I - Na reapreciação da prova, a Relação tem a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, deve valorá-la de acordo com o princípio da livre convicção e se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão da 1ª instância, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que tem enquanto tribunal de instância que garante um efectivo segundo grau de jurisdição. II - A nulidade do contrato de mútuo, por vício de forma, é de conhecimento oficioso e a respectiva declaração impõe a restituição de tudo o que foi prestado no pressuposto da validade do contrato. III - Além da restituição do capital mutuado, o mutuante tem direito ao recebimento de juros de mora a partir da citação (excepto se antes tiver havido interpelação com vista àquela restituição) e não desde a data acordada para a restituição da quantia emprestada, já que a nulidade do contrato importa a nulidade das respectivas cláusulas. IV - Apesar da nulidade do contrato, o cônjuge do mutuário é também responsável pela restituição do capital e pelo pagamento de juros, nomeadamente quando consentiu na celebração do contrato de mútuo e a quantia emprestada foi utilizada pelo casal, aqui réus.
Pc. 140/08.8TBMDR.P1 – 2ª Secção (apelação) __________________________ Relator: Pinto dos Santos Adjuntos: Dr. J. Ramos Lopes Dr. Cândido Lemos * * * Acção comum sob a forma sumária, em que são partes: Autor: B………., residente na Rua ………., .., em Miranda do Douro Réus: C………. e mulher D………., residente na Rua ………., …, também em Miranda do Douro. * * * Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto: I. Relatório: O autor alegou que emprestou aos réus, em 01/06/2004, através de cheque, a quantia de € 20.000,00, a qual deveria ser-lhe restituída por estes, conforme acordado, a 30/12/2006, mas que chegada tal data eles não o fizeram, nem posteriormente, constituindo-se, assim, em mora, o que lhe confere, a ele demandante, o direito de pedir a restituição daquela importância e o pagamento de juros de mora a partir da data referida em segundo lugar. E pediu a condenação dos réus a pagarem-lhe: ● a aludida quantia de € 20.000,00; ● a importância de € 1.420,27, de juros de mora vencidos entre 30/12/2006 e a data da apresentação em juízo da petição inicial; ● os juros legais que se vencerem a partir da p. i. e até total e efectivo pagamento. Os réus contestaram a acção, por excepção e por impugnação. No primeiro caso, sustentaram que se fosse verdadeira a existência do alegado contrato de mútuo, ele seria nulo por falta de forma. No segundo, negaram o contrato e a dívida mencionados na p. i. e apresentaram versão diversa para a existência do cheque junto pelo autor com aquele articulado, dizendo que resultou do acerto de contas que então fizeram relativamente à aquisição de uma casa de habitação que o demandante lhes vendeu. Pugnaram pela improcedência da acção, “por nulidade do contrato alegado pelo autor e porque nenhuma dívida existe para com ele por parte dos réus”. Foi proferido despacho saneador e foram seleccionados os factos assentes e os controvertidos, estes formando a base instrutória, sem reclamação das partes. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, no termo da qual, após a produção da prova, foi proferido despacho de resposta aos quesitos da base instrutória. Foi depois proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido. Inconformado com tal decisão, interpôs o autor o presente recurso de apelação cuja motivação concluiu do seguinte modo: “● O contrato de mútuo que aparece nos autos é nulo por falta de forma, o que não pode servir de pretexto para absolver os ora recorridos de pagarem ao ora recorrente a quantia de € 20.000,00 que receberam dele, para ser paga a 30/12/2006. ● A força probatória do doc. de fls. 86 e 86v dos autos, reconhecida nos termos do art. 374º do CC, conjugada com os depoimentos das testemunhas - E………., (que) depôs a todos os quesitos e cujo depoimento se encontra gravado em D:200905271405-6363-64794.html, - F……….s, que depôs aos quesitos 1, 2 e 3 de fls. 28 dos autos (e está gravado em) D:20090527121405-5363-64793.html (cujos depoimentos vêm transcritos no corpo da motivação, nas partes que o recorrente considera relevantes para a sua impugnação), terá de levar, com o devido respeito pela opinião contrária, à anulação das respostas negativas aos quesitos 1, 2 e 3 de fls. 48 e 103 dos autos, com revogação da (…) sentença de fls. 110-118 dos autos; ● Para que o (…) Tribunal «ad quem» possa dar aos mesmos quesitos 1, 2 e 3 resposta de provados e profira (…) acórdão que julgue a acção provada e procedente e condene os ora recorridos no pedido. ● A (…) sentença ora em crise é ilegal, por ter violado os arts. 653º do CPC, 362º e 374º e segs. do CC”. Os réus-recorridos contra-alegaram em defesa da confirmação do decidido na sentença recorrida. Foram colhidos os vistos legais. * * * II. Questões a decidir: Face às conclusões das alegações do apelante [são estas que delimitam o «thema decidendum» a cargo desta 2ª instância, de acordo com o estabelecido nos arts. 684º nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3 do CPC, na redacção aqui aplicável, resultante das alterações introduzidas pelo DL 303/2007, de 24/08, atenta a data da instauração da acção], o objecto deste recurso visa a apreciação das seguintes questões: ● Se há que alterar os pontos da matéria de facto por ele impugnados; ● E se há que revogar a decisão recorrida na solução jurídica que decretou e condenar os réus a pagarem ao autor o peticionado, embora com base em nulidade do contrato de mútuo. * * * III. Factos provados: Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos: 1) No dia 1 de Junho de 2004, o autor emitiu e entregou ao réu o cheque nº …….799, preenchido pelo valor de € 20.000,00 (vinte mil euros), sacado sobre o G………., SA, para ser descontado da conta à ordem nº …………, da titularidade do autor [al. A da Matéria de Facto Assente]. 2) O réu entregou o cheque nº ……...799 no balcão de Miranda do Douro do H………., SA, para ser depositado na sua conta de depósitos à ordem [al. B da MFA]. 3) O H………., SA apresentou o cheque nº …….799 à compensação a 2 de Junho de 2004 e, assim, foi transferida a quantia de € 20.000,00 da conta do autor, aludida em 1), para a conta dos réus [al. C da MFA]. 4) Por documento particular denominado «contrato promessa de compra e venda», datado de 10 de Abril de 2002, assinado pelo autor e (pel)o réu marido, aquele declarou ser «dono e legítimo proprietário de um lote de terreno na urbanização de ………., com a área de 464m2, inscrito no referido loteamento com o nº 118» e que «no referido lote irá construir um edifício para habitação bifamiliar (…), construção essa que será dividida em duas fracções, uma designada fracção A…». Mais declarou o autor prometer vender e o réu declarou prometer comprar a fracção autónoma designada pela letra A do prédio urbano supra referido [al. D da MFA]. 5) No documento aludido em 4) consta ainda, na cláusula quinta, que «o valor total desta prometida venda é de € 84.800,00 (oitenta e quatro mil e oitocentos euros). O pagamento desta venda será efectuado do seguinte modo: a) na celebração do presente contrato, a quantia de € 7.000,00 (sete mil euros); b) a restante será pago em entregas periódicas, de modo a totalizar a quantia total, comprometendo-me a realizar a escritura logo após ter recebido o valor total do negócio em questão» [al. E da MFA]. 6) Em 31 de Maio de 2004, no Cartório Notarial de Vimioso, foi outorgada escritura pública de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, na qual intervieram, entre outros, na qualidade de primeiros outorgantes, o ora autor e a sua esposa, I………., na qualidade de segundos outorgantes os ora réus e, na qualidade de terceiros outorgantes, dois legais representantes da J………., CRL [al. F da MFA]. 7) Na escritura aludida em 6), os primeiros outorgantes declararam que «pela presente escritura e pelo preço já recebido de oitenta mil euros, vendem ao segundo outorgante marido, livre de qualquer ónus ou encargo, a fracção autónoma designada pela letra A, rés-do-chão, destinada a habitação, com garagem na parte lateral direita da cave e logradouro na parte lateral direita, do prédio urbano sito no ………. ou ………., freguesia e concelho de Miranda do Douro, inscrito na respectiva matriz sob o art. P2342, descrito na Conservatória do Registo Predial de Miranda do Douro sob o nº 1093» [al. G da MFA]. 8) Na escritura aludida em 6), o segundo outorgante, ora réu, declarou que aceitava a venda aludida em 7), nos termos exarados [al. H da MFA]. 9) Na escritura aludida em 6), os terceiros outorgantes declararam que «pela presente escritura, para aquisição do referido prédio, a “J……….”, representada dos terceiros outorgantes, concede aos segundos outorgantes um empréstimo no montante de oitenta mil euros…», que os segundos outorgantes declaram ter recebido nesta data e de que se confessam devedores [al. I da MFA]. 10) Em 31 de Maio de 2004, no Cartório Notarial de Vimioso, foi outorgada escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, na qual intervieram, na qualidade de primeiros outorgantes, os ora réus e, na qualidade de segundos outorgantes, dois legais representantes da J………., CRL [al. J da MFA]. 11) Na escritura aludida em 10), os segundos outorgantes declararam que «pela presente escritura, para obras de beneficiação do prédio adiante referido – o identificado em 7 -, a “J……….”, representada dos segundos outorgantes, concede aos primeiros outorgantes um empréstimo no montante de quarenta e cinco mil euros…», de que os primeiros outorgantes se confessam devedores [al. K da MFA]. 12) No âmbito do negócio aludido em 4), na qualidade de promitente-comprador, o réu decidiu escolher ele próprio alguns materiais de acabamentos que seriam mais caros do que aqueles que inicialmente estavam previstos [resposta ao quesito 4º da Base Instrutória]. 13) Tendo sido acordado entre autor e réu que a diferença de preço resultante das melhorias referidas em 12) acresceria ao preço inicialmente contratado de € 84.800,00 [resp. ao ques. 5º da BI]. 