recorrente especificado os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e não tendo indicado com exactidão as passagens da gravação em que fundava o seu recurso, deve o mesmo ser considerado desconforme e nessa sequência, ser, nessa parte, rejeitado, nos termos da lei; 4ª Sem conceder, considera a recorrida que a douta sentença fundamentou devidamente a apreciação da prova produzida, tendo objectivamente indicado na douta sentença, as razões pelas quais valorou ou não determinados testemunhos e par da prova documental existente nos autos, não tendo por essa via, omitido qualquer dever ou formalidade legal; 5ª A aplicação do direito, face à pretensão do Recorrente está correcta, tanto mais que não é peticionada a reparação do veículo, mas sim invocada pelo A/Recorrente – sem que tenha sido provado – que este apenas podia adquirir veículo semelhante com a verba superior a 8.000€; 6ª Quem alega um facto tem via de regra, o ónus de o provar e o Recorrente não logrou provar a sua pretensão manifestada na p.i., mas tal não resulta de errada ou deficiente apreciação da prova produzida, antes sim, resulta da análise crítica da mesma efectuada pelo douto Tribunal recorrido, que ponderada a mesma e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, decide. A apelada terminou pedindo que a apelação fosse julgada improcedente e consequentemente se mantivesse a decisão recorrida. Foram colhidos os vistos legais. FUNDAMENTAÇÃO As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes: admissibilidade do recurso quanto à impugnação da matéria de facto; em caso de resposta positiva à questão anterior, haverá que apreciar se a decisão de facto deve ser alterada; finalmente, haverá que apreciar os danos ressarcíveis e respetivos montantes indemnizatórios. Primeira questão (admissibilidade do recurso quanto à impugnação da matéria de facto) O tribunal a quo deu como provada a seguinte Matéria de facto A) No dia 13/05/2015, cerca das 16h40, na Avenida da Ponte, no sentido Sul- Norte (A2), ocorreu um acidente de viação (art.º 1º da p.i.). B) Foram intervenientes neste acidente dois veículos (art.º 2º da p.i.). C) O Autor é proprietário do veículo ligeiro de passageiros de marca Audi, modelo A3, com a matrícula BG. (art.º 3º da p.i.) D) Na data do sinistro o veículo BG era conduzido pelo Autor (art.º 4º da p.i.). E) O acidente em causa traduziu-se no embate da lateral direita do veículo com a matrícula OP na frente e lateral esquerda do veículo BG (art.º 5º da p.i.). F) O embate ocorreu em virtude da mudança de faixa de rodagem do veículo OP, conduzido pelo Sr. Mauro, transpondo o traço contínuo que separava as duas faixas, para a faixa onde circulava o veículo BG, conduzido pelo Autor. (art.º 6º da p.i.). G) O proprietário do veículo OP tinha à data dos factos a responsabilidade civil emergente de acidente de viação transferida para a “Zurich”, aqui Ré, nos termos da apólice n.º que consta de fls. 32 verso e 33 dos autos (art.º 9º da p.i.). H) O Autor remeteu para a Ré uma reclamação para pagamento dos danos emergentes deste acidente, tendo junto os dados relativos ao sinistro, preenchidos numa declaração amigável (art.º 10º da p.i.) I) Na sequência da participação do sinistro junto da Ré, esta veio informar o Autor que assumia a totalidade da responsabilidade dos danos causados pelo cliente, uma vez que aquele foi considerado responsável pelo acidente (art.º 11º da p.i.). J) Por missiva datada de 8 de Junho de 2015, veio a Ré também informar que pretendia indemnizar o A. pela “perda total” do seu veículo BG, nos termos que constam do documento de fls. 12 dos autos (art.º 12º da p.i. e 3º da contestação). K) Face ao teor da comunicação da Ré, agindo em representação do Autor, o seu mediador de seguro automóvel enviou por correio electrónico comunicação na qual manifestou que aquele não estava de acordo com os fundamentos e com a pretensão da Ré, nos termos que constam do documento de fls. 13 (art.º 13º da p.i.). L) A Ré, após a reclamação do Autor, aceitou rever a sua proposta e apresentou como valor venal a atribuir ao veículo a quantia de €6.500,00 (seis mil e seiscentos euros) (art.º 14º da p.i.) M) Face à recusa da Ré em proceder à reparação da sua viatura, o Autor mandou proceder ao reboque da viatura que se encontrava na oficina – Entreposto Feijó – para a sua residência na Charneca de Caparica (art.º 19º da p.i.). N) A reparação do veículo do Autor custa € 8.896,47 (art.º 37º da p.i.). O) O Autor realizou uma Ressonância Magnética da Coluna Cervical. (artigo 52º da p.i.). P) Em 05/06/2015, o Autor realizou uma Radiografia ao Tórax. (art.º 53º da p.i.) Q) O valor do salvado era de 3.235,00€ (art.º 4º da contestação). R) O veículo do Autor foi fabricado no ano de 2002, tendo sido importado, sendo a matrícula portuguesa do ano de 2005 e à data do acidente marcava 259.777 quilómetros (artigos 6º e 7º da contestação). Mais se indicaram na sentença, os seguintes Factos Não provados a) Que o Autor tenha tido sempre grande estima pelo carro, aplicando-lhe todos os cuidados possíveis na sua utilização e procedendo às reparações e manutenções necessárias (art.º 16º da p.i.). b) Que não existissem veículos da mesma marca e modelo, do mesmo ano e com as mesmas características daquele que estivessem em estado de conservação idêntico ao do Autor (art.º 17º da p.i.) c) Que não existissem, para venda, veículos idênticos ao do Autor, com todos os seus componentes) por valor inferior a 8.000,00€ (art.º 18º e 44º da p.i.). d) Que o veículo fosse regularmente utilizado na organização da sua vida doméstica, para se deslocar para o seu trabalho em Lisboa, bem como para quaisquer outras deslocações profissionais ou de lazer (art.º 24º e 43º da p.i.). e) Que o Autor tenha despendido a quantia de €43,05 com o reboque do veículo (artigo 20º da p.i.). f) Que o Autor tenha tido um acréscimo de despesas, por recorrer a transportes alternativos ao seu veículo (artigo 29º da p.i.) g) Que o Autor tenha recorrido a táxis e outros transportes públicos, e que o valor médio de aluguer de um carro num “rent-a-car” seja de €25 (art.º 29º da p.i.). h) Que o veículo do autor estava em bom estado de conservação e em condições de perfeito funcionamento, e a sua reparação permite repô-lo nesse estado (art.º 42º da p.i.). i) Que o Autor tenha sofrido com o susto no momento do embate e com o incómodo para a planificação da sua vida diária e com o tempo que teve de despender em virtude do sinistro, no dia em que o mesmo ocorreu. (art.º 48º da p.i.). j) Que o Autor sofreu com o transtorno de ver a sua viatura danificada, sem que a Ré se responsabilizasse pela rápida resolução da sua reparação, o que originou a necessidade de contactar por diversas vezes os serviços da Ré, designadamente, a gestão do processo de sinistro, e que esta, por diversas vezes, tenha ignorado o contacto do Autor. (art.º 49º da p.i.). k) Que os contactos (entre Autor e Ré) provocaram no Autor preocupações, ansiedade e dores de cabeça (art.º 50º da p.i.). l) Que no dia seguinte ao acidente, o Autor tenha sentido dores fortes no pescoço, e que tenha usado uma tala (colar cervical) e tomado medicação analgésica e anti-inflamatória (art.º 51º da p.i.). m) Que o Autor tenha sido aconselhado a continuar a vigilância da situação, face à persistência das dores (artigo 53º e 54º da p.i.). n) Que o orçamento de reparação do veículo, sem desmontagem, fosse de 8.088,96€ (art.º 4º da p.i.). O Direito Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2 alínea a) do art.º 640.º do CPC). Resulta do texto legal ser intenção do legislador que o inconformismo da parte acerca da decisão de facto se expresse de forma clara e precisa, através da indicação clara e precisa dos pontos de facto concretos sobre os quais incide a discordância da parte, a indicação clara e precisa do sentido da decisão que deve ser tomada acerca de cada um dos pontos de facto sobre que incide a impugnação, a indicação dos meios de prova em concreto em que se baseia essa discordância e, tratando-se de meios probatórios gravados, a indicação exata das passagens da gravação em que se baseia o recurso – sob pena de rejeição da impugnação da matéria de facto. Conforme foi já entendido pelo presente relator, acompanhado pela Exm.ª 1.ª adjunta, v.g. no acórdão proferido em 24.9.2014, no processo n.º 9642/03.1TBCSC.L1, “a transcrição dos depoimentos não se substitui à identificação das passagens (por indicação do momento temporal do início e do fim de cada trecho) das gravações tidas por relevantes (…). A identificação das passagens da gravação destina-se a, por um lado, permitir ao tribunal a quo aceder rapidamente aos trechos do depoimento que alegadamente relevem, o que assumirá particular importância no caso de depoimentos longos, que poderão até ter incidido sobre múltiplos factos, não impugnados em sede de recurso, como visa garantir que a apelante fez uma análise séria e rigorosa da decisão de facto e da sua fundamentação. Assim como o tribunal deve indicar de forma clara e completa os factos que considera provados e não provados e deve explicar de forma clara e completa os motivos do seu juízo, analisando criticamente as provas acerca de cada facto (art.º 607.º n.ºs 3 a 5 do CPC), num exercício que não só garante a transparência da justiça mas também possibilita a demonstração de que o tribunal empreendeu a referida tarefa de forma metódica e ponderada, também as partes, na impugnação que fizerem desse juízo, deverão demonstrar que a sua iniciativa se baseia numa avaliação séria dos factos e das provas, apresentando-a em condições que possibilitem ao tribunal ad quem efetuar, sem a mediação de particulares esforços interpretativos do sentido da interpelação do recorrente, a análise crítica que se lhe pede.” Contudo, cabe registar que o STJ tem propugnado, em sucessivos acórdãos, uma postura classificada como menos formal, nomeadamente em situações em que o recorrente, sem identificar precisamente as passagens dos depoimentos gravados em que se apoia, procede à transcrição dessas passagens. Neste sentido, com citação de abundante jurisprudência, veja-se o recente acórdão do STJ, de 22.02.2017, proferido no processo n.º 988/08.3TTVNG.P4.S1, onde a dado passo se exarou o seguinte: “Quanto à indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância [nº 2, al. a)] tem entendido este Supremo que não deve adotar-se uma posição excessivamente formal, considerando que é dado cumprimento ao ónus em causa, quando o recorrente faça uma indicação que possibilite à Relação o acesso, sem dificuldade, ao excerto da prova visado, designadamente com a transcrição dessas concretas passagens, ainda que omitindo a indicação do respetivo início e termo, por referência à gravação, limitando essa indicação ao início e termo do depoimento.” E mais adiante: “A indicação precisa do início e termo das concretas passagens destina-se, tão só, a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação. E se é verdade que essa indicação precisa é de primordial importância quando estão em causa depoimentos longos, já a mesma se afigura pouco relevante no caso de depoimentos de curta duração. Por outro lado, impondo-se, atualmente, que a Relação crie a sua própria convicção relativamente à prova produzida e à matéria de facto impugnada no recurso, cremos que tal desiderato dificilmente se atingirá com a mera reapreciação de excertos dos depoimentos, o que não significa que se transforme ou deva transformar a reapreciação da prova num novo julgamento, que nunca será, uma vez que a mesma se limita aos pontos de facto indicados pelo recorrente. Não podem, aliás, olvidar-se os poderes/deveres de averiguação oficiosa conferidos pela al. b) do nº 2 do art. 640º do CPC e que apenas são alcançáveis se a Relação não se limitar a uma audição parcial e, necessariamente, truncada dos depoimentos.” Revertendo ao caso destes autos, constata-se que o apelante indicou concretamente alguns dos factos que lhe merecem censura, e que são os factos que o tribunal a quo julgou não provados sob as alíneas