I - Não enferma de erro notório na apreciação da prova ou contradição insanável da fundamentação, a sentença que, com invocação do princípio “in dubio pro reo”, procede ao desconto do valor correspondente ao erro máximo admissível (EMA) ao valor de TAS indicado no talão emitido pelo alcoolímetro. II - Sendo o arguido acusado da prática de um crime de condução sob efeito do álcool e concluindo o Tribunal que os factos integram tão só a prática de uma contra-ordenação, a competência para proferir a decisão (aplicação da coima) deve ser devolvida à autoridade administrativa que, no caso, seria originariamente competente para o efeito.
Recurso Penal nº 658/08.5GBAMT.P1 Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1.Relatório No 3º juízo criminal do Tribunal Judicial de Amarante, em processo sumário, foi submetido a julgamento o arguido B………., devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu absolvê-lo da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º nº 1 e 69º nº 1 al. a) do C. Penal, que lhe vinha imputado, e remeter certidão ao IMT para os fins tidos por convenientes. Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o MºPº, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que condene o arguido pela prática daquele crime, para o que apresentou as seguintes conclusões: 1 - Nos termos do art° 153°, n° l, do Código da Estrada, o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito. 2 - A exigência de aprovação do aparelho utilizado para a pesquisa de álcool no ar expirado e as regras de controlo metrológico encontram-se na portaria 1556/2007, de 10/12, a qual passou a acolher a Recomendação da OIML R 126, publicada em 1998. 3 - Resulta do referido Decreto-Lei que os instrumentos de medição estão sujeitos a controlo, o qual compreende uma de várias operações: a aprovação de modelo; primeira verificação; verificação periódica; e verificação extraordinária. 4 - Porém, seja qual for a realidade ponderada, envolve necessariamente uma margem de incerteza quanto aos valores finais registados, pelo que se prevê no D.L. de 291/91 de 20/9, «tolerâncias admissíveis» e na portaria 110/91, de 6/02 de «erro máximo admissível, para mais ou para menos, da concentração de álcool etílico», ou EMA. 5 - Assim, os instrumentos que não ultrapassem a margem de tolerância admissível são aprovados e neles aposto o correspondente símbolo atestador de qualidade e fiabilidade, de acordo com o regulamento geral do controlo metrológico, constante da portaria n.° 962/90, de 09/10. 6 - Pelo que, quaisquer deduções que a esta TAS sejam feitas carecem de fundamento legal e mesmo de suporte técnico-científico. 7- O Tribunal “a quo”, ao não ter atendido à TAS inscrita no talão constante dos autos e, consequentemente, ao ter dado como provado que o arguido conduzia influenciado por uma taxa de 1,15g/l, incorreu em erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410°, n° 2, al. c) do Código de Processo Penal. 8 - O arguido, embora pudesse ter questionado o resultado do teste, solicitando a realização de contraprova, seja por expiração de ar, seja sanguíneo, não o fez. 9 - Não tinha, pois a Mma. Juiz do Tribunal a quo qualquer fundamento para concluir que o TAS indicado pelo aparelho utilizado na pesquisa de álcool no ar expirado pelo arguido padecia de erro. 10 – É o Tribunal o competente para conhecer da prática da contra-ordenação, atento o disposto no artigo 77°, n.° l do RGCC, não devendo os autos serem remetidos ao IMTT para procedimento contra-ordenacional. O arguido apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso e concluindo como segue: 1- No dia 28 de Junho de 2009, às 2h58m, na ………., ………., Amarante, o arguido conduzia o veículo de matrícula ..-FJ-.., tipo ligeiro. 2- Na sequência de uma operação de fiscalização de trânsito, submetido ao exame de pesquisa do álcool ao ar expirado o arguido apresentou uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 1,159/l, deduzida já a margem de erro máximo admissível. 3- Resulta dos normativos legais que o exame de alcoolemia é efectuado, em primeira linha, através de "aparelho aprovado para o efeito", exame efectuado em conformidade com o disposto no código da Estrada e em "legislação complementar”. 4- Tais aparelhos estão sujeitos ao disposto no Decreto-lei 291/90 de 20/09 e à Portaria 962/90. 5- Em conformidade com o disposto nesses diplomas legais, aqueles instrumentos de medição estão submetidos a um conjunto de operações com vista à sua regular utilização. 6- Na mencionada Portaria foi criado um quadro regulamentar harmonizado com o tradicional para o controlo metrológico de quaisquer instrumentos de medição tendo sido adoptada como norma técnica de referência uma norma francesa nf x 20-701, tida como a mais idónea na Europa. 7- Os ema no caso dos alcoolímetros quantitativos tendo em conta a legislação supra referenciada, são os seguintes: TAS < 0,92 g/l - EMA +/- 0,07 g/l TAS =/> 0,92 < 2,30 g/l - EMA +/- 7,5% TAS =/> 2,30 < 4,60 g/l - EMA +/-15% TAS =!> 4,60 < 6,90 g/l - EMA + /- 30% 8- No nosso sistema processual penal - art.° 125° - dispõe: «São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.» 9- Ora, um dos meios de obtenção da prova é o exame - art 171°, que mais não é do que «um meio através do qual se captam indícios relativos a prática de uma infracção e que tanto pode ser realizado em pessoas e lugares, como em coisas, quer por mera observação, quer pela utilização de aparelhos ou mecanismos. 11-Há casos em que a lei impõe que a prova dos mesmos seja feita por determinados meios e outros casos há em que estabelece o respectivo valor. 12-No caso dos exames a regra é a prevista no art.° 127°, isto é, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. 13-Por isso, e do mesmo modo, sempre que o julgador é confrontado com uma prova daquela natureza, pode e deve apreciá-la livremente. 14-No caso em apreço, a fundamentação com base nos critérios legais identificados na decisão recorrida, respeitam, pois, as regras de julgamento, nada havendo a censurar. 15-Pelo que antecede, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a douta decisão recorrida. O recurso foi admitido. Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer, manifestando a sua concordância com a posição defendida pelo MºPº na 1ª instância e apontando, ainda, à decisão recorrida a nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art. 379º e o vício da al. b) do nº 2 do art. 410º, ambos do C.P.P. Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo sido apresentada resposta. Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência. Cumpre decidir. 2.Fundamentação Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos: a)- No dia 28.6.09, pelas 2h 58 minutos, o arguido conduzia o veículo de matrícula ..-FJ-.., tipo ligeiro na ………., ………., Amarante. b)- Submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue, o arguido apresentou uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,15 g/l, deduzida já a taxa de erro máximo admissível de 1,24, apresentada no exame de pesquisa do álcool ao ar expirado. c)- O arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas, sabia que estava a conduzir um veiculo nessas condições, o que quis. d)- O arguido já foi condenado pela pratica do crime de condução de veiculo em estado de embriagues, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 4,00 por factos praticados em 15.4.2007. e)- O arguido é solteiro, tem o 9.