I - RELATÓRIO 1.1. Decisão impugnada 1.1.1. AA, residente no Concelho de Vila Nova de Famalicão, propôs um processo especial de insolvência, pedindo que · fosse declarado insolvente; · lhe fosse concedido o benefício de exoneração do passivo restante. Alegou para o efeito, em síntese, resultar a sua situação de insolvência da incapacidade generalizada para cumprir as suas obrigações, a maior parte resultantes da contracção de diversos créditos ao consumo, e de fornecimentos solicitados no âmbito da anterior exploração de um café (entretanto encerrado). Mais alegou ser operário de construção civil, auferir mensalmente cerca de € 485,00, viver com a Mãe (viúva, e com dois filhos menores a cargo), pagar uma pensão mensal de alimentos de € 125,00 a um Filho seu, e nunca antes ter sido declarado insolvente, encontrando-se por isso em condições de beneficiar da exoneração do passivo restante. 1.1.2. Foi proferida sentença, declarando a insolvência do Requerente e nomeando como Administrador da Insolvência BB; e, posteriormente, foi proferido despacho, declarando encerrado o processo de insolvência, por insuficiência da massa. 1.1.3. Tendo sido admitido liminarmente o pedido de exoneração de passivo restante, foi determinada a entrega ao Fiduciário nomeado (o Administrador da Insolvência) do rendimento disponível a auferir pelo Insolvente, nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, na parte que excedesse o valor do salário mínimo nacional mensal, acrescido da quantia de € 125,00, num total de doze meses por ano. 1.1.4. No final do primeiro ano, veio o Fiduciário (BB): juntar aos autos o relatório previsto no art. 240º, nº 2 do C.I.R.E.; informar que o Insolvente, no período em causa, não auferiu quaisquer rendimentos; e requerer que lhe fosse fixada remuneração, não inferior a cinco unidades de conta, a suportar pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (I.G.F.E.J.). Alegou para o efeito, em síntese, que, prevendo-se no art. 30º do Estatuto do Administrador Judicial a possibilidade do pagamento da remuneração do administrador de insolvência ser suportada pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça, e aplicando-se o mesmo ao fiduciário, por força do nº 2 do art. 240º do C.I.R.E., estaria a sua pretensão legalmente fundada. 1.1.5. Foi proferido despacho, indeferindo a pretensão do Fiduciário, lendo-se nomeadamente no mesmo: «(…) Nos termos da lei vigente, nomeadamente de acordo com o disposto nos artº 28 L 22/2013, e 240,1 CIRE, a remuneração do fiduciário é encargo do devedor. Assim, não pode atender-se a pretensão formulada. (…)»*1.2. Recurso (fundamentos) Inconformado com esta decisão, o Requerente (BB) interpôs recurso de apelação, pedindo que julgado procedente, sendo o despacho recorrido substituído por outro, que lhe fixasse honorários (correspondentes, no mínimo, a cinco unidades de conta). Concluiu as suas alegações da seguinte forma (sintetizada, sem repetições do processado, ou reproduções de textos legais ou jurisprudenciais): 1ª - Prever-se no Estatuto do Administrador Judicial o direito à remuneração pela actividade desenvolvida, e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis, a suportar pelo Estado quando a massa insolvente seja insuficiente para o efeito, o que deverá ser aplicável ao fiduciário (por expressa remissão legal para aquele Estatuto do Administrador Judicial). VI - O art.º 30.º do Estatuto do Administrador Judicial prevê a possibilidade do pagamento da remuneração do administrador da insolvência ser suportada pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça, quando a massa insolvente for insuficiente para o efeito. VII - Embora aí não seja contemplada norma equivalente para o fiduciário, quando não existam quantias cedidas pelo devedor, não pode deixar de equiparar-se as duas situações, sob pena, como se referiu, de poder chegar-se a uma situação em que o fiduciário está a exercer as funções para as quais foi nomeado pelo tribunal, sem auferir qualquer rendimento, o que pode ocorrer, caso aquelas quantias não existam. 2ª - Não será plausível, e muito menos razoável, que a remuneração a atribuir ao fiduciário pelo trabalho desenvolvido se encontre necessariamente dependente dos resultados que produza, sob pena de trabalho efectivo ficar sem remuneração quando não chegue a ser cedido qualquer rendimento disponível (o que violaria o a C.R.P.). III - A respeito da remuneração do fiduciário, regula o n.º 1 do artigo 240.º do CIRE que a remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor. IV - O Estatuto do Administrador de Insolvência, aprovado pela Lei 22/2013 de 26 de Fevereiro, contempla expressamente que a remuneração devida ao fiduciário corresponde a 10% das quantias objecto de cessão, com o limite máximo de 5.000,00€ por ano. V - O douto entendimento do Tribunal a quo ao indeferir o pedido de fixação de remuneração devida ao recorrente, não obstante a inexistência de qualquer quantia cedida, com o fundamento de que a responsabilidade pelo pagamento dos honorários corre por conta do devedor afronta a lei e é inconstitucional por permitir / prever trabalhar de forma gratuita. *1.3. Contra-alegações O Ministério Público contra-alegou, pedindo que não fosse atribuído ao Fiduciário qualquer remuneração, sem prejuízo do reembolso pelo I.G.F.E.J. das despesas que houvesse efectuado. Concluiu as suas alegações da seguinte forma (sintetizada, sem repetições do processado, ou reproduções de textos legais ou jurisprudenciais): 1ª - Não ter a pretensão do Fiduciário sustentação legal, já que a lei expressamente indexa a sua remuneração a parte das quantias objecto de cessão, e clarifica que o seu pagamento constitui encargo do devedor. Na verdade, prevê o artigo 28º do EAJ que: «A remuneração do fiduciário corresponde a 10% das quantias objecto de cessão, como o limite máximo de €5000,00 por ano». Por outro lado, prescreve o artigo 240º, nº 1 do CIRE que: «A remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor». Como no caso dos autos não ocorreu a cessão de rendimentos não há, por força da lei, que fixar remuneração ao sr. Fiduciário. Ao aceitar, como aceitou, desempenhar as funções de fiduciário, não ignorava que só teria direito a ser remunerado em 10% do rendimento cedido e que esta remuneração constituía encargo do devedor. De igual modo, no processo de insolvência o Sr. AI só tem direito à remuneração variável quando existe produto da liquidação e este supera as despesas da massa insolvente, nos termos permitidos pela lei (cfr. artigo 29, nº 5 do EAJ e Portaria 51/2005, de 20/1). É, pois, pacífico que não existindo produto da liquidação, não é devida qualquer remuneração variável ao administrador da insolvência. Num outro plano, inexistindo cessão de rendimentos, também não é devida, por força da lei, remuneração ao fiduciário. 2ª - A entender-se de outro modo, sempre se deverá exigir objectividade na fixação da dita remuneração, sob pena de se multiplicarem casos em que mais vale nada fazer para que inexistam rendimentos cedidos pelo insolvente (na expectativa do I.G.F.E.J. ser onerado com o pagamento de uma remuneração superior, em prejuízo do erário público). Ainda que o critério seja mais complacente – na senda, aliás, da jurisprudência citada pelo recorrente-, então sempre se deverá exigir objectividade (por oposição a arbitrariedade) e equilíbrio na fixação da remuneração do fiduciário, sob pena de se multiplicarem os casos em que mais vale nada fazer para que inexistam rendimentos cedidos pelos insolventes, na expectativa de ao IGFEJ ser imposto o dever de suportar uma remuneração de valor superior, em prejuízo do erário público.*II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR 2.1. Objecto do recurso - EM GERAL O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do C.P.C.), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, in fine, do C.P.C., aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma).* 2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar Mercê do exposto, uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal: . Questão Única - Deveria o Tribunal a quo, face à inexistência de qualquer rendimento disponível cedido, ter fixado remuneração ao Fiduciário nomeado, sendo a mesma a suportar pelo I.G.F.E.J. ? *III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Com interesse para a apreciação da questão enunciada encontram-se assentes os factos relativos ao processamento dos autos, conforme enunciado em «I - RELATÓRIO».*IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 4.1. Direito aplicável - Indicação e interpretação 4.1.1. Exoneração do passivo restante Lê-se no art. 235º do C.I.R.E. que, se «o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste». Mais se lê, no art. 236º, nº 1 e nº 3 do C.I.R.E. que o «pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação», dele devendo constar «expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos» exigidos para o efeito, discriminados nos arts. 238 º seguintes, grosso modo, o não ter prejudicado ao credores com a sua pretérita actuação (nomeadamente, não ter falseado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência as informações pertinentes à sua situação económica por forma a obter crédito, ter-se apresentado prontamente à insolvência, não ter culposamente criado ou agravado a sua situação de insolvência, e não ter violado, com dolo ou culpa grave, os deveres de informação, apresentação e colaboração que o C.I.R.E. lhe impunha no decurso do respectivo processo de insolvência). «Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes», determinando que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal», a quem cabe afectar «os montantes recebidos, no final de cada ano que dure a cessão», aos «credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processos de insolvência» (artigos 239º, nº 1 e nº 2 e 241º, nº 1, al. d), ambos do C.I.R.E.); e, durante o período de cessão, não sendo «permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência», nem qualquer actuação que conceda vantagens especiais a um credor sobre outro (art. 242º do C.I.R.E.). Integrarão o dito «rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor», nomeadamente os que resultem de uma profissão remunerada, que deverá ser diligentemente procurada, quando não exista, ficando ainda o devedor obrigado, durante o período da cessão, a não «ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo e que isso lhe seja requisitado» (art. 239º, nº 3 e nº 4, als. a) e b), do C.I.R.E., com bold apócrifo). Precisa-se, porém, que não se está aqui «apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo antes abrangidos quaisquer acréscimos patrimoniais. Assim, se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar-se cedido ao fiduciário. A tal não obsta o art. 2028º, nº 2, dado que a cessão do rendimento disponível constitui uma hipótese legalmente prevista» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3ª edição, Almedina, 2011, p. 327, com bold apócrifo). A distribuição do dito rendimento disponível aos credores da insolvência far-se-á uma vez por ano (provavelmente, como forma de poupança de custos). *4.1.2. Remuneração do fiduciário - Regime regra Lê-se no art. 240º, nº 1 do C.I.R.E. que a «remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor». Mais se lê, no nº 2 do art. 240º citado (aqui, com bold apócrifo), que são «aplicáveis ao fiduciário, com as devidas adaptações, (…) o disposto no nº 1 do artigo 60º», onde nomeadamente se lê que o «administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis». Compulsado o Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), lê-se no seu art. 28º que a «remuneração do fiduciário corresponde a 10% das quantias objecto de cessão, com o limite máximo de 5.000 por ano», já que se pressupõe o exercício das suas funções pelo completo período de cinco anos em que deverá durar a cessão. Por fim, lê-se no art. 241º, nº 1 do C.I.R.E. que o «fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los, e afecta os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão: a) ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida; b) ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas; c) ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas; d) à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência». Resulta assim expressamente, da consideração conjunta dos preceitos legais citados, que: . é certo e indiscutível o direito do fiduciário à remuneração pelo exercício das suas específicas funções (direito esse que nada tem a ver com o do administrador da insolvência, ainda que porventura coincidam na mesma pessoa ambas as qualidades, e nesta outra - e por estas outras funções - já tenha sido retribuído); . é o devedor quem paga, através do rendimento cedido aos credores, a remuneração e as despesas do fiduciário; . a afectação dos montantes do rendimento do devedor cedidos (incluindo os destacados para pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário) é feita no final de cada ano de duração da cessão; . o pagamento é feito pela ordem indicada na lei (isso é, só são efectuados os pagamentos da categoria subsequente quando se encontrar satisfeito integralmente satisfeito o pagamento da categoria precedente); . existe a possibilidade da remuneração e das despesas do fiduciário terem sido suportadas pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça (devendo, logo que se verifique existirem montantes recebidos, proceder-se ao respectivo reembolso).*4.1.3. Regime excepcional - Ausência de rendimento cedido Vem-se, porém, colocando a questão de saber se, quando as quantias objecto da cessão não existam ou sejam insuficientes para o pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário (o que até não será raro, considerando as prioridades para a afectação das quantias cedidas estabelecidas no art. 241º, nº 1 do C.I.R.E.), o mesmo deverá, ou não, ficar sem remuneração, e sem o reembolso das despesas que haja realizado. Assim, quem procede a uma interpretação literal do art. 240º, nº 1 do C.I.R.E. defende que, nesses casos, não se procederá ao pagamento de qualquer remuneração do fiduciário, nem ao reembolso das suas despesas (já que, de acordo com aquele preceito, uma e outras constituem «encargo devedor»). Outros, porém, recordando que a «interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (art. 9º, nº 1 do C.C.), defendem que o pagamento da remuneração, e o reembolso das despesas, continua a ser devido, sendo assegurado pelo I.G.F.E.J.. Sufraga-se aqui este segundo entendimento, nomeadamente mercê da consideração: . da letra da lei Lê-se no art. 241º, nº 1, al. b) do C.I.R.E. que o fiduciário «afecta os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador de insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas». Logo, prevê-se expressamente a hipótese de ser o Cofre Geral dos Tribunais a adiantar tal pagamento; e, assim, admite-se necessariamente que possa vir a não ser reembolsado, designadamente por nenhum rendimento ter sido disponibilizado. Mais se lê, no art. 2º, nº 2 do Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), que o «administrador judicial designa-se por administrador judicial provisório, administrador de insolvência ou fiduciário, dependendo das funções que exerce no processo, nos termos a lei»; e lê-se no art. 22º do mesmo diploma que o «administrador judicial tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas». Logo, prevê-se expressamente, sem qualquer restrição, que o administrador judicial (onde necessariamente se inclui o fiduciário) tenha direito àqueles pagamento e reembolso. . da teleologia da norma Lendo-se nos arts. 240º, nº 1 e 60º, nº 1, ambos do C.I.R.E. (o segundo aqui aplicável por remissão do nº 2 do primeiro), que o fiduciário «tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis», e sendo o mesmo um qualificado colaborador do Tribunal, na prossecução dos fins do processo de insolvência, e escolhido por ele, não se vê como pudesse vir a ficar sem retribuição, e/ou sem o reembolso das despesas exigidas pelo exercício das suas funções. Por outras palavras, «o legislador ao atribuir a certas entidades um conjunto de tarefas parajudiciais, auxiliares da realização da justiça, exigindo-lhe apertadas condições para as poderem exercer e impondo-lhes responsabilidade pelo seu não cumprimento, outra coisa não podia fazer senão reconhecer o direito delas a serem remuneradas pelo seu labor» (Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/193587" target="_blank">3261/11.6TJVNF.G1</a>, com bold apócrifo). Ora, sendo indiscutível o direito do fiduciário à retribuição, indiscutível terá de ser ainda a