a), b), c) e e), factos esses atinentes ao que o apelante identifica como “estima do A./valor patrimonial do veículo sinistrado” e “despesa de reboque”. No mais, ou seja, no que concerne ao “dano de privação de veículo” e aos “danos físicos e sofrimento psicológico” o apelante limita-se a tecer considerações gerais acerca do seu inconformismo pela improcedência do por si peticionado, sem indicar os factos concretos, de entre os dados como provados e não provados, que a esse respeito reputa mal julgados, nem o exato sentido do que deveria ter sido decidido em relação a esses factos concretos. Mais, nesta parte o apelante invoca os depoimentos do A. e das testemunhas em termos meramente genéricos, cometendo ao tribunal ad quem a tarefa de, através da audição dos mesmos, perceber o que deles resultaria de relevante para decidir em contrário ao tribunal a quo. Por outro lado, a apelante não identificou os exatos momentos temporais das passagens da gravação em que se baseia para impugnar a decisão de facto, nem procedeu à transcrição desses trechos. Porém, no que concerne às ditas alíneas a), b) e c) dos factos julgados não provados o apelante resumiu esses depoimentos, indicando pelo seu teor as razões da sua discordância, e indicou o início e termo de cada um desses depoimentos, cuja duração, conforme decorre dessa indicação, se resume, respetivamente, a 15 minutos, 7 minutos, 5 minutos, 7 minutos e 25 minutos. Ou seja, não se antevê que os depoimentos em causa tenham duração tal e a matéria de facto impugnada revista características, ao nível da sua extensão e complexidade, que determinariam ou aconselhariam que o tribunal a quo se dispensasse de ouvir a totalidade dos mesmos, concentrando-se apenas nas passagens identificadas pelo apelante. Quanto à impugnação do juízo negativo ínsito na alínea e) dos factos julgados não provados, o apelante não invoca qualquer depoimento, mas tão só o teor do documento que juntou aos autos com a petição inicial, pelo que não se aplica aqui o supra exposto sobre os ónus de impugnação da prova assente em depoimentos gravados. Assim, pelo exposto, admite-se a impugnação da matéria de facto quanto às alíneas a), b), c) e e) dos factos julgados não provados. No mais, rejeita-se a impugnação da matéria de facto. Segunda questão (impugnação da decisão de facto) Apreciação O apelante entende que deve dar-se como provada a matéria das alíneas a), b), c) e e) dos factos julgados não provados. Tais alíneas têm o seguinte teor: a) Que o Autor tenha tido sempre grande estima pelo carro, aplicando-lhe todos os cuidados possíveis na sua utilização e procedendo às reparações e manutenções necessárias (art.º 16º da p.i.). b) Que não existissem veículos da mesma marca e modelo, do mesmo ano e com as mesmas características daquele que estivessem em estado de conservação idêntico ao do Autor (art.º 17º da p.i.) c) Que não existissem, para venda, veículos idênticos ao do Autor, com todos os seus componentes) por valor inferior a 8.000,00€ (art.º 18º e 44º da p.i.). e) Que o Autor tenha despendido a quantia de €43,05 com o reboque do veículo (artigo 20º da p.i.). Para sustentar a prova dos factos das alíneas a) a c) o apelante invocou o seu próprio depoimento e bem assim o das testemunhas Hugo, Bruno, Pedro e Luís. Quanto à matéria da alínea a) (estima pelo carro, cuidados na sua utilização e efetuação das reparações e manutenções necessárias), as testemunhas Hugo, Bruno e Pedro foram perentórios na afirmação de tais factos, demonstrando, pelas suas afirmações, que conheciam a viatura (aliás, Hugo, irmão do A., é mecânico de automóveis; Bruno, amigo do A., declarou que tivera um carro igual ao do A., que tinha comprado na Alemanha, tal como o A., e até chegara a fazer propostas de aquisição dessa viatura ao A.). A testemunha da R., o perito Luís, confirmou ter visto a viatura e que quando calculou o respetivo valor comercial, levou em consideração o estado em que se encontraria antes do acidente, o qual, depreende-se do seu depoimento, pelo menos não registaria nenhuma anomalia. Assim, sendo certo que não foi apresentada qualquer prova que contrariasse os aludidos depoimentos, afigura-se-nos que (independentemente da relevância que tal facto possa ou não ter no desfecho do litígio) deve dar-se como provada a matéria da alínea a). O mesmo não ajuizamos quanto à matéria das alíneas b) (que não existiam veículos da mesma marca e modelo, do mesmo ano e com as mesmas características daquele em estado de conservação idêntico ao do Autor) e da alínea c) (que não existiam, para venda, veículos idênticos ao do Autor, com todos os seus componentes, por valor inferior a 8.000,00€). A testemunha Hugo aventou que o veículo do A., à data do acidente, valeria “entre os 8 000, 9 000 euros, não sei, entre esses valores”, acrescentando que na altura o valor que estava a ser praticado era entre os 7 000 e os 10 000 euros. Não se pronunciou acerca da inexistência no mercado de carro igual ao do A.. As testemunhas Bruno e Pedro não se pronunciaram especificamente sobre esta matéria. A testemunha Luís afirmou que avaliara o veículo do A. em € 6 500,00, com base no estado do veículo, numa pesquisa que fez na internet de viaturas à venda, no teor da tabela Eurotax, no parecer obtido (aparentemente informalmente) junto do departamento de vendas da Audi, e ainda no facto de se tratar de um carro importado, ou seja, adquirido diretamente no estrangeiro, o que o desvalorizaria um pouco, por ter sido comprado mais barato. Por sua vez os anúncios de quatro viaturas em venda constantes a fls 34 dos autos, todos respeitantes a automóveis Audi, do ano de 2002, com a cilindrada de 1900 cm3, e quilometragens que variam entre 202 708 km e 302 000 km, ostentam preços que se localizam entre € 5 850,00 e € 6 950,00. Por sua vez o A. afirmou, nas suas declarações, que encontrara anúncios de viaturas do mesmo modelo e ano à venda, na internet, por cerca de € 7 000,00, mas não estavam tão bem como a sua viatura. Face ao exposto, não se poderá, em consciência, apontar base sólida para sustentar a convicção razoável de que à data do acidente não se conseguia encontrar à venda uma viatura com as mesmas características da do A. por menos de € 8 000,00, assim como que não era possível encontrar no mercado, à venda, uma viatura com as mesmas características da do A. (o que, diga-se, não corresponde a considerar provado o contrário do ora questionado). Resta apreciar a questão da despesa com o reboque da viatura, da oficina onde se encontrava para a residência do A. (alínea e) dos factos não provados). O tribunal a quo não deu como provada essa despesa, por constatar que o documento comprovativo junto pelo A. (fls 14 verso) “é uma folha de registo e não um recibo do pagamento da quantia ali indicada, pelo que não faz prova de qualquer pagamento”, tendo aceite esse elemento tão só para prova de que o reboque foi efetuado. Com efeito, o aludido documento, embora mencione o custo do transporte, nada diz quanto à efetivação do respetivo pagamento. Porém, como alega o apelante, estando provado que foi prestado o serviço e que este tem um custo, alguém o pagou ou é responsável por ele. Ora, como responsável, no documento, apenas figura o A.. Pelo que, em termos de razoabilidade e na falta de prova apresentada em contrário, entendemos que esse documento é bastante para considerar, em termos de razoabilidade e com base na experiência normal das coisas, que o A. suportou essa despesa. Assim, considera-se a impugnação da matéria de facto parcialmente procedente e consequentemente adita-se à matéria de facto as seguintes alíneas: S) O Autor tinha tido sempre grande estima pelo carro, aplicando-lhe todos os cuidados possíveis na sua utilização e procedendo às reparações e manutenções necessárias. T) O Autor despendeu a quantia de €43,05 com o reboque do veículo, referido em M). Terceira questão (danos ressarcíveis e respetivos montantes indemnizatórios) Está assente que em virtude de acidente culposamente causado por entidade cuja responsabilidade civil havia sido transferida para a R., o A. sofreu danos, cuja indemnização reclama. Não se questiona que a R. é responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo A. em consequência do acidente. A controvérsia incide tão só sobre a identificação dos danos ressarcíveis e os quantitativos devidos a título de indemnização. Nos termos do art. 562.º do Código Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.“ Tal obrigação só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão (art.º 563.º do C.C.), compreendendo não só os chamados “danos emergentes”, como os “lucros cessantes” (as duas categorias são mencionadas na lei como “prejuízo causado” e “benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” – n.º 1 do art.º 564.º do Código Civil). Em princípio a indemnização deverá visar a reconstituição natural, sendo fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não for possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (n.º 1 do art.º 566.º do Código Civil). A indemnização em dinheiro terá como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (n.º 2 do art.º 566.º). Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (n.º 3 do art.º 566.º). Em relação aos danos não patrimoniais, estabelece o n.º 1 do art.º 496.º do Código Civil que serão ressarcíveis aqueles que, “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. Quanto aos danos não patrimoniais, que o A. avaliava em € 1 000,00, nada se provou. O A. poderá ter sofrido, em consequência do acidente e do conflito com a R., desgostos e incómodos, mas nada se provou nesta vertente que assuma a gravidade ou relevância exigidas pelo art.º 496.º para a intervenção do direito. Poderá citar-se, a este respeito, o sumário do acórdão da Relação do Porto, de 16.3.2015, onde se exarou que “o desgosto que alguém sofre com a danificação culposa por outrem de um veículo seu, de uso diário e sem características especiais, que se encontrava em boas condições de conservação e aparência não tem a gravidade suficiente para ser merecedor da tutela do direito” (processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/138390" target="_blank">224/12.8TVPRT.P1</a>). Sendo certo que, no que concerne a sofrimento físico, nada se provou. Quanto aos danos patrimoniais, provou-se que a viatura do A. sofreu danos cuja reparação custa € 8.896,47 (alínea N) da matéria de facto). Dir-se-ia, então, que a R. deveria suportar tal despesa, necessária à reconstituição natural da situação que existiria se não tivesse ocorrido o sinistro (art.º 566.º n.º 1 do Código Civil). Porém, na sentença recorrida entendeu-se que “o artigo 41º do DL n.º 291/2007 de 21 de agosto consagra uma norma especial face ao referido artigo 566º do Código Civil, regulamentando a obrigação de indemnização nas situações de acidente entre veículos que se encontrem dentro do âmbito do seguro obrigatório, como é o caso dos presentes autos. Deste artigo resulta uma delimitação concreta das situações em que a indemnização por reconstituição natural, i.e., por reparação do veículo, é afastada e a seguradora tem de indemnizar em dinheiro, consagrando também uma regra específica para o cálculo do valor desta indemnização, tendo como premissas o valor venal do veículo, o valor estimado da reparação, e o valor do salvado.” E prossegue: “O valor venal do veículo, antes do sinistro, tem a aceção legal consagrada no n.º 2 do referido artigo 41º: “valor de substituição”, entendido pela jurisprudência como o valor que permitiria ao lesado adquirir, no mercado, um veículo de caraterísticas similares ao danificado. Aqui chegados, importa aplicar as normas jurídicas referidas ao caso dos autos. O Autor vem defender que a reparação do veículo não é excessivamente onerosa face ao valor venal do mesmo. Como tem vindo a ser entendido na jurisprudência, incumbia à seguradora o ónus de demonstrar que essa reparação lhe é excessivamente onerosa, nos termos do disposto no art.º 566º, n.