º ano de escolaridade, vive com os seus pais, auferindo de €600,00 mensais. Contribui com quantia não fixa, mas nunca superior a 300,00 Euros para as despesas da vida da casa. Considerou-se como não provado: - Que a taxa de álcool no sangue apresentada pelo arguido quando conduzia o veiculo em causa fosse de 1,24 gm/litro de sangue, nem que não fosse, De acordo com a motivação da decisão de facto, a convicção do tribunal fundou-se: a) No auto de noticia de folhas 3 e 4 e no exame junto aos autos a fls. 10. O arguido admitiu ter ingerido bebidas alcoólicas, sabendo que não podia conduzir naquelas circunstancias. Manteve uma postura de colaboração para com o tribunal. Todavia, e compulsados os autos podemos constatar que não foi deduzida a taxa de erro máximo admissível, aplicável aos aparelhos de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado – alcoolimetros – por força da recomendação da Organização Internacional de Metrologia, e na sequência da portaria 748/94, de 13.6 ponto 6 al. a) e c) da citada portaria. Tal taxa de erro situa-se entre os 7,5%, quando o alcoolimetro apresente uma TAS entre 0,92g/l e 2,30 g/l – Norma NFX 20-701. Ora deduzida tal percentagem à taxa de 1,24 apresentada pelo arguido no alcolimetro, in casu, temos uma taxa corrigida que se fixa em 1,15 g/, razão porque não se deu como provado que a dita taxa se cifrasse em 1,24gm /l b) No Certificado do Registo Criminal de fls. 22, e nas declarações do arguido quanto á sua situação pessoal. 3. O Direito O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2] No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, são as seguintes as questões submetidas a apreciação: - erro notório na apreciação da prova por indevido desconto do valor do erro máximo admissível à TAS acusada pelo alcoolímetro; - competência do tribunal para conhecer da prática da contra-ordenação. 3.1. O recorrente entende que a decisão recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova ao dar como provado que o arguido conduzia com uma TAS de 1,15 g/l, procedendo à dedução do EMA, para a qual defende inexistir quer fundamento legal, além do mais porque o arguido nem questionou o resultado do teste, quer suporte técnico-científico. As questões suscitadas pelo recorrente estão intimamente ligadas à da relevância das denominadas “margens de erro admissíveis”, que tem vindo a receber respostas divergentes por parte da jurisprudência, dividida em duas correntes, uma que sustenta a ilegalidade do desconto que, com base nelas, é feita à TAS acusada pelo alcoolímetro, outra que defende que tal dedução é, não só correcta, como até constitui uma imposição decorrente do princípio in dubio pro reo[3]. Sendo por demais conhecidos os argumentos invocados por cada uma dessas correntes, dispensamo-nos de aqui os repetir, limitando-nos a reafirmar a posição que já anteriormente assumimos[4] e que não vemos razões para alterar, alinhando com a corrente referida em segundo lugar. Sinteticamente, diremos apenas que não está em causa a fiabilidade dos aparelhos de medição, devidamente aprovados e verificados conforme as normas legais pertinentes. Tais aparelhos têm aptidão para fornecer resultados fiáveis em termos metrológicos, porque a própria metrologia convive com a incerteza inerente a qualquer medição - inultrapassável face ao estado actual do conhecimento humano - e resolve-a com a fixação de margens de erro admissíveis, intervalos máximos dentro dos quais seguramente se situa o valor padrão (ideal). A única garantia que a metrologia oferece, em termos de certeza, é que o eventual desvio entre este valor e o resultado obtido em cada medição, através de aparelhos que cumpram as normas estabelecidas e posto que observados os procedimentos a que ela deve obedecer, não ultrapassa os limites do intervalo estabelecido. A calibragem e as verificações periódicas a que estão legalmente sujeitos destinam-se, precisamente, a garantir que os desvios que se possam verificar nas medições que com esses aparelhos venham a ser efectuadas se contenham dentro daqueles limites apertados, dentro dos quais a metrologia considera os (eventuais) desvios como desprezíveis. Tais operações não conseguem, porém, no actual estado da ciência, eliminar a potencial ocorrência desses desvios. Por isso, não é possível determinar se, em cada concreta medição, eles ocorreram ou não e, na eventualidade de terem ocorrido, qual a sua concreta expressão, ou seja, se e em que medida (para mais ou para menos) o resultado obtido se desvia do valor padrão. A única certeza que consentem é que esse eventual desvio nunca será maior, nem menor, que o valor do EMA correspondente. Valor este que, saliente-se, não é nem podia ser – na medida em que não tem uma expressão constante para qualquer resultado de medição, variando em função de intervalos (como facilmente se constata olhando para o quadro anexo à Portaria nº 1556/2007 de 10/12) – descontado aquando da calibragem do aparelho. Da articulação desta incerteza irremovível e inultrapassável – que, frise-se, a produção de prova não pode resolver na medida em que o eventual desvio que possa ter ocorrido numa concreta medição não é passível de determinação - relativamente à existência e concreta expressão do desvio entre o valor da indicação e o valor padrão, inerente às medições ainda que efectuadas por alcoolímetros que obedeçam a todas as normas regulamentares, com a presunção de inocência consagrada no nº 2 do art. 32º da C.R.P. e o princípio in dubio pro reo decorre, em nosso entender, que ao valor da TAS acusada deva ser descontado o valor do erro máximo admissível, que vem definido no quadro anexo à Portaria acima referida. E isto independentemente de o arguido não ter colocado quaisquer reservas ao resultado obtido no teste a que foi submetido, porque a questão se coloca em relação a toda e qualquer medição (incluindo a que possa ser levada a cabo como contraprova, em outro aparelho), e não a uma medição em concreto. Independentemente também da posição que ele tenha assumido no julgamento, pois mesmo que tenha confessado de forma livre, integral e sem reservas, os factos que lhe vinham imputados, tal confissão sempre estará circunscrita aos factos de que tinha ou podia ter conhecimento (as circunstâncias de tempo e lugar em que exercia a condução, as características do veículo que conduzia, a ingestão de bebidas alcoólicas antes de exercer a condução, a fiscalização e o resultado do teste de alcoolemia a que foi submetido), não abrangendo a concreta TAS de que era portador, que só poderá ser determinada, com o rigor exigível, através de medição efectuada por aparelho apropriado. No que concerne aos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do C.P.P. que foram invocados, um pelo recorrente e outro pelo Exmº PGA, trata-se de vícios da decisão, passíveis de serem detectados através do mero exame do próprio texto da mesma - sem recurso a quaisquer outros elementos constantes do processo -, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum. Um deles, o erro notório na apreciação da prova, verifica-se “quando se retira de um facto dado como provado uma consequência logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto provado uma consequência ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”[5]. Desdobra-se, pois, em erro na apreciação dos factos e em erro na valoração da prova produzida. Verifica-se, igualmente, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. A notoriedade do erro (sendo este a ignorância ou falsa representação da realidade) exigida pela lei traduz-se numa incongruência que “há-de ser de tal modo evidente que não passe despercebida ao comum dos observadores, ao homem médio (...), ao observador na qualidade de magistrado, dotado de formação e experiência adequadas a um tribunal de recurso. Esse erro há-de ser evidente aos olhos dos que apreciam a decisão e seus destinatários, sem necessidade de argúcia excepcional (...)”