I - A introdução do processo especial para acordo de pagamento (PEAP) no nosso ordenamento jurídico deriva da opção legislativa de reservar o processo especial de revitalização às empresas, permitindo ao devedor não empresário continuar a dispor de um instrumento pré-insolvencial mais simplificado, com vista a obter um acordo de pagamento com os seus credores que evite a declaração de insolvência e os seus efeitos, através da reestruturação da dívida. II - Apresentado o acordo de pagamento e votado pelos credores compete ao juiz decidir se o homologa, ou não, sendo aplicáveis as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com as necessárias adaptações. III - No controlo da legalidade do acordo de pagamento aprovado pelos credores deve o juiz recusar, mesmo ex officio, a sua homologação quando, nos termos do citado artigo 215º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, ocorrer violação não negligenciável de regras procedimentais, ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza. IV - Por constituir violação não negligenciável de regra procedimental, o juiz deve recusar a homologação do acordo de pagamento firmado no âmbito do PEAP quando os elementos factuais constantes do processo revelem inequivocamente que o devedor se encontra numa situação de insolvência actual.
Processo nº 3975/19.2T8OAZ.P1Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Oliveira de Azeméis – Juízo de Comércio, Juiz 1Relator: Miguel Baldaia Morais 1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra 2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha * SUMÁRIO............................................. ............................................. .............................................* I- RELATÓRIOB… veio propor o presente processo especial para acordo de pagamento com o propósito de estabelecer negociações com os seus credores, de modo a concluir com estes um acordo de pagamento, alegando, para tanto, encontrar-se presentemente com falta de liquidez que lhe permita efectuar o pagamento integral dos seus débitos. Nomeado administrador judicial provisório, deu-se início às negociações que culminaram com a aprovação do acordo de pagamento apresentado com os votos favoráveis de 78,95% dos 99,39% dos votos emitidos. Os credores Banco C… S.A. e Banco D… S.A. formularam pedidos de não homologação do referido acordo alegando, em síntese, que fixando-se o passivo da devedora em mais de 80 milhões de euros e estando previsto o pagamento, nos primeiros onze anos de 3,55% da dívida e no 12º ano de 96,45% dos créditos, tal acordo é inexequível. Invocaram ainda que se o acordo não for homologado os credores podem accionar todos os mecanismos de ressarcimento dos respectivos créditos junto da devedora, sem que, para tal, estejam dependentes do incumprimento de outros planos e sem qualquer moratória ou sem que tenham de esperar 12 anos para perceber se o seu crédito será pago ou não. Notificados o administrador judicial provisório e a devedora para responderem aos pedidos dos credores oponentes, defendeu o primeiro a viabilidade do acordo alegando que os Processos Especiais de Revitalização das devedoras originais encontram-se a ser cumpridos, que os créditos aqui reconhecidos são créditos comuns, que os únicos bens detidos pela devedora (e que poderiam ser vendidos em processo de liquidação) são participações sociais das sociedades devedoras originais que se apresentaram a PER ou que apresentaram plano de insolvência pelo que o seu valor económico e de mercado será muito diminuto e de difícil liquidação, a que acresce o facto de neste PEAP não se prever qualquer perdão dos créditos ao passo que, numa insolvência, e com o pedido de exoneração do passivo restante, o pagamento aos credores só se faria nos cinco anos da cessão, após o que ficariam perdoados. Por seu turno, a devedora alegou que os pedidos de recusa de homologação não deveriam ser aceites até porque os credores oponentes não concretizaram de que modo, num processo de insolvência, com liquidação dos bens da devedora, ficariam em situação mais favorável. * A devedora foi convidada a esclarecer de que forma conseguiria no 12º ano pagar 96,45% dos créditos relacionados, acaso o acordo fosse cumprido durante os primeiros 11 anos de execução e explicou que o acordo de pagamentos aqui aprovado está em total conjugação com todos os planos de pagamento das