respectiva efectivação (sob pena de se esvaziar de conteúdo útil os preceitos que expressamente consagram a primeira, e de se frustrarem as legítimas expectativas daquele, isto é, de ser ver pago pelo exercício de funções para cujo acesso lhe foi feito um conjunto específico de exigências, e a que foi chamado pelo próprio Estado). . da unidade do sistema jurídico Lê-se no art. 30º, nº 1 do Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), que nas «situações previstas nos artigos 39º e 232º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas [encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente], a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportadas pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça». Precisa-se ainda, no nº 2 do art. 30º citado, que, nos casos previstos no art. 39º do C.I.R.E., «a remuneração do administrador da insolvência é reduzida a um quarto do valor fixado pela portaria referida no nº 1 do artigo 23º», isto é, a Portaria nº 51/2005, de 20 de Janeiro, cujo art. 1º estabelece o valor de € 2.000,00 (coincidindo, por isso, aquele quarto com € 500,00). Tendo em conta que, quer o administrador da insolvência, quer o fiduciário, são «administrador judicial», se encontram submetidos ao mesmo Estatuto do Administrador Judicial, o Capítulo VI deste ter como epígrafe «Remuneração e pagamento do administrador judicial», consagrar-se no seu art. 22º o direito de qualquer deles à remuneração de funções e ao reembolso de despesas, e ponderando-se ainda que, quer o art 30º do dito Estatuto do Administrador Judicial (de forma limitada ao administrador da insolvência), quer o art. 241º, nº 1, al. b) do C.I.R.E. (de forma limitada ao fiduciário), prevêem a hipótese de ser o I.G.F.E.J a suportar tais encargos, dir-se-á «que o legislador teve em mente prevenir a hipótese de a qualquer administrador judicial (seja o da insolvência, seja o fiduciário) não poder ser paga a devida remuneração, segundo os mecanismos estabelecidos, encarregando o Estado de a adiantar». Outro entendimento, nomeadamente baseado numa mera e redutora interpretação literal do art. 240º, nº 1 do C.I.R.E., faria com que se acolhesse «uma solução frustrante de expectativas e da confiança gerada pelo Estatuto do administrador judicial, manifestamente desalinhada com o sistema remuneratório estabelecido para os demais cargos (maxime o de administrador judicial em insolvência), sem justificação discernível, contra a racionalidade que informa e enforma o sistema» (Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/193587" target="_blank">3261/11.6TJVNF.G1</a>). . da interpretação conforme à C.R.P. Lê-se no art. 59º, nº 1 al, a) da C.R.P. que todos «os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna». Quando «a constituição consagra a retribuição segundo a quantidade, natureza ou qualidade do trabalho, não está, de modo algum, a apontar para uma retribuição em função do rendimento (salário ao rendimento) em detrimento do salário ao tempo. Além disso, a igualdade de retribuição como determinante constitucional positiva (e não apenas como princípio negativo de proibição de discriminação) impõe a existência de critérios objectivos para a descrição de tarefas e avaliação de funções necessárias à caracterização de trabalho igual (trabalho prestado à mesma entidade quando são iguais ou de natureza objectivamente igual as tarefas desempenhadas) e trabalho de valor igual (trabalho com diversidade de natureza das tarefas, mas equivalentes de acordo com os critérios objectivos fixados)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 2ª edição revista e ampliada, Coimbra Editora, Coimbra 1984, pág. 324, com bold apócrifo). Ora, o «princípio da democracia económica e social constitui uma autorização constitucional no sentido de o legislador democrático e os outros órgãos encarregados da concretização político-constitucional adoptarem as medidas necessárias para a evolução da ordem constitucional sob a óptica de uma “justiça constitucional” nas vestes de uma “justiça social” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, p. 474]. E, prosseguindo, Gomes Canotilho diz que este princípio é um elemento essencial de interpretação na forma de interpretação conforme a constituição, posto que “neste sentido se fala da interpretação dentro do «espírito» do princípio da democracia económica e social, e da presunção do exercício do poder discricionário da administração à luz do princípio da socialidade” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, pág. 476, com bold apócrifo]. Na avaliação arquitectura da “constituição do trabalho”, segundo este autor os preceitos constitucionais da área laboral reconduzem-se “a normas de garantia do direito ao trabalho, do direito do trabalho e dos direitos dos trabalhadores, a Constituição vincou a sua inequívoca dimensão subjectiva e o seu carácter de direitos fundamentais, deslocando esses preceitos para o capítulo referente a direitos fundamentais” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, pág. 481]. E neste enquadramento jurídico-constitucional “igualdade significa proibição do arbítrio e intenção de racionalidade e, em último termo, intenção de justiça” [Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra Editora, Coimbra 1988, pág. 239, com bold apócrifo]». Face a este «envolvimento dogmático e prático, a resposta dada pelo Tribunal “a quo” à questão inicialmente formulada não corresponde tout court a um ideal de justiça» (Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1. No mesmo sentido, Ac. da RG, de 23.02.2017, Ana Cristina Duarte, Processo nº 2/14.0T8VNF-C.G1, onde se lê que «não é aceitável que o fiduciário nomeado pelo juiz não seja remunerado das funções que exerceu só porque nenhum valor foi entregue pelo devedor insolvente ao longo do período de cessão», nomeadamente porque isso «contrariaria o disposto no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República, segundo o qual todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade deste»). A interpretação aqui defendida permite ainda afirmar que o pensamento legislativo encontra na lei muito mais do que o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, exigido pelo nº 2 do art. 9º do C.C.. (No mesmo sentido, Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/193587" target="_blank">3261/11.6TJVNF.G1</a>, onde nomeadamente se lê que, interpretando-se a lei «extensivamente», considera-se «abrangida a situação em apreço» no «nº 1, do artº 30º, da Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro. Como procurámos demonstrar, o pagamento através do organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial da justiça tem na letra da lei um “mínimo de correspondência” e ressuma do espírito com que o legislador tencionou regular as diversas situações. Logo, a interpretação ou integração que preconizamos não é contra legem mas secundum legem»). Reconhece-se que há quem qualifique como caso omisso a inexistência de norma (aplicável ao fiduciário) similar à prevista para o administrador da insolvência, no caso de insuficiência da massa insolvente para prover aos pagamentos devidos a este (conforme se faz no Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1, com extensa fundamentação nesse sentido). Contudo, defendendo verificar-se entre uma e outra situação a analogia que justifica que o julgador procure «no mesmo sistema uma norma que, embora num contexto tendencialmente distinto, responda a um conflito de interesses semelhante ou paralelo», chega à mesma solução referida supra. Com efeito, também aqui se defende que «a aliança entre o princípio da igualdade e da intenção de justiça presentes na Constituição Económica a propósito dos direitos dos trabalhadores, enquanto direito fundamental, implica necessariamente o repúdio pela ideia que estamos perante um contexto de uma retribuição em função do rendimento. Aliás, na busca do lugar paralelo, como primado da interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa, por analogia, deve atender-se à disciplina contida nos artigos 241º, nº 1, al. b) e 30º do Estatuto do Administrador Judicial, na parte em que estes preceitos são abstractamente aplicáveis» (Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1. No mesmo sentido, Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/193587" target="_blank">3261/11.6TJVNF.G1</a>, onde