[6], [7], [8]. O outro vício invocado, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, tanto pode existir ao nível da factualidade, como ao nível do direito que é apreciado na decisão proferida; pode reportar-se quer à fundamentação da matéria de facto, quer à contradição na matéria de facto com o consequente reflexo no fundamento da decisão de direito, quer aos meios de prova que serviram para formar a convicção do juiz. Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou de forma a excluírem-se mutuamente[9]. Vejamos, agora, se algum deles se evidencia no texto da decisão recorrida. Nesta fez-se constar, entre os factos provados, que “submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue, o arguido apresentou uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos 1,15 g/l, deduzida já a taxa de erro máximo admissível de 1,24, apresentada no exame de pesquisa do álcool ao ar expirado” e, como não provado “que a taxa de álcool no sangue apresentada pelo arguido quando conduzia o veiculo em causa fosse de 1,24 gm/l de sangue, nem que não fosse”. Dos esclarecimentos consignados na motivação da decisão de facto, resulta que o tribunal recorrido formou a sua convicção, no que concerne à taxa de alcoolemia, com base no resultado do exame a fls. 10 (talão do alcoolímetro que indica uma TAS de 1,24 g/l), vindo também aí explicadas as razões pelas quais, não obstante o arguido ter admitido a ingestão de bebidas alcoólicas, lhe introduziu uma correcção, em concreto, o facto de àquele resultado não ter sido deduzida a taxa de erro máximo admissível “aplicável aos aparelhos de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado – alcoolimetros – por força da recomendação da Organização Internacional de Metrologia, e na sequência da portaria 748/94, de 13.6 ponto 6 al. a) e c) da citada portaria”. Pese embora a forma não muito clara como foi expresso o raciocínio trilhado e a referência a uma portaria já revogada, é evidente que na base daquele esteve o facto de os alcoolímetros, tal como todos os aparelhos de medição, terem uma margem de erro inultrapassável, de tal forma que, com segurança, apenas podia ser considerado o resultado obtido depois de efectuado o desconto do EMA. Desconto esse que o tribunal recorrido entendeu impor-se não obstante a circunstância de o arguido ter confessado integralmente os factos[10], pois o que este expressamente admitiu foi ter conduzido depois de ter ingerido bebidas alcoólicas e saber que, no estado em que se encontrava, não o podia fazer, sendo apenas disso que ele estava consciente e que reconheceu em audiência, e não necessariamente que tinha conduzido com a concreta TAS que o alcoolímetro em que realizou o teste acusou. Tendo presentes todas as considerações que acima expendemos acerca da problemática das margens de erro e à luz do entendimento que a este respeito perfilhamos, temos de concluir que a decisão recorrida não enferma de nenhum dos apontados vícios. O tribunal recorrido, na apreciação da prova que foi produzida e em que alicerçou a sua convicção, mais não fez do que resolver a dúvida razoável e insanável que a incerteza relativa à existência de desvios entre o resultado registado pelo alcoolímetro e o valor padrão concita, por aplicação do princípio in dubio pro reo, a favor do arguido, dando como assente, com o grau de certeza exigível para a prolação de uma decisão condenatória, que ele conduzia com uma TAS seguramente não inferior à que se obtém descontando àquele resultado o valor do EMA que lhe corresponde. O facto de ter considerado como não provado que a TAS apresentada, mais correctamente, a TAS de que o arguido era portador, era de 1,24 g/l, e, tão-pouco, que não o fosse, explica-se e coaduna-se perfeitamente com a incerteza a que aludimos. E isto porque os desvios do valor padrão, numa concreta medição, não ocorrem necessariamente, antes são eventuais. Donde que, no caso, e não sendo possível determinar se ocorreu ou não algum desvio – sendo apenas certo e seguro que, a ter ocorrido, não ultrapassou o valor do EMA correspondente – não era possível dar como provado nem que aquela era a TAS de que o arguido era portador, nem afirmar que o não era. O que era possível dar como provado – e foi-o – é que o arguido exercia a condução com uma TAS de pelo menos 1,15 g/l, o que obviamente não exclui que a TAS real - efectiva, mas não passível de determinação - pudesse ser superior àquele valor e coincidir, mesmo, com a que foi obtida através do alcoolímetro ou excedê-la em medida que se estende até ao limite máximo do EMA. Assim, nada de ostensivamente errado, ilógico ou contraditório se vislumbra no raciocínio desenvolvido; ao invés, o mesmo expressa, em nosso entender, a avaliação correcta dos limites que a realidade científica conhecida demonstra serem inerentes a um meio de prova e a aplicação rigorosa dos princípios que regem a apreciação da prova. E existindo, a nosso ver, fundamento para proceder ao desconto do EMA nos termos em que foi efectuado, também não se verifica a nulidade aludida pelo Exmº PGA. Improcede, pois, este fundamento do recurso. 3.2. Subsidiariamente, para o caso de se entender que os factos praticado pelo arguido integram apenas a prática de uma contra-ordenação, defende o recorrente que o tribunal tem competência para conhecer da prática daquele ilícito e que, por isso, os autos não deviam ser remetidos ao IMTT. No presente caso, foi imputada ao arguido a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos arts. 292º nº 1 e 69º nº 1 do C. Penal. Não tendo sido considerado como provado que a TAS com que o arguido exercia a condução fosse igual ou superior a 1,2 g/l, ficou por preencher um dos elementos objectivos daquele tipo legal de crime, razão pela qual foi absolvido. No entanto, foi ordenada a remessa de certidão ao IMTT, seguramente porque, tal como apurada, a sua conduta integra a contra-ordenação p. e p. pelos arts. 81º nºs 1, 2 e 5 al. b), 146º l. j), 138º nº 1 e 147º nºs 1 e 2, todos do C. Estrada. Em ordem a dilucidarmos a questão proposta, vejamos o quadro legal atinente, constante do RGCO (diploma ao qual pertencerão os preceitos que adiante forem citados sem menção especial). Em regra (“ressalvadas as especialidades previstas no presente diploma”), a competência para o processamento das contra-ordenações, aplicação das coimas e sanções acessórias pertence às autoridades administrativas (cfr. art. 33º). Excepções a esta regra vêm consagradas nos arts. 38º e 39º. De acordo com o disposto nestes preceitos, o processamento da contra-ordenação, bem como a aplicação da coima e das sanções acessórias, passa a caber às autoridades competentes para o processo criminal, às quais os autos devem ser remetidos caso se encontrem pendentes na autoridade administrativa, “quando se verifique concurso de crime e contra-ordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação Inversamente, devem os autos ser remetidos à autoridade administrativa quando o MºPº arquive o processo criminal, mas entenda que subsiste a responsabilidade em matéria contra-ordenacional. Por seu turno, o art. 77º admite expressamente que o tribunal venha a apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime (nº 1), podendo (no momento próprio, em concreto o despacho aludido no art. 311º do C.P.P.) alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação de forma a considerar que não têm relevância criminal, mas apenas contra-ordenacional, caso