várias sociedades devedoras originárias e dos planos dos co-devedores avalistas prevendo-se que o pagamento dos créditos comuns que resultem de aval ou fiança fica subordinado à exigência de incumprimento pelos devedores originários (sociedades avalizadas) dos Planos de Recuperação, Planos de Pagamento ou Planos de Insolvência, aprovados ou a aprovar, iniciando-se o seu pagamento seis meses após a declaração de insolvência ou incumprimento do Plano de Pagamentos ou do Plano de Recuperação aprovado em Processo Especial de Revitalização ou em Processo de Insolvência. Foi então proferida decisão que homologou o acordo de pagamentos apresentado e aprovado pela maioria dos credores da devedora. Não se conformando com o assim decidido, a credora “Banco D… S.A. – Sociedade Aberta” interpôs o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES:1. O acordo de pagamento apresentado pelo recorrida B… foi, erradamente, homologado pelo Tribunal a quo, não só porque o seu raciocínio está inquinado por se ter baseado em factos que não poderiam ter sido dados como provados, mas também porque foram violadas normas imperativas relativas à natureza do processo especial para acordo de pagamento e ao conteúdo de qualquer acordo de pagamento. 1.1. Os factos nºs 4 e 8 que constam da matéria de facto provada na sentença recorrida não correspondem à realidade, bastando confrontar os planos de recuperação das sociedades “E…” e “F…, S.A.”, para perceber que foram previstos perdões de dívida: no caso daquela sociedade, estabeleceu-se um perdão de parte do capital e da totalidade dos juros vencidos; no caso desta sociedade, estabeleceu-se um perdão dos juros vencidos – cfr. planos juntos como documentos nºs 2 e 4 com o requerimento da devedora de 12 de maio de 2020 (com a referência eletrónica n.º 10097286). 1.2. Neste sentido, os factos nºs 4 e 8 que constam da matéria de facto provada deverão passar a constar da matéria de facto provada. 1.3. Já o facto n.º 6 da matéria de facto provada não corresponde, inteiramente, à realidade, uma vez que – ao contrário do que fez o Tribunal a quo - não se pode dar como garantido o valor do património imobiliário da sociedade “E…”, com base numa avaliação feita pela própria sociedade. 1.4. Na melhor das hipóteses, as regras da lógica e da experiência comum permitiriam que se desse como provado o seguinte facto: "A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário avaliado, pela própria em 2014, em 99.312.069,00€ e esse património está hipotecado aos credores D… e G… que reclamaram nestes autos a sua dívida avalizada pela devedora;" 1.5. Impugnam-se, assim, os factos dados como provados sob os nºs 4, 6 e 8 da matéria de facto provada. 1.6. Ainda que os factos provados não sofressem alteração, o desfecho dos presentes autos teria de ser a não homologação do acordo de pagamento. 1.7. O processo especial para acordo de pagamento está vedado a quem já se encontra em situação de insolvência (art. 222.º-A n.º 1 do CIRE), como é o caso da recorrida, porque, como a própria admite, o seu passivo excede, em grande medida, o seu ativo e não tem rendimentos que lhe permitam liquidar a dívida vencida por força do incumprimento das sociedades F…, S.A. e H…, SGPS, S.A., cujas obrigações foram por si avalizadas. 1.8. O Tribunal a quo dispõe de vários elementos que atestam a situação de insolvência atual da devedora/recorrida (nomeadamente a lista de dívidas junta como documento n.º 5 com o requerimento inicial, a relação de bens junta como documento n.º 6 com o requerimento inicial e a lista de créditos reconhecidos) e, a título oficioso, deveria ter recusado a homologação do acordo de pagamento, por violação, não negligenciável, da regra do art. 222.º-A n.º 1 (aplicando o art. 215.º, para o qual remete o art. 222.º-F n.º 5). 1.9. Sabendo que está insolvente e que não tem capacidade para cumprir qualquer plano de pagamento prestacional, a devedora/recorrida não referiu no acordo de pagamento os meios financeiros que lhe permitiriam liquidar os créditos em dívida, que ascendem a €89.214.958,82 (oitenta e nove milhões, duzentos e catorze mil, novecentos e cinquenta e oito euros e oitenta e dois cêntimos) – cfr. lista de credores reconhecidos junta aos autos com o requerimento do Administrador Judicial Provisório de 16 de dezembro de 2019 com a referência n.º 9592439 – como era sua obrigação, por imposição do art. 195.º n.