nomeadamente se lê que, a qualificar-se a questão sob recurso como uma lacuna, «não poderíamos deixar de entender que o caso deve ter uma solução jusnormativa (até por imperativo constitucional), que ele é análogo ao do administrador judicial e que a regulação daquele deve fazer-se segundo a deste, uma vez que nele confluem as razões justificativas da regulamentação do caso análogo, logo que também por via do artº 10º, do Código Civil, assim aquela deve ser integrada»). Reconhece-se igualmente, em desabono da tese aqui sufragada, que «o pagamento da remuneração ao fiduciário pelo dito organismo [I.G.F.E.J.] e não na percentagem de 10% das quantias cedidas [conforme previsto no art. 28º do Estatuto do Administrador Judicial], talqualmente sucede com o administrador de insolvência em caso de insuficiência ou falta de liquidez da massa, pode conduzir, na prática, a sempre lamentáveis distorções, quiçá a injustiça relativa, decorrentes da insuficiência do sistema que o legislador não cura de colmatar. Todavia, se isto deve animá-lo ao seu aperfeiçoamento não pode servir de motivo para acolher a injustiça maior de deixar sem qualquer remuneração o fiduciário em tais circunstâncias» (Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/193587" target="_blank">3261/11.6TJVNF.G1</a>, com bold apócrifo). Acresce que, aplicando-se ao fiduciário o limite máximo de remuneração imposto ao administrador de insolvência nestas situações (pelo art. 30º, nº 2 do Estatuto do Administrador Judicial, e pela Portaria nº 51/2005, de 20 de Janeiro) - por se verificar uma identidade de situações que o justifica - , não poderá aquele receber mais do que € 500,00, a repartir pelos cinco anos em que durar a cessão. Ora, crê-se que uma remuneração anual máxima de € 100,00 não constituirá incentivo suficiente para que o fiduciário descure o exercício das suas funções, nomeadamente na efectiva fiscalização da existência de um rendimento disponível do insolvente, susceptível de cedência aos seus credores. Por outras palavras, a «situação dos autos merece um tratamento análogo (artigo 10º do Código Civil), e como fundadamente decidiu o acórdão da Relação de Coimbra de 20 de Janeiro de 2016, resulta que a retribuição do fiduciário para a referida anuidade corresponderá a €100,00, e nas anuidades seguintes logo se verá, isto sem prejuízo do direito ao reembolso do valor das despesas efectuadas e que o tribunal considere úteis ou indispensáveis» (Ac. da RG, de 03.11.2016, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador aqui 2º Adjunto - Heitor Gonçalves -, Processo nº 1926/12.4TBFAF.G.1, inédito). Rejeita-se, ainda, que possa «servir de pretexto para não se estabelecer qualquer remuneração pelo exercício das funções de fiduciária» «o argumento (…) de que já exerceu no mesmo processo a função de administradora da insolvência, tendo sido remunerada pela mesma, em valor tido como considerável (…). Na verdade, trata-se de actividades distintas, autónomas e delimitadas no tempo em momentos diferentes, havendo previsão legal da remuneração de ambas as funções, como se viu, com critérios até algo diferentes para a sua determinação, não podendo de forma alguma dizer-se que a remuneração auferida pelo administrador de insolvência comporta já as funções que o mesmo possa eventualmente vir a exercer como fiduciário» (Ac. da RP, de 28.10.2015, Inês Moura, Processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/137875" target="_blank">347/13.6TJPRT.P1</a>, com bold apócrifo). Acresce que nada obsta a que o Tribunal possa nomear distintas pessoas para exercerem as funções de administrador da insolvência e de fiduciário, «de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência (nº2 do artigo 239º), o que, a “talho de foice”, fragiliza o argumento aduzido no despacho recorrido de que o legislador “terá sopesado que a remuneração enquanto AI será suficiente, sendo que os acréscimos enquanto fiduciário são eventuais, não se afigurando uma restrição desproporcionada”» (Ac. da RG, de 03.11.2016, Heitor Gonçalves, Processo nº 1926/12.4TBFAF.G.1, inédito).* 4.2. Caso concreto 4.2.1. Concretizando, verifica-se que, tendo o Requerente (BB) sido nomeado administrador da insolvência pertinente a AA, propôs - e viu aceite - que o processo respectivo fosse encerrado por insuficiência da massa insolvente. Mais se verifica que, tendo sido liminarmente admitido o incidente de exoneração do passivo restante, veio o mesmo Requerente (BB) a ser nomeado fiduciário, sendo que no final do primeiro ano de exercício de tais funções nenhum rendimento havia sido cedido pelo Insolvente. Contudo, e face ao trabalho por si desenvolvido (onde se incluiu a elaboração do relatório previsto no art. 240º, nº 2 do C.I.R.E.), terá o mesmo que ser efectivamente remunerado, bem como igualmente terá de ver reembolsadas as despesas exigidas pelo exercício de tais funções. Não o podendo ser pelo seu primacial Devedor (o Insolvente), sê-lo-á pelo I.G.F.E.J., sem prejuízo do reembolso que ficará a ser devido a este (dos montantes que suporte), se e quando futuramente o Insolvente venha a auferir rendimentos em montante susceptível de cedência. *4.2.2. Concretizando novamente, e desta feita relativamente ao montante da remuneração a arbitrar ao Fiduciário requerente, não há dúvida que na respectiva determinação pesará sobretudo o trabalho que o mesmo haja desenvolvido. Contudo, deverá ainda atender-se «ao grau de dificuldade do encargo que foi cometido ao fiduciário, aos valores económicos envolvidos no processo, à diligência manifestada por este no prosseguimento das suas funções e à disponibilidade manifestada pelo mesmo para colaborar com o Tribunal» (Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1). A decisão a proferir, baseada em tais elementos, pressupõe naturalmente o acesso pelo Tribunal a quo aos mesmos (e ainda a outros, que repute necessários ou úteis), o que não se mostra facultado a este Tribunal da Relação. Deverá, assim, ser-lhe deferida a fixação do concreto montante da remuneração a arbitrar ao Fiduciário requerente, a realizar ainda de acordo com a equidade. (No mesmo sentido, Ac. da RP, de 07.01.2013, Soares de Oliveira, Processo nº 419/12.4TBOAZ-F.P1, Ac. da RP, de 10.09.2013, Henrique Araújo, Processo nº 1714/09.5TBVNG-J.P1, Ac. da RP, de 28.10.2015, Inês Moura, Processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/137875" target="_blank">347/13.6TJPRT.P1</a>, Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1, e Ac. da RG, de 23.02.2017, Ana Cristina Duarte, Processo nº 2/14.0T8VNF-C.G1). Terá, porém, sempre com tecto máximo o referenciado para o efeito pelo Estatuto do Administrador Judicial (no seu art. 30º, nº 2, conjugado com a Portaria nº 51/2005, de 20 de Janeiro). * Logo, procede o recurso de apelação apresentado pelo Fiduciário (Recorrente), devendo o despacho que lhe recusou o arbitramento de qualquer remuneração pelo exercício de funções no primeiro ano em que decorreu a exoneração do passivo restante ser substituído por outro, reconhecendo o direito à mesma, impondo o encargo de adiantar o seu pagamento ao I.G.F.E.J., e cometendo ao Tribunal a quo a determinação do seu concreto montante (de acordo com os critérios referidos supra). * V - DECISÃO Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto por BB, e em revogar o despacho recorrido · substituindo-o por um outro, reconhecendo o seu direito a ser remunerado pelo exercício de funções como fiduciário, no primeiro ano de vigência do incidente de exoneração do passivo restante, impondo que o I.G.F.E.J. adiante o seu pagamento (sem prejuízo do seu eventual e futuro reembolso), e cometendo ao Tribunal a quo a determinação do seu concreto montante (de acordo com os critérios, e o limite máximo, referidos supra). *Sem custas da apelação, por o Recorrente não lhe ter dado causa, e o Ministério Público (que a ela deduziu oposição) se encontrar isento no caso. Guimarães, 04 de Maio 2017. (Relatora)_________________________________________ (Maria João Marques Pinto de Matos) (2º Adjunto)________________________________________ (Heitor Pereira Carvalho Gonçalves) Consigna-se que a Exmª 1ª Adjunta (Sr.ª Juíza Desembargadora Elisabete de Jesus Santos de Oliveira Valente) votou em conformidade a decisão exarada supra, que só não assina por não se encontrar presente (art. 153º, nº 1, in fine, do C.P.C.). (Relatora)_________________________________________ (Maria João Marques Pinto de Matos)