em que “o processo passará a obedecer aos preceitos desta lei” (expressão esta de significado pouco claro, que tanto pode ser interpretada no sentido de que os autos prosseguem os seus termos no tribunal ou no de que, por aplicação da regra estabelecida no art. 33º, devem ser remetidos à autoridade administrativa para aí seguirem o seu curso). E, no caso de o mesmo processo versar sobre crimes e contra-ordenações, manda o nº 1 do art. 78º que, quanto às segundas, se apliquem os arts. 42º, 43º, 45º, 58º nºs 1 e 3, 70º e 83º. Analisando todos estes preceitos, deles não se colhe uma solução inequívoca para o caso de o tribunal concluir, após a realização do julgamento (como sucede naquele de que nos ocupamos), que, afinal, os factos que considera como provados não integram o ilícito criminal que ao arguido vinha imputado, mas apenas um ilícito de natureza contra-ordenacional. A letra da lei, em particular o nº 1 do art. 77º, parece inculcar a ideia de que, quando assim suceda, o tribunal deve proferir decisão condenatória. No entanto, perscrutando a ratio subjacente ao regime legal estabelecido nesta matéria, parece-nos que o desvio às regras gerais relativas à competência em razão da matéria só encontra justificação nos casos em que o tribunal sempre teria de ser chamado a decidir - ou porque se verifique concurso de crimes e contra-ordenações relativamente ao mesmo agente, ou porque, em relação a idêntica situação factual, a algum ou alguns dos agentes venha imputada a prática de ilícito(s) de natureza criminal e a outro ou outros a de ilícito(s) de natureza contra-ordenacional. E já não naqueles em que em causa estejam única e exclusivamente ilícitos desta última natureza. Quando assim sucede ab initio, a competência pertence, apenas e só, às autoridades administrativas, e também não vemos argumentos, outros que não razões de economia processual, para que lhes seja subtraída essa competência quando, no final da fase de julgamento, se verifique que a matéria de facto apurada apenas integra ilícito(s) de natureza contra-ordenacional. A não ser assim, estar-se-ia a converter, na fase decisória (quando já foi ultrapassado o momento próprio para observar o disposto no art. 50º-A, quando aplicável), um processo de natureza criminal ou mista num processo atípico, de natureza criminal, mas regendo-se por (alguns dos) preceitos do RGCO e a eliminar, injustificadamente, um grau de jurisdição, acometendo ao tribunal a tarefa de decidir questões para as quais, em princípio, não seria competente e fora dos casos excepcionais em que a competência lhe é conferida por existir manifesta conveniência no julgamento conjunto. No fundo, a desvirtuar um regime excepcional e a estender a sua aplicação a casos para os quais não foi concebido. Propendemos, assim, para o entendimento seguido pelo tribunal recorrido, de acordo com o qual, quando se conclua que os factos provados integram apenas uma contra-ordenação, a competência para a apreciar e proferir decisão deve ser devolvida à autoridade administrativa que, no caso, seria a originalmente competente para o efeito. Refira-se, por último, que também não colhe a argumentação do recorrente no sentido de que a autoridade administrativa pode ter entendimento diferente do tribunal e, não procedendo ao desconto do EMA, considerar que os factos integram um ilícito criminal e, com base nisso, recusar o seu conhecimento. Se, de acordo com o disposto no nº 4 do art. 38º, a autoridade administrativa fica vinculada ao entendimento do MºPº no sentido de um facto ser processado ou não como crime, por maioria de razão também terá de ficar vinculada ao entendimento que o tribunal venha a seguir a esse respeito, para mais quando este já haja decidido, em definitivo, que o facto não tem relevância criminal. Razões pelas quais também improcede este fundamento do recurso. 4. Decisão Nos termos e com os fundamentos expostos, julgam improcedente o recurso, mantendo integralmente a sentença recorrida. Sem custas. Porto, 3 de Fevereiro de 2010 Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas _________________________ [1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada). [2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95. [3] Como se salienta no Ac. STJ 10/9/09, proc. nº 458/08.0GAVGS.C1-A.S1, o cerne destas soluções opostas não está na interpretação do quadro legal aplicável, mas na apreciação de um elemento de prova, em concreto, a informação fornecida pelo aparelho medidor do teor de álcool no sangue. O que facilmente se evidencia pela descrição que aí é feita das posições assumidas em dois arestos em sentidos divergentes: “Confrontado com a necessidade de apuramento, do facto “teor de álcool no sangue”, um tribunal deu por provado certo teor, socorrendo-se do elemento de prova, que foi a “notação técnica”, sem mais. Outro tribunal apurou o dito “teor de álcool no sangue”, a partir, na mesma, da informação do aparelho em questão. Mas porque sabia da informação fornecida pela Portaria, a respeito das margens de erro, não se sentiu autorizado a avançar logo para dar por provado o facto “teor de álcool”, na exacta medida que constava da “notação técnica”. Apreciou esta prova de modo diferente, porque lhe deu um valor apenas relativo e não absoluto. Relativo, no sentido de que a informação foi de considerar o ponto de que se partiu, mas, avaliada essa informação criticamente, só foi possível, de seguro, dizer que o teor de álcool tinha uma medida nunca inferior à leitura do aparelho, depois de deduzida a margem de erro máximo admissível. A “notação técnica” fornecida pelo aparelho marca Drager modelo 7110MKIII P n° série ARRA-0035 aprovado pela DGV em 06/08/1998, e usado em ambos os casos, é simplesmente valorada de modo diverso, sem que isso decorra, necessariamente, da diferente interpretação de qualquer norma, de qualquer das Portarias.” [4] Nos acórdãos desta Relação, de que a 1ª signatária também foi relatora, proferidos em 26/11/08 no proc. nº 0812537, em 17/6/09 no 1291/08.4PAPVZ.P1, em 1/7/09 no proc. nº 272/08.2GAVPA.P1, e em 7/10/09 no proc. nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/145093" target="_blank">43/09.9TAPVZ.P1</a>. [5] cfr. Simas Santos e Leal Henriques, CPP, 2ª ed. V. II, pág. 740. [6] Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2ª ed., págs. 1036 ss. [7] “O conceito de erro notório na apreciação das provas tem que ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório” (Ac. STJ de 6/4/1994, CJ, ano II, t.2, p. 186. [8] Menos exigente ainda é a corrente representada pelo Ac. STJ 30/1/02 Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, ("http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Anuais/Criminais/Criminais2002.pdf"), segundo o qual “para que se verifique o requisito da notoriedade do vício não é indispensável que o erro não passe despercebido ao comum dos observadores, isto é, que seja por eles facilmente apreensível. Atentos os fins judiciários visados com a previsão do vício e a regulação dos seus efeitos, a sua evidência deve ser aferida por referência à possibilidade de não passar despercebido, de ser facilmente detectável, por julgador com a preparação e a experiência pressupostas pelo exercício da função. Aquela visão de maior exigência para a verificação do vício - resultante de se referenciar a sua evidência à possibilidade da sua fácil percepção pela pessoa comum - diminuiria injustificadamente o efeito pretendido com a previsão do seu conhecimento, mesmo oficiosamente; efeito esse radicado no objectivo de evitar tanto quanto possível decisões de facto não consentâneas com a prova produzida, de forma a limitar o risco de decisões injustas.” [9] cfr. Simas Santos, Recursos em Processo Penal., 5ª ed. págs. 63-64. [10] E que igualmente se imporia mesmo que ele tivesse adoptado outra postura e a produção de prova prosseguisse, na medida em que sempre seria impossível provar que o valor acusado pelo alcoolímetro coincidiu com o valor padrão.