º 1 do Código Civil e, como tal, tem direito a indemnizar em dinheiro, pelo valor venal calculado nos termos do artigo 41º, n.º 3 do DL 291/2007. Contudo, o Autor não pede a reparação do veículo, mas outrossim uma determinada quantia em dinheiro, correspondente ao valor dessa reparação. Mas não é a isso que tem direito, pois por força do disposto nos artigos 562º e 566º do Código Civil, aquele que está obrigado a indemnizar pode ser condenado à reconstituição da situação, ou seja, no caso, à luz do artigo 41º, n.º 1 do DL 291/2007, à reparação do veículo ou à indemnização em dinheiro calculada de acordo com as já referidos normas legais. A lei não consagra o direito a receber o custo da reparação em espécie, como defende o Autor. Assim, uma vez que não foi pedida a reparação do veículo, desnecessário se torna aferir se a mesma é excessivamente onerosa para o devedor, para a Ré.” Seguidamente, na sentença recorrida pondera-se o seguinte: “Tendo o Autor pedido uma indemnização em dinheiro, a mesma só pode ser calculada de acordo com o critério legal já acima enunciado e consagrado no referido número 3 do artigo 41º do DL 291/2007. A Ré propôs determinado pagamento, sustentado num valor venal de 6.500,00€, no valor do salvado de 3.235,00€ e num valor de reparação de 8.088,96€, como resulta da contestação e da carta que endereçou ao Autor. O Autor defende que só com quantia superior a 8.000,00€ conseguiria adquirir um veículo com as mesmas características do seu – contudo, não logrou provar tal facto. Não tendo o Autor conseguido provar um valor venal/de substituição superior ao estimado pela Ré, resta-nos considerar o valor indemnizatório por esta estimado, com base nos referidos valor venal e valor do salvado, que o Autor assumidamente manteve na sua posse. Ou seja, o Autor apenas terá direito a uma indemnização no valor já oferecido, de 3.265,00€ (6.500€ - 3.235,00€).” Vejamos. Quanto à aplicabilidade ao caso concreto do teor do art.º 41.º do Dec.Lei n.º 291/2007, de 21.8 (diploma que, além do mais, aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), constitui entendimento, pelo menos dominante, na jurisprudência, que sufragamos, que tal artigo, bem como os restantes contidos no Capítulo III (“Da regularização dos sinistros”) do Título II (“Do seguro obrigatório”) do aludido diploma, conforme decorre das normas do aludido Capítulo, apenas regem os padrões que as partes, em especial a seguradora, poderão ou deverão ter em conta numa fase pré-jurisdicional de regulação dos seus interesses, procurando que tal regulação chegue a bom porto de forma rápida e sem os custos inerentes à resolução jurisdicional dos litígios, não obrigando os tribunais numa eventual fase jurisdicional de resolução do conflito (vide, por exemplo, acórdãos da Relação de Lisboa, de 14.3.2013, processo 114/09.1TBRGR-A.L1-6; acórdão da Relação de Lisboa, de 04.7.2013, processo 3643/11.3TBSLX.L1-6; acórdão da Relação de Lisboa, de 29.4.2014, processo 70/14.4YRLSB-6; acórdão da Relação do Porto, de 16.3.2015, processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/138390" target="_blank">224/12.8TVPRT.P1</a>; acórdão da Relação de Guimarães, de 09.02.2017, processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/193665" target="_blank">313/15.7T8MAC.G1</a>; acórdão da Relação de Coimbra, de 16.3.2016, processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/118890" target="_blank">100/14.0T8LMG.C1</a> – todos consultáveis na base de dados do IGFEJ). Efetivamente, o lesado poderá discordar da proposta apresentada pela seguradora e tentar demonstrar perante um tribunal que os danos sofridos e/ou o respetivo ressarcimento excedem os limites daquilo que emergeria do dito regime prévio de regularização, apelando para as regras gerais de indemnização constantes no Código Civil. Reportando-nos à questão da definição de perda total de veículo sinistrado e da determinação da respetiva indemnização, ainda que as soluções propugnadas no art.º 41.º possam ser levadas em consideração como ponto de partida, pelos tribunais (como propugnado, por exemplo, no acórdão da Relação do Porto, de 19.02.2015, processo 1306/13.4TBMCN), haverá que aplicar a visão mais abrangente e plástica que, decorrente do disposto no art.º 566.º n.º 1 do Código Civil, comummente vem sendo aplicada pelos tribunais, que se poderá sintetizar nos termos do acórdão do STJ, de 31.5.2016 (processo 741/03.0TBMMN.E1.S1), onde, em sumário, se expendem as seguintes proposições: a) “A excessiva onerosidade da reconstituição natural tem de ser aferida, não, apenas, em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas, também, no confronto entre aquele preço e o valor patrimonial do veículo, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial daquele pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário.” b) “É errado estabelecer-se a comparação entre o valor venal ou de mercado do automóvel, antes do acidente, por um lado, e o custo da sua restituição natural [reparação ou aquisição de bem idêntico, em valor e qualidades], por outro, porquanto os termos da relação são, antes, entre o valor necessário para a satisfação dos interesses legítimos do credor, por um lado, e o custo da restauração natural, por outro.” c) “A existência da excessividade da restauração natural resulta da verificação cumulativa de dois requisitos, sendo o primeiro o do benefício para o credor, consequente à reconstituição, e o segundo o de que esta se revele iníqua e abusiva, por contrária aos princípios da boa-fé, pelo que a reconstituição natural será, excessivamente, onerosa para o devedor e, portanto, de excluir, por inadequada, apenas, quando se apresente como um sacrifício, manifestamente, desproporcionado para o lesante, quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património.” Sendo certo que, quanto ao ónus da prova da excessiva onerosidade da restauração natural: “Sendo a regra geral da restauração natural imposta, no interesse de ambas as partes, como modo primário de indemnização, se o credor reclama a restauração natural é ao devedor que pretenda contrapor-lhe a indemnização pecuniária, enquanto réu, que cabe o ónus de alegação e de prova da excessiva onerosidade da mesma, enquanto facto excetivo, justificativo da possibilidade da restituição por equivalente, ou seja, a prova da excepção, isto é, que a restauração natural é, excessivamente, onerosa para si” (mesmo acórdão do STJ). Na sentença recorrida entendeu-se que o A. não pedira a reparação da viatura, mas uma quantia pecuniária, correspondente ao custo dessa reparação, o que lhe estaria vedado. Assim, ajuizou-se, não haveria sequer que avaliar se a reparação era excessivamente onerosa e, em termos de quantia pecuniária, o A. apenas teria direito ao valor calculado nos termos do n.º 3 do citado art.º 41.º, ou seja, uma indemnização por perda total, correspondente ao valor venal do veículo indicado pela seguradora, deduzido do valor do salvado – tendo, assim, o tribunal a quo atribuído ao A. uma indemnização no valor de € 3 265,00. Discorda-se do tribunal a quo. O A. pretende, conforme decorre de toda a petição inicial, a reparação da sua viatura, ou seja, a reconstituição natural da situação que existiria se não tivesse ocorrido o sinistro. E, tendo a R. recusado proceder a essa reparação (vide alínea M) da matéria de facto), ou melhor, tendo recusado suportar esse custo (na medida em que não seria a R., companhia de seguros, ela própria, a proceder a essa prestação), o A. peticionou que a R. fosse condenada a pagar-lhe o respetivo custo, o qual, como se provou, é de € 8.896,47 (alínea N) da matéria de facto). Trata-se de pedido usual, que se integra, ainda, no quadro da reconstituição natural (vide, por exemplo, acórdão da Relação de Lisboa, de 03.5.2012, processo 211/09.3TBSRQ.L1-6). De resto, a R. não questionou, na contestação, a legalidade ou pertinência de tal pedido. Assim, nada obstava, como não obsta, a que o A. reclame a condenação da R. no pagamento, ao A., do custo da reparação do veículo sinistrado. Para obstar a tal condenação caberia, pois, à R. demonstrar que a reparação (o seu custo) seria excessivamente onerosa. Ora, a esse respeito nada se provou, sendo certo que não se provou qual era o valor venal do veículo antes do sinistro. Temos, pois, que nesta parte a apelação é procedente, como o é a ação. Também o será quanto ao custo do reboque (€43,05), face ao facto dado como provado sob a alínea T). Resta avaliar a indemnização reclamada a título de privação do uso da viatura. Aqui, apenas se poderá dar como certo que o A. esteve privado da utilização da viatura desde a data do sinistro até ao dia em que retirou o automóvel da oficina, ordenando que fosse rebocado até à sua residência (alínea M) dos factos provados). Para este efeito, face ao teor do documento constante a fls 14 verso dos autos, supra mencionado a propósito da impugnação da matéria de facto, dá-se ainda como provado que: U) O reboque do veículo, referido em M), ocorreu em 22.6.2015. Quanto à utilização em concreto que o A. fazia da viatura, nada se provou. Por outro lado, refere o A., na alegação do recurso, que entretanto o veículo foi parcialmente reparado, tendo por fim permitir a sua utilização. Aliás, na sentença menciona-se, em sede de fundamentação da decisão de facto, a propósito do juízo negativo quanto ao factualismo alegado para sustentar o dano de privação de uso, que “o veículo já está quase todo arranjado e o Autor circula com o mesmo, como este admitiu nas suas declarações, desconhecendo-se desde quando está nessas condições”. Assim, apenas está demonstrado que o A. ficou privado da possibilidade de utilizar a sua viatura entre 13.05.2015 (data do acidente) e 22.6.2015 (data do reboque para a sua residência), nada mais se provando quanto à imobilização da viatura. De todo o modo, a privação do uso e fruição de veículo automóvel, resultante de um acidente de viação, constitui um dano patrimonial, na medida em que determina uma limitação ao direito de propriedade sobre o veículo, o qual compreende, conforme a enumeração expressa operada pelo art.º 1 305.º do Código Civil, os direitos de uso, fruição e disposição da coisa. Nos dias de hoje, a possibilidade de usar individual e regularmente um veículo motorizado é, pelo menos para a grande maioria da população, um pressuposto essencial para uma razoável qualidade de vida. De tal forma assim é que a utilização de automóvel ou outro veículo sem autorização de quem de direito constitui uma modalidade autónoma de crime contra a propriedade (art.º 208.º do Código Penal). Por outro lado, o direito de usar uma viatura é hoje em dia um bem universalmente negociável, constituindo a sua concessão uma atividade económica de grande relevo. Daí que, conforme Júlio Gomes nos dá notícia (in “O dano da privação do uso”, Revista de Direito e Economia, ano XII, 1986, Universidade de Coimbra, pág. 169 e seguintes), desde os anos 60 do século passado que os tribunais alemães (primeiro os da ex RFA) consideram como dano autónomo a privação de uso de um veículo automóvel durante um certo lapso de tempo, o qual tem um cariz patrimonial na medida em que a necessidade a que respeita tem um valor comercial – admitindo-se, pelo menos como ponto de partida, como critério de fixação da indemnização correspondente, o valor que o lesado gastaria com a locação de um veículo substitutivo do veículo danificado. Em Portugal, a autonomização da privação do uso de um veículo sinistrado enquanto dano patrimonial, tem tido reconhecimento doutrinário (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, “Indemnização do dano da privação do uso”, Almedina, 2001; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 14.ª edição, Almedina, 2017, páginas 329 e 330; Américo Marcelino, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 7.