14) Na data das escrituras aludidas em 6) e 10), o autor recebeu do banco mutuante (J………., CRL) a totalidade do crédito concedido aos mutuários, ora réus, no valor de € 125.000,00, mediante a entrega de dois cheques, um no valor de € 80.000,00 e outro no valor de € 45.000,00 [resp. ao ques. 7º da BI]. * * * IV. Apreciação das questões indicadas em II: 1. Se há que alterar os pontos da matéria de facto (do despacho de resposta aos quesitos da base instrutória) impugnados pelo apelante. O recorrente começa, nas conclusões das suas alegações, por impugnar as respostas negativas – de «não provados» - que foram dadas aos quesitos 1º, 2º e 3º da base instrutória, pretendendo agora que as mesmas sejam alteradas e tais quesitos considerados provados. Sustenta que o que alegou na p. i. e constava destes quesitos obteve confirmação no que consta do verso do cheque junto a fls. 86 e em face dos depoimentos que foram prestados pelas testemunhas E………. e F………., de que transcreveu, no corpo das alegações, os passos que reputa mais importantes para o efeito que pretende. Mostram-se suficientemente observados (nas conclusões e na conjugação destas com o corpo da motivação para que aquelas remetem) os ónus impostos pelo art. 685º-B nºs 1 als. a) e b) e 2 do CPC (na dita redacção aqui aplicável), pois o recorrente indicou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e quer ver reapreciados, referiu os concretos meios de prova em que assenta a sua discordância com o que foi decidido, fundamentou a sua dissensão com transcrições parcelares dos depoimentos das testemunhas que chama à colação (pelo menos assim o refere) e mencionou, por referência ao assinalado na acta da audiência de discussão e julgamento, os locais do registo (cd) onde estão gravados os depoimentos em que se estriba. Antes, porém, de apreciarmos cada um dos concretos pontos da matéria de facto que vem posta em causa, importa recordar que o nº 1 do art. 712º do CPC estabelece que “a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”. E o nº 2 acrescenta, ainda, que “no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”. Quanto aos concretos poderes de reapreciação da prova na 2ª instância, particularmente quando está em questão a reapreciação da prova gravada (em sistema vídeo ou áudio), dominou, até há pouco tempo, uma tese restritiva que sustentava que os Tribunais da Relação não podiam procurar uma nova convicção, antes deviam limitar-se a apreciar se a do julgador «a quo», vertida nos factos provados e não provados e na fundamentação desse seu juízo valorativo, tinha suporte razoável no que a gravação permitiria percepcionar e em conjugação com os demais elementos probatórios que os autos fornecessem; ou seja, o Tribunal da Relação teria que cingir a sua actividade (de reapreciação da matéria de facto) ao apuramento da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, restringindo os poderes de alteração da matéria fáctica aos casos de flagrante desconformidade com os elementos de prova disponíveis [neste sentido, cfr., i. a., os Acs. desta Relação do Porto de 10/07/2006, proc. 0653629 e de 29/05/2006, proc. 0650899, publicados in www.dgsi.pt/jtrp; no primeiro decidiu-se que “a apreciação da prova na Relação envolve riscos de valoração de grau mais elevado que os que se correm em 1ª instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade, (…) já que a transcrição dos depoimentos e até a sua audição, quando gravados, não permite colher, por intuição, tudo aquilo que o julgador alcança quando tem a testemunha ou o depoente diante de si”, pois neste caso “pode apreciar as suas reacções, apercebe-se da sua convicção e da espontaneidade ou não do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe; em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga, que afinal é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos”; no segundo sentenciou-se que “existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencie e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por qualquer outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores”; em sentido idêntico vejam-se, ainda, os Acs. desta Relação de 04/04/2005, proc. 0446934, in www.dgsi.pt/jtrp e do STJ de 20/09/2005, de 27/09/2005 e de 29/11/2005, todos in www.dgsi.pt/jstj]. Mais recentemente formou-se uma tese mais ampla que, embora reconheça que “a gravação dos depoimentos áudio ou vídeo não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal «a quo»”, designadamente, o modo como as declarações são prestadas, “as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória” e que existem “aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia”, entende, ainda assim, que na reapreciação da prova as Relações têm “a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição”. E quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova ali produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção (a que também está sujeito), “conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição” [assim, Abrantes Geraldes, in “Reforma dos Recursos em Processo Civil”, Revista Julgar, nº 4, Janeiro-Abril/2008, pgs. 69 a 76; idem, mesmo Autor in “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2008, pgs. 279 a 286, Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 2008, pg. 228, e Acs. do STJ de 01/07/2008, proc. 08A191, de 25/11/2008, proc. 08A3334, de 12/03/2009, proc. 08B3684 e de 28/05/2009, proc. 4303/05.0TBTVD.S1, todos in www.dgsi.pt/jstj]. Cremos, com o devido respeito pelos defensores da primeira, que é esta segunda orientação que deve ser seguida, pelos mais amplos poderes de reapreciação da prova que confere à 2ª instância, sem descurar, contudo, as limitações atrás referenciadas face ao mais favorável posicionamento do julgador da 1ª instância perante a prova produzida oralmente em julgamento. Para aferirmos da eventual pertinência da impugnação do apelante, procedemos não só à audição dos depoimentos testemunhais que indicou na sua motivação, como também à dos depoimentos das demais testemunhas ouvidas em julgamento (das três testemunhas arroladas pelos réus), conjugámo-los entre si e com os documentos juntos a fls. 5 (cópia do cheque junto com a p. i), 24-25 (escrito intitulado de contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes a 10/04/2002), 27-32 (escritura pública de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, datado de 31/05/2004), 35-39 (escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, da mesma data), 41 (talão da J………. comprovativo da concretização dos mútuos titulados nas duas escrituras anteriormente referidas), 58 (declaração da mesma J………. a informar a favor de quem foram emitidos os cheques relativos às quantias mutuadas através das duas citadas escrituras pública), 59, 60 (cópias dos cheques acabados de referir), 86 (cheque datado de 30/12/2006, junto no início da audiência de julgamento, em cujo verso existe uma declaração de confissão de dívida assinada pelos réus) e 87-96 (certidão do processo de inquérito que correu termos relativamente ao cheque junto a fls. 86 e que contém declarações dos aqui autor e réu, reduzidas a escrito e que ali foram prestadas por eles) e, por fim, tivemos em conta as regras da experiência e a normalidade da vida que devem balizar sempre o raciocínio do julgador na apreciação dos meios de prova e fixação dos factos provados e não provados. Relembremos, antes de mais, as versões trazidas ao processo por cada uma das partes. O autor, na petição inicial, alegou que em 01/06/2004 emprestou ao réu marido a quantia de € 20.000,00, através do cheque cuja cópia juntou a fls. 5, para que o mesmo e sua mulher, também aqui ré, pagassem dívidas relacionadas com rendas de casa atrasadas, com comida, roupas e artigos escolares, e que acordaram que os demandados lhe restituiriam aquela importância a 30/12/2006, o que não fizeram. Os réus, por sua vez, na contestação, negaram aquele alegado empréstimo e referiram que o cheque mencionado na p. i. foi emitido para acerto de contas entre o autor e o réu marido, que apresentava um saldo favorável a este de € 20.000,00, ficando a partir de então saldadas as dívidas entre eles. Os quesitos 1º, 2º e 3º da BI assentaram no que o autor alegou no seu articulado e tinham as seguintes redacções: ● Quesito 1º: “O autor e o réu acordaram que a quantia de € 20.000, titulada pelo cheque nº …….799, tinha de ser devolvida ao autor no dia 30/12/2006?” ● Quesito 2º: “Os réus utilizaram a verba de € 20.000 para pagar dívidas relacionadas com rendas de casa atrasadas?” ● Quesito 3º: “Os réus utilizaram ainda a verba de € 20.000 para pagar comida, roupa para si e para os seus 4 filhos, bem como artigos escolares para estes?”. Todos eles, como se disse já, obtiveram a resposta de «não provados». Vejamos agora o que disseram as testemunhas inquiridas em julgamento – quer as arroladas pelo autor, quer as que o foram pelos réus. A testemunha E………., empregada do autor (e por este arrolada), afirmou: que trabalhava para este há 5 anos (começou por dizer que ia fazer 5 anos em Setembro do corrente ano, mas depois, num segundo momento do seu depoimento, após a interrupção para almoço, afirmou que em função do contrato que consultou entretanto, ia fazer 6 anos nos mesmos mês e ano que começou a trabalhar para aquele); que um dia (que não especificou, mas quando trabalhava para o autor há cerca de um ano), na loja do demandante, ouviu uma conversa entre o seu patrão e o réu marido, na qual este último pediu dinheiro emprestado àquele porque andava «em apuros e precisava de dinheiro» e viu que na sequência dessa conversa o autor passou um cheque e entregou-o àquele. Não ouviu nem viu o montante falado pelo réu, nem o valor que o autor apôs no cheque. Ouviu só partes da conversa entre ambos, uma vez que andava no seu trabalho e não estava sempre no mesmo local da dita loja. Revelou desconhecer a existência de negócios entre eles. Mais afirmou, a instâncias do ilustre mandatário dos réus, que noutras ocasiões (duas ou três vezes, disse) o réu foi à referida loja e falou com o autor, mas que não sabe de que assuntos falaram então, pois só ouviu a conversa anteriormente referida. Perguntada porque razão fixou excertos da conversa atrás mencionada e não se lembrava de nada das outras conversas que houve entre as mesmas partes e, bem assim, do porquê de se lembrar dessa mesma conversa com mais precisão do que da data em que começou a trabalhar para o autor, declarou que tal se deveu ao facto de aquando da dita conversa o réu também devia dinheiro ao seu marido (da depoente) e alertou-a o