Recurso Penal nº 658/08.5GBAMT.P1 Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1.Relatório No 3º juízo criminal do Tribunal Judicial de Amarante, em processo sumário, foi submetido a julgamento o arguido B………., devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu absolvê-lo da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º nº 1 e 69º nº 1 al. a) do C. Penal, que lhe vinha imputado, e remeter certidão ao IMT para os fins tidos por convenientes. Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o MºPº, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que condene o arguido pela prática daquele crime, para o que apresentou as seguintes conclusões: 1 - Nos termos do art° 153°, n° l, do Código da Estrada, o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito. 2 - A exigência de aprovação do aparelho utilizado para a pesquisa de álcool no ar expirado e as regras de controlo metrológico encontram-se na portaria 1556/2007, de 10/12, a qual passou a acolher a Recomendação da OIML R 126, publicada em 1998. 3 - Resulta do referido Decreto-Lei que os instrumentos de medição estão sujeitos a controlo, o qual compreende uma de várias operações: a aprovação de modelo; primeira verificação; verificação periódica; e verificação extraordinária. 4 - Porém, seja qual for a realidade ponderada, envolve necessariamente uma margem de incerteza quanto aos valores finais registados, pelo que se prevê no D.L. de 291/91 de 20/9, «tolerâncias admissíveis» e na portaria 110/91, de 6/02 de «erro máximo admissível, para mais ou para menos, da concentração de álcool etílico», ou EMA. 5 - Assim, os instrumentos que não ultrapassem a margem de tolerância admissível são aprovados e neles aposto o correspondente símbolo atestador de qualidade e fiabilidade, de acordo com o regulamento geral do controlo metrológico, constante da portaria n.° 962/90, de 09/10. 6 - Pelo que, quaisquer deduções que a esta TAS sejam feitas carecem de fundamento legal e mesmo de suporte técnico-científico. 7- O Tribunal “a quo”, ao não ter atendido à TAS inscrita no talão constante dos autos e, consequentemente, ao ter dado como provado que o arguido conduzia influenciado por uma taxa de 1,15g/l, incorreu em erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410°, n° 2, al. c) do Código de Processo Penal. 8 - O arguido, embora pudesse ter questionado o resultado do teste, solicitando a realização de contraprova, seja por expiração de ar, seja sanguíneo, não o fez. 9 - Não tinha, pois a Mma. Juiz do Tribunal a quo qualquer fundamento para concluir que o TAS indicado pelo aparelho utilizado na pesquisa de álcool no ar expirado pelo arguido padecia de erro. 10 – É o Tribunal o competente para conhecer da prática da contra-ordenação, atento o disposto no artigo 77°, n.° l do RGCC, não devendo os autos serem remetidos ao IMTT para procedimento contra-ordenacional. O arguido apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso e concluindo como segue: 1- No dia 28 de Junho de 2009, às 2h58m, na ………., ………., Amarante, o arguido conduzia o veículo de matrícula ..-FJ-.., tipo ligeiro. 2- Na sequência de uma operação de fiscalização de trânsito, submetido ao exame de pesquisa do álcool ao ar expirado o arguido apresentou uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 1,159/l, deduzida já a margem de erro máximo admissível. 3- Resulta dos normativos legais que o exame de alcoolemia é efectuado, em primeira linha, através de "aparelho aprovado para o efeito", exame efectuado em conformidade com o disposto no código da Estrada e em "legislação complementar”. 4- Tais aparelhos estão sujeitos ao disposto no Decreto-lei 291/90 de 20/09 e à Portaria 962/90. 5- Em conformidade com o disposto nesses diplomas legais, aqueles instrumentos de medição estão submetidos a um conjunto de operações com vista à sua regular utilização. 6- Na mencionada Portaria foi criado um quadro regulamentar harmonizado com o tradicional para o controlo metrológico de quaisquer instrumentos de medição tendo sido adoptada como norma técnica de referência uma norma francesa nf x 20-701, tida como a mais idónea na Europa. 7- Os ema no caso dos alcoolímetros quantitativos tendo em conta a legislação supra referenciada, são os seguintes: TAS < 0,92 g/l - EMA +/- 0,07 g/l TAS =/> 0,92 < 2,30 g/l - EMA +/- 7,5% TAS =/> 2,30 < 4,60 g/l - EMA +/-15% TAS =!> 4,60 < 6,90 g/l - EMA + /- 30% 8- No nosso sistema processual penal - art.° 125° - dispõe: «São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.» 9- Ora, um dos meios de obtenção da prova é o exame - art 171°, que mais não é do que «um meio através do qual se captam indícios relativos a prática de uma infracção e que tanto pode ser realizado em pessoas e lugares, como em coisas, quer por mera observação, quer pela utilização de aparelhos ou mecanismos. 11-Há casos em que a lei impõe que a prova dos mesmos seja feita por determinados meios e outros casos há em que estabelece o respectivo valor. 12-No caso dos exames a regra é a prevista no art.° 127°, isto é, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. 13-Por isso, e do mesmo modo, sempre que o julgador é confrontado com uma prova daquela natureza, pode e deve apreciá-la livremente. 14-No caso em apreço, a fundamentação com base nos critérios legais identificados na decisão recorrida, respeitam, pois, as regras de julgamento, nada havendo a censurar. 15-Pelo que antecede, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a douta decisão recorrida. O recurso foi admitido. Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer, manifestando a sua concordância com a posição defendida pelo MºPº na 1ª instância e apontando, ainda, à decisão recorrida a nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art. 379º e o vício da al. b) do nº 2 do art. 410º, ambos do C.P.P. Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo sido apresentada resposta. Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência. Cumpre decidir. 2.Fundamentação Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos: a)- No dia 28.6.09, pelas 2h 58 minutos, o arguido conduzia o veículo de matrícula ..-FJ-.., tipo ligeiro na ………., ………., Amarante. b)- Submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue, o arguido apresentou uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,15 g/l, deduzida já a taxa de erro máximo admissível de 1,24, apresentada no exame de pesquisa do álcool ao ar expirado. c)- O arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas, sabia que estava a conduzir um veiculo nessas condições, o que quis. d)- O arguido já foi condenado pela pratica do crime de condução de veiculo em estado de embriagues, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 4,00 por factos praticados em 15.4.2007. e)- O arguido é solteiro, tem o 9.