ª edição revista e ampliada, Livraria Petrony, 2005, pág. 359; Pinto de Almeida, “Responsabilidade civil extracontratual, Danos reflexos e Indemnização do dano da privação do uso”, texto apresentado em 02.3.2010 no Curso de Especialização Temas de Direito Civil, organizado pelo CEJ, consultável no correspondente e-book editado pelo CEJ). Na jurisprudência, existe diversidade de posições. A par de decisões que reconhecem que a privação do uso de uma viatura constitui um dano em si, suscetível de indemnização (cfr. STJ, 24.01.2008, processo 07B3557; STJ, 06.5.2008, processo 08A1279; STJ, 08.5.2013, processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1), noutras exige-se a demonstração de que a privação do veículo causou ela própria danos, no sentido de ter tido repercussão negativa no património do lesado (cfr. STJ, 16.9.2008, processo 8A2094; STJ, 06.11.2008, processo 08B3402; STJ, 30.4.2015, processo 353/08.2TBVPA.P1.S1). Numa posição mais mitigada, exige-se tão só a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo, de proceder à utilização da viatura de que o proprietário se viu privado (STJ, 09.12.2008, 08A3401, também in Col. Jur. ano XVI, tomo III, pág. 179; STJ, 16.3.2011, processo 3922/07.2TBUCT.G1.S1; STJ, 09.7.2015, processo 13804/12.2T2SNT.L1.S1). Propendemos, conforme resulta do supra exposto, para a primeira posição, ou seja, para considerar a privação do uso de viatura (ou, se se quiser, a privação da possibilidade de uso da viatura) como um dano patrimonial, que é economicamente valorizável, se necessário com recurso à equidade (art.º 566.º n.º 3 do Código Civil). No caso de um acidente de viação imputável a terceiro, que determine a paralisação temporária do veículo, a reconstituição natural pode fazer-se pela entrega de um veículo com características semelhantes às do danificado, até à respetiva reparação, ou através da atribuição de quantia suficiente para contratar o aluguer de um veículo cujas características sejam semelhantes às do acidentado (neste sentido, cfr., por exemplo, acórdãos do STJ, de 27.5.2003, processo 03A1351 e de 24.01.2008, 07B3557). Que assim é denota-o o disposto no art.º 42.º do já citado Regime Jurídico do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo Dec.-Lei nº 291/2007, de 21.8. Nos termos desse artigo, estabelece-se que “verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, nos termos previstos nos artigos anteriores” (n.º 1 do art.º 42.º). No caso de perda total do veículo, essa obrigação cessa no momento em que a seguradora coloque à disposição do lesado a indemnização devida (n.º 2 do art.º 42.º). Nos termos do n.º 3 do art. 42.º, “a empresa de seguros responsável comunica ao lesado a identificação do local onde o veículo de substituição deve ser levantado e a descrição das condições da sua utilização.” O n.º 5 do mesmo artigo ressalva que “o disposto neste artigo não prejudica o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transportes em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição.” Note-se que estes preceitos (que, como se disse, se reportam a uma fase pré-jurisdicional, de regulação dos sinistros, não vinculando os tribunais na definição dos danos ressarcíveis) não condicionam a atribuição de viatura de substituição à demonstração da necessidade da mesma. No caso dos autos, a seguradora não colocou à disposição do lesado qualquer veículo de substituição, sendo certo que a seguradora classificou o caso de “perda total” e propôs ao lesado um determinado valor indemnizatório. Porém, o lesado não aceitou esse valor e a verdade é que, discutido o caso em juízo, a R. não logrou demonstrar o bem fundado da sua posição. Afigura-se-nos que, em regra, um cidadão só aceita suportar as despesas fiscais, de seguro e outras (vide inspeção obrigatória à viatura), inerentes à titularidade de uma viatura automóvel, se pretender utilizá-la regularmente. Mesmo os adeptos da necessidade de demonstração de danos para além da privação do veículo reconhecem que “uma paralisação de um veículo, normalmente, causa prejuízos ao proprietário. O dono goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (art. 1305º), pelo que ficando, pela paralisação, desprovido desses direitos, em princípio, ocorrerão, para si, perdas” (STJ, 16.9.2008, 08A2094, citado supra). Ora, se assim é, cremos que caberá ao lesante demonstrar que no caso concreto a paralisação da viatura não era suscetível de causar quaisquer danos ao lesado (por exemplo, o lesado, habitual utilizador da viatura, esteve ausente no estrangeiro durante o período de paralisação da mesma, em local para onde não a iria levar). Nenhuma situação contrária à habitual, supra exposta, se demonstrou em relação ao A.. Conforme decorre do acima exposto, o valor locativo das viaturas, nomeadamente o valor que no mercado é cobrado pelas empresas de aluguer de viaturas, é aceitável como padrão a utilizar no cálculo da indemnização por privação da viatura, tendo-se em consideração as características da viatura em concreto. Tal valor diário excede, como é sabido, os € 20,00 diários. Valor que encontramos em casos como o apreciado pelo STJ em 28.11.2013 (processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/140279" target="_blank">161/09.3TBGDM.P2</a>.S1, acessível in www.dgsi.pt), reportado a acidente ocorrido em 2006. Sendo certo que em caso relatado pelo relator deste acórdão e também subscrito pela Exm.ª 1.ª adjunta (acórdão de 21.5.2009, processo 1252/08.3TBFUN.L1, acessível in www.dgsi.pt e também na Colectânea de Jurisprudência, ano XXXIV, tomo III, pág. 78 e seguintes), se aceitou a despesa provada pelo lesado, de aluguer de um quadriciclo, no valor de € 40,25 por dia. E em acórdãos como os proferidos em 22.6.2016 (Relação de Lisboa, processo 31357-12.OT2SNT.L1-6), 27.10.2015 (Relação de Lisboa, processo 5119/12.2.TBALM.L1-1) e de 17.12.2014 (Relação de Lisboa, processo 1595/13.4TBALM.L1-2) condenou-se o responsável no pagamento de indemnizações, pela privação de uso de viatura, correspondentes, respetivamente, ao montante diário de € 30,00, € 36,50 e € 28,00. É certo que nas decisões ora citadas o julgador dispunha de um manancial de factos de que decorria a demonstração de uma utilização diária ou frequente das viaturas em questão. Bem mais prudentes foram os tribunais portugueses em algumas situações de total rarefação de matéria de facto onde se apoiar: veja-se os acórdãos da Relação de Lisboa, de 27.02.2014 (processo 889/11.8TBSSB.L1-6) e de 01.7.2014 (processo 11463/09.9THLSB.L1-1), em que, à míngua de elementos, se atribuiu ao lesado uma indemnização correspondente ao valor diário de € 05,00. No caso dos autos, nada se provou em relação à utilização em concreto que o A. fazia da viatura sinistrada. Contudo, como se disse, a privação da viatura é, em si, um dano patrimonial, cuja reparação passa pela disponibilização ao lesado de uma viatura idêntica. O padrão de referência que, nesta perspetiva, em regra se utiliza, é o custo de aluguer de viaturas, o qual, normalmente, excede os € 20,00 por dia. Assim, tudo ponderado, cremos ser de aceitar o valor diário invocado pelo A., de € 12,50, inferior ao montante supra referido. Por conseguinte, a título de privação da viatura sinistrada, atribuir-se-á ao A. a quantia de € 512,50 (€ 12,50 vezes os dias decorridos desde a data do acidente - 13.05.2015 - até à data do reboque da viatura - 22.6.2015). Em suma, a apelação é parcialmente procedente, cabendo ao A. uma indemnização, por danos patrimoniais, no valor total de € 9 452,02, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação (art.º 805.º n.º 3 e 806.º do Código Civil). DECISÃO Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida e, em sua substituição, julga-se a ação parcialmente provada e procedente e, em consequência, condena-se a R./apelada a pagar ao A./apelante, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 9 452,02 (nove mil quatrocentos e cinquenta e dois euros e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da citação e vincendos, até integral pagamento. Condena-se o A. e a R., em ambas as instâncias, pelas custas, na proporção do respetivo decaimento. Lisboa, 25.5.2017 _____________________ Jorge Leal _____________________ Ondina Carmo Alves _____________________ Pedro Martins
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa RELATÓRIO Em 15.12.2015 Carlos intentou ação declarativa de condenação contra P – Sucursal em Portugal. O A. alegou, em síntese, que em 13.05.2015 o veículo automóvel que conduzia, a si pertencente, foi embatido por uma outra viatura, por culpa exclusiva do respetivo condutor. A responsabilidade civil automóvel do proprietário deste veículo estava transferida para a ora R., a qual declarou assumir a responsabilidade dos danos causados pelo sinistro. Porém, a R. entendeu que o veículo do A. se encontrava em situação de perda total, por o custo da respetiva reparação, adicionado ao respetivo salvado, exceder 120% do valor venal do veículo, valor venal esse que a R., após reclamação do A., avaliou em € 6 500,00, atribuindo ao salvado o valor de € 3 235,00. Porém, o A. entendia que o valor venal do veículo à data do acidente não era inferior a € 8 000,00, e além disso entendia que devia ser compensado pela privação da viatura. Face à recusa da R. em atender a pretensão do A. este foi forçado a proceder ao reboque da viatura, da oficina onde se encontrava, para a sua residência, no que despendeu € 43,05. O A., que carece da sua viatura para o seu dia-a-dia, não tem podido utilizá-la, o que justifica, tendo em conta os valores praticados pelas empresas de rent-a-car e os fixados nas decisões judiciais, uma indemnização diária de € 12,50, a que corresponde, à data da propositura da ação, o valor de € 2 700,00. Além disso, a reparação da viatura é possível e não é excessivamente onerosa, orçando em € 8 896,47. Em consequência do acidente e do litígio com a R. o A. sofreu susto, incómodos, preocupações e ansiedade, dores de cabeça e dores no pescoço, cuja reparação deve ser computada em € 1 000,00. O A. terminou pedindo que a R. fosse condenada no pagamento da quantia de € 12 639,52. A R. contestou a ação, admitindo a sua responsabilidade pelas consequências do acidente, mas alegando que o valor venal do veículo era de € 6 500,00 e que a sua reparação, sem desmontagem, orçava em € 8 088,96 e que o valor do salvado era de € 3 235,00, pelo que a proposta da R. cumprira as normas legais. Mais impugnou os danos invocados pelo A., concluindo pela sua absolvição do pedido, embora admitisse que pudesse vir a ser condenada na quantia a título de perda total, subtraindo-se o valor do salvado, que ficaria na posse do A.. Foi proferido saneador tabelar, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova. Realizou-se audiência final e em 23.9.2016 foi proferida sentença em que se julgou a ação parcialmente procedente e consequentemente se condenou a R. no pagamento ao A. da quantia de € 3 265,00 e se absolveu a R. do remanescente pedido, com custas pelo A.. O A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões: 1 - As testemunhas oferecidas pelo A., pessoas do seu círculo nuclear e próximo depuseram com isenção e verdade. 2 - Deveriam ter sido dados como provados seguintes factos: Que o Autor tenha tido sempre grande estima pelo carro, aplicando-lhe todos os cuidados possíveis na sua utilização e procedendo às reparações e manutenções necessárias; Que não existissem veículos da mesma marca e modelo, do mesmo ano e com as mesmas características daquele que estivessem em estado de conservação idêntico ao do Autor; Que não existissem, para venda, veículos idênticos ao do Autor, com todos os seus componentes) por valor inferior a 8.000,00€; o que resulta claro dos depoimentos das testemunhas e das declarações do próprio A., que não merecem também dúvida. 3 - Não pode também o A. aceitar a conclusão do tribunal a quo de não considerar provado o custo do reboque. 4 - O documento que se junta para prova do alegado – despesa de €43,05 pelo serviço de reboque desde o Entreposto Feijó para Charneca Caparica – foi objecto de impugnação por parte da R. por alegar desconhecer sem ter obrigação de conhecer, o que se aceita. 5 - Em termos probatórios, a consequência é de conferir àquele documento a força probatória sujeita à livre apreciação. 