facto de ele estar a pedir dinheiro ao demandante. A testemunha C………., bancário e amigo do autor (também por este arrolada), declarou que sabe de um empréstimo concedido pelo autor ao réu porque aquele, em data que não concretizou (situou-a há 3-4 anos), lhe mostrou um cheque de € 20.000,00 que depositou na instituição bancária onde esta testemunha trabalhava e lhe disse que era de um empréstimo, tendo também visto no verso do mesmo uma declaração escrita de confirmação de um empréstimo. Confrontado com a cópia do cheque junta a fls. 5 e o cheque junto a fls. 86, disse que o cheque a que se referiu foi este último. Perguntado se alguma vez ouviu alguma coisa dos réus acerca daquele empréstimo, disse que não e que só ouviu falar dele (empréstimo) ao autor e viu a tal declaração no verso do cheque. A testemunha K………., amigo das duas partes e que viveu em tempos com uma irmã do réu na casa que este adquiriu ao autor (esta testemunha foi arrolada pelos réus), referiu-se à compra da casa indicada na contestação (o réu comprou-a ao autor), e declarou que os réus passaram a habitá-la cerca de um ano antes da outorga da respectiva escritura pública; que nesse período (entre a data em que os réus foram habitá-la e a da celebração da escritura de compra e venda) o autor realizou obras/alterações no imóvel, tendo indicado as melhorias que lhe introduziu (obras não contratadas inicialmente, segundo o réu lhe disse); não soube dizer em quanto importaram essas obras; referiu, ainda, outros negócios que houve entre autor e réu marido, mas nada disse acerca de valores que houvesse em dívida de um lado ou do outro, por total desconhecimento. A testemunha L………., irmão do réu C………. (arrolada pelos demandados), limitou-se a dizer que o réu comprou uma casa ao autor, que numa ocasião aquele lhe disse que estava à espera de fazer a escritura da aquisição dessa casa e que tinha algum dinheiro a receber do réu (não disse quanto nem de que negócio proviria esse dinheiro), que o réu começou a viver nessa casa antes da celebração da escritura pública de compra e venda respectiva e que aquele seu irmão também lhe disse que tinha feito alterações relativamente ao projecto inicial da casa. Não soube dizer o preço da aquisição da casa em questão e o custo das alterações nela introduzidas e nada disse acerca de empréstimos concedidos pelo autor ao réu, declarando desconhecer tais assuntos. Finalmente, a testemunha M………., amigo das duas partes e que já prestou serviços de pintor a ambos (arrolada pelos réus), limitou-se a referir que na casa adquirida pelo réu ao autor foram realizadas várias alterações (indicou algumas que ocorreram quando lá andou a pintá-la) relativamente ao que inicialmente havia sido contratado entre as partes. Mas demonstrou total desconhecimento acerca dos custos dessas alterações (a insistência do ilustre mandatário dos réus ainda disse que estas poderiam ter importado em 13-14 mil euros, mas sem grande consistência, como fez questão de frisar), bem como da existência de dívidas ou acerto de contas entre autor e réus. Destes excertos decorre que a versão dos réus (de que o cheque junto com a p. i. se destinou a acertar as contas entre as partes) não obteve qualquer apoio nos depoimentos das testemunhas ouvidas (sequer das que por eles foram arroladas) e que os depoimentos das duas testemunhas arroladas pelo autor também não apresentam, por si só, grande consistência na sustentação da versão que este relatou na petição inicial, pois quanto à primeira testemunha suscitam-se-nos algumas reservas (tal como aconteceu na 1ª instância por parte da Mma. Juíza julgadora que disso deu conta na fundamentação do despacho de resposta aos quesitos da BI) acerca das circunstâncias em que diz ter assistido a partes da conversa entre o autor e o réu marido e às razões porque «guardou» o teor dessa conversa na sua memória durante mais de quatro anos, a tal ponto de se lembrar disso e não se recordar, com igual precisão, de quando começou a trabalhar para o autor, nem do conteúdo de outras conversas entre aqueles, ao passo que o depoimento da segunda testemunha se limitou a reproduzir a versão ouvida ao autor e ao que ela própria viu no cheque junto a fls. 86, mas sem estabelecer qualquer relação deste com o que está junto, por cópia, a fls. 5. Ou seja, se só fosse de ter em conta esta prova testemunhal não teríamos dúvidas em afirmar a correcção das respostas dadas na 1ª instância aos referidos quesitos da BI, as quais teriam, assim, de ser mantidas nesta 2ª instância. Mas dos autos constam outros elementos probatórios, designadamente os documentos a que atrás fizemos referência. Será que esses (outros) meios de prova impõem solução diversa? Antes de os considerarmos, importa dizer que logo à partida não compreendemos como é que os réus sustentam que o cheque de € 20.000,00 junto a fls. 5 (cópia) se destinou ao pagamento de dívida de igual valor que o autor tinha para com o demandado marido, quando, em função das «contas» que eles apresentam na contestação, principalmente nos seus arts. 6º, 11º e 15º a 19º (únicas em que estribam o seu crédito sobre aquele), não se vê em que possa consistir esse crédito. Com efeito, os réus dizem que: ● pela compra da casa documentada no contrato-promessa junto a fls. 24-25 e na escritura junta a fls. 26 a 32, o autor tinha a receber deles o preço de € 84.800,00, ● pelas obras «a mais» (além do inicialmente contratado) realizadas na mesma casa, o autor tinha direito a um acréscimo no preço de € 12.200,00 ● e de «outros débitos que tinham sido contraídos pelo R. marido e por ambos os RR. para com o autor» (cfr. art. 17º da contestação), este último tinha direito a receber daqueles a quantia de € 35.000,00. O que dá, de acordo com a descrição dos próprios réus, um crédito do autor sobre eles de € 132.000,00. Ainda segundo o alegado nos citados artigos da contestação, o autor recebeu dos réus, para pagamento de tal crédito global, as seguintes quantias: ● € 7.000,00, a título de sinal, no acto da outorga do contrato-promessa junto a fls. 24-25 (pagamento aí mencionado) ● e € 125.000,00, no dia da celebração das escrituras juntas a fls. 26 a 40, já que os cheques (dois) com as quantias aí mutuadas foram directamente entregues pela instituição bancária mutuante (a J………., CRL) ao autor, conforme também está documentado a fls. 41, 58, 59 e 60 (recebimentos que o autor não impugnou e que estão dados como provados no nº 14 do ponto III deste acórdão). A soma destas duas importâncias totaliza € 132.000,00. Igual, portanto, à importância do crédito que o autor tinha sobre os réus. Ou seja, de acordo com as «contas» apresentadas por estes últimos no seu articulado, nenhuma quantia havia a favor de qualquer das partes que justificasse a emissão de algum cheque para acerto de contas. Daí que os réus se contradigam na contestação ao tentarem justificar a emissão do cheque junto a fls. 5 com um inexistente – face às suas próprias «contas» - crédito final deles sobre o demandante. Podemos então afirmar, sem margem para dúvidas (por se estribar, como se viu, no que os réus alegaram na contestação), que aquele cheque, emitido pelo autor e entregue aos réus (factos estes provados em 1 e 2 do ponto III deste acórdão), não se destinou ao pagamento de qualquer crédito que estes tivessem sobre aquele, nem traduziu um acerto final de contas entre ambas as partes. Mas que tal cheque foi emitido pelo autor e foi entregue ao réu marido que recebeu a quantia nele titulada, não há qualquer dúvida e são os próprios réus que aceitam/confessam isso na contestação – por isso é que tais factos estão provados sob os nºs 1 a 3 do ponto III deste acórdão e já constavam das três primeiras alíneas dos factos assentes aquando da respectiva selecção (e da elaboração da base instrutória). Resta então apurar porque razão foi ele emitido pelo autor e entregue aos réus. Na sua génese não está qualquer liberalidade/doação, já que os réus não a invocaram. Resta então a afirmação do demandante de que subjacente àquele esteve um pedido do réu marido para que lhe emprestasse a quantia de € 20.000,00. E é aqui que entra o cheque junto a fls. 86, emitido pelo réu marido (conforme confessado a fls. 99, na resposta do mandatário dos réus ao requerimento do mandatário do autor em que este solicitou a junção aos autos daquele documento), que é do mesmo montante (€ 20.000,00) e que tem como data de vencimento precisamente aquela que o autor alegou no art. 8º da p. i. (30/12/2006), sendo que daquele (mais precisamente do carimbo aposto no seu verso) resulta ainda que apesar de ter sido apresentado a pagamento não teve boa cobrança, já que foi devolvido (a 04/01/2007) por falta de provisão. Coincidências a mais com o cheque junto a fls. 5 e com a versão do autor para que não se lhe dê, como fez a 1ª instância na fundamentação da resposta aos quesitos da BI, a devida relevância. Mas a importância probatória deste cheque não se fica por aqui. No respectivo verso consta ainda uma declaração manuscrita (que os réus, a fls. 99, aceitam ser da autoria do réu marido; a letra do escrito também é igual à da assinatura deste que se lhe segue) com os dizeres “este cheque destina-se ao pagamento de um empréstimo que B………. nos fez”, que é seguida das assinaturas dos réus. E foi esta declaração que a testemunha F………. viu e leu quando o cheque lhe foi entregue pelo autor (quando este o apresentou a pagamento) num dos primeiros dias de Janeiro de 2007 (antes do dia 4 que foi a data em que foi devolvido por falta de provisão), recolhendo agora significado o depoimento desta testemunha que, embora indirecto no seu essencial (baseado no que o autor então lhe disse), merece acolhimento e «bate certo» com os elementos probatórios que temos vindo a apreciar. Temos então que, por confissão dos réus e por consideração ao depoimento da testemunha acabada de referir, em conjugação com o referido documento, se apresenta claro que o autor emprestou àqueles a quantia de € 20.000,00. Embora os réus não digam na aludida confissão escrita que tal quantia é a que lhes foi entregue através do cheque junto a fls. 5, só pode ser esta a conclusão a que temos de chegar no cômputo final da valoração de toda a prova (e não só) que fica referenciada. Aliás, esta conclusão sai ainda reforçada se considerarmos o teor das declarações que o aqui réu