º ano de escolaridade, vive com os seus pais, auferindo de €600,00 mensais. Contribui com quantia não fixa, mas nunca superior a 300,00 Euros para as despesas da vida da casa. Considerou-se como não provado: - Que a taxa de álcool no sangue apresentada pelo arguido quando conduzia o veiculo em causa fosse de 1,24 gm/litro de sangue, nem que não fosse, De acordo com a motivação da decisão de facto, a convicção do tribunal fundou-se: a) No auto de noticia de folhas 3 e 4 e no exame junto aos autos a fls. 10. O arguido admitiu ter ingerido bebidas alcoólicas, sabendo que não podia conduzir naquelas circunstancias. Manteve uma postura de colaboração para com o tribunal. Todavia, e compulsados os autos podemos constatar que não foi deduzida a taxa de erro máximo admissível, aplicável aos aparelhos de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado – alcoolimetros – por força da recomendação da Organização Internacional de Metrologia, e na sequência da portaria 748/94, de 13.6 ponto 6 al. a) e c) da citada portaria. Tal taxa de erro situa-se entre os 7,5%, quando o alcoolimetro apresente uma TAS entre 0,92g/l e 2,30 g/l – Norma NFX 20-701. Ora deduzida tal percentagem à taxa de 1,24 apresentada pelo arguido no alcolimetro, in casu, temos uma taxa corrigida que se fixa em 1,15 g/, razão porque não se deu como provado que a dita taxa se cifrasse em 1,24gm /l b) No Certificado do Registo Criminal de fls. 22, e nas declarações do arguido quanto á sua situação pessoal. 3. O Direito O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2] No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, são as seguintes as questões submetidas a apreciação: - erro notório na apreciação da prova por indevido desconto do valor do erro máximo admissível à TAS acusada pelo alcoolímetro; - competência do tribunal para conhecer da prática da contra-ordenação. 3.1. O recorrente entende que a decisão recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova ao dar como provado que o arguido conduzia com uma TAS de 1,15 g/l, procedendo à dedução do EMA, para a qual defende inexistir quer fundamento legal, além do mais porque o arguido nem questionou o resultado do teste, quer suporte técnico-científico. As questões suscitadas pelo recorrente estão intimamente ligadas à da relevância das denominadas “margens de erro admissíveis”, que tem vindo a receber respostas divergentes por parte da jurisprudência, dividida em duas correntes, uma que sustenta a ilegalidade do desconto que, com base nelas, é feita à TAS acusada pelo alcoolímetro, outra que defende que tal dedução é, não só correcta, como até constitui uma imposição decorrente do princípio in dubio pro reo[3]. Sendo por demais conhecidos os argumentos invocados por cada uma dessas correntes, dispensamo-nos de aqui os repetir, limitando-nos a reafirmar a posição que já anteriormente assumimos[4] e que não vemos razões para alterar, alinhando com a corrente referida em segundo lugar. Sinteticamente, diremos apenas que não está em causa a fiabilidade dos aparelhos de medição, devidamente aprovados e verificados conforme as normas legais pertinentes. Tais aparelhos têm aptidão para fornecer resultados fiáveis em termos metrológicos, porque a própria metrologia convive com a incerteza inerente a qualquer medição - inultrapassável face ao estado actual do conhecimento humano - e resolve-a com a fixação de margens de erro admissíveis, intervalos máximos dentro dos quais seguramente se situa o valor padrão (ideal). A única garantia que a metrologia oferece, em termos de certeza, é que o eventual desvio entre este valor e o resultado obtido em cada medição, através de aparelhos que cumpram as normas estabelecidas e posto que observados os procedimentos a que ela deve obedecer, não ultrapassa os limites do intervalo estabelecido. A calibragem e as verificações periódicas a que estão legalmente sujeitos destinam-se, precisamente, a garantir que os desvios que se possam verificar nas medições que com esses aparelhos venham a ser efectuadas se contenham dentro daqueles limites apertados, dentro dos quais a metrologia considera os (eventuais) desvios como desprezíveis. Tais operações não conseguem, porém, no actual estado da ciência, eliminar a potencial ocorrência desses desvios. Por isso, não é possível determinar se, em cada concreta medição, eles ocorreram ou não e, na eventualidade de terem ocorrido, qual a sua concreta expressão, ou seja, se e em que medida (para mais ou para menos) o resultado obtido se desvia do valor padrão. A única certeza que consentem é que esse eventual desvio nunca será maior, nem menor, que o valor do EMA correspondente. Valor este que, saliente-se, não é nem podia ser – na medida em que não tem uma expressão constante para qualquer resultado de medição, variando em função de intervalos (como facilmente se constata olhando para o quadro anexo à Portaria nº 1556/2007 de 10/12) – descontado aquando da calibragem do aparelho. Da articulação desta incerteza irremovível e inultrapassável – que, frise-se, a produção de prova não pode resolver na medida em que o eventual desvio que possa ter ocorrido numa concreta medição não é passível de determinação - relativamente à existência e concreta expressão do desvio entre o valor da indicação e o valor padrão, inerente às medições ainda que efectuadas por alcoolímetros que obedeçam a todas as normas regulamentares, com a presunção de inocência consagrada no nº 2 do art. 32º da C.R.P. e o princípio in dubio pro reo decorre, em nosso entender, que ao valor da TAS acusada deva ser descontado o valor do erro máximo admissível, que vem definido no quadro anexo à Portaria acima referida. E isto independentemente de o arguido não ter colocado quaisquer reservas ao resultado obtido no teste a que foi submetido, porque a questão se coloca em relação a toda e qualquer medição (incluindo a que possa ser levada a cabo como contraprova, em outro aparelho), e não a uma medição em concreto. Independentemente também da posição que ele tenha assumido no julgamento, pois mesmo que tenha confessado de forma livre, integral e sem reservas, os factos que lhe vinham imputados, tal confissão sempre estará circunscrita aos factos de que tinha ou podia ter conhecimento (as circunstâncias de tempo e lugar em que exercia a condução, as características do veículo que conduzia, a ingestão de bebidas alcoólicas antes de exercer a condução, a fiscalização e o resultado do teste de alcoolemia a que foi submetido), não abrangendo a concreta TAS de que era portador, que só poderá ser determinada, com o rigor exigível, através de medição efectuada por aparelho apropriado. No que concerne aos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do C.P.P. que foram invocados, um pelo recorrente e outro pelo Exmº PGA, trata-se de vícios da decisão, passíveis de serem detectados através do mero exame do próprio texto da mesma - sem recurso a quaisquer outros elementos constantes do processo -, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum. Um deles, o erro notório na apreciação da prova, verifica-se “quando se retira de um facto dado como provado uma consequência logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto provado uma consequência ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”[5]. Desdobra-se, pois, em erro na apreciação dos factos e em erro na valoração da prova produzida. Verifica-se, igualmente, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. A notoriedade do erro (sendo este a ignorância ou falsa representação da realidade) exigida pela lei traduz-se numa incongruência que “há-de ser de tal modo evidente que não passe despercebida ao comum dos observadores, ao homem médio (...), ao observador na qualidade de magistrado, dotado de formação e experiência adequadas a um tribunal de recurso. Esse erro há-de ser evidente aos olhos dos que apreciam a decisão e seus destinatários, sem necessidade de argúcia excepcional (...)”