I - RELATÓRIO 1.1. Decisão impugnada 1.1.1. AA, residente no Concelho de Vila Nova de Famalicão, propôs um processo especial de insolvência, pedindo que · fosse declarado insolvente; · lhe fosse concedido o benefício de exoneração do passivo restante. Alegou para o efeito, em síntese, resultar a sua situação de insolvência da incapacidade generalizada para cumprir as suas obrigações, a maior parte resultantes da contracção de diversos créditos ao consumo, e de fornecimentos solicitados no âmbito da anterior exploração de um café (entretanto encerrado). Mais alegou ser operário de construção civil, auferir mensalmente cerca de € 485,00, viver com a Mãe (viúva, e com dois filhos menores a cargo), pagar uma pensão mensal de alimentos de € 125,00 a um Filho seu, e nunca antes ter sido declarado insolvente, encontrando-se por isso em condições de beneficiar da exoneração do passivo restante. 1.1.2. Foi proferida sentença, declarando a insolvência do Requerente e nomeando como Administrador da Insolvência BB; e, posteriormente, foi proferido despacho, declarando encerrado o processo de insolvência, por insuficiência da massa. 1.1.3. Tendo sido admitido liminarmente o pedido de exoneração de passivo restante, foi determinada a entrega ao Fiduciário nomeado (o Administrador da Insolvência) do rendimento disponível a auferir pelo Insolvente, nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, na parte que excedesse o valor do salário mínimo nacional mensal, acrescido da quantia de € 125,00, num total de doze meses por ano. 1.1.4. No final do primeiro ano, veio o Fiduciário (BB): juntar aos autos o relatório previsto no art. 240º, nº 2 do C.I.R.E.; informar que o Insolvente, no período em causa, não auferiu quaisquer rendimentos; e requerer que lhe fosse fixada remuneração, não inferior a cinco unidades de conta, a suportar pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (I.G.F.E.J.). Alegou para o efeito, em síntese, que, prevendo-se no art. 30º do Estatuto do Administrador Judicial a possibilidade do pagamento da remuneração do administrador de insolvência ser suportada pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça, e aplicando-se o mesmo ao fiduciário, por força do nº 2 do art. 240º do C.I.R.E., estaria a sua pretensão legalmente fundada. 1.1.5. Foi proferido despacho, indeferindo a pretensão do Fiduciário, lendo-se nomeadamente no mesmo: «(…) Nos termos da lei vigente, nomeadamente de acordo com o disposto nos artº 28 L 22/2013, e 240,1 CIRE, a remuneração do fiduciário é encargo do devedor. Assim, não pode atender-se a pretensão formulada. (…)»*1.2. Recurso (fundamentos) Inconformado com esta decisão, o Requerente (BB) interpôs recurso de apelação, pedindo que julgado procedente, sendo o despacho recorrido substituído por outro, que lhe fixasse honorários (correspondentes, no mínimo, a cinco unidades de conta). Concluiu as suas alegações da seguinte forma (sintetizada, sem repetições do processado, ou reproduções de textos legais ou jurisprudenciais): 1ª - Prever-se no Estatuto do Administrador Judicial o direito à remuneração pela actividade desenvolvida, e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis, a suportar pelo Estado quando a massa insolvente seja insuficiente para o efeito, o que deverá ser aplicável ao fiduciário (por expressa remissão legal para aquele Estatuto do Administrador Judicial). VI - O art.º 30.º do Estatuto do Administrador Judicial prevê a possibilidade do pagamento da remuneração do administrador da insolvência ser suportada pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça, quando a massa insolvente for insuficiente para o efeito. VII - Embora aí não seja contemplada norma equivalente para o fiduciário, quando não existam quantias cedidas pelo devedor, não pode deixar de equiparar-se as duas situações, sob pena, como se referiu, de poder chegar-se a uma situação em que o fiduciário está a exercer as funções para as quais foi nomeado pelo tribunal, sem auferir qualquer rendimento, o que pode ocorrer, caso aquelas quantias não existam. 2ª - Não será plausível, e muito menos razoável, que a remuneração a atribuir ao fiduciário pelo trabalho desenvolvido se encontre necessariamente dependente dos resultados que produza, sob pena de trabalho efectivo ficar sem remuneração quando não chegue a ser cedido qualquer rendimento disponível (o que violaria o a C.R.P.). III - A respeito da remuneração do fiduciário, regula o n.º 1 do artigo 240.º do CIRE que a remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor. IV - O Estatuto do Administrador de Insolvência, aprovado pela Lei 22/2013 de 26 de Fevereiro, contempla expressamente que a remuneração devida ao fiduciário corresponde a 10% das quantias objecto de cessão, com o limite máximo de 5.000,00€ por ano. V - O douto entendimento do Tribunal a quo ao indeferir o pedido de fixação de remuneração devida ao recorrente, não obstante a inexistência de qualquer quantia cedida, com o fundamento de que a responsabilidade pelo pagamento dos honorários corre por conta do devedor afronta a lei e é inconstitucional por permitir / prever trabalhar de forma gratuita. *1.3. Contra-alegações O Ministério Público contra-alegou, pedindo que não fosse atribuído ao Fiduciário qualquer remuneração, sem prejuízo do reembolso pelo I.G.F.E.J. das despesas que houvesse efectuado. Concluiu as suas alegações da seguinte forma (sintetizada, sem repetições do processado, ou reproduções de textos legais ou jurisprudenciais): 1ª - Não ter a pretensão do Fiduciário sustentação legal, já que a lei expressamente indexa a sua remuneração a parte das quantias objecto de cessão, e clarifica que o seu pagamento constitui encargo do devedor. Na verdade, prevê o artigo 28º do EAJ que: «A remuneração do fiduciário corresponde a 10% das quantias objecto de cessão, como o limite máximo de €5000,00 por ano». Por outro lado, prescreve o artigo 240º, nº 1 do CIRE que: «A remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor». Como no caso dos autos não ocorreu a cessão de rendimentos não há, por força da lei, que fixar remuneração ao sr. Fiduciário. Ao aceitar, como aceitou, desempenhar as funções de fiduciário, não ignorava que só teria direito a ser remunerado em 10% do rendimento cedido e que esta remuneração constituía encargo do devedor. De igual modo, no processo de insolvência o Sr. AI só tem direito à remuneração variável quando existe produto da liquidação e este supera as despesas da massa insolvente, nos termos permitidos pela lei (cfr. artigo 29, nº 5 do EAJ e Portaria 51/2005, de 20/1). É, pois, pacífico que não existindo produto da liquidação, não é devida qualquer remuneração variável ao administrador da insolvência. Num outro plano, inexistindo cessão de rendimentos, também não é devida, por força da lei, remuneração ao fiduciário. 2ª - A entender-se de outro modo, sempre se deverá exigir objectividade na fixação da dita remuneração, sob pena de se multiplicarem casos em que mais vale nada fazer para que inexistam rendimentos cedidos pelo insolvente (na expectativa do I.G.F.E.J. ser onerado com o pagamento de uma remuneração superior, em prejuízo do erário público). Ainda que o critério seja mais complacente – na senda, aliás, da jurisprudência citada pelo recorrente-, então sempre se deverá exigir objectividade (por oposição a arbitrariedade) e equilíbrio na fixação da remuneração do fiduciário, sob pena de se multiplicarem os casos em que mais vale nada fazer para que inexistam rendimentos cedidos pelos insolventes, na expectativa de ao IGFEJ ser imposto o dever de suportar uma remuneração de valor superior, em prejuízo do erário público.*II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR 2.1. Objecto do recurso - EM GERAL O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do C.P.C.), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, in fine, do C.P.C., aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma).* 2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar Mercê do exposto, uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal: . Questão Única - Deveria o Tribunal a quo, face à inexistência de qualquer rendimento disponível cedido, ter fixado remuneração ao Fiduciário nomeado, sendo a mesma a suportar pelo I.G.F.E.J. ? *III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Com interesse para a apreciação da questão enunciada encontram-se assentes os factos relativos ao processamento dos autos, conforme enunciado em «I - RELATÓRIO».*IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 4.1. Direito aplicável - Indicação e interpretação 4.1.1. Exoneração do passivo restante Lê-se no art. 235º do C.I.R.E. que, se «o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste». Mais se lê, no art. 236º, nº 1 e nº 3 do C.I.R.E. que o «pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação», dele devendo constar «expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos» exigidos para o efeito, discriminados nos arts. 238 º seguintes, grosso modo, o não ter prejudicado ao credores com a sua pretérita actuação (nomeadamente, não ter falseado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência as informações pertinentes à sua situação económica por forma a obter crédito, ter-se apresentado prontamente à insolvência, não ter culposamente criado ou agravado a sua situação de insolvência, e não ter violado, com dolo ou culpa grave, os deveres de informação, apresentação e colaboração que o C.I.R.E. lhe impunha no decurso do respectivo processo de insolvência). «Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes», determinando que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal», a quem cabe afectar «os montantes recebidos, no final de cada ano que dure a cessão», aos «credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processos de insolvência» (artigos 239º, nº 1 e nº 2 e 241º, nº 1, al. d), ambos do C.I.R.E.); e, durante o período de cessão, não sendo «permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência», nem qualquer actuação que conceda vantagens especiais a um credor sobre outro (art. 242º do C.I.R.E.). Integrarão o dito «rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor», nomeadamente os que resultem de uma profissão remunerada, que deverá ser diligentemente procurada, quando não exista, ficando ainda o devedor obrigado, durante o período da cessão, a não «ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo e que isso lhe seja requisitado» (art. 239º, nº 3 e nº 4, als. a) e b), do C.I.R.E., com bold apócrifo). Precisa-se, porém, que não se está aqui «apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo antes abrangidos quaisquer acréscimos patrimoniais. Assim, se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar-se cedido ao fiduciário. A tal não obsta o art. 2028º, nº 2, dado que a cessão do rendimento disponível constitui uma hipótese legalmente prevista» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3ª edição, Almedina, 2011, p. 327, com bold apócrifo). A distribuição do dito rendimento disponível aos credores da insolvência far-se-á uma vez por ano (provavelmente, como forma de poupança de custos). *4.1.2. Remuneração do fiduciário - Regime regra Lê-se no art. 240º, nº 1 do C.I.R.E. que a «remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor». Mais se lê, no nº 2 do art. 240º citado (aqui, com bold apócrifo), que são «aplicáveis ao fiduciário, com as devidas adaptações, (…) o disposto no nº 1 do artigo 60º», onde nomeadamente se lê que o «administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis». Compulsado o Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), lê-se no seu art. 28º que a «remuneração do fiduciário corresponde a 10% das quantias objecto de cessão, com o limite máximo de 5.000 por ano», já que se pressupõe o exercício das suas funções pelo completo período de cinco anos em que deverá durar a cessão. Por fim, lê-se no art. 241º, nº 1 do C.I.R.E. que o «fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los, e afecta os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão: a) ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida; b) ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas; c) ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas; d) à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência». Resulta assim expressamente, da consideração conjunta dos preceitos legais citados, que: . é certo e indiscutível o direito do fiduciário à remuneração pelo exercício das suas específicas funções (direito esse que nada tem a ver com o do administrador da insolvência, ainda que porventura coincidam na mesma pessoa ambas as qualidades, e nesta outra - e por estas outras funções - já tenha sido retribuído); . é o devedor quem paga, através do rendimento cedido aos credores, a remuneração e as despesas do fiduciário; . a afectação dos montantes do rendimento do devedor cedidos (incluindo os destacados para pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário) é feita no final de cada ano de duração da cessão; . o pagamento é feito pela ordem indicada na lei (isso é, só são efectuados os pagamentos da categoria subsequente quando se encontrar satisfeito integralmente satisfeito o pagamento da categoria precedente); . existe a possibilidade da remuneração e das despesas do fiduciário terem sido suportadas pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça (devendo, logo que se verifique existirem montantes recebidos, proceder-se ao respectivo reembolso).*4.1.3. Regime excepcional - Ausência de rendimento cedido Vem-se, porém, colocando a questão de saber se, quando as quantias objecto da cessão não existam ou sejam insuficientes para o pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário (o que até não será raro, considerando as prioridades para a afectação das quantias cedidas estabelecidas no art. 241º, nº 1 do C.I.R.E.), o mesmo deverá, ou não, ficar sem remuneração, e sem o reembolso das despesas que haja realizado. Assim, quem procede a uma interpretação literal do art. 240º, nº 1 do C.I.R.E. defende que, nesses casos, não se procederá ao pagamento de qualquer remuneração do fiduciário, nem ao reembolso das suas despesas (já que, de acordo com aquele preceito, uma e outras constituem «encargo devedor»). Outros, porém, recordando que a «interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (art. 9º, nº 1 do C.C.), defendem que o pagamento da remuneração, e o reembolso das despesas, continua a ser devido, sendo assegurado pelo I.G.F.E.J.. Sufraga-se aqui este segundo entendimento, nomeadamente mercê da consideração: . da letra da lei Lê-se no art. 241º, nº 1, al. b) do C.I.R.E. que o fiduciário «afecta os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador de insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas». Logo, prevê-se expressamente a hipótese de ser o Cofre Geral dos Tribunais a adiantar tal pagamento; e, assim, admite-se necessariamente que possa vir a não ser reembolsado, designadamente por nenhum rendimento ter sido disponibilizado. Mais se lê, no art. 2º, nº 2 do Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), que o «administrador judicial designa-se por administrador judicial provisório, administrador de insolvência ou fiduciário, dependendo das funções que exerce no processo, nos termos a lei»; e lê-se no art. 22º do mesmo diploma que o «administrador judicial tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas». Logo, prevê-se expressamente, sem qualquer restrição, que o administrador judicial (onde necessariamente se inclui o fiduciário) tenha direito àqueles pagamento e reembolso. . da teleologia da norma Lendo-se nos arts. 240º, nº 1 e 60º, nº 1, ambos do C.I.R.E. (o segundo aqui aplicável por remissão do nº 2 do primeiro), que o fiduciário «tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis», e sendo o mesmo um qualificado colaborador do Tribunal, na prossecução dos fins do processo de insolvência, e escolhido por ele, não se vê como pudesse vir a ficar sem retribuição, e/ou sem o reembolso das despesas exigidas pelo exercício das suas funções. Por outras palavras, «o legislador ao atribuir a certas entidades um conjunto de tarefas parajudiciais, auxiliares da realização da justiça, exigindo-lhe apertadas condições para as poderem exercer e impondo-lhes responsabilidade pelo seu não cumprimento, outra coisa não podia fazer senão reconhecer o direito delas a serem remuneradas pelo seu labor» (Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº 3261/11.6TJVNF.G1, com