º 2, al. c) do CIRE (aplicável por remissão do art. 222.º-F n.º 5). 1.10. A omissão dos meios de cumprimento do acordo de pagamento constitui uma violação não negligenciável do art. 195.º n.º 2, al. c) do CIRE, relativa ao conteúdo do plano, porque a vontade de aprovar ou não aprovar o acordo de pagamento é, diretamente, influenciada pela capacidade que a devedora demonstre para cumprir esse acordo e o mesmo se diz relativamente à decisão de homologação, porque não pode ser homologado um acordo de pagamento inexequível. 1.11. Ainda que a devedora/recorrida tivesse cumprido este requisito, a verdade é que seria sempre evidente a sua incapacidade para suportar qualquer plano de pagamento, porque os seus rendimentos anuais, embora superiores ao padrão do cidadão comum (sendo superiores a €50.000,00 (cinquenta mil euros) – cfr. declaração de rendimentos junta como documento n.º 3 com o requerimento inicial), são diminutos perante a quantia em dívida. 1.12. Por não possuir meios financeiros para liquidar a dívida abrangida pelo acordo de pagamento, é manifesta a sua inexequibilidade, o que contraria a essência e o objectivo fundamental do processo especial de acordo de pagamento, que é recuperar a devedora e evitar a sua insolvência (art. 222.º-A). 1.13. Portanto, quer por não serem expostos os meios financeiros que permitiriam suportar as prestações previstas no acordo de pagamento, quer por não ser exequível, deveria ter sido recusada, oficiosamente, a homologação do acordo (art. 215.º, aplicável por remissão do art. 222.º-F n.º 5). 1.14. Mesmo que o acordo de pagamento explicasse como seriam obtidos os meios financeiros para cumprir as prestações previstas no acordo de pagamento e mesmo que o acordo fosse exequível, continuaria a estar vedada a sua homologação, por violação do regime do aval (arts. 30.º e 32.º da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças e do art. 601.º do Código Civil) e do princípio da igualdade de tratamento de credores (art. 194.º do CIRE). 1.15. O acordo de pagamento subordina o nascimento, na esfera jurídica da devedora/recorrida, da obrigação de pagar qualquer quantia à recorrente à verificação de um acontecimento futuro e incerto, mais propriamente o incumprimento das sociedades E…, SGPS, S.A., F…, S.A. e H…, SGPS, S.A. dos seus planos de recuperação – cfr. página 9 do acordo de pagamento homologado, erradamente, pelo Tribunal a quo. 1.16. Não se verificando este incumprimento, a devedora/recorrida não pagará qualquer quantia ao recorrente, nem aos demais credores, extinguindo-se as dívidas que foram objecto de perdão nos planos de recuperação das sociedades E…, SGPS, S.A., F…, S.A. e H…, SGPS, S.A.. 1.17. Nos planos de recuperação da F…, S.A. e H…, SGPS, S.A. – que são do conhecimento funcional do Tribunal a quo, porque foram aprovados em processos que correm termos no mesmo Tribunal – encontra-se previsto o perdão dos juros remuneratórios e moratórios vencidos e vincendos; no plano de recuperação da E…, SGPS, S.A. prevê-se o não pagamento de parte do capital, bem como de juros vencidos. 1.18. Por isso, se as sociedades E…, SGPS, S.A., F…, S.A. e H…, SGPS, S.A. cumprirem os seus planos de recuperação, a devedora/recorrida não pagará qualquer quantia ao recorrente relativa aos juros remuneratórios e moratórios vencidos e vincendos, quando reconhece auferir rendimentos anuais de cerca de €50.000,00 (cinquenta mil euros) – cfr. declaração de rendimentos junta como documento n.º 3 com o requerimento inicial. 1.19. O processo especial de acordo de pagamento visa reestruturar as dívidas em função das capacidades da devedora em situação económica difícil ou de insolvência iminente (o que, como vimos, não é o caso da recorrida) e não impor a extinção dos direitos de crédito em dívida, independentemente da capacidade de pagamento da devedora, como resulta do acordo de pagamento homologado. 1.20. O acordo de pagamento homologado apenas visa estender os efeitos dos planos de recuperação das sociedades E…, SGPS, S.A., F…, S.A. e H…, SGPS, S.A. à própria devedora/recorrida, beneficiando dos perdões de dívida aí previstos, (i) em flagrante fraude ao art. 217.º n.º 4 do CIRE, (ii) em violação da natureza solidária do aval (arts. 30.º e 32.º da LULL) e (iii) em violação da garantia geral das obrigações concedida pelo património da devedora (art. 601.º do CC). 