6 - Não fundamenta o tribunal a quo o motivo pelo qual não considera a informação que está naquela folha. 6 – [número repetido, no texto original] Não se pode aceitar que o tribunal a quo avalie os factos concluindo pela não existência de dano de privação do uso do veículo. 7 - O próprio A. afirmou nas suas declarações que usava o veículo nas suas deslocações do dia-a-dia, bem como o fez o seu irmão. 8 - O A. viu-se privado do uso do veículo durante um determinado período e, na realidade, usa de momento o veículo, embora o mesmo não esteja reparado na totalidade. 9 - Durante o período em que o veículo esteve imobilizado, tal situação originou a perda de utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente. 10 - Não pode aceitar o A. a conclusão que o tribunal a quo determinou, devendo ser fixado um quantum indemnizatório com recurso às regras de equidade, avaliando designadamente o depoimento de Hugo Fernandes e as declarações do A. 11 – Andou mal também o tribunal a quo por desconsiderar os danos físicos e o sofrimento psicológico do A.em consequência do sinistro. 12 - Mais refere o tribunal que duvida da palavra do mesmo que, no decorrer das suas declarações depôs que no próprio dia não sentiu qualquer desconforto, mas que foi no dia seguinte que tal se verificou. 13 - Para além dos depoimentos do irmão e dos amigos, as próprias declarações do A. são ricos para apurar os danos sofridos pelo A. em resultado do sinistro. 14 - Ao contrário do sufragado pelo tribunal a quo a páginas 9 da douta sentença recorrida, o artigo 41º do DL n.º 291/2007 de 21.08 restringe-se ao procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da proposta razoável, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade. Tem sido este o entendimento maioritário da jurisprudência portuguesa, que bem não tem obrigado os lesados a aceitarem perdas patrimoniais de grande valor face as intenções das seguradoras. 15 - Mais, andou mal também o tribunal a quo ao entender que há um qualquer problema em o A. peticionar a condenação da R. no pagamento da despesa de reparação do veículo e que tal facto gera a aplicabilidade imediata da supra mencionada norma. 16 - Ao contrário do pretendido não inviabiliza a obrigação de indemnizar que impende sobre a R. relativa ao custo da reparação (valor que foi dado como provado) a circunstância de a mesma se mostrar já ou ainda não paga (o que em concreto nem sequer se apurou, até porque o que ficou demonstrado é que o A. já tinha gasto algumas verbas em peças) nem mesmo a circunstância dessa reparação se mostrar já ou ainda não efectuada. 17 - Devem as mencionadas nulidades ser julgadas procedentes por provadas, atendendo a que a decisão de que se recorre foi proferida sem apoio na produção da prova testemunhal, bem como dos documentos. 18 - Mais, a fundamentação de direito carece de correcção e como tal incorre em nulidade processual, que deve também ser sanada. O apelante terminou pedindo que a sentença fosse revogada e substituída por outra que julgasse a ação totalmente provada e procedente e consequentemente condenasse a R. no pedido. A R. contra-alegou, tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões: 1ª – O Recorrente não elencou minimamente quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nos termos da alínea a) do nº 1, do art. 640º do CPC, pois não discriminou/identificou qual ou quais os pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, limitando-se a identificar os mesmos por capítulo e não para o elenco dos factos considerados provados e/ou não provados, em clara violação aos requisitos formais e processuais do recurso e que, não sendo cumpridos, implicam a rejeição do mesmo, nos termos do nº 1 do citado preceito legal; 2ª Por outro lado, o Recorrente não observou os ditames constantes do art. 640º, nº 2, alínea a) do CPC, pois tal normativo exige – sob pena de rejeição do recurso na respectiva parte – a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, tendo apenas o Recorrente indicado o início e o fim de cada depoimento, e não as passagens exactas que entende deverem ser apreciadas em sede de impugnação de prova, limitando-se a emitir considerações sobre os depoimentos prestados e nada mais - não tendo assim, cumprindo o disposto no citado artigo 640º, nº 2, al.a), do CPC; 3ª Pelo que, e atendendo à cominação legal constante do nº 1 e do nº 2 do art. 640º do CPC, não tendo o recorrente especificado os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e não tendo indicado com exactidão as passagens da gravação em que fundava o seu recurso, deve o mesmo ser considerado desconforme e nessa sequência, ser, nessa parte, rejeitado, nos termos da lei; 4ª Sem conceder, considera a recorrida que a douta sentença fundamentou devidamente a apreciação da prova produzida, tendo objectivamente indicado na douta sentença, as razões pelas quais valorou ou não determinados testemunhos e par da prova documental existente nos autos, não tendo por essa via, omitido qualquer dever ou formalidade legal; 5ª A aplicação do direito, face à pretensão do Recorrente está correcta, tanto mais que não é peticionada a reparação do veículo, mas sim invocada pelo A/Recorrente – sem que tenha sido provado – que este apenas podia adquirir veículo semelhante com a verba superior a 8.000€; 6ª Quem alega um facto tem via de regra, o ónus de o provar e o Recorrente não logrou provar a sua pretensão manifestada na p.i., mas tal não resulta de errada ou deficiente apreciação da prova produzida, antes sim, resulta da análise crítica da mesma efectuada pelo douto Tribunal recorrido, que ponderada a mesma e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, decide. A apelada terminou pedindo que a apelação fosse julgada improcedente e consequentemente se mantivesse a decisão recorrida. Foram colhidos os vistos legais. FUNDAMENTAÇÃO As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes: admissibilidade do recurso quanto à impugnação da matéria de facto; em caso de resposta positiva à questão anterior, haverá que apreciar se a decisão de facto deve ser alterada; finalmente, haverá que apreciar os danos ressarcíveis e respetivos montantes indemnizatórios. Primeira questão (admissibilidade do recurso quanto à impugnação da matéria de facto) O tribunal a quo deu como provada a seguinte Matéria de facto A) No dia 13/05/2015, cerca das 16h40, na Avenida da Ponte, no sentido Sul- Norte (A2), ocorreu um acidente de viação (art.º 1º da p.i.). B) Foram intervenientes neste acidente dois veículos (art.º 2º da p.i.). C) O Autor é proprietário do veículo ligeiro de passageiros de marca Audi, modelo A3, com a matrícula BG. (art.º 3º da p.i.) D) Na data do sinistro o veículo BG era conduzido pelo Autor (art.º 4º da p.i.). E) O acidente em causa traduziu-se no embate da lateral direita do veículo com a matrícula OP na frente e lateral esquerda do veículo BG (art.º 5º da p.i.). F) O embate ocorreu em virtude da mudança de faixa de rodagem do veículo OP, conduzido pelo Sr. Mauro, transpondo o traço contínuo que separava as duas faixas, para a faixa onde circulava o veículo BG, conduzido pelo Autor. (art.º 6º da p.i.). G) O proprietário do veículo OP tinha à data dos factos a responsabilidade civil emergente de acidente de viação transferida para a “Zurich”, aqui Ré, nos termos da apólice n.º que consta de fls. 32 verso e 33 dos autos (art.º 9º da p.i.). H) O Autor remeteu para a Ré uma reclamação para pagamento dos danos emergentes deste acidente, tendo junto os dados relativos ao sinistro, preenchidos numa declaração amigável (art.º 10º da p.i.) I) Na sequência da participação do sinistro junto da Ré, esta veio informar o Autor que assumia a totalidade da responsabilidade dos danos causados pelo cliente, uma vez que aquele foi considerado responsável pelo acidente (art.º 11º da p.i.). J) Por missiva datada de 8 de Junho de 2015, veio a Ré também informar que pretendia indemnizar o A. pela “perda total” do seu veículo BG, nos termos que constam do documento de fls. 12 dos autos (art.º 12º da p.i. e 3º da contestação). K) Face ao teor da comunicação da Ré, agindo em representação do Autor, o seu mediador de seguro automóvel enviou por correio electrónico comunicação na qual manifestou que aquele não estava de acordo com os fundamentos e com a pretensão da Ré, nos termos que constam do documento de fls. 13 (art.º 13º da p.i.). L) A Ré, após a reclamação do Autor, aceitou rever a sua proposta e apresentou como valor venal a atribuir ao veículo a quantia de €6.500,00 (seis mil e seiscentos euros) (art.º 14º da p.i.) M) Face à recusa da Ré em proceder à reparação da sua viatura, o Autor mandou proceder ao reboque da viatura que se encontrava na oficina – Entreposto Feijó – para a sua residência na Charneca de Caparica (art.º 19º da p.i.). N) A reparação do veículo do Autor custa € 8.896,47 (art.º 37º da p.i.). O) O Autor realizou uma Ressonância Magnética da Coluna Cervical. (artigo 52º da p.i.). P) Em 05/06/2015, o Autor realizou uma Radiografia ao Tórax. (art.º 53º da p.i.) Q) O valor do salvado era de 3.235,00€ (art.º 4º da contestação). R) O veículo do Autor foi fabricado no ano de 2002, tendo sido importado, sendo a matrícula portuguesa do ano de 2005 e à data do acidente marcava 259.777 quilómetros (artigos 6º e 7º da contestação). Mais se indicaram na sentença, os seguintes Factos Não provados a) Que o Autor tenha tido sempre grande estima pelo carro, aplicando-lhe todos os cuidados possíveis na sua utilização e procedendo às reparações e manutenções necessárias (art.º 16º da p.i.). b) Que não existissem veículos da mesma marca e modelo, do mesmo ano e com as mesmas características daquele que estivessem em estado de conservação idêntico ao do Autor (art.º 17º da p.i.) c) Que não existissem, para venda, veículos idênticos ao do Autor, com todos os seus componentes) por valor inferior a 8.000,00€ (art.º 18º e 44º da p.i.). d) Que o veículo fosse regularmente utilizado na organização da sua vida doméstica, para se deslocar para o seu trabalho em Lisboa, bem como para quaisquer outras deslocações profissionais ou de lazer (art.º 24º e 43º da p.i.). e) Que o Autor tenha despendido a quantia de €43,05 com o reboque do veículo (artigo 20º da p.i.). f) Que o Autor tenha tido um acréscimo de despesas, por recorrer a transportes alternativos ao seu veículo (artigo 29º da p.i.) g) Que o Autor tenha recorrido a táxis e outros transportes públicos, e que o valor médio de aluguer de um carro num “rent-a-car” seja de €25 (art.º 29º da p.i.). h) Que o veículo do autor estava em bom estado de conservação e em condições de perfeito funcionamento, e a sua reparação permite repô-lo nesse estado (art.º 42º da p.i.). i) Que o Autor tenha sofrido com o susto no momento do embate e com o incómodo para a planificação da sua vida diária e com o tempo que teve de despender em virtude do sinistro, no dia em que o mesmo ocorreu. (art.º 48º da p.i.). j) Que o Autor sofreu com o transtorno de ver a sua viatura danificada, sem que a Ré se responsabilizasse pela rápida resolução da sua reparação, o que originou a necessidade de contactar por diversas vezes os serviços da Ré, designadamente, a gestão do processo de sinistro, e que esta, por diversas vezes, tenha ignorado o contacto do Autor. (art.º 49º da p.i.). k) Que os contactos (entre Autor e Ré) provocaram no Autor preocupações, ansiedade e dores de cabeça (art.º 50º da p.i.). l) Que no dia seguinte ao acidente, o Autor tenha sentido dores fortes no pescoço, e que tenha usado uma tala (colar cervical) e tomado medicação analgésica e anti-inflamatória (art.º 51º da p.i.). m) Que o Autor tenha sido aconselhado a continuar a vigilância da situação, face à persistência das dores (artigo 53º e 54º da p.i.). n) Que o orçamento de reparação do veículo, sem desmontagem, fosse de 8.088,96€ (art.º 4º da p.i.). O Direito Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2 alínea a) do art.º 640.