bold apócrifo). Ora, sendo indiscutível o direito do fiduciário à retribuição, indiscutível terá de ser ainda a respectiva efectivação (sob pena de se esvaziar de conteúdo útil os preceitos que expressamente consagram a primeira, e de se frustrarem as legítimas expectativas daquele, isto é, de ser ver pago pelo exercício de funções para cujo acesso lhe foi feito um conjunto específico de exigências, e a que foi chamado pelo próprio Estado). . da unidade do sistema jurídico Lê-se no art. 30º, nº 1 do Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), que nas «situações previstas nos artigos 39º e 232º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas [encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente], a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportadas pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça». Precisa-se ainda, no nº 2 do art. 30º citado, que, nos casos previstos no art. 39º do C.I.R.E., «a remuneração do administrador da insolvência é reduzida a um quarto do valor fixado pela portaria referida no nº 1 do artigo 23º», isto é, a Portaria nº 51/2005, de 20 de Janeiro, cujo art. 1º estabelece o valor de € 2.000,00 (coincidindo, por isso, aquele quarto com € 500,00). Tendo em conta que, quer o administrador da insolvência, quer o fiduciário, são «administrador judicial», se encontram submetidos ao mesmo Estatuto do Administrador Judicial, o Capítulo VI deste ter como epígrafe «Remuneração e pagamento do administrador judicial», consagrar-se no seu art. 22º o direito de qualquer deles à remuneração de funções e ao reembolso de despesas, e ponderando-se ainda que, quer o art 30º do dito Estatuto do Administrador Judicial (de forma limitada ao administrador da insolvência), quer o art. 241º, nº 1, al. b) do C.I.R.E. (de forma limitada ao fiduciário), prevêem a hipótese de ser o I.G.F.E.J a suportar tais encargos, dir-se-á «que o legislador teve em mente prevenir a hipótese de a qualquer administrador judicial (seja o da insolvência, seja o fiduciário) não poder ser paga a devida remuneração, segundo os mecanismos estabelecidos, encarregando o Estado de a adiantar». Outro entendimento, nomeadamente baseado numa mera e redutora interpretação literal do art. 240º, nº 1 do C.I.R.E., faria com que se acolhesse «uma solução frustrante de expectativas e da confiança gerada pelo Estatuto do administrador judicial, manifestamente desalinhada com o sistema remuneratório estabelecido para os demais cargos (maxime o de administrador judicial em insolvência), sem justificação discernível, contra a racionalidade que informa e enforma o sistema» (Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº 3261/11.6TJVNF.G1). . da interpretação conforme à C.R.P. Lê-se no art. 59º, nº 1 al, a) da C.R.P. que todos «os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna». Quando «a constituição consagra a retribuição segundo a quantidade, natureza ou qualidade do trabalho, não está, de modo algum, a apontar para uma retribuição em função do rendimento (salário ao rendimento) em detrimento do salário ao tempo. Além disso, a igualdade de retribuição como determinante constitucional positiva (e não apenas como princípio negativo de proibição de discriminação) impõe a existência de critérios objectivos para a descrição de tarefas e avaliação de funções necessárias à caracterização de trabalho igual (trabalho prestado à mesma entidade quando são iguais ou de natureza objectivamente igual as tarefas desempenhadas) e trabalho de valor igual (trabalho com diversidade de natureza das tarefas, mas equivalentes de acordo com os critérios objectivos fixados)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 2ª edição revista e ampliada, Coimbra Editora, Coimbra 1984, pág. 324, com bold apócrifo). Ora, o «princípio da democracia económica e social constitui uma autorização constitucional no sentido de o legislador democrático e os outros órgãos encarregados da concretização político-constitucional adoptarem as medidas necessárias para a evolução da ordem constitucional sob a óptica de uma “justiça constitucional” nas vestes de uma “justiça social” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, p. 474]. E, prosseguindo, Gomes Canotilho diz que este princípio é um elemento essencial de interpretação na forma de interpretação conforme a constituição, posto que “neste sentido se fala da interpretação dentro do «espírito» do princípio da democracia económica e social, e da presunção do exercício do poder discricionário da administração à luz do princípio da socialidade” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, pág. 476, com bold apócrifo]. Na avaliação arquitectura da “constituição do trabalho”, segundo este autor os preceitos constitucionais da área laboral reconduzem-se “a normas de garantia do direito ao trabalho, do direito do trabalho e dos direitos dos trabalhadores, a Constituição vincou a sua inequívoca dimensão subjectiva e o seu carácter de direitos fundamentais, deslocando esses preceitos para o capítulo referente a direitos fundamentais” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, pág. 481]. E neste enquadramento jurídico-constitucional “igualdade significa proibição do arbítrio e intenção de racionalidade e, em último termo, intenção de justiça” [Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra Editora, Coimbra 1988, pág. 239, com bold apócrifo]». Face a este «envolvimento dogmático e prático, a resposta dada pelo Tribunal “a quo” à questão inicialmente formulada não corresponde tout court a um ideal de justiça» (Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1. No mesmo sentido, Ac. da RG, de 23.02.2017, Ana Cristina Duarte, Processo nº 2/14.0T8VNF-C.G1, onde se lê que «não é aceitável que o fiduciário nomeado pelo juiz não seja remunerado das funções que exerceu só porque nenhum valor foi entregue pelo devedor insolvente ao longo do período de cessão», nomeadamente porque isso «contrariaria o disposto no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República, segundo o qual todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade deste»). A interpretação aqui defendida permite ainda afirmar que o pensamento legislativo encontra na lei muito mais do que o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, exigido pelo nº 2 do art. 9º do C.C.. (No mesmo sentido, Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº 3261/11.6TJVNF.G1, onde nomeadamente se lê que, interpretando-se a lei «extensivamente», considera-se «abrangida a situação em apreço» no «nº 1, do artº 30º, da Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro. Como procurámos demonstrar, o pagamento através do organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial da justiça tem na letra da lei um “mínimo de correspondência” e ressuma do espírito com que o legislador tencionou regular as diversas situações. Logo, a interpretação ou integração que preconizamos não é contra legem mas secundum legem»). Reconhece-se que há quem qualifique como caso omisso a inexistência de norma (aplicável ao fiduciário) similar à prevista para o administrador da insolvência, no caso de insuficiência da massa insolvente para prover aos pagamentos devidos a este (conforme se faz no Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1, com extensa fundamentação nesse sentido). Contudo, defendendo verificar-se entre uma e outra situação a analogia que justifica que o julgador procure «no mesmo sistema uma norma que, embora num contexto tendencialmente distinto, responda a um conflito de interesses semelhante ou paralelo», chega à mesma solução referida supra. Com efeito, também aqui se defende que «a aliança entre o princípio da igualdade e da intenção de justiça presentes na Constituição Económica a propósito dos direitos dos trabalhadores, enquanto direito fundamental, implica necessariamente o repúdio pela ideia que estamos perante um contexto de uma retribuição em função do rendimento. Aliás, na busca do lugar paralelo, como primado da interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa, por analogia, deve atender-se à disciplina contida nos artigos 241º, nº 1, al. b) e 30º do Estatuto do Administrador Judicial, na parte em que estes preceitos são abstractamente aplicáveis» (Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1. No mesmo