1.21. Assim, a sujeição do pagamento dos créditos emergentes de aval ao incumprimento das sociedades E…, SGPS, S.A., F…, S.A. e H…, SGPS, S.A. dos seus planos de recuperação viola normas imperativas relativas ao conteúdo do acordo de pagamento, que obrigam à sua não homologação (art. 215.º do CIRE). 1.22. Em conclusão, o Tribunal a quo violou os arts. 192.º nºs 1 e 2, 194.º nºs 1 e 2, 195.º n.º 2, al. c), 207.º n.º 1, al. a) e c), 215.º, 216.º, 217.º n.º 4, 222.º-A e 222.º-F n.º 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os arts. 30.º e 32.º da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças e o art. 601.º do Código Civil. 1.23. A correta interpretação e aplicação destas normas obriga à não homologação do acordo de pagamento apresentado pela recorrida B….*A devedora apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.*Após os vistos legais, cumpre decidir.*** II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO 1. Definição do objeto do recursoO objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil ex vi do art. 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas: determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto; determinar se o acordo de pagamento aprovado e homologado no âmbito do presente processo enferma (ou não) de vícios de procedimento e/ou de conteúdo que importam a recusa de homologação do mesmo.*** 2. Recurso da matéria de facto 2.1. Factualidade considerada provada na sentençaNa 1ª instância consideraram-se provados os seguintes factos: 1 – Nestes autos foram reconhecidos créditos no montante de 89.214.958,82€; 2 – [A devedora] é administradora das sociedades “F…, S.A.” e “H…, SGPS, S.A.”; 3 – Para além do crédito reconhecido ao ISS, no montante de 970.262,11€, todos os demais créditos reconhecidos se referem a dívidas avalizadas à E…, SGPS, S.A. e suas participadas, a aval a garantias bancárias de boa execução de obra prestadas à devedora originária F…, S.A., a dívidas avalizadas à F…, S.A., e a dívidas avalizadas à H…, SGPS, S.A. 4 – A E…, SGPS, S.A. aprovou, no PER nº 2179/13.2TBABF, um plano de recuperação no qual é previsto o pagamento integral da dívida aos seus credores através do produto da venda de todos os imóveis, bem como dos proveitos que resultam da exploração da Marina I… (concessionada até ao ano de 2082) e dos Apartamentos Turísticos da …. 5 – O plano de recuperação da E…, SGPS, S.A., foi homologado por sentença transitada em julgado em 28/04/2014, termina em 28/04/2034 e o capital em dívida nesse processo ascende a 75.552.143,39€; 6 – A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário avaliado, em 2014, em 99.312.069,00€ e esse património está hipotecado aos credores D… e G… que reclamaram nestes autos a sua dívida avalizada pela devedora; 7 - A F…, S.A. aprovou um plano de insolvência e recuperação no processo de insolvência nº 3022/16.6T8OAZ cuja decisão de homologação transitou em julgado em 27 de Junho de 2017 e que está a ser cumprido. 8 – Nesse plano está previsto o pagamento integral das dívidas aos seus credores que termina em 31 de Dezembro de 2032; 9 – A F…, S.A. tem um património cujo valor de aquisição ascende a 46.030.384,15€; 10 – No ano de aprovação do plano de insolvência (2017) e no ano de 2018 teve resultados positivos que ascendem a 368.453,41€; 11 – A H…, SGPS, S.A. aprovou, no processo de insolvência nº 3531/19.5T8OAZ, um plano de insolvência e recuperação que prevê o integral pagamento do capital em dívida aos seus credores até ao ano 2035; 12 – O plano de insolvência tem por base os proveitos obtidos pela venda de participações sociais e bem assim os dividendos que lhe sejam distribuídos pelas suas participadas e também prevê um pagamento “bullet” em 2032 levando em consideração que nesse ano a participada com maior potencial de crescimento (a F…, S.A.) terá já cumprido o seu plano de pagamento e será uma sociedade com património elevado e isenta de dívidas; uma parte (ou mesmo a totalidade) do capital social da F…, S.A. poderá ser vendido numa altura em que o plano de recuperação da mesma estará cumprido; 13 – A aqui devedora é, conjuntamente com o seu pai, J…, sua mãe, K… e sua irmã, L… (que, consigo, são co-devedores avalistas) detentora da totalidade de capital da H…, SGPS, S.A. e indirectamente de todas as participadas desta; 14 – Está prevista a venda, em 2032, das participações societárias detidas.