prestou no âmbito do inquérito nº ./07.4GBMDR, onde esteve a ser apurada a sua responsabilidade criminal pela emissão do cheque ora junto a fls. 86, e que estão certificadas a fls. 90-91, nas quais afirmou que emitiu este cheque «aquando da escritura da casa», ao passo que a fls. 98 e 99 desta acção (aquando da junção daquele aos autos, a requerimento do mandatário do autor) declarou, diferentemente, através do seu mandatário, que o mesmo «foi emitido … antes da outorga das escrituras atrás referidas» (fls. 99) e que «a data nele aposta surge porque nessa altura os réus não poderiam saber quando teriam lugar as referidas escrituras» (fls. 98), sendo que estas escrituras são as duas a que já fizemos referência, entre as quais a da aquisição da dita casa. Ante tudo o que fica exposto, não temos dúvidas em afirmar que o despacho de resposta aos quesitos da base instrutória não fez correcta e adequada valoração de todos os elementos probatórios a que devia ter atendido e que há que dar razão ao apelante, pelo menos em parte, na impugnação que apresentou contra aquele despacho. Assim, o que se deixou enunciado permite que respondamos agora aos três apontados quesitos da BI do seguinte modo: - Quesito 1º: provado. - Quesitos 2º e 3º: provado apenas que a referida quantia de € 20.000,00 foi utilizada por ambos os réus (isto face à mencionada confissão de dívida por parte destes). Concluindo este item e revogando, nesta parte, o decidido na 1ª instância, determina-se que ao ponto III sejam aditados os seguintes factos ora considerados provados: 15) O autor e o réu acordaram que a quantia de € 20.000,00, titulada pelo cheque nº …….799, tinha de ser devolvida ao autor no dia 30/12/2006 [resp. ao ques. 1º da BI]. 16) A referida quantia de € 20.000,00 foi utilizada por ambos os réus [resp. aos ques. 2º e 3º da BI].* *2. Se há que revogar a sentença recorrida quanto à solução jurídica que declarou. Por não ter dado como provados os factos dos quesitos 1º a 3º da BI, a sentença recorrida julgou improcedente a acção e absolveu os réus do pedido. Como agora tais quesitos obtiveram as respostas que se deixaram referenciadas na parte final do item anterior, a solução jurídica terá de ser outra, bem diferente daquela. Do que ora se mostra provado – factos dos nºs 1 a 3, 15 e 16 – não há dúvida que entre o autor e o réu marido foi celebrado, em 01/06/2004, um contrato de mútuo, regulado nos arts. 1142º a 1151º do CCiv., já que aquele emprestou a este último a quantia de € 20.000,00 e este ficou obrigado a restituí-la a 30/12/2006. Segundo o art. 1143º do mesmo Código, na redacção então vigente dada pelo DL 343/98, de 06/11, aquele contrato estava sujeito a forma escrita – documento assinado pelo mutuário (só o mútuo de valor superior a € 20.000,00 exigia a celebração de escritura pública). Com referência ao mútuo em questão existem dois documentos: os cheques juntos a fls. 5 (cópia) e 86. O primeiro não reveste, claramente, os requisitos exigidos por aquele artigo, já que se trata de documento preenchido e assinado pelo autor, mutuante no contrato, e não pelo réu mutuário. O segundo também não observa os requisitos legais (apesar de estar assinado pelo réu), pois do seu rosto não consta qualquer referência ao empréstimo/mútuo subjacente e a declaração escrita no seu verso também só alude a «um empréstimo» concedido pelo autor, mas sem concretizar expressamente que esse empréstimo foi o celebrado a 01/06/2004 - chegou-se a esta conclusão no item anterior mas por valoração conjugada com outros meios de prova [no sentido de que “a emissão de cheque pelo mutuário, entregue ao mutuante, para garantia da restituição da quantia mutuada, não sana o vício da nulidade formal do mútuo”, decidiu esta Relação do Porto no acórdão de 05/02/2001, proc. 0021158, disponível in www.dgsi.pt/jtrp; idem, Ac. do STJ de 09/03/2004, proc. 03B4109, in www.dgsi.pt/jstj]. Inobservada a forma escrita legalmente exigida, não pode este Tribunal condenar os réus no pressuposto da validade do contrato de mútuo, pois este é nulo de acordo com o estabelecido no art. 220º do CCiv., segundo o qual “a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula” (e no caso inexiste outra disposição que preveja sanção diversa). Mas esta nulidade é de conhecimento oficioso (e de qualquer modo os próprios réus suscitaram-na nos arts. 26º a 28º da contestação), pelo que não pode deixar de ser aqui declarada (é isso que o apelante «pede» na 1ª conclusão das suas alegações, aceitando a invocação que dela fizeram os réus na contestação). Decidiu o STJ, no Assento nº 4/95, de 28/03 (que ora vale como Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, face à revogação do art. 2º do CCiv. pelo art. 4º nº 2 do DL 329-A/95, de 12/12), publicado na 1ª Série-A do Diário da República de 17/05/1995, que “quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no nº 1 do art. 289º do Código Civil”. Isto porque este preceito legal estatui que a declaração de nulidade tem efeito retroactivo e que seja restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. Por isso, apesar do autor, na petição inicial, ter formulado o seu pedido no pressuposto da validade do apontado contrato de mútuo, nada impede que ora se condene o réu mutuário a restituir a quantia que lhe foi emprestada com base na nulidade (formal) desse mesmo contrato. Quanto à restituição dos € 20.000,00 emprestados não há, pois, dúvida alguma de que o réu marido tem que os devolver ao autor (adiante veremos se tal obrigação impende também sobre a ré mulher). E quanto aos juros, o autor tem direito a recebê-los? E, na afirmativa, desde quanto? É evidente que face à nulidade do contrato de mútuo o direito do autor ao recebimento de juros de mora não pode fundar-se em cláusula nele convencionada, particularmente na que consistiu no acordo de que a importância mutuada seria restituída a 30/12/2006 e da qual derivaria o direito a juros a partir dessa data, em conformidade com o previsto na al. a) do nº 2 do art. 805º do CCiv.. Isto porque a nulidade do contrato se estende a todas as suas cláusulas, incluindo as que «hajam convencionado juros de mora» [neste sentido, i. a., Ac. do STJ de 18/09/2003, proc. 03B2325, in www.dgsi.pt/jstj]. Mas desta constatação não resulta que o autor não tenha direito ao recebimento daqueles. Pelo contrário, o direito ao recebimento de juros de mora, não obstante a nulidade do contrato, advém-lhe do que decorre da conjugação dos arts. 289º nº 3 e 1269º a 1271º, todos do C.Civ., uma vez que aqueles se reconduzem ao conceito de «frutos civis» a que aludem os arts. 1270º e 1271º [assim, nomeadamente, Acs. do STJ de 18/09/2003, supra citado, de 20/11/2003, proc. 03B3002 e de 05/06/2001, proc, 01A809, ambos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e desta Relação do Porto de 03/11/2005, proc. 0533004 e de 21/12/2000, proc. 0031426, in www.dgsi.pt/jtrp]. Mas tais juros não são devidos desde a data reclamada pelo autor-apelante (30/12/2006), que pressupunha a validade do contrato, mas tão-só e apenas desde a data da citação levada a cabo nesta acção, pois só a partir daí passou a haver efectiva lesão do seu direito (isto porque não está provado que antes o autor tenha interpelado os demandados para procederem ao pagamento da quantia emprestada). Tem, assim, o autor direito ao recebimento de juros de mora por parte do réu marido desde a data em que este foi citado na acção. Resta a questão de saber se a ré mulher também deve ser condenada na restituição da quantia mutuada e respectivos juros. Afere-se do nº 15 dos factos provados que o contrato de mútuo em apreço foi celebrado apenas entre o autor e o réu marido. E dos nºs 3 e 16 dos factos provados resulta que a importância emprestada foi transferida para uma conta de ambos os demandados e por eles utilizada, o que significa que a ré mulher deu o seu consentimento (sendo indiferente que este tenha sido prévio ou posterior à celebração do contrato) à constituição da dívida decorrente da outorga daquele contrato (consentimento este mais do que evidente face à confissão constante da declaração exarado no verso do cheque junto a fls. 86, por ela também assinado). Apesar da nulidade do mesmo, não deixa de haver a dívida de restituição do que foi entregue em consequência da celebração do contrato. E a ré mulher não pode deixar de ser também responsabilizada nos termos da al. a) do nº 1 do art. 1691º do CCiv. que estabelece que “as dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro” são da responsabilidade de ambos [cfr., com interesse, embora reportados a casos de «proveito comum do casal», os Acs. do STJ de 21/06/1968, proc. 062303, in www.dgsi.pt/jstj e desta Relação do Porto de 17/01/2000, proc. 9951355, in www.dgsi.pt/jtrp]. Impõe-se, por conseguinte, também a condenação da ré mulher nos mesmos termos em que o seu cônjuge tem que ser condenado. Em conclusão, o recurso do autor-apelante merece acolhimento nesta instância, excepto na parte em que vêm reclamados juros de mora entre 30/12/2006 e a data da citação.* *Síntese conclusiva: ● Na reapreciação da prova, a Relação tem a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, deve valorá-la de acordo com o princípio da livre convicção e se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão da 1ª instância, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que tem enquanto tribunal de instância que garante um efectivo segundo grau de jurisdição. ● A nulidade do contrato de mútuo, por vício de forma, é de conhecimento oficioso e a respectiva declaração impõe a restituição de tudo o que foi prestado no pressuposto da validade do contrato. ● Além da restituição do capital mutuado, o mutuante tem direito ao recebimento de juros de mora a partir da citação (excepto se antes tiver havido interpelação com vista àquela restituição) e não desde a data acordada para a restituição da quantia emprestada, já que a nulidade do contrato importa a nulidade das respectivas cláusulas. ● Apesar da nulidade do contrato, o cônjuge do mutuário é também responsável pela restituição do capital e pelo pagamento de juros, nomeadamente quando consentiu na celebração do contrato de mútuo e a quantia emprestada foi utilizada pelo casal, aqui réus. * * * V. Decisão: Ante o exposto, os Juízes desta secção cível da Relação do Porto acordam em: I) Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogar as decisões da 1ª instância (quanto à matéria de facto, na parte impugnada, e relativamente à solução jurídica declarada na sentença), condenando os réus a restituírem ao autor a aludida quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da citação e vincendos até efectivo e integral pagamento, mas absolvendo-os do mais que foi peticionado pelo demandante. II) Condenar apelantes e apelado nas custas, na proporção do decaimento. * * * Porto, 2009/11/17 Manuel Pinto dos Santos João Manuel Araújo Ramos Lopes Cândido Pelágio Castro de Lemos