º do CPC). Resulta do texto legal ser intenção do legislador que o inconformismo da parte acerca da decisão de facto se expresse de forma clara e precisa, através da indicação clara e precisa dos pontos de facto concretos sobre os quais incide a discordância da parte, a indicação clara e precisa do sentido da decisão que deve ser tomada acerca de cada um dos pontos de facto sobre que incide a impugnação, a indicação dos meios de prova em concreto em que se baseia essa discordância e, tratando-se de meios probatórios gravados, a indicação exata das passagens da gravação em que se baseia o recurso – sob pena de rejeição da impugnação da matéria de facto. Conforme foi já entendido pelo presente relator, acompanhado pela Exm.ª 1.ª adjunta, v.g. no acórdão proferido em 24.9.2014, no processo n.º 9642/03.1TBCSC.L1, “a transcrição dos depoimentos não se substitui à identificação das passagens (por indicação do momento temporal do início e do fim de cada trecho) das gravações tidas por relevantes (…). A identificação das passagens da gravação destina-se a, por um lado, permitir ao tribunal a quo aceder rapidamente aos trechos do depoimento que alegadamente relevem, o que assumirá particular importância no caso de depoimentos longos, que poderão até ter incidido sobre múltiplos factos, não impugnados em sede de recurso, como visa garantir que a apelante fez uma análise séria e rigorosa da decisão de facto e da sua fundamentação. Assim como o tribunal deve indicar de forma clara e completa os factos que considera provados e não provados e deve explicar de forma clara e completa os motivos do seu juízo, analisando criticamente as provas acerca de cada facto (art.º 607.º n.ºs 3 a 5 do CPC), num exercício que não só garante a transparência da justiça mas também possibilita a demonstração de que o tribunal empreendeu a referida tarefa de forma metódica e ponderada, também as partes, na impugnação que fizerem desse juízo, deverão demonstrar que a sua iniciativa se baseia numa avaliação séria dos factos e das provas, apresentando-a em condições que possibilitem ao tribunal ad quem efetuar, sem a mediação de particulares esforços interpretativos do sentido da interpelação do recorrente, a análise crítica que se lhe pede.” Contudo, cabe registar que o STJ tem propugnado, em sucessivos acórdãos, uma postura classificada como menos formal, nomeadamente em situações em que o recorrente, sem identificar precisamente as passagens dos depoimentos gravados em que se apoia, procede à transcrição dessas passagens. Neste sentido, com citação de abundante jurisprudência, veja-se o recente acórdão do STJ, de 22.02.2017, proferido no processo n.º 988/08.3TTVNG.P4.S1, onde a dado passo se exarou o seguinte: “Quanto à indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância [nº 2, al. a)] tem entendido este Supremo que não deve adotar-se uma posição excessivamente formal, considerando que é dado cumprimento ao ónus em causa, quando o recorrente faça uma indicação que possibilite à Relação o acesso, sem dificuldade, ao excerto da prova visado, designadamente com a transcrição dessas concretas passagens, ainda que omitindo a indicação do respetivo início e termo, por referência à gravação, limitando essa indicação ao início e termo do depoimento.” E mais adiante: “A indicação precisa do início e termo das concretas passagens destina-se, tão só, a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação. E se é verdade que essa indicação precisa é de primordial importância quando estão em causa depoimentos longos, já a mesma se afigura pouco relevante no caso de depoimentos de curta duração. Por outro lado, impondo-se, atualmente, que a Relação crie a sua própria convicção relativamente à prova produzida e à matéria de facto impugnada no recurso, cremos que tal desiderato dificilmente se atingirá com a mera reapreciação de excertos dos depoimentos, o que não significa que se transforme ou deva transformar a reapreciação da prova num novo julgamento, que nunca será, uma vez que a mesma se limita aos pontos de facto indicados pelo recorrente. Não podem, aliás, olvidar-se os poderes/deveres de averiguação oficiosa conferidos pela al. b) do nº 2 do art. 640º do CPC e que apenas são alcançáveis se a Relação não se limitar a uma audição parcial e, necessariamente, truncada dos depoimentos.” Revertendo ao caso destes autos, constata-se que o apelante indicou concretamente alguns dos factos que lhe merecem censura, e que são os factos que o tribunal a quo julgou não provados sob as alíneas a), b), c) e e), factos esses atinentes ao que o apelante identifica como “estima do A./valor patrimonial do veículo sinistrado” e “despesa de reboque”. No mais, ou seja, no que concerne ao “dano de privação de veículo” e aos “danos físicos e sofrimento psicológico” o apelante limita-se a tecer considerações gerais acerca do seu inconformismo pela improcedência do por si peticionado, sem indicar os factos concretos, de entre os dados como provados e não provados, que a esse respeito reputa mal julgados, nem o exato sentido do que deveria ter sido decidido em relação a esses factos concretos. Mais, nesta parte o apelante invoca os depoimentos do A. e das testemunhas em termos meramente genéricos, cometendo ao tribunal ad quem a tarefa de, através da audição dos mesmos, perceber o que deles resultaria de relevante para decidir em contrário ao tribunal a quo. Por outro lado, a apelante não identificou os exatos momentos temporais das passagens da gravação em que se baseia para impugnar a decisão de facto, nem procedeu à transcrição desses trechos. Porém, no que concerne às ditas alíneas a), b) e c) dos factos julgados não provados o apelante resumiu esses depoimentos, indicando pelo seu teor as razões da sua discordância, e indicou o início e termo de cada um desses depoimentos, cuja duração, conforme decorre dessa indicação, se resume, respetivamente, a 15 minutos, 7 minutos, 5 minutos, 7 minutos e 25 minutos. Ou seja, não se antevê que os depoimentos em causa tenham duração tal e a matéria de facto impugnada revista características, ao nível da sua extensão e complexidade, que determinariam ou aconselhariam que o tribunal a quo se dispensasse de ouvir a totalidade dos mesmos, concentrando-se apenas nas passagens identificadas pelo apelante. Quanto à impugnação do juízo negativo ínsito na alínea e) dos factos julgados não provados, o apelante não invoca qualquer depoimento, mas tão só o teor do documento que juntou aos autos com a petição inicial, pelo que não se aplica aqui o supra exposto sobre os ónus de impugnação da prova assente em depoimentos gravados. Assim, pelo exposto, admite-se a impugnação da matéria de facto quanto às alíneas a), b), c) e e) dos factos julgados não provados. No mais, rejeita-se a impugnação da matéria de facto. Segunda questão (impugnação da decisão de facto) Apreciação O apelante entende que deve dar-se como provada a matéria das alíneas a), b), c) e e) dos factos julgados não provados. Tais alíneas têm o seguinte teor: a) Que o Autor tenha tido sempre grande estima pelo carro, aplicando-lhe todos os cuidados possíveis na sua utilização e procedendo às reparações e manutenções necessárias (art.º 16º da p.i.). b) Que não existissem veículos da mesma marca e modelo, do mesmo ano e com as mesmas características daquele que estivessem em estado de conservação idêntico ao do Autor (art.º 17º da p.i.) c) Que não existissem, para venda, veículos idênticos ao do Autor, com todos os seus componentes) por valor inferior a 8.000,00€ (art.º 18º e 44º da p.i.). e) Que o Autor tenha despendido a quantia de €43,05 com o reboque do veículo (artigo 20º da p.i.). Para sustentar a prova dos factos das alíneas a) a c) o apelante invocou o seu próprio depoimento e bem assim o das testemunhas Hugo, Bruno, Pedro e Luís. Quanto à matéria da alínea a) (estima pelo carro, cuidados na sua utilização e efetuação das reparações e manutenções necessárias), as testemunhas Hugo, Bruno e Pedro foram perentórios na afirmação de tais factos, demonstrando, pelas suas afirmações, que conheciam a viatura (aliás, Hugo, irmão do A., é mecânico de automóveis; Bruno, amigo do A., declarou que tivera um carro igual ao do A., que tinha comprado na Alemanha, tal como o A., e até chegara a fazer propostas de aquisição dessa viatura ao A.). A testemunha da R., o perito Luís, confirmou ter visto a viatura e que quando calculou o respetivo valor comercial, levou em consideração o estado em que se encontraria antes do acidente, o qual, depreende-se do seu depoimento, pelo menos não registaria nenhuma anomalia. Assim, sendo certo que não foi apresentada qualquer prova que contrariasse os aludidos depoimentos, afigura-se-nos que (independentemente da relevância que tal facto possa ou não ter no desfecho do litígio) deve dar-se como provada a matéria da alínea a). O mesmo não ajuizamos quanto à matéria das alíneas b) (que não existiam veículos da mesma marca e modelo, do mesmo ano e com as mesmas características daquele em estado de conservação idêntico ao do Autor) e da alínea c) (que não existiam, para venda, veículos idênticos ao do Autor, com todos os seus componentes, por valor inferior a 8.000,00€). A testemunha Hugo aventou que o veículo do A., à data do acidente, valeria “entre os 8 000, 9 000 euros, não sei, entre esses valores”, acrescentando que na altura o valor que estava a ser praticado era entre os 7 000 e os 10 000 euros. Não se pronunciou acerca da inexistência no mercado de carro igual ao do A.. As testemunhas Bruno e Pedro não se pronunciaram especificamente sobre esta matéria. A testemunha Luís afirmou que avaliara o veículo do A. em € 6 500,00, com base no estado do veículo, numa pesquisa que fez na internet de viaturas à venda, no teor da tabela Eurotax, no parecer obtido (aparentemente informalmente) junto do departamento de vendas da Audi, e ainda no facto de se tratar de um carro importado, ou seja, adquirido diretamente no estrangeiro, o que o desvalorizaria um pouco, por ter sido comprado mais barato. Por sua vez os anúncios de quatro viaturas em venda constantes a fls 34 dos autos, todos respeitantes a automóveis Audi, do ano de 2002, com a cilindrada de 1900 cm3, e quilometragens que variam entre 202 708 km e 302 000 km, ostentam preços que se localizam entre € 5 850,00 e € 6 950,00. Por sua vez o A. afirmou, nas suas declarações, que encontrara anúncios de viaturas do mesmo modelo e ano à venda, na internet, por cerca de € 7 000,00, mas não estavam tão bem como a sua viatura. Face ao exposto, não se poderá, em consciência, apontar base sólida para sustentar a convicção razoável de que à data do acidente não se conseguia encontrar à venda uma viatura com as mesmas características da do A. por menos de € 8 000,00, assim como que não era possível encontrar no mercado, à venda, uma viatura com as mesmas características da do A. (o que, diga-se, não corresponde a considerar provado o contrário do ora questionado). Resta apreciar a questão da despesa com o reboque da viatura, da oficina onde se encontrava para a residência do A. (alínea e) dos factos não provados). O tribunal a quo não deu como provada essa despesa, por constatar que o documento comprovativo junto pelo A. (fls 14 verso) “é uma folha de registo e não um recibo do pagamento da quantia ali indicada, pelo que não faz prova de qualquer pagamento”, tendo aceite esse elemento tão só para prova de que o reboque foi efetuado. Com efeito, o aludido documento, embora mencione o custo do transporte, nada diz quanto à efetivação do respetivo pagamento. Porém, como alega o apelante, estando provado que foi prestado o serviço e que este tem um custo, alguém o pagou ou é responsável por ele. Ora, como responsável, no documento, apenas figura o A.. Pelo que, em termos de razoabilidade e na falta de prova apresentada em contrário, entendemos que esse documento é bastante para considerar, em termos de razoabilidade e com base na experiência normal das coisas, que o A. suportou essa despesa. Assim, considera-se a impugnação da matéria de facto parcialmente procedente e consequentemente adita-se à matéria de facto as seguintes alíneas: S) O Autor tinha tido sempre grande estima pelo carro, aplicando-lhe todos os cuidados possíveis na sua utilização e procedendo às reparações e manutenções necessárias. T) O Autor despendeu a quantia de €43,05 com o reboque do veículo, referido em M). Terceira questão (danos ressarcíveis e respetivos montantes indemnizatórios) Está assente que em virtude de acidente culposamente causado por entidade cuja responsabilidade civil havia sido transferida para a R., o A. sofreu danos, cuja indemnização reclama. Não se questiona que a R. é responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo A. em consequência do acidente. A controvérsia incide tão só sobre a identificação dos danos ressarcíveis e os quantitativos devidos a título de indemnização. Nos termos do art. 562.