* 2.2. Apreciação da impugnação da matéria de factoNas conclusões recursivas veio a apelante requerer a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto vertida nos pontos nºs 4, 6 e 8 dos factos provados, com fundamento em erro na apreciação da prova. Vejamos. Nos referidos pontos deu-se como provado que: “A E…, SGPS, S.A. aprovou, no PER nº 2179/13.2TBABF, um plano de recuperação no qual é previsto o pagamento integral da dívida aos seus credores através do produto da venda de todos os imóveis, bem como dos proveitos que resultam da exploração da Marina I… (concessionada até ao ano de 2082) e dos Apartamentos Turísticos da …” (ponto nº 4); “A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário avaliado, em 2014, em 99.312.069,00€ e esse património está hipotecado aos credores D… e G… que reclamaram nestes autos a sua dívida avalizada pela devedora” (ponto nº 6); “Nesse plano [da sociedade F…, S.A.] está previsto o pagamento integral das dívidas aos seus credores que termina em 31 de Dezembro de 2032” (ponto nº 8). Sustenta a apelante que, contrariamente ao que consta dos pontos nºs 4 e 8, os planos de recuperação da “E…, SGPS, S.A.” e da “F…, S.A.” não prevêem o pagamento integral das suas dívidas, devendo, nessa medida, as referidas proposições factuais transitar para o elenco dos factos não provados. Por seu turno, em relação ao ponto nº 6 preconiza a alteração da sua redacção, porquanto a materialidade aí acolhida - no que especialmente respeita à avaliação do património imobiliário da “E…, SGPS, S.A.” - se filiou única e exclusivamente numa lista de valores de imóveis apresentada pela própria “E…” e não por qualquer entidade avaliadora credenciada e independente. Pugna, assim, pela inserção nesse ponto da expressão “[A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário] avaliado, pela própria em 2014, em 99.312,069,00€”. Começando pelos pontos nºs 4 e 6, após consultar o plano de recuperação da “E…, SGPS, S.A.” e o plano de insolvência e recuperação da “F…, S.A.” que foram juntos aos autos, verifica-se, na verdade, que a redacção dada a esses pontos de facto não traduz com exactidão o que nesses planos foi objecto de aprovação e de posterior homologação. No entanto, ao invés do que advoga a apelante, tal não justifica que essas proposições factuais, pura e simplesmente, transitem para os factos não provados, devendo antes ser rectificada a redacção dos pontos em crise de modo a que os mesmos acolham, com fidedignidade, o que efectivamente consta dos referidos planos. Como assim, por se mostrar mais conforme com elementos probatórios que adrede foram aportados a estes autos, decide alterar-se a redacção dos pontos nºs 4 e 8 que passarão a ter o seguinte teor: Ponto nº 4 “No Processo Especial de Revitalização proposto pela sociedade E… SGPS, S.A., que correu seus termos pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira sob o nº 2179/13.2TBABF, foi aprovado um plano de recuperação no qual se prevê Quanto aos créditos comuns: i). Perdão dos juros e encargos vencidos e vincendos; ii). Perdão de parte do capital já perdoado em acordos de pagamento anteriores ao PER (ainda que incumpridos); iii). Prazo reembolso de 20 anos, contado após o trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação; iv). Um período de carência de capital de 12 anos, contado após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação; v). Pagamento dos créditos, em 12 anos, em 32 amortizações de capital, trimestrais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira 147 meses, após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação. Quanto aos créditos garantidos i). Perdão dos juros vencidos até à data de homologação do Plano de Recuperação”; ii). Perdão de juros vincendos até ao trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano; iii). Do 1º ao 10º ano a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação, cálculo de juros à taxa EURIBOR a 12 Meses acrescida de 0,25%, não capitalizável; iv). Do 11º ao 20º ano: a) Cálculo de juros à taxa Euribor a 12 Meses acrescida de 1,25%, ou, em opção a exercer pelos credores garantidos, b) Perdão de juros entre o 11º ano e 15º ano e remuneração sobre o capital em dívida entre o 16º ano e o 20º ano à taxa Euribor a 12 acrescida de um spread de 1,5%, gozando os credores que optaram por esta situação de uma cláusula de regresso de melhor fortuna sobre os valores calculados até ao limite do valor que