Pc. 140/08.8TBMDR.P1 – 2ª Secção (apelação) __________________________ Relator: Pinto dos Santos Adjuntos: Dr. J. Ramos Lopes Dr. Cândido Lemos * * * Acção comum sob a forma sumária, em que são partes: Autor: B………., residente na Rua ………., .., em Miranda do Douro Réus: C………. e mulher D………., residente na Rua ………., …, também em Miranda do Douro. * * * Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto: I. Relatório: O autor alegou que emprestou aos réus, em 01/06/2004, através de cheque, a quantia de € 20.000,00, a qual deveria ser-lhe restituída por estes, conforme acordado, a 30/12/2006, mas que chegada tal data eles não o fizeram, nem posteriormente, constituindo-se, assim, em mora, o que lhe confere, a ele demandante, o direito de pedir a restituição daquela importância e o pagamento de juros de mora a partir da data referida em segundo lugar. E pediu a condenação dos réus a pagarem-lhe: ● a aludida quantia de € 20.000,00; ● a importância de € 1.420,27, de juros de mora vencidos entre 30/12/2006 e a data da apresentação em juízo da petição inicial; ● os juros legais que se vencerem a partir da p. i. e até total e efectivo pagamento. Os réus contestaram a acção, por excepção e por impugnação. No primeiro caso, sustentaram que se fosse verdadeira a existência do alegado contrato de mútuo, ele seria nulo por falta de forma. No segundo, negaram o contrato e a dívida mencionados na p. i. e apresentaram versão diversa para a existência do cheque junto pelo autor com aquele articulado, dizendo que resultou do acerto de contas que então fizeram relativamente à aquisição de uma casa de habitação que o demandante lhes vendeu. Pugnaram pela improcedência da acção, “por nulidade do contrato alegado pelo autor e porque nenhuma dívida existe para com ele por parte dos réus”. Foi proferido despacho saneador e foram seleccionados os factos assentes e os controvertidos, estes formando a base instrutória, sem reclamação das partes. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, no termo da qual, após a produção da prova, foi proferido despacho de resposta aos quesitos da base instrutória. Foi depois proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido. Inconformado com tal decisão, interpôs o autor o presente recurso de apelação cuja motivação concluiu do seguinte modo: “● O contrato de mútuo que aparece nos autos é nulo por falta de forma, o que não pode servir de pretexto para absolver os ora recorridos de pagarem ao ora recorrente a quantia de € 20.000,00 que receberam dele, para ser paga a 30/12/2006. ● A força probatória do doc. de fls. 86 e 86v dos autos, reconhecida nos termos do art. 374º do CC, conjugada com os depoimentos das testemunhas - E………., (que) depôs a todos os quesitos e cujo depoimento se encontra gravado em D:200905271405-6363-64794.html, - F……….s, que depôs aos quesitos 1, 2 e 3 de fls. 28 dos autos (e está gravado em) D:20090527121405-5363-64793.html (cujos depoimentos vêm transcritos no corpo da motivação, nas partes que o recorrente considera relevantes para a sua impugnação), terá de levar, com o devido respeito pela opinião contrária, à anulação das respostas negativas aos quesitos 1, 2 e 3 de fls. 48 e 103 dos autos, com revogação da (…) sentença de fls. 110-118 dos autos; ● Para que o (…) Tribunal «ad quem» possa dar aos mesmos quesitos 1, 2 e 3 resposta de provados e profira (…) acórdão que julgue a acção provada e procedente e condene os ora recorridos no pedido. ● A (…) sentença ora em crise é ilegal, por ter violado os arts. 653º do CPC, 362º e 374º e segs. do CC”. Os réus-recorridos contra-alegaram em defesa da confirmação do decidido na sentença recorrida. Foram colhidos os vistos legais. * * * II. Questões a decidir: Face às conclusões das alegações do apelante [são estas que delimitam o «thema decidendum» a cargo desta 2ª instância, de acordo com o estabelecido nos arts. 684º nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3 do CPC, na redacção aqui aplicável, resultante das alterações introduzidas pelo DL 303/2007, de 24/08, atenta a data da instauração da acção], o objecto deste recurso visa a apreciação das seguintes questões: ● Se há que alterar os pontos da matéria de facto por ele impugnados; ● E se há que revogar a decisão recorrida na solução jurídica que decretou e condenar os réus a pagarem ao autor o peticionado, embora com base em nulidade do contrato de mútuo. * * * III. Factos provados: Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos: 1) No dia 1 de Junho de 2004, o autor emitiu e entregou ao réu o cheque nº …….799, preenchido pelo valor de € 20.000,00 (vinte mil euros), sacado sobre o G………., SA, para ser descontado da conta à ordem nº …………, da titularidade do autor [al. A da Matéria de Facto Assente]. 2) O réu entregou o cheque nº ……...799 no balcão de Miranda do Douro do H………., SA, para ser depositado na sua conta de depósitos à ordem [al. B da MFA]. 3) O H………., SA apresentou o cheque nº …….799 à compensação a 2 de Junho de 2004 e, assim, foi transferida a quantia de € 20.000,00 da conta do autor, aludida em 1), para a conta dos réus [al. C da MFA]. 4) Por documento particular denominado «contrato promessa de compra e venda», datado de 10 de Abril de 2002, assinado pelo autor e (pel)o réu marido, aquele declarou ser «dono e legítimo proprietário de um lote de terreno na urbanização de ………., com a área de 464m2, inscrito no referido loteamento com o nº 118» e que «no referido lote irá construir um edifício para habitação bifamiliar (…), construção essa que será dividida em duas fracções, uma designada fracção A…». Mais declarou o autor prometer vender e o réu declarou prometer comprar a fracção autónoma designada pela letra A do prédio urbano supra referido [al. D da MFA]. 5) No documento aludido em 4) consta ainda, na cláusula quinta, que «o valor total desta prometida venda é de € 84.800,00 (oitenta e quatro mil e oitocentos euros). O pagamento desta venda será efectuado do seguinte modo: a) na celebração do presente contrato, a quantia de € 7.000,00 (sete mil euros); b) a restante será pago em entregas periódicas, de modo a totalizar a quantia total, comprometendo-me a realizar a escritura logo após ter recebido o valor total do negócio em questão» [al. E da MFA]. 6) Em 31 de Maio de 2004, no Cartório Notarial de Vimioso, foi outorgada escritura pública de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, na qual intervieram, entre outros, na qualidade de primeiros outorgantes, o ora autor e a sua esposa, I………., na qualidade de segundos outorgantes os ora réus e, na qualidade de terceiros outorgantes, dois legais representantes da J………., CRL [al. F da MFA]. 7) Na escritura aludida em 6), os primeiros outorgantes declararam que «pela presente escritura e pelo preço já recebido de oitenta mil euros, vendem ao segundo outorgante marido, livre de qualquer ónus ou encargo, a fracção autónoma designada pela letra A, rés-do-chão, destinada a habitação, com garagem na parte lateral direita da cave e logradouro na parte lateral direita, do prédio urbano sito no ………. ou ………., freguesia e concelho de Miranda do Douro, inscrito na respectiva matriz sob o art. P2342, descrito na Conservatória do Registo Predial de Miranda do Douro sob o nº 1093» [al. G da MFA]. 8) Na escritura aludida em 6), o segundo outorgante, ora réu, declarou que aceitava a venda aludida em 7), nos termos exarados [al. H da MFA]. 9) Na escritura aludida em 6), os terceiros outorgantes declararam que «pela presente escritura, para aquisição do referido prédio, a “J……….”, representada dos terceiros outorgantes, concede aos segundos outorgantes um empréstimo no montante de oitenta mil euros…», que os segundos outorgantes declaram ter recebido nesta data e de que se confessam devedores [al. I da MFA]. 10) Em 31 de Maio de 2004, no Cartório Notarial de Vimioso, foi outorgada escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, na qual intervieram, na qualidade de primeiros outorgantes, os ora réus e, na qualidade de segundos outorgantes, dois legais representantes da J………., CRL [al. J da MFA]. 11) Na escritura aludida em 10), os segundos outorgantes declararam que «pela presente escritura, para obras de beneficiação do prédio adiante referido – o identificado em 7 -, a “J……….”, representada dos segundos outorgantes, concede aos primeiros outorgantes um empréstimo no montante de quarenta e cinco mil euros…», de que os primeiros outorgantes se confessam devedores [al. K da MFA]. 12) No âmbito do negócio aludido em 4), na qualidade de promitente-comprador, o réu decidiu escolher ele próprio alguns materiais de acabamentos que seriam mais caros do que aqueles que inicialmente estavam previstos [resposta ao quesito 4º da Base Instrutória]. 13) Tendo sido acordado entre autor e réu que a diferença de preço resultante das melhorias referidas em 12) acresceria ao preço inicialmente contratado de € 84.800,00 [resp. ao ques. 5º da BI]. 