º do Código Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.“ Tal obrigação só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão (art.º 563.º do C.C.), compreendendo não só os chamados “danos emergentes”, como os “lucros cessantes” (as duas categorias são mencionadas na lei como “prejuízo causado” e “benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” – n.º 1 do art.º 564.º do Código Civil). Em princípio a indemnização deverá visar a reconstituição natural, sendo fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não for possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (n.º 1 do art.º 566.º do Código Civil). A indemnização em dinheiro terá como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (n.º 2 do art.º 566.º). Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (n.º 3 do art.º 566.º). Em relação aos danos não patrimoniais, estabelece o n.º 1 do art.º 496.º do Código Civil que serão ressarcíveis aqueles que, “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. Quanto aos danos não patrimoniais, que o A. avaliava em € 1 000,00, nada se provou. O A. poderá ter sofrido, em consequência do acidente e do conflito com a R., desgostos e incómodos, mas nada se provou nesta vertente que assuma a gravidade ou relevância exigidas pelo art.º 496.º para a intervenção do direito. Poderá citar-se, a este respeito, o sumário do acórdão da Relação do Porto, de 16.3.2015, onde se exarou que “o desgosto que alguém sofre com a danificação culposa por outrem de um veículo seu, de uso diário e sem características especiais, que se encontrava em boas condições de conservação e aparência não tem a gravidade suficiente para ser merecedor da tutela do direito” (processo n.º 224/12.8TVPRT.P1). Sendo certo que, no que concerne a sofrimento físico, nada se provou. Quanto aos danos patrimoniais, provou-se que a viatura do A. sofreu danos cuja reparação custa € 8.896,47 (alínea N) da matéria de facto). Dir-se-ia, então, que a R. deveria suportar tal despesa, necessária à reconstituição natural da situação que existiria se não tivesse ocorrido o sinistro (art.º 566.º n.º 1 do Código Civil). Porém, na sentença recorrida entendeu-se que “o artigo 41º do DL n.º 291/2007 de 21 de agosto consagra uma norma especial face ao referido artigo 566º do Código Civil, regulamentando a obrigação de indemnização nas situações de acidente entre veículos que se encontrem dentro do âmbito do seguro obrigatório, como é o caso dos presentes autos. Deste artigo resulta uma delimitação concreta das situações em que a indemnização por reconstituição natural, i.e., por reparação do veículo, é afastada e a seguradora tem de indemnizar em dinheiro, consagrando também uma regra específica para o cálculo do valor desta indemnização, tendo como premissas o valor venal do veículo, o valor estimado da reparação, e o valor do salvado.” E prossegue: “O valor venal do veículo, antes do sinistro, tem a aceção legal consagrada no n.º 2 do referido artigo 41º: “valor de substituição”, entendido pela jurisprudência como o valor que permitiria ao lesado adquirir, no mercado, um veículo de caraterísticas similares ao danificado. Aqui chegados, importa aplicar as normas jurídicas referidas ao caso dos autos. O Autor vem defender que a reparação do veículo não é excessivamente onerosa face ao valor venal do mesmo. Como tem vindo a ser entendido na jurisprudência, incumbia à seguradora o ónus de demonstrar que essa reparação lhe é excessivamente onerosa, nos termos do disposto no art.º 566º, n.º 1 do Código Civil e, como tal, tem direito a indemnizar em dinheiro, pelo valor venal calculado nos termos do artigo 41º, n.º 3 do DL 291/2007. Contudo, o Autor não pede a reparação do veículo, mas outrossim uma determinada quantia em dinheiro, correspondente ao valor dessa reparação. Mas não é a isso que tem direito, pois por força do disposto nos artigos 562º e 566º do Código Civil, aquele que está obrigado a indemnizar pode ser condenado à reconstituição da situação, ou seja, no caso, à luz do artigo 41º, n.º 1 do DL 291/2007, à reparação do veículo ou à indemnização em dinheiro calculada de acordo com as já referidos normas legais. A lei não consagra o direito a receber o custo da reparação em espécie, como defende o Autor. Assim, uma vez que não foi pedida a reparação do veículo, desnecessário se torna aferir se a mesma é excessivamente onerosa para o devedor, para a Ré.” Seguidamente, na sentença recorrida pondera-se o seguinte: “Tendo o Autor pedido uma indemnização em dinheiro, a mesma só pode ser calculada de acordo com o critério legal já acima enunciado e consagrado no referido número 3 do artigo 41º do DL 291/2007. A Ré propôs determinado pagamento, sustentado num valor venal de 6.500,00€, no valor do salvado de 3.235,00€ e num valor de reparação de 8.088,96€, como resulta da contestação e da carta que endereçou ao Autor. O Autor defende que só com quantia superior a 8.000,00€ conseguiria adquirir um veículo com as mesmas características do seu – contudo, não logrou provar tal facto. Não tendo o Autor conseguido provar um valor venal/de substituição superior ao estimado pela Ré, resta-nos considerar o valor indemnizatório por esta estimado, com base nos referidos valor venal e valor do salvado, que o Autor assumidamente manteve na sua posse. Ou seja, o Autor apenas terá direito a uma indemnização no valor já oferecido, de 3.265,00€ (6.500€ - 3.235,00€).” Vejamos. Quanto à aplicabilidade ao caso concreto do teor do art.º 41.º do Dec.Lei n.º 291/2007, de 21.8 (diploma que, além do mais, aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), constitui entendimento, pelo menos dominante, na jurisprudência, que sufragamos, que tal artigo, bem como os restantes contidos no Capítulo III (“Da regularização dos sinistros”) do Título II (“Do seguro obrigatório”) do aludido diploma, conforme decorre das normas do aludido Capítulo, apenas regem os padrões que as partes, em especial a seguradora, poderão ou deverão ter em conta numa fase pré-jurisdicional de regulação dos seus interesses, procurando que tal regulação chegue a bom porto de forma rápida e sem os custos inerentes à resolução jurisdicional dos litígios, não obrigando os tribunais numa eventual fase jurisdicional de resolução do conflito (vide, por exemplo, acórdãos da Relação de Lisboa, de 14.3.2013, processo 114/09.1TBRGR-A.L1-6; acórdão da Relação de Lisboa, de 04.7.2013, processo 3643/11.3TBSLX.L1-6; acórdão da Relação de Lisboa, de 29.4.2014, processo 70/14.4YRLSB-6; acórdão da Relação do Porto, de 16.3.2015, processo 224/12.8TVPRT.P1; acórdão da Relação de Guimarães, de 09.02.2017, processo 313/15.7T8MAC.G1; acórdão da Relação de Coimbra, de 16.3.2016, processo 100/14.0T8LMG.C1 – todos consultáveis na base de dados do IGFEJ). Efetivamente, o lesado poderá discordar da proposta apresentada pela seguradora e tentar demonstrar perante um tribunal que os danos sofridos e/ou o respetivo ressarcimento excedem os limites daquilo que emergeria do dito regime prévio de regularização, apelando para as regras gerais de indemnização constantes no Código Civil. Reportando-nos à questão da definição de perda total de veículo sinistrado e da determinação da respetiva indemnização, ainda que as soluções propugnadas no art.º 41.º possam ser levadas em consideração como ponto de partida, pelos tribunais (como propugnado, por exemplo, no acórdão da Relação do Porto, de 19.02.2015, processo 1306/13.4TBMCN), haverá que aplicar a visão mais abrangente e plástica que, decorrente do disposto no art.º 566.º n.º 1 do Código Civil, comummente vem sendo aplicada pelos tribunais, que se poderá sintetizar nos termos do acórdão do STJ, de 31.5.2016 (processo 741/03.0TBMMN.E1.S1), onde, em sumário, se expendem as seguintes proposições: a) “A excessiva onerosidade da reconstituição natural tem de ser aferida, não, apenas, em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas, também, no confronto entre aquele preço e o valor patrimonial do veículo, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial daquele pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário.” b) “É errado estabelecer-se a comparação entre o valor venal ou de mercado do automóvel, antes do acidente, por um lado, e o custo da sua restituição natural [reparação ou aquisição de bem idêntico, em valor e qualidades], por outro, porquanto os termos da relação são, antes, entre o valor necessário para a satisfação dos interesses legítimos do credor, por um lado, e o custo da restauração natural, por outro.” c) “A existência da excessividade da restauração natural resulta da verificação cumulativa de dois requisitos, sendo o primeiro o do benefício para o credor, consequente à reconstituição, e o segundo o de que esta se revele iníqua e abusiva, por contrária aos princípios da boa-fé, pelo que a reconstituição natural será, excessivamente, onerosa para o devedor e, portanto, de excluir, por inadequada, apenas, quando se apresente como um sacrifício, manifestamente, desproporcionado para o lesante, quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património.” Sendo certo que, quanto ao ónus da prova da excessiva onerosidade da restauração natural: “Sendo a regra geral da restauração natural imposta, no interesse de ambas as partes, como modo primário de indemnização, se o credor reclama a restauração natural é ao devedor que pretenda contrapor-lhe a indemnização pecuniária, enquanto réu, que cabe o ónus de alegação e de prova da excessiva onerosidade da mesma, enquanto facto excetivo, justificativo da possibilidade da restituição por equivalente, ou seja, a prova da excepção, isto é, que a restauração natural é, excessivamente, onerosa para si” (mesmo acórdão do STJ). Na sentença recorrida entendeu-se que o A. não pedira a reparação da viatura, mas uma quantia pecuniária, correspondente ao custo dessa reparação, o que lhe estaria vedado. Assim, ajuizou-se, não haveria sequer que avaliar se a reparação era excessivamente onerosa e, em termos de quantia pecuniária, o A. apenas teria direito ao valor calculado nos termos do n.º 3 do citado art.º 41.