[6], [7], [8]. O outro vício invocado, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, tanto pode existir ao nível da factualidade, como ao nível do direito que é apreciado na decisão proferida; pode reportar-se quer à fundamentação da matéria de facto, quer à contradição na matéria de facto com o consequente reflexo no fundamento da decisão de direito, quer aos meios de prova que serviram para formar a convicção do juiz. Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou de forma a excluírem-se mutuamente[9]. Vejamos, agora, se algum deles se evidencia no texto da decisão recorrida. Nesta fez-se constar, entre os factos provados, que “submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue, o arguido apresentou uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos 1,15 g/l, deduzida já a taxa de erro máximo admissível de 1,24, apresentada no exame de pesquisa do álcool ao ar expirado” e, como não provado “que a taxa de álcool no sangue apresentada pelo arguido quando conduzia o veiculo em causa fosse de 1,24 gm/l de sangue, nem que não fosse”. Dos esclarecimentos consignados na motivação da decisão de facto, resulta que o tribunal recorrido formou a sua convicção, no que concerne à taxa de alcoolemia, com base no resultado do exame a fls. 10 (talão do alcoolímetro que indica uma TAS de 1,24 g/l), vindo também aí explicadas as razões pelas quais, não obstante o arguido ter admitido a ingestão de bebidas alcoólicas, lhe introduziu uma correcção, em concreto, o facto de àquele resultado não ter sido deduzida a taxa de erro máximo admissível “aplicável aos aparelhos de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado – alcoolimetros – por força da recomendação da Organização Internacional de Metrologia, e na sequência da portaria 748/94, de 13.6 ponto 6 al. a) e c) da citada portaria”. Pese embora a forma não muito clara como foi expresso o raciocínio trilhado e a referência a uma portaria já revogada, é evidente que na base daquele esteve o facto de os alcoolímetros, tal como todos os aparelhos de medição, terem uma margem de erro inultrapassável, de tal forma que, com segurança, apenas podia ser considerado o resultado obtido depois de efectuado o desconto do EMA. Desconto esse que o tribunal recorrido entendeu impor-se não obstante a circunstância de o arguido ter confessado integralmente os factos[10], pois o que este expressamente admitiu foi ter conduzido depois de ter ingerido bebidas alcoólicas e saber que, no estado em que se encontrava, não o podia fazer, sendo apenas disso que ele estava consciente e que reconheceu em audiência, e não necessariamente que tinha conduzido com a concreta TAS que o alcoolímetro em que realizou o teste acusou. Tendo presentes todas as considerações que acima expendemos acerca da problemática das margens de erro e à luz do entendimento que a este respeito perfilhamos, temos de concluir que a decisão recorrida não enferma de nenhum dos apontados vícios. O tribunal recorrido, na apreciação da prova que foi produzida e em que alicerçou a sua convicção, mais não fez do que resolver a dúvida razoável e insanável que a incerteza relativa à existência de desvios entre o resultado registado pelo alcoolímetro e o valor padrão concita, por aplicação do princípio in dubio pro reo, a favor do arguido, dando como assente, com o grau de certeza exigível para a prolação de uma decisão condenatória, que ele conduzia com uma TAS seguramente não inferior à que se obtém descontando àquele resultado o valor do EMA que lhe corresponde. O facto de ter considerado como não provado que a TAS apresentada, mais correctamente, a TAS de que o arguido era portador, era de 1,24 g/l, e, tão-pouco, que não o fosse, explica-se e coaduna-se perfeitamente com a incerteza a que aludimos. E isto porque os desvios do valor padrão, numa concreta medição, não ocorrem necessariamente, antes são eventuais. Donde que, no caso, e não sendo possível determinar se ocorreu ou não algum desvio – sendo apenas certo e seguro que, a ter ocorrido, não ultrapassou o valor do EMA correspondente – não era possível dar como provado nem que aquela era a TAS de que o arguido era portador, nem afirmar que o não era. O que era possível dar como provado – e foi-o – é que o arguido exercia a condução com uma TAS de pelo menos 1,15 g/l, o que obviamente não exclui que a TAS real - efectiva, mas não passível de determinação - pudesse ser superior àquele valor e coincidir, mesmo, com a que foi obtida através do alcoolímetro ou excedê-la em medida que se estende até ao limite máximo do EMA. Assim, nada de ostensivamente errado, ilógico ou contraditório se vislumbra no raciocínio desenvolvido; ao invés, o mesmo expressa, em nosso entender, a avaliação correcta dos limites que a realidade científica conhecida demonstra serem inerentes a um meio de prova e a aplicação rigorosa dos princípios que regem a apreciação da prova. E existindo, a nosso ver, fundamento para proceder ao desconto do EMA nos termos em que foi efectuado, também não se verifica a nulidade aludida pelo Exmº PGA. Improcede, pois, este fundamento do recurso. 3.2. Subsidiariamente, para o caso de se entender que os factos praticado pelo arguido integram apenas a prática de uma contra-ordenação, defende o recorrente que o tribunal tem competência para conhecer da prática daquele ilícito e que, por isso, os autos não deviam ser remetidos ao IMTT. No presente caso, foi imputada ao arguido a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos arts. 292º nº 1 e 69º nº 1 do C. Penal. Não tendo sido considerado como provado que a TAS com que o arguido exercia a condução fosse igual ou superior a 1,2 g/l, ficou por preencher um dos elementos objectivos daquele tipo legal de crime, razão pela qual foi absolvido. No entanto, foi ordenada a remessa de certidão ao IMTT, seguramente porque, tal como apurada, a sua conduta integra a contra-ordenação p. e p. pelos arts. 81º nºs 1, 2 e 5 al. b), 146º l. j), 138º nº 1 e 147º nºs 1 e 2, todos do C. Estrada. Em ordem a dilucidarmos a questão proposta, vejamos o quadro legal atinente, constante do RGCO (diploma ao qual pertencerão os preceitos que adiante forem citados sem menção especial). Em regra (“ressalvadas as especialidades previstas no presente diploma”), a competência para o processamento das contra-ordenações, aplicação das coimas e sanções acessórias pertence às autoridades administrativas (cfr. art. 33º). Excepções a esta regra vêm consagradas nos arts. 38º e 39º. De acordo com o disposto nestes preceitos, o processamento da contra-ordenação, bem como a aplicação da coima e das sanções acessórias, passa a caber às autoridades competentes para o processo criminal, às quais os autos devem ser remetidos caso se encontrem pendentes na autoridade administrativa, “quando se verifique concurso de crime e contra-ordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação Inversamente, devem os autos ser remetidos à autoridade administrativa quando o MºPº arquive o processo criminal, mas entenda que subsiste a responsabilidade em matéria contra-ordenacional. Por seu turno, o art. 77º admite expressamente que o tribunal venha a apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime (nº 1), podendo (no momento próprio, em concreto o despacho aludido no art. 311º do C.P.P.) alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação de forma a considerar que não têm relevância criminal, mas apenas contra-ordenacional, caso em que “o processo passará a obedecer aos preceitos desta lei” (expressão esta de significado pouco claro, que tanto pode ser interpretada no sentido de que os autos prosseguem os seus termos no tribunal ou no de que, por aplicação da regra estabelecida no art. 33º, devem ser