14) Na data das escrituras aludidas em 6) e 10), o autor recebeu do banco mutuante (J………., CRL) a totalidade do crédito concedido aos mutuários, ora réus, no valor de € 125.000,00, mediante a entrega de dois cheques, um no valor de € 80.000,00 e outro no valor de € 45.000,00 [resp. ao ques. 7º da BI]. * * * IV. Apreciação das questões indicadas em II: 1. Se há que alterar os pontos da matéria de facto (do despacho de resposta aos quesitos da base instrutória) impugnados pelo apelante. O recorrente começa, nas conclusões das suas alegações, por impugnar as respostas negativas – de «não provados» - que foram dadas aos quesitos 1º, 2º e 3º da base instrutória, pretendendo agora que as mesmas sejam alteradas e tais quesitos considerados provados. Sustenta que o que alegou na p. i. e constava destes quesitos obteve confirmação no que consta do verso do cheque junto a fls. 86 e em face dos depoimentos que foram prestados pelas testemunhas E………. e F………., de que transcreveu, no corpo das alegações, os passos que reputa mais importantes para o efeito que pretende. Mostram-se suficientemente observados (nas conclusões e na conjugação destas com o corpo da motivação para que aquelas remetem) os ónus impostos pelo art. 685º-B nºs 1 als. a) e b) e 2 do CPC (na dita redacção aqui aplicável), pois o recorrente indicou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e quer ver reapreciados, referiu os concretos meios de prova em que assenta a sua discordância com o que foi decidido, fundamentou a sua dissensão com transcrições parcelares dos depoimentos das testemunhas que chama à colação (pelo menos assim o refere) e mencionou, por referência ao assinalado na acta da audiência de discussão e julgamento, os locais do registo (cd) onde estão gravados os depoimentos em que se estriba. Antes, porém, de apreciarmos cada um dos concretos pontos da matéria de facto que vem posta em causa, importa recordar que o nº 1 do art. 712º do CPC estabelece que “a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”. E o nº 2 acrescenta, ainda, que “no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”. Quanto aos concretos poderes de reapreciação da prova na 2ª instância, particularmente quando está em questão a reapreciação da prova gravada (em sistema vídeo ou áudio), dominou, até há pouco tempo, uma tese restritiva que sustentava que os Tribunais da Relação não podiam procurar uma nova convicção, antes deviam limitar-se a apreciar se a do julgador «a quo», vertida nos factos provados e não provados e na fundamentação desse seu juízo valorativo, tinha suporte razoável no que a gravação permitiria percepcionar e em conjugação com os demais elementos probatórios que os autos fornecessem; ou seja, o Tribunal da Relação teria que cingir a sua actividade (de reapreciação da matéria de facto) ao apuramento da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, restringindo os poderes de alteração da matéria fáctica aos casos de flagrante desconformidade com os elementos de prova disponíveis [neste sentido, cfr., i. a., os Acs. desta Relação do Porto de 10/07/2006, proc. 0653629 e de 29/05/2006, proc. 0650899, publicados in www.dgsi.pt/jtrp; no primeiro decidiu-se que “a apreciação da prova na Relação envolve riscos de valoração de grau mais elevado que os que se correm em 1ª instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade, (…) já que a transcrição dos depoimentos e até a sua audição, quando gravados, não permite colher, por intuição, tudo aquilo que o julgador alcança quando tem a testemunha ou o depoente diante de si”, pois neste caso “pode apreciar as suas reacções, apercebe-se da sua convicção e da espontaneidade ou não do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe; em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga, que afinal é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos”; no segundo sentenciou-se que “existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencie e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por qualquer outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores”; em sentido idêntico vejam-se, ainda, os Acs. desta Relação de 04/04/2005, proc. 0446934, in www.dgsi.pt/jtrp e do STJ de 20/09/2005, de 27/09/2005 e de 29/11/2005, todos in www.dgsi.pt/jstj]. Mais recentemente formou-se uma tese mais ampla que, embora reconheça que “a gravação dos depoimentos áudio ou vídeo não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal «a quo»”, designadamente, o modo como as declarações são prestadas, “as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória” e que existem “aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia”, entende, ainda assim, que na reapreciação da prova as Relações têm “a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição”. E quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova ali produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção (a que também está sujeito), “conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição” [assim, Abrantes Geraldes, in “Reforma dos Recursos em Processo Civil”, Revista Julgar, nº 4, Janeiro-Abril/2008, pgs. 69 a 76; idem, mesmo Autor in “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2008, pgs. 279 a 286, Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 2008, pg. 228, e Acs. do STJ de 01/07/2008, proc. 08A191, de 25/11/2008, proc. 08A3334, de 12/03/2009, proc. 08B3684 e de 28/05/2009, proc. 4303/05.0TBTVD.S1, todos in www.dgsi.pt/jstj]. Cremos, com o devido respeito pelos defensores da primeira, que é esta segunda orientação que deve ser seguida, pelos mais amplos poderes de reapreciação da prova que confere à 2ª instância, sem descurar, contudo, as limitações atrás referenciadas face ao mais favorável posicionamento do julgador da 1ª instância perante a prova produzida oralmente em julgamento. Para aferirmos da eventual pertinência da impugnação do apelante, procedemos não só à audição dos depoimentos testemunhais que indicou na sua motivação, como também à dos depoimentos das demais testemunhas ouvidas em julgamento (das três testemunhas arroladas pelos réus), conjugámo-los entre si e com os documentos juntos a fls. 5 (cópia do cheque junto com a p. i), 24-25 (escrito intitulado de contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes a 10/04/2002), 27-32 (escritura pública de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, datado de 31/05/2004), 35-39 (escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, da mesma data), 41 (talão da J………. comprovativo da concretização dos mútuos titulados nas duas escrituras anteriormente referidas), 58 (declaração da mesma J………. a informar a favor de quem foram emitidos os cheques relativos às quantias mutuadas através das duas citadas escrituras pública), 59, 60 (cópias dos cheques acabados de referir), 86 (cheque datado de 30/12/2006, junto no início da audiência de julgamento, em cujo verso existe uma declaração de confissão de dívida assinada pelos réus) e 87-96 (certidão do processo de inquérito que correu termos relativamente ao cheque junto a fls. 86 e que contém declarações dos aqui autor e réu, reduzidas a escrito e que ali foram prestadas por eles) e, por fim, tivemos em conta as regras da experiência e a normalidade da vida que devem balizar sempre o raciocínio do julgador na apreciação dos meios de prova e fixação dos factos provados e não provados. Relembremos, antes de mais, as versões trazidas ao processo por cada uma das partes. O autor, na petição inicial, alegou que em 01/06/2004 emprestou ao réu marido a quantia de € 20.000,00, através do cheque cuja cópia juntou a fls. 5, para que o mesmo e sua mulher, também aqui ré, pagassem dívidas relacionadas com rendas de casa atrasadas, com comida, roupas e artigos escolares, e que acordaram que os demandados lhe restituiriam aquela importância a 30/12/2006, o que não fizeram. Os réus, por sua vez, na contestação, negaram aquele alegado empréstimo e referiram que o cheque mencionado na p. i. foi emitido para acerto de contas entre o autor e o réu marido, que apresentava um saldo favorável a este de € 20.000,00, ficando a partir de então saldadas as dívidas entre eles. Os quesitos 1º, 2º e 3º da BI assentaram no que o autor alegou no seu articulado e tinham as seguintes redacções: ● Quesito 1º: “O autor e o réu acordaram que a quantia de € 20.000, titulada pelo cheque nº …….799, tinha de ser devolvida ao autor no dia 30/12/2006?” ● Quesito 2º: “Os réus utilizaram a verba de € 20.000 para pagar dívidas relacionadas com rendas de casa atrasadas?” ● Quesito 3º: “Os réus utilizaram ainda a verba de € 20.000 para pagar comida, roupa para si e para os seus 4 filhos, bem como artigos escolares para estes?”. Todos eles, como se disse já, obtiveram a resposta de «não provados». Vejamos agora o que disseram as testemunhas inquiridas em julgamento – quer as arroladas pelo autor, quer as que o foram pelos réus. A testemunha E………., empregada do autor (e por este arrolada), afirmou: que trabalhava para este há 5 anos (começou por dizer que ia fazer 5 anos em Setembro do corrente ano, mas depois, num segundo momento do seu depoimento, após a interrupção para almoço, afirmou que em função do contrato que consultou entretanto, ia fazer 6 anos nos mesmos mês e ano que começou a trabalhar para aquele); que um dia (que não especificou, mas quando trabalhava para o autor há cerca de um ano), na loja do demandante, ouviu uma conversa entre o seu patrão e o réu marido, na qual este último pediu dinheiro emprestado àquele porque andava «em apuros e precisava de dinheiro» e viu que na sequência dessa conversa o autor passou um cheque e entregou-o àquele. Não ouviu nem viu o montante falado pelo réu, nem o valor que o autor apôs no cheque. Ouviu só partes da conversa entre ambos, uma vez que andava no seu trabalho e não estava sempre no mesmo local da dita loja. Revelou desconhecer a existência de negócios entre eles. Mais afirmou, a instâncias do ilustre mandatário dos réus, que noutras ocasiões (duas ou três vezes, disse) o réu foi à referida loja e falou com o autor, mas que não sabe de que assuntos falaram então, pois só ouviu a conversa anteriormente referida. Perguntada porque razão fixou excertos da conversa atrás mencionada e não se lembrava de nada das outras conversas que houve entre as mesmas partes e, bem assim, do porquê de se lembrar dessa mesma conversa com mais precisão do que da data em que começou a trabalhar para o autor, declarou que tal se deveu ao facto de aquando da dita conversa o réu também devia dinheiro ao seu marido (da depoente) e alertou-a o facto de ele estar a pedir dinheiro ao demandante. A testemunha C………., bancário e amigo do autor (também por este arrolada), declarou que sabe de um empréstimo concedido pelo autor ao réu porque aquele, em data que não concretizou (situou-a há 3-4 anos), lhe mostrou um cheque de € 20.000,00 que depositou na instituição bancária onde esta testemunha trabalhava e lhe disse que era de um empréstimo, tendo também visto no verso do mesmo uma declaração escrita de confirmação de um empréstimo. Confrontado com a cópia do cheque junta a fls. 5 e o cheque junto a fls. 86, disse que o cheque