seria devido de juros entre o 11º ano e 15º ano sobre o diferencial que exceder em 10% a tabela de vendas conforme anexo K; v). Prazo reembolso de 20 anos, contado após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação; vi). Vencimento anual de juros, até ao integral pagamento, com carência do seu pagamento pelo período de 10 anos após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação; vii). Um período de carência de capital de 10 anos, contado após a data de homologação do Plano de Recuperação, excepto em caso de venda de activos imobiliários durante o período de carência, caso em que serão observadas o conjunto de regras de pagamento descritas em V, VI e VII (amortização antecipada da dívida); viii). Pagamento de 100% dos créditos, em 10 anos, em 40 amortizações de capital e juros, trimestrais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira 123 meses, após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação, sendo o valor liquidado antecipadamente nos termos da alínea anterior (produto da venda de activos imobiliários), deduzido pro rata no valor de cada uma das amortizações ainda não liquidadas; Manutenção das actuais garantias, nomeadamente garantias reais (hipotecas e penhores), prestadas pela Devedora, holding e demais sociedades do grupo, assim como todas as garantias pessoais prestadas para bom cumprimento dos créditos». Ponto nº 8 «Nesse plano [de insolvência e recuperação da F…, S.A.] está previsto o pagamento dos créditos nos seguintes termos: Créditos garantidos Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar semestralmente e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 65% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte plano (…); Perdão de juros vencidos e não pagos até à data de declaração da insolvência, incluindo os juros que tenham sido capitalizados; Os juros durante o período do plano serão calculados à taxa EURIBOR 12M, tendo como limite mínimo Zero (“Floor 0”) + 0,75% a aplicar ao saldo em dívida e serão liquidados semestralmente e postecipadamente, com início 6 meses após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação; Manutenção das garantias existentes. Quanto aos créditos comuns Os credores comuns poderão optar por um dos seguintes planos de pagamento, devendo tal opção ser comunicada por escrito à devedora até ao prazo máximo de oito dias a contar da data da homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação (caso não exerçam a opção, considerar-se-á a opção B1):Plano de Pagamento – B.1:Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar anual e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 60% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte escalonamento (…); Perdão total dos juros vencidos, incluindo os juros que tenham sido capitalizados, e vincendos.Plano de Pagamento – B.2Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar anual e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 70% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte plano (…); Perdão de juros vencidos até à data de declaração de insolvência, incluindo os juros que tenham sido capitalizados; O indexante para os créditos denominados em kwanzas (AOA) será a LUIBOR a 12 meses, mantendo-se o spread acima proposto para as operações em EUR; Os juros durante todo o período do plano serão calculados à taxa EURIBOR 12M, tendo como limite mínimo Zero (“Floor 0”) + 0,50% a aplicar ao saldo em dívida e serão liquidados semestral e postecipadamente, com início 6 meses após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de insolvência e de recuperação; Manutenção das garantias existentes». Por último, no concernente à requerida alteração da redacção do ponto nº 6, assiste razão à apelante porquanto o valor do património imobiliário da sociedade “E…, SGPS, S.A.” aí indicado se ancorou unicamente numa declaração (que constitui o anexo K do respectivo PER) elaborada por esse ente societário onde é feita referência – sem qualquer justificação objectiva e desacompanhada de outros elementos que o comprovem, designadamente documentos fiscais e/ou contabilísticos – ao montante de €99.312.069,00 como correspondendo ao valor global do seu património imobiliário. Justifica-se, por isso, a alteração do aludido ponto factual que passará a ter a seguinte redacção: «A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário avaliado, pela própria em 2014, em 99.312,069,00€ e esse património está hipotecado aos credores D… e G… que reclamaram nestes autos a sua dívida avalizada pela devedora».