º, ou seja, uma indemnização por perda total, correspondente ao valor venal do veículo indicado pela seguradora, deduzido do valor do salvado – tendo, assim, o tribunal a quo atribuído ao A. uma indemnização no valor de € 3 265,00. Discorda-se do tribunal a quo. O A. pretende, conforme decorre de toda a petição inicial, a reparação da sua viatura, ou seja, a reconstituição natural da situação que existiria se não tivesse ocorrido o sinistro. E, tendo a R. recusado proceder a essa reparação (vide alínea M) da matéria de facto), ou melhor, tendo recusado suportar esse custo (na medida em que não seria a R., companhia de seguros, ela própria, a proceder a essa prestação), o A. peticionou que a R. fosse condenada a pagar-lhe o respetivo custo, o qual, como se provou, é de € 8.896,47 (alínea N) da matéria de facto). Trata-se de pedido usual, que se integra, ainda, no quadro da reconstituição natural (vide, por exemplo, acórdão da Relação de Lisboa, de 03.5.2012, processo 211/09.3TBSRQ.L1-6). De resto, a R. não questionou, na contestação, a legalidade ou pertinência de tal pedido. Assim, nada obstava, como não obsta, a que o A. reclame a condenação da R. no pagamento, ao A., do custo da reparação do veículo sinistrado. Para obstar a tal condenação caberia, pois, à R. demonstrar que a reparação (o seu custo) seria excessivamente onerosa. Ora, a esse respeito nada se provou, sendo certo que não se provou qual era o valor venal do veículo antes do sinistro. Temos, pois, que nesta parte a apelação é procedente, como o é a ação. Também o será quanto ao custo do reboque (€43,05), face ao facto dado como provado sob a alínea T). Resta avaliar a indemnização reclamada a título de privação do uso da viatura. Aqui, apenas se poderá dar como certo que o A. esteve privado da utilização da viatura desde a data do sinistro até ao dia em que retirou o automóvel da oficina, ordenando que fosse rebocado até à sua residência (alínea M) dos factos provados). Para este efeito, face ao teor do documento constante a fls 14 verso dos autos, supra mencionado a propósito da impugnação da matéria de facto, dá-se ainda como provado que: U) O reboque do veículo, referido em M), ocorreu em 22.6.2015. Quanto à utilização em concreto que o A. fazia da viatura, nada se provou. Por outro lado, refere o A., na alegação do recurso, que entretanto o veículo foi parcialmente reparado, tendo por fim permitir a sua utilização. Aliás, na sentença menciona-se, em sede de fundamentação da decisão de facto, a propósito do juízo negativo quanto ao factualismo alegado para sustentar o dano de privação de uso, que “o veículo já está quase todo arranjado e o Autor circula com o mesmo, como este admitiu nas suas declarações, desconhecendo-se desde quando está nessas condições”. Assim, apenas está demonstrado que o A. ficou privado da possibilidade de utilizar a sua viatura entre 13.05.2015 (data do acidente) e 22.6.2015 (data do reboque para a sua residência), nada mais se provando quanto à imobilização da viatura. De todo o modo, a privação do uso e fruição de veículo automóvel, resultante de um acidente de viação, constitui um dano patrimonial, na medida em que determina uma limitação ao direito de propriedade sobre o veículo, o qual compreende, conforme a enumeração expressa operada pelo art.º 1 305.º do Código Civil, os direitos de uso, fruição e disposição da coisa. Nos dias de hoje, a possibilidade de usar individual e regularmente um veículo motorizado é, pelo menos para a grande maioria da população, um pressuposto essencial para uma razoável qualidade de vida. De tal forma assim é que a utilização de automóvel ou outro veículo sem autorização de quem de direito constitui uma modalidade autónoma de crime contra a propriedade (art.º 208.º do Código Penal). Por outro lado, o direito de usar uma viatura é hoje em dia um bem universalmente negociável, constituindo a sua concessão uma atividade económica de grande relevo. Daí que, conforme Júlio Gomes nos dá notícia (in “O dano da privação do uso”, Revista de Direito e Economia, ano XII, 1986, Universidade de Coimbra, pág. 169 e seguintes), desde os anos 60 do século passado que os tribunais alemães (primeiro os da ex RFA) consideram como dano autónomo a privação de uso de um veículo automóvel durante um certo lapso de tempo, o qual tem um cariz patrimonial na medida em que a necessidade a que respeita tem um valor comercial – admitindo-se, pelo menos como ponto de partida, como critério de fixação da indemnização correspondente, o valor que o lesado gastaria com a locação de um veículo substitutivo do veículo danificado. Em Portugal, a autonomização da privação do uso de um veículo sinistrado enquanto dano patrimonial, tem tido reconhecimento doutrinário (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, “Indemnização do dano da privação do uso”, Almedina, 2001; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 14.ª edição, Almedina, 2017, páginas 329 e 330; Américo Marcelino, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 7.ª edição revista e ampliada, Livraria Petrony, 2005, pág. 359; Pinto de Almeida, “Responsabilidade civil extracontratual, Danos reflexos e Indemnização do dano da privação do uso”, texto apresentado em 02.3.2010 no Curso de Especialização Temas de Direito Civil, organizado pelo CEJ, consultável no correspondente e-book editado pelo CEJ). Na jurisprudência, existe diversidade de posições. A par de decisões que reconhecem que a privação do uso de uma viatura constitui um dano em si, suscetível de indemnização (cfr. STJ, 24.01.2008, processo 07B3557; STJ, 06.5.2008, processo 08A1279; STJ, 08.5.2013, processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1), noutras exige-se a demonstração de que a privação do veículo causou ela própria danos, no sentido de ter tido repercussão negativa no património do lesado (cfr. STJ, 16.9.2008, processo 8A2094; STJ, 06.11.2008, processo 08B3402; STJ, 30.4.2015, processo 353/08.2TBVPA.P1.S1). Numa posição mais mitigada, exige-se tão só a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo, de proceder à utilização da viatura de que o proprietário se viu privado (STJ, 09.12.2008, 08A3401, também in Col. Jur. ano XVI, tomo III, pág. 179; STJ, 16.3.2011, processo 3922/07.2TBUCT.G1.S1; STJ, 09.7.2015, processo 13804/12.2T2SNT.L1.S1). Propendemos, conforme resulta do supra exposto, para a primeira posição, ou seja, para considerar a privação do uso de viatura (ou, se se quiser, a privação da possibilidade de uso da viatura) como um dano patrimonial, que é economicamente valorizável, se necessário com recurso à equidade (art.º 566.º n.º 3 do Código Civil). No caso de um acidente de viação imputável a terceiro, que determine a paralisação temporária do veículo, a reconstituição natural pode fazer-se pela entrega de um veículo com características semelhantes às do danificado, até à respetiva reparação, ou através da atribuição de quantia suficiente para contratar o aluguer de um veículo cujas características sejam semelhantes às do acidentado (neste sentido, cfr., por exemplo, acórdãos do STJ, de 27.5.2003, processo 03A1351 e de 24.01.2008, 07B3557). Que assim é denota-o o disposto no art.º 42.º do já citado Regime Jurídico do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo Dec.-Lei nº 291/2007, de 21.8. Nos termos desse artigo, estabelece-se que “verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, nos termos previstos nos artigos anteriores” (n.º 1 do art.º 42.º). No caso de perda total do veículo, essa obrigação cessa no momento em que a seguradora coloque à disposição do lesado a indemnização devida (n.º 2 do art.º 42.º). Nos termos do n.º 3 do art. 42.º, “a empresa de seguros responsável comunica ao lesado a identificação do local onde o veículo de substituição deve ser levantado e a descrição das condições da sua utilização.” O n.º 5 do mesmo artigo ressalva que “o disposto neste artigo não prejudica o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transportes em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição.” Note-se que estes preceitos (que, como se disse, se reportam a uma fase pré-jurisdicional, de regulação dos sinistros, não vinculando os tribunais na definição dos danos ressarcíveis) não condicionam a atribuição de viatura de substituição à demonstração da necessidade da mesma. No caso dos autos, a seguradora não colocou à disposição do lesado qualquer veículo de substituição, sendo certo que a seguradora classificou o caso de “perda total” e propôs ao lesado um determinado valor indemnizatório. Porém, o lesado não aceitou esse valor e a verdade é que, discutido o caso em juízo, a R. não logrou demonstrar o bem fundado da sua posição. Afigura-se-nos que, em regra, um cidadão só aceita suportar as despesas fiscais, de seguro e outras (vide inspeção obrigatória à viatura), inerentes à titularidade de uma viatura automóvel, se pretender utilizá-la regularmente. Mesmo os adeptos da necessidade de demonstração de danos para além da privação do veículo reconhecem que “uma paralisação de um veículo, normalmente, causa prejuízos ao proprietário. O dono goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (art. 1305º), pelo que ficando, pela paralisação, desprovido desses direitos, em princípio, ocorrerão, para si, perdas” (STJ, 16.9.2008, 08A2094, citado supra). Ora, se assim é, cremos que caberá ao lesante demonstrar que no caso concreto a paralisação da viatura não era suscetível de causar quaisquer danos ao lesado (por exemplo, o lesado, habitual utilizador da viatura, esteve ausente no estrangeiro durante o período de paralisação da mesma, em local para onde não a iria levar). Nenhuma situação contrária à habitual, supra exposta, se demonstrou em relação ao A.. Conforme decorre do acima exposto, o valor locativo das viaturas, nomeadamente o valor que no mercado é cobrado pelas empresas de aluguer de viaturas, é aceitável como padrão a utilizar no cálculo da indemnização por privação da viatura, tendo-se em consideração as características da viatura em concreto. Tal valor diário excede, como é sabido, os € 20,00 diários. Valor que encontramos em casos como o apreciado pelo STJ em 28.11.2013 (processo 161/09.3TBGDM.P2.S1, acessível in www.dgsi.pt), reportado a acidente ocorrido em 2006. Sendo certo que em caso relatado pelo relator deste acórdão e também subscrito pela Exm.ª 1.ª adjunta (acórdão de 21.5.2009, processo 1252/08.3TBFUN.L1, acessível in www.dgsi.pt e também na Colectânea de Jurisprudência, ano XXXIV, tomo III, pág. 78 e seguintes), se aceitou a despesa provada pelo lesado, de aluguer de um quadriciclo, no valor de € 40,25 por dia. E em acórdãos como os proferidos em 22.6.2016 (Relação de Lisboa, processo 31357-12.OT2SNT.L1-6), 27.10.2015 (Relação de Lisboa, processo 5119/12.2.TBALM.L1-1) e de 17.12.2014 (Relação de Lisboa, processo 1595/13.4TBALM.L1-2) condenou-se o responsável no pagamento de indemnizações, pela privação de uso de viatura, correspondentes, respetivamente, ao montante diário de € 30,00, € 36,50 e € 28,00. É certo que nas decisões ora citadas o julgador dispunha de um manancial de factos de que decorria a demonstração de uma utilização diária ou frequente das viaturas em questão. Bem mais prudentes foram os tribunais portugueses em algumas situações de total rarefação de matéria de facto onde se apoiar: veja-se os acórdãos da Relação de Lisboa, de 27.02.2014 (processo 889/11.8TBSSB.L1-6) e de 01.7.2014 (processo 11463/09.9THLSB.L1-1), em que, à míngua de elementos, se atribuiu ao lesado uma indemnização correspondente ao valor diário de € 05,00. No caso dos autos, nada se provou em relação à utilização em concreto que o A. fazia da viatura sinistrada. Contudo, como se disse, a privação da viatura é, em si, um dano patrimonial, cuja reparação passa pela disponibilização ao lesado de uma viatura idêntica. O padrão de referência que, nesta perspetiva, em regra se utiliza, é o custo de aluguer de viaturas, o qual, normalmente, excede os € 20,00 por dia. Assim, tudo ponderado, cremos ser de aceitar o valor diário invocado pelo A., de € 12,50, inferior ao montante supra referido. Por conseguinte, a título de privação da viatura sinistrada, atribuir-se-á ao A. a quantia de € 512,50 (€ 12,50 vezes os dias decorridos desde a data do acidente - 13.05.2015 - até à data do reboque da viatura - 22.6.2015). Em suma, a apelação é parcialmente procedente, cabendo ao A. uma indemnização, por danos patrimoniais, no valor total de € 9 452,02, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação (art.º 805.º n.º 3 e 806.º do Código Civil). DECISÃO Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida e, em sua substituição, julga-se a ação parcialmente provada e procedente e, em consequência, condena-se a R./apelada a pagar ao A./apelante, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 9 452,02 (nove mil quatrocentos e cinquenta e dois euros e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da citação e vincendos, até integral pagamento. Condena-se o A. e a R., em ambas as instâncias, pelas custas, na proporção do respetivo decaimento. Lisboa, 25.5.2017 _____________________ Jorge Leal _____________________ Ondina Carmo Alves _____________________ Pedro Martins