a que se referiu foi este último. Perguntado se alguma vez ouviu alguma coisa dos réus acerca daquele empréstimo, disse que não e que só ouviu falar dele (empréstimo) ao autor e viu a tal declaração no verso do cheque. A testemunha K………., amigo das duas partes e que viveu em tempos com uma irmã do réu na casa que este adquiriu ao autor (esta testemunha foi arrolada pelos réus), referiu-se à compra da casa indicada na contestação (o réu comprou-a ao autor), e declarou que os réus passaram a habitá-la cerca de um ano antes da outorga da respectiva escritura pública; que nesse período (entre a data em que os réus foram habitá-la e a da celebração da escritura de compra e venda) o autor realizou obras/alterações no imóvel, tendo indicado as melhorias que lhe introduziu (obras não contratadas inicialmente, segundo o réu lhe disse); não soube dizer em quanto importaram essas obras; referiu, ainda, outros negócios que houve entre autor e réu marido, mas nada disse acerca de valores que houvesse em dívida de um lado ou do outro, por total desconhecimento. A testemunha L………., irmão do réu C………. (arrolada pelos demandados), limitou-se a dizer que o réu comprou uma casa ao autor, que numa ocasião aquele lhe disse que estava à espera de fazer a escritura da aquisição dessa casa e que tinha algum dinheiro a receber do réu (não disse quanto nem de que negócio proviria esse dinheiro), que o réu começou a viver nessa casa antes da celebração da escritura pública de compra e venda respectiva e que aquele seu irmão também lhe disse que tinha feito alterações relativamente ao projecto inicial da casa. Não soube dizer o preço da aquisição da casa em questão e o custo das alterações nela introduzidas e nada disse acerca de empréstimos concedidos pelo autor ao réu, declarando desconhecer tais assuntos. Finalmente, a testemunha M………., amigo das duas partes e que já prestou serviços de pintor a ambos (arrolada pelos réus), limitou-se a referir que na casa adquirida pelo réu ao autor foram realizadas várias alterações (indicou algumas que ocorreram quando lá andou a pintá-la) relativamente ao que inicialmente havia sido contratado entre as partes. Mas demonstrou total desconhecimento acerca dos custos dessas alterações (a insistência do ilustre mandatário dos réus ainda disse que estas poderiam ter importado em 13-14 mil euros, mas sem grande consistência, como fez questão de frisar), bem como da existência de dívidas ou acerto de contas entre autor e réus. Destes excertos decorre que a versão dos réus (de que o cheque junto com a p. i. se destinou a acertar as contas entre as partes) não obteve qualquer apoio nos depoimentos das testemunhas ouvidas (sequer das que por eles foram arroladas) e que os depoimentos das duas testemunhas arroladas pelo autor também não apresentam, por si só, grande consistência na sustentação da versão que este relatou na petição inicial, pois quanto à primeira testemunha suscitam-se-nos algumas reservas (tal como aconteceu na 1ª instância por parte da Mma. Juíza julgadora que disso deu conta na fundamentação do despacho de resposta aos quesitos da BI) acerca das circunstâncias em que diz ter assistido a partes da conversa entre o autor e o réu marido e às razões porque «guardou» o teor dessa conversa na sua memória durante mais de quatro anos, a tal ponto de se lembrar disso e não se recordar, com igual precisão, de quando começou a trabalhar para o autor, nem do conteúdo de outras conversas entre aqueles, ao passo que o depoimento da segunda testemunha se limitou a reproduzir a versão ouvida ao autor e ao que ela própria viu no cheque junto a fls. 86, mas sem estabelecer qualquer relação deste com o que está junto, por cópia, a fls. 5. Ou seja, se só fosse de ter em conta esta prova testemunhal não teríamos dúvidas em afirmar a correcção das respostas dadas na 1ª instância aos referidos quesitos da BI, as quais teriam, assim, de ser mantidas nesta 2ª instância. Mas dos autos constam outros elementos probatórios, designadamente os documentos a que atrás fizemos referência. Será que esses (outros) meios de prova impõem solução diversa? Antes de os considerarmos, importa dizer que logo à partida não compreendemos como é que os réus sustentam que o cheque de € 20.000,00 junto a fls. 5 (cópia) se destinou ao pagamento de dívida de igual valor que o autor tinha para com o demandado marido, quando, em função das «contas» que eles apresentam na contestação, principalmente nos seus arts. 6º, 11º e 15º a 19º (únicas em que estribam o seu crédito sobre aquele), não se vê em que possa consistir esse crédito. Com efeito, os réus dizem que: ● pela compra da casa documentada no contrato-promessa junto a fls. 24-25 e na escritura junta a fls. 26 a 32, o autor tinha a receber deles o preço de € 84.800,00, ● pelas obras «a mais» (além do inicialmente contratado) realizadas na mesma casa, o autor tinha direito a um acréscimo no preço de € 12.200,00 ● e de «outros débitos que tinham sido contraídos pelo R. marido e por ambos os RR. para com o autor» (cfr. art. 17º da contestação), este último tinha direito a receber daqueles a quantia de € 35.000,00. O que dá, de acordo com a descrição dos próprios réus, um crédito do autor sobre eles de € 132.000,00. Ainda segundo o alegado nos citados artigos da contestação, o autor recebeu dos réus, para pagamento de tal crédito global, as seguintes quantias: ● € 7.000,00, a título de sinal, no acto da outorga do contrato-promessa junto a fls. 24-25 (pagamento aí mencionado) ● e € 125.000,00, no dia da celebração das escrituras juntas a fls. 26 a 40, já que os cheques (dois) com as quantias aí mutuadas foram directamente entregues pela instituição bancária mutuante (a J………., CRL) ao autor, conforme também está documentado a fls. 41, 58, 59 e 60 (recebimentos que o autor não impugnou e que estão dados como provados no nº 14 do ponto III deste acórdão). A soma destas duas importâncias totaliza € 132.000,00. Igual, portanto, à importância do crédito que o autor tinha sobre os réus. Ou seja, de acordo com as «contas» apresentadas por estes últimos no seu articulado, nenhuma quantia havia a favor de qualquer das partes que justificasse a emissão de algum cheque para acerto de contas. Daí que os réus se contradigam na contestação ao tentarem justificar a emissão do cheque junto a fls. 5 com um inexistente – face às suas próprias «contas» - crédito final deles sobre o demandante. Podemos então afirmar, sem margem para dúvidas (por se estribar, como se viu, no que os réus alegaram na contestação), que aquele cheque, emitido pelo autor e entregue aos réus (factos estes provados em 1 e 2 do ponto III deste acórdão), não se destinou ao pagamento de qualquer crédito que estes tivessem sobre aquele, nem traduziu um acerto final de contas entre ambas as partes. Mas que tal cheque foi emitido pelo autor e foi entregue ao réu marido que recebeu a quantia nele titulada, não há qualquer dúvida e são os próprios réus que aceitam/confessam isso na contestação – por isso é que tais factos estão provados sob os nºs 1 a 3 do ponto III deste acórdão e já constavam das três primeiras alíneas dos factos assentes aquando da respectiva selecção (e da elaboração da base instrutória). Resta então apurar porque razão foi ele emitido pelo autor e entregue aos réus. Na sua génese não está qualquer liberalidade/doação, já que os réus não a invocaram. Resta então a afirmação do demandante de que subjacente àquele esteve um pedido do réu marido para que lhe emprestasse a quantia de € 20.000,00. E é aqui que entra o cheque junto a fls. 86, emitido pelo réu marido (conforme confessado a fls. 99, na resposta do mandatário dos réus ao requerimento do mandatário do autor em que este solicitou a junção aos autos daquele documento), que é do mesmo montante (€ 20.000,00) e que tem como data de vencimento precisamente aquela que o autor alegou no art. 8º da p. i. (30/12/2006), sendo que daquele (mais precisamente do carimbo aposto no seu verso) resulta ainda que apesar de ter sido apresentado a pagamento não teve boa cobrança, já que foi devolvido (a 04/01/2007) por falta de provisão. Coincidências a mais com o cheque junto a fls. 5 e com a versão do autor para que não se lhe dê, como fez a 1ª instância na fundamentação da resposta aos quesitos da BI, a devida relevância. Mas a importância probatória deste cheque não se fica por aqui. No respectivo verso consta ainda uma declaração manuscrita (que os réus, a fls. 99, aceitam ser da autoria do réu marido; a letra do escrito também é igual à da assinatura deste que se lhe segue) com os dizeres “este cheque destina-se ao pagamento de um empréstimo que B………. nos fez”, que é seguida das assinaturas dos réus. E foi esta declaração que a testemunha F………. viu e leu quando o cheque lhe foi entregue pelo autor (quando este o apresentou a pagamento) num dos primeiros dias de Janeiro de 2007 (antes do dia 4 que foi a data em que foi devolvido por falta de provisão), recolhendo agora significado o depoimento desta testemunha que, embora indirecto no seu essencial (baseado no que o autor então lhe disse), merece acolhimento e «bate certo» com os elementos probatórios que temos vindo a apreciar. Temos então que, por confissão dos réus e por consideração ao depoimento da testemunha acabada de referir, em conjugação com o referido documento, se apresenta claro que o autor emprestou àqueles a quantia de € 20.000,00. Embora os réus não digam na aludida confissão escrita que tal quantia é a que lhes foi entregue através do cheque junto a fls. 5, só pode ser esta a conclusão a que temos de chegar no cômputo final da valoração de toda a prova (e não só) que fica referenciada. Aliás, esta conclusão sai ainda reforçada se considerarmos o teor das declarações que o aqui réu prestou no âmbito do inquérito nº ./07.4GBMDR, onde esteve a ser apurada a sua responsabilidade criminal pela emissão do cheque ora junto a fls. 86, e que estão certificadas a fls. 90-91, nas quais afirmou que emitiu este cheque «aquando da escritura da casa», ao passo que a fls. 98 e 99 desta acção (aquando da junção daquele aos autos, a requerimento do mandatário do autor) declarou, diferentemente, através do seu mandatário, que o mesmo «foi emitido … antes da outorga das escrituras atrás referidas» (fls. 99) e que «a data nele aposta surge porque nessa altura os réus não poderiam saber quando teriam lugar as referidas escrituras» (fls. 98), sendo que estas escrituras são as duas a que já fizemos referência, entre as quais a da aquisição da dita casa. Ante tudo o que fica exposto, não temos dúvidas em afirmar que o despacho de resposta aos quesitos da base instrutória não fez correcta e adequada valoração de todos os elementos probatórios a que devia ter atendido e que há que dar razão ao apelante, pelo menos em parte, na impugnação que apresentou contra aquele despacho. Assim, o que se deixou enunciado permite que respondamos agora aos três apontados quesitos da BI do seguinte modo: - Quesito 1º: provado. - Quesitos 2º e 3º: provado apenas que a referida quantia de € 20.000,00 foi utilizada por ambos os réus (isto face à mencionada confissão de dívida por parte destes). Concluindo este item e revogando, nesta parte, o decidido na 1ª instância, determina-se que ao ponto III sejam aditados os seguintes factos ora considerados provados: 15) O autor e o réu acordaram que a quantia de € 20.000,00, titulada pelo cheque nº …….799, tinha de ser devolvida ao autor no dia 30/12/2006 [resp. ao ques. 1º da BI]. 