*** 3. FUNDAMENTOS DE FACTOFace à decisão que antecede, passa a ser a seguinte a factualidade provada: 1 – Nestes autos foram reconhecidos créditos no montante de 89.214.958,82€; 2 – [A devedora] é administradora das sociedades “F…, S.A.” e “H…, SGPS, S.A.”; 3 – Para além do crédito reconhecido ao ISS, no montante de 970.262,11€, todos os demais créditos reconhecidos se referem a dívidas avalizadas à E…, SGPS, S.A. e suas participadas, a aval a garantias bancárias de boa execução de obra prestadas à devedora originária F…, S.A., a dívidas avalizadas à F…, S.A., e a dívidas avalizadas à H…, SGPS, S.A. 4 - No Processo Especial de Revitalização proposto pela sociedade E… SGPS, S.A., que correu seus termos pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira sob o nº 2179/13.2TBABF, foi aprovado um plano de recuperação no qual se prevê Quanto aos créditos comuns: i). Perdão dos juros e encargos vencidos e vincendos; ii). Perdão de parte do capital já perdoado em acordos de pagamento anteriores ao PER (ainda que incumpridos); iii). Prazo reembolso de 20 anos, contado após o trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação; iv). Um período de carência de capital de 12 anos, contado após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação; v). Pagamento dos créditos, em 12 anos, em 32 amortizações de capital, trimestrais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira 147 meses, após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação. Quanto aos créditos garantidos i). Perdão dos juros vencidos até à data de homologação do Plano de Recuperação”; ii). Perdão de juros vincendos até ao trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano; iii). Do 1º ao 10º ano a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação, cálculo de juros à taxa EURIBOR a 12 Meses acrescida de 0,25%, não capitalizável; iv). Do 11º ao 20º ano: a) Cálculo de juros à taxa Euribor a 12 Meses acrescida de 1,25%, ou, em opção a exercer pelos credores garantidos, b) Perdão de juros entre o 11º ano e 15º ano e remuneração sobre o capital em dívida entre o 16º ano e o 20º ano à taxa Euribor a 12 acrescida de um spread de 1,5%, gozando os credores que optaram por esta situação de uma cláusula de regresso de melhor fortuna sobre os valores calculados até ao limite do valor que seria devido de juros entre o 11º ano e 15º ano sobre o diferencial que exceder em 10% a tabela de vendas conforme anexo K; v). Prazo reembolso de 20 anos, contado após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação; vi). Vencimento anual de juros, até ao integral pagamento, com carência do seu pagamento pelo período de 10 anos após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação; vii). Um período de carência de capital de 10 anos, contado após a data de homologação do Plano de Recuperação, excepto em caso de venda de activos imobiliários durante o período de carência, caso em que serão observadas o conjunto de regras de pagamento descritas em V, VI e VII (amortização antecipada da dívida); viii). Pagamento de 100% dos créditos, em 10 anos, em 40 amortizações de capital e juros, trimestrais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira 123 meses, após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação, sendo o valor liquidado antecipadamente nos termos da alínea anterior (produto da venda de activos imobiliários), deduzido pro rata no valor de cada uma das amortizações ainda não liquidadas; Manutenção das actuais garantias, nomeadamente garantias reais (hipotecas e penhores), prestadas pela Devedora, holding e demais sociedades do grupo, assim como todas as garantias pessoais prestadas para bom cumprimento dos créditos. 5 – O plano de recuperação da E…, SGPS, S.A., foi homologado por sentença transitada em julgado em 28/04/2014, termina em 28/04/2034 e o capital em dívida nesse processo ascende a 75.552.143,39€; 6 – A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário avaliado, em 2014, em 99.312.069,00€ e esse património está hipotecado aos credores D… e G… que reclamaram nestes autos a sua dívida avalizada pela devedora; 7 - A F…, S.A. aprovou um plano de insolvência e recuperação no processo de insolvência nº 3022/16.6T8OAZ cuja decisão de homologação transitou em julgado em 27 de Junho de 2017 e que está a ser cumprido. 