sentido, Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº 3261/11.6TJVNF.G1, onde nomeadamente se lê que, a qualificar-se a questão sob recurso como uma lacuna, «não poderíamos deixar de entender que o caso deve ter uma solução jusnormativa (até por imperativo constitucional), que ele é análogo ao do administrador judicial e que a regulação daquele deve fazer-se segundo a deste, uma vez que nele confluem as razões justificativas da regulamentação do caso análogo, logo que também por via do artº 10º, do Código Civil, assim aquela deve ser integrada»). Reconhece-se igualmente, em desabono da tese aqui sufragada, que «o pagamento da remuneração ao fiduciário pelo dito organismo [I.G.F.E.J.] e não na percentagem de 10% das quantias cedidas [conforme previsto no art. 28º do Estatuto do Administrador Judicial], talqualmente sucede com o administrador de insolvência em caso de insuficiência ou falta de liquidez da massa, pode conduzir, na prática, a sempre lamentáveis distorções, quiçá a injustiça relativa, decorrentes da insuficiência do sistema que o legislador não cura de colmatar. Todavia, se isto deve animá-lo ao seu aperfeiçoamento não pode servir de motivo para acolher a injustiça maior de deixar sem qualquer remuneração o fiduciário em tais circunstâncias» (Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº 3261/11.6TJVNF.G1, com bold apócrifo). Acresce que, aplicando-se ao fiduciário o limite máximo de remuneração imposto ao administrador de insolvência nestas situações (pelo art. 30º, nº 2 do Estatuto do Administrador Judicial, e pela Portaria nº 51/2005, de 20 de Janeiro) - por se verificar uma identidade de situações que o justifica - , não poderá aquele receber mais do que € 500,00, a repartir pelos cinco anos em que durar a cessão. Ora, crê-se que uma remuneração anual máxima de € 100,00 não constituirá incentivo suficiente para que o fiduciário descure o exercício das suas funções, nomeadamente na efectiva fiscalização da existência de um rendimento disponível do insolvente, susceptível de cedência aos seus credores. Por outras palavras, a «situação dos autos merece um tratamento análogo (artigo 10º do Código Civil), e como fundadamente decidiu o acórdão da Relação de Coimbra de 20 de Janeiro de 2016, resulta que a retribuição do fiduciário para a referida anuidade corresponderá a €100,00, e nas anuidades seguintes logo se verá, isto sem prejuízo do direito ao reembolso do valor das despesas efectuadas e que o tribunal considere úteis ou indispensáveis» (Ac. da RG, de 03.11.2016, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador aqui 2º Adjunto - Heitor Gonçalves -, Processo nº 1926/12.4TBFAF.G.1, inédito). Rejeita-se, ainda, que possa «servir de pretexto para não se estabelecer qualquer remuneração pelo exercício das funções de fiduciária» «o argumento (…) de que já exerceu no mesmo processo a função de administradora da insolvência, tendo sido remunerada pela mesma, em valor tido como considerável (…). Na verdade, trata-se de actividades distintas, autónomas e delimitadas no tempo em momentos diferentes, havendo previsão legal da remuneração de ambas as funções, como se viu, com critérios até algo diferentes para a sua determinação, não podendo de forma alguma dizer-se que a remuneração auferida pelo administrador de insolvência comporta já as funções que o mesmo possa eventualmente vir a exercer como fiduciário» (Ac. da RP, de 28.10.2015, Inês Moura, Processo nº 347/13.6TJPRT.P1, com bold apócrifo). Acresce que nada obsta a que o Tribunal possa nomear distintas pessoas para exercerem as funções de administrador da insolvência e de fiduciário, «de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência (nº2 do artigo 239º), o que, a “talho de foice”, fragiliza o argumento aduzido no despacho recorrido de que o legislador “terá sopesado que a remuneração enquanto AI será suficiente, sendo que os acréscimos enquanto fiduciário são eventuais, não se afigurando uma restrição desproporcionada”» (Ac. da RG, de 03.11.2016, Heitor Gonçalves, Processo nº 1926/12.4TBFAF.G.1, inédito).* 4.2. Caso concreto 4.2.1. Concretizando, verifica-se que, tendo o Requerente (BB) sido nomeado administrador da insolvência pertinente a AA, propôs - e viu aceite - que o processo respectivo fosse encerrado por insuficiência da massa insolvente. Mais se verifica que, tendo sido liminarmente admitido o incidente de exoneração do passivo restante, veio o mesmo Requerente (BB) a ser nomeado fiduciário, sendo que no final do primeiro ano de exercício de tais funções nenhum rendimento havia sido cedido pelo Insolvente. Contudo, e face ao trabalho por si desenvolvido (onde se incluiu a elaboração do relatório previsto no art. 240º, nº 2 do C.I.R.E.), terá o mesmo que ser efectivamente remunerado, bem como igualmente terá de ver reembolsadas as despesas exigidas pelo exercício de tais funções. Não o podendo ser pelo seu primacial Devedor (o Insolvente), sê-lo-á pelo I.G.F.E.J., sem prejuízo do reembolso que ficará a ser devido a este (dos montantes que suporte), se e quando futuramente o Insolvente venha a auferir rendimentos em montante susceptível de cedência. *4.2.2. Concretizando novamente, e desta feita relativamente ao montante da remuneração a arbitrar ao Fiduciário requerente, não há dúvida que na respectiva determinação pesará sobretudo o trabalho que o mesmo haja desenvolvido. Contudo, deverá ainda atender-se «ao grau de dificuldade do encargo que foi cometido ao fiduciário, aos valores económicos envolvidos no processo, à diligência manifestada por este no prosseguimento das suas funções e à disponibilidade manifestada pelo mesmo para colaborar com o Tribunal» (Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1). A decisão a proferir, baseada em tais elementos, pressupõe naturalmente o acesso pelo Tribunal a quo aos mesmos (e ainda a outros, que repute necessários ou úteis), o que não se mostra facultado a este Tribunal da Relação. Deverá, assim, ser-lhe deferida a fixação do concreto montante da remuneração a arbitrar ao Fiduciário requerente, a realizar ainda de acordo com a equidade. (No mesmo sentido, Ac. da RP, de 07.01.2013, Soares de Oliveira, Processo nº 419/12.4TBOAZ-F.P1, Ac. da RP, de 10.09.2013, Henrique Araújo, Processo nº 1714/09.5TBVNG-J.P1, Ac. da RP, de 28.10.2015, Inês Moura, Processo nº 347/13.6TJPRT.P1, Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1, e Ac. da RG, de 23.02.2017, Ana Cristina Duarte, Processo nº 2/14.0T8VNF-C.G1). Terá, porém, sempre com tecto máximo o referenciado para o efeito pelo Estatuto do Administrador Judicial (no seu art. 30º, nº 2, conjugado com a Portaria nº 51/2005, de 20 de Janeiro). * Logo, procede o recurso de apelação apresentado pelo Fiduciário (Recorrente), devendo o despacho que lhe recusou o arbitramento de qualquer remuneração pelo exercício de funções no primeiro ano em que decorreu a exoneração do passivo restante ser substituído por outro, reconhecendo o direito à mesma, impondo o encargo de adiantar o seu pagamento ao I.G.F.E.J., e cometendo ao Tribunal a quo a determinação do seu concreto montante (de acordo com os critérios referidos supra). * V - DECISÃO Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto por BB, e em revogar o despacho recorrido · substituindo-o por um outro, reconhecendo o seu direito a ser remunerado pelo exercício de funções como fiduciário, no primeiro ano de vigência do incidente de exoneração do passivo restante, impondo que o I.G.F.E.J. adiante o seu pagamento (sem prejuízo do seu eventual e futuro reembolso), e cometendo ao Tribunal a quo a determinação do seu concreto montante (de acordo com os critérios, e o limite máximo, referidos supra). *Sem custas da apelação, por o Recorrente não lhe ter dado causa, e o Ministério Público (que a ela deduziu oposição) se encontrar isento no caso. Guimarães, 04 de Maio 2017. (Relatora)_________________________________________ (Maria João Marques Pinto de Matos) (2º Adjunto)________________________________________ (Heitor Pereira Carvalho Gonçalves) Consigna-se que a Exmª 1ª Adjunta (Sr.ª Juíza Desembargadora Elisabete de Jesus Santos de Oliveira Valente) votou em conformidade a decisão exarada supra, que só não assina por não se encontrar presente (art. 153º, nº 1, in fine, do C.P.C.). (Relatora)_________________________________________ (Maria João Marques Pinto de Matos)