16) A referida quantia de € 20.000,00 foi utilizada por ambos os réus [resp. aos ques. 2º e 3º da BI].* *2. Se há que revogar a sentença recorrida quanto à solução jurídica que declarou. Por não ter dado como provados os factos dos quesitos 1º a 3º da BI, a sentença recorrida julgou improcedente a acção e absolveu os réus do pedido. Como agora tais quesitos obtiveram as respostas que se deixaram referenciadas na parte final do item anterior, a solução jurídica terá de ser outra, bem diferente daquela. Do que ora se mostra provado – factos dos nºs 1 a 3, 15 e 16 – não há dúvida que entre o autor e o réu marido foi celebrado, em 01/06/2004, um contrato de mútuo, regulado nos arts. 1142º a 1151º do CCiv., já que aquele emprestou a este último a quantia de € 20.000,00 e este ficou obrigado a restituí-la a 30/12/2006. Segundo o art. 1143º do mesmo Código, na redacção então vigente dada pelo DL 343/98, de 06/11, aquele contrato estava sujeito a forma escrita – documento assinado pelo mutuário (só o mútuo de valor superior a € 20.000,00 exigia a celebração de escritura pública). Com referência ao mútuo em questão existem dois documentos: os cheques juntos a fls. 5 (cópia) e 86. O primeiro não reveste, claramente, os requisitos exigidos por aquele artigo, já que se trata de documento preenchido e assinado pelo autor, mutuante no contrato, e não pelo réu mutuário. O segundo também não observa os requisitos legais (apesar de estar assinado pelo réu), pois do seu rosto não consta qualquer referência ao empréstimo/mútuo subjacente e a declaração escrita no seu verso também só alude a «um empréstimo» concedido pelo autor, mas sem concretizar expressamente que esse empréstimo foi o celebrado a 01/06/2004 - chegou-se a esta conclusão no item anterior mas por valoração conjugada com outros meios de prova [no sentido de que “a emissão de cheque pelo mutuário, entregue ao mutuante, para garantia da restituição da quantia mutuada, não sana o vício da nulidade formal do mútuo”, decidiu esta Relação do Porto no acórdão de 05/02/2001, proc. 0021158, disponível in www.dgsi.pt/jtrp; idem, Ac. do STJ de 09/03/2004, proc. 03B4109, in www.dgsi.pt/jstj]. Inobservada a forma escrita legalmente exigida, não pode este Tribunal condenar os réus no pressuposto da validade do contrato de mútuo, pois este é nulo de acordo com o estabelecido no art. 220º do CCiv., segundo o qual “a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula” (e no caso inexiste outra disposição que preveja sanção diversa). Mas esta nulidade é de conhecimento oficioso (e de qualquer modo os próprios réus suscitaram-na nos arts. 26º a 28º da contestação), pelo que não pode deixar de ser aqui declarada (é isso que o apelante «pede» na 1ª conclusão das suas alegações, aceitando a invocação que dela fizeram os réus na contestação). Decidiu o STJ, no Assento nº 4/95, de 28/03 (que ora vale como Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, face à revogação do art. 2º do CCiv. pelo art. 4º nº 2 do DL 329-A/95, de 12/12), publicado na 1ª Série-A do Diário da República de 17/05/1995, que “quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no nº 1 do art. 289º do Código Civil”. Isto porque este preceito legal estatui que a declaração de nulidade tem efeito retroactivo e que seja restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. Por isso, apesar do autor, na petição inicial, ter formulado o seu pedido no pressuposto da validade do apontado contrato de mútuo, nada impede que ora se condene o réu mutuário a restituir a quantia que lhe foi emprestada com base na nulidade (formal) desse mesmo contrato. Quanto à restituição dos € 20.000,00 emprestados não há, pois, dúvida alguma de que o réu marido tem que os devolver ao autor (adiante veremos se tal obrigação impende também sobre a ré mulher). E quanto aos juros, o autor tem direito a recebê-los? E, na afirmativa, desde quanto? É evidente que face à nulidade do contrato de mútuo o direito do autor ao recebimento de juros de mora não pode fundar-se em cláusula nele convencionada, particularmente na que consistiu no acordo de que a importância mutuada seria restituída a 30/12/2006 e da qual derivaria o direito a juros a partir dessa data, em conformidade com o previsto na al. a) do nº 2 do art. 805º do CCiv.. Isto porque a nulidade do contrato se estende a todas as suas cláusulas, incluindo as que «hajam convencionado juros de mora» [neste sentido, i. a., Ac. do STJ de 18/09/2003, proc. 03B2325, in www.dgsi.pt/jstj]. Mas desta constatação não resulta que o autor não tenha direito ao recebimento daqueles. Pelo contrário, o direito ao recebimento de juros de mora, não obstante a nulidade do contrato, advém-lhe do que decorre da conjugação dos arts. 289º nº 3 e 1269º a 1271º, todos do C.Civ., uma vez que aqueles se reconduzem ao conceito de «frutos civis» a que aludem os arts. 1270º e 1271º [assim, nomeadamente, Acs. do STJ de 18/09/2003, supra citado, de 20/11/2003, proc. 03B3002 e de 05/06/2001, proc, 01A809, ambos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e desta Relação do Porto de 03/11/2005, proc. 0533004 e de 21/12/2000, proc. 0031426, in www.dgsi.pt/jtrp]. Mas tais juros não são devidos desde a data reclamada pelo autor-apelante (30/12/2006), que pressupunha a validade do contrato, mas tão-só e apenas desde a data da citação levada a cabo nesta acção, pois só a partir daí passou a haver efectiva lesão do seu direito (isto porque não está provado que antes o autor tenha interpelado os demandados para procederem ao pagamento da quantia emprestada). Tem, assim, o autor direito ao recebimento de juros de mora por parte do réu marido desde a data em que este foi citado na acção. Resta a questão de saber se a ré mulher também deve ser condenada na restituição da quantia mutuada e respectivos juros. Afere-se do nº 15 dos factos provados que o contrato de mútuo em apreço foi celebrado apenas entre o autor e o réu marido. E dos nºs 3 e 16 dos factos provados resulta que a importância emprestada foi transferida para uma conta de ambos os demandados e por eles utilizada, o que significa que a ré mulher deu o seu consentimento (sendo indiferente que este tenha sido prévio ou posterior à celebração do contrato) à constituição da dívida decorrente da outorga daquele contrato (consentimento este mais do que evidente face à confissão constante da declaração exarado no verso do cheque junto a fls. 86, por ela também assinado). Apesar da nulidade do mesmo, não deixa de haver a dívida de restituição do que foi entregue em consequência da celebração do contrato. E a ré mulher não pode deixar de ser também responsabilizada nos termos da al. a) do nº 1 do art. 1691º do CCiv. que estabelece que “as dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro” são da responsabilidade de ambos [cfr., com interesse, embora reportados a casos de «proveito comum do casal», os Acs. do STJ de 21/06/1968, proc. 062303, in www.dgsi.pt/jstj e desta Relação do Porto de 17/01/2000, proc. 9951355, in www.dgsi.pt/jtrp]. Impõe-se, por conseguinte, também a condenação da ré mulher nos mesmos termos em que o seu cônjuge tem que ser condenado. Em conclusão, o recurso do autor-apelante merece acolhimento nesta instância, excepto na parte em que vêm reclamados juros de mora entre 30/12/2006 e a data da citação.* *Síntese conclusiva: ● Na reapreciação da prova, a Relação tem a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, deve valorá-la de acordo com o princípio da livre convicção e se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão da 1ª instância, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que tem enquanto tribunal de instância que garante um efectivo segundo grau de jurisdição. ● A nulidade do contrato de mútuo, por vício de forma, é de conhecimento oficioso e a respectiva declaração impõe a restituição de tudo o que foi prestado no pressuposto da validade do contrato. ● Além da restituição do capital mutuado, o mutuante tem direito ao recebimento de juros de mora a partir da citação (excepto se antes tiver havido interpelação com vista àquela restituição) e não desde a data acordada para a restituição da quantia emprestada, já que a nulidade do contrato importa a nulidade das respectivas cláusulas. ● Apesar da nulidade do contrato, o cônjuge do mutuário é também responsável pela restituição do capital e pelo pagamento de juros, nomeadamente quando consentiu na celebração do contrato de mútuo e a quantia emprestada foi utilizada pelo casal, aqui réus. * * * V. Decisão: Ante o exposto, os Juízes desta secção cível da Relação do Porto acordam em: I) Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogar as decisões da 1ª instância (quanto à matéria de facto, na parte impugnada, e relativamente à solução jurídica declarada na sentença), condenando os réus a restituírem ao autor a aludida quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da citação e vincendos até efectivo e integral pagamento, mas absolvendo-os do mais que foi peticionado pelo demandante. II) Condenar apelantes e apelado nas custas, na proporção do decaimento. * * * Porto, 2009/11/17 Manuel Pinto dos Santos João Manuel Araújo Ramos Lopes Cândido Pelágio Castro de Lemos