remetidos à autoridade administrativa para aí seguirem o seu curso). E, no caso de o mesmo processo versar sobre crimes e contra-ordenações, manda o nº 1 do art. 78º que, quanto às segundas, se apliquem os arts. 42º, 43º, 45º, 58º nºs 1 e 3, 70º e 83º. Analisando todos estes preceitos, deles não se colhe uma solução inequívoca para o caso de o tribunal concluir, após a realização do julgamento (como sucede naquele de que nos ocupamos), que, afinal, os factos que considera como provados não integram o ilícito criminal que ao arguido vinha imputado, mas apenas um ilícito de natureza contra-ordenacional. A letra da lei, em particular o nº 1 do art. 77º, parece inculcar a ideia de que, quando assim suceda, o tribunal deve proferir decisão condenatória. No entanto, perscrutando a ratio subjacente ao regime legal estabelecido nesta matéria, parece-nos que o desvio às regras gerais relativas à competência em razão da matéria só encontra justificação nos casos em que o tribunal sempre teria de ser chamado a decidir - ou porque se verifique concurso de crimes e contra-ordenações relativamente ao mesmo agente, ou porque, em relação a idêntica situação factual, a algum ou alguns dos agentes venha imputada a prática de ilícito(s) de natureza criminal e a outro ou outros a de ilícito(s) de natureza contra-ordenacional. E já não naqueles em que em causa estejam única e exclusivamente ilícitos desta última natureza. Quando assim sucede ab initio, a competência pertence, apenas e só, às autoridades administrativas, e também não vemos argumentos, outros que não razões de economia processual, para que lhes seja subtraída essa competência quando, no final da fase de julgamento, se verifique que a matéria de facto apurada apenas integra ilícito(s) de natureza contra-ordenacional. A não ser assim, estar-se-ia a converter, na fase decisória (quando já foi ultrapassado o momento próprio para observar o disposto no art. 50º-A, quando aplicável), um processo de natureza criminal ou mista num processo atípico, de natureza criminal, mas regendo-se por (alguns dos) preceitos do RGCO e a eliminar, injustificadamente, um grau de jurisdição, acometendo ao tribunal a tarefa de decidir questões para as quais, em princípio, não seria competente e fora dos casos excepcionais em que a competência lhe é conferida por existir manifesta conveniência no julgamento conjunto. No fundo, a desvirtuar um regime excepcional e a estender a sua aplicação a casos para os quais não foi concebido. Propendemos, assim, para o entendimento seguido pelo tribunal recorrido, de acordo com o qual, quando se conclua que os factos provados integram apenas uma contra-ordenação, a competência para a apreciar e proferir decisão deve ser devolvida à autoridade administrativa que, no caso, seria a originalmente competente para o efeito. Refira-se, por último, que também não colhe a argumentação do recorrente no sentido de que a autoridade administrativa pode ter entendimento diferente do tribunal e, não procedendo ao desconto do EMA, considerar que os factos integram um ilícito criminal e, com base nisso, recusar o seu conhecimento. Se, de acordo com o disposto no nº 4 do art. 38º, a autoridade administrativa fica vinculada ao entendimento do MºPº no sentido de um facto ser processado ou não como crime, por maioria de razão também terá de ficar vinculada ao entendimento que o tribunal venha a seguir a esse respeito, para mais quando este já haja decidido, em definitivo, que o facto não tem relevância criminal. Razões pelas quais também improcede este fundamento do recurso. 4. Decisão Nos termos e com os fundamentos expostos, julgam improcedente o recurso, mantendo integralmente a sentença recorrida. Sem custas. Porto, 3 de Fevereiro de 2010 Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas _________________________ [1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada). [2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95. [3] Como se salienta no Ac. STJ 10/9/09, proc. nº 458/08.0GAVGS.C1-A.S1, o cerne destas soluções opostas não está na interpretação do quadro legal aplicável, mas na apreciação de um elemento de prova, em concreto, a informação fornecida pelo aparelho medidor do teor de álcool no sangue. O que facilmente se evidencia pela descrição que aí é feita das posições assumidas em dois arestos em sentidos divergentes: “Confrontado com a necessidade de apuramento, do facto “teor de álcool no sangue”, um tribunal deu por provado certo teor, socorrendo-se do elemento de prova, que foi a “notação técnica”, sem mais. Outro tribunal apurou o dito “teor de álcool no sangue”, a partir, na mesma, da informação do aparelho em questão. Mas porque sabia da informação fornecida pela Portaria, a respeito das margens de erro, não se sentiu autorizado a avançar logo para dar por provado o facto “teor de álcool”, na exacta medida que constava da “notação técnica”. Apreciou esta prova de modo diferente, porque lhe deu um valor apenas relativo e não absoluto. Relativo, no sentido de que a informação foi de considerar o ponto de que se partiu, mas, avaliada essa informação criticamente, só foi possível, de seguro, dizer que o teor de álcool tinha uma medida nunca inferior à leitura do aparelho, depois de deduzida a margem de erro máximo admissível. A “notação técnica” fornecida pelo aparelho marca Drager modelo 7110MKIII P n° série ARRA-0035 aprovado pela DGV em 06/08/1998, e usado em ambos os casos, é simplesmente valorada de modo diverso, sem que isso decorra, necessariamente, da diferente interpretação de qualquer norma, de qualquer das Portarias.” [4] Nos acórdãos desta Relação, de que a 1ª signatária também foi relatora, proferidos em 26/11/08 no proc. nº 0812537, em 17/6/09 no 1291/08.4PAPVZ.P1, em 1/7/09 no proc. nº 272/08.2GAVPA.P1, e em 7/10/09 no proc. nº 43/09.9TAPVZ.P1. [5] cfr. Simas Santos e Leal Henriques, CPP, 2ª ed. V. II, pág. 740. [6] Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2ª ed., págs. 1036 ss. [7] “O conceito de erro notório na apreciação das provas tem que ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório” (Ac. STJ de 6/4/1994, CJ, ano II, t.2, p. 186. [8] Menos exigente ainda é a corrente representada pelo Ac. STJ 30/1/02 Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, ("http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Anuais/Criminais/Criminais2002.pdf"), segundo o qual “para que se verifique o requisito da notoriedade do vício não é indispensável que o erro não passe despercebido ao comum dos observadores, isto é, que seja por eles facilmente apreensível. Atentos os fins judiciários visados com a previsão do vício e a regulação dos seus efeitos, a sua evidência deve ser aferida por referência à possibilidade de não passar despercebido, de ser facilmente detectável, por julgador com a preparação e a experiência pressupostas pelo exercício da função. Aquela visão de maior exigência para a verificação do vício - resultante de se referenciar a sua evidência à possibilidade da sua fácil percepção pela pessoa comum - diminuiria injustificadamente o efeito pretendido com a previsão do seu conhecimento, mesmo oficiosamente; efeito esse radicado no objectivo de evitar tanto quanto possível decisões de facto não consentâneas com a prova produzida, de forma a limitar o risco de decisões injustas.” [9] cfr. Simas Santos, Recursos em Processo Penal., 5ª ed. págs. 63-64. [10] E que igualmente se imporia mesmo que ele tivesse adoptado outra postura e a produção de prova prosseguisse, na medida em que sempre seria impossível provar que o valor acusado pelo alcoolímetro coincidiu com o valor padrão.