8 – Nesse plano [de insolvência e recuperação da F…, S.A.] está previsto o pagamento dos créditos nos seguintes termos: Créditos garantidos Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar semestralmente e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 65% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte plano (…); Perdão de juros vencidos e não pagos até à data de declaração da insolvência, incluindo os juros que tenham sido capitalizados; Os juros durante o período do plano serão calculados à taxa EURIBOR 12M, tendo como limite mínimo Zero (“Floor 0”) + 0,75% a aplicar ao saldo em dívida e serão liquidados semestralmente e postecipadamente, com início 6 meses após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação; Manutenção das garantias existentes. Quanto aos créditos comuns Os credores comuns poderão optar por um dos seguintes planos de pagamento, devendo tal opção ser comunicada por escrito à devedora até ao prazo máximo de oito dias a contar da data da homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação (caso não exerçam a opção, considerar-se-á a opção B1):Plano de Pagamento – B.1:Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar anual e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 60% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte escalonamento (…); Perdão total dos juros vencidos, incluindo os juros que tenham sido capitalizados, e vincendos.Plano de Pagamento – B.2Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar anual e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 70% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte plano (…); Perdão de juros vencidos até à data de declaração de insolvência, incluindo os juros que tenham sido capitalizados; O indexante para os créditos denominados em kwanzas (AOA) será a LUIBOR a 12 meses, mantendo-se o spread acima proposto para as operações em EUR; Os juros durante todo o período do plano serão calculados à taxa EURIBOR 12M, tendo como limite mínimo Zero (“Floor 0”) + 0,50% a aplicar ao saldo em dívida e serão liquidados semestral e postecipadamente, com início 6 meses após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de insolvência e de recuperação; Manutenção das garantias existentes. 9 – A F…, S.A. tem um património cujo valor de aquisição ascende a 46.030.384,15€; 10 – No ano de aprovação do plano de insolvência (2017) e no ano de 2018 teve resultados positivos que ascendem a 368.453,41€; 11 – A H…, SGPS, S.A. aprovou, no processo de insolvência nº 3531/19.5T8OAZ, um plano de insolvência e recuperação que prevê o integral pagamento do capital em dívida aos seus credores até ao ano 2035; 12 – O plano de insolvência tem por base os proveitos obtidos pela venda de participações sociais e bem assim os dividendos que lhe sejam distribuídos pelas suas participadas e também prevê um pagamento “bullet” em 2032 levando em consideração que nesse ano a participada com maior potencial de crescimento (a F…, S.A.) terá já cumprido o seu plano de pagamento e será uma sociedade com património elevado e isenta de dívidas; uma parte (ou mesmo a totalidade) do capital social da F…, S.A. poderá ser vendido numa altura em que o plano de recuperação da mesma estará cumprido; 13 – A aqui devedora é, conjuntamente com o seu pai, J…, sua mãe, K… e sua irmã, L… (que, consigo, são co-devedores avalistas) detentora da totalidade de capital da H… SGPS, S.A. e indirectamente de todas as participadas desta; 14 – Está prevista a venda, em 2032, das participações societárias detidas.*** 4. FUNDAMENTOS DE DIREITO Como se referiu, a devedora intentou o processo especial para acordo de pagamento (PEAP), o qual veio a culminar com a aprovação pelos credores do acordo apresentado, sendo subsequentemente objecto de homologação jurisdicional. A apelante rebela-se agora contra a referida decisão homologatória por considerar que a mesma não deveria ter tido lugar porquanto foram infringidas regras procedimentais e bem assim normas aplicáveis ao conteúdo do acordo de pagamento. Que dizer? Como é consabido, o PEAP foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo DL nº 79/2017, de 30.06, que aditou os artigos 222º-A a 222º-J ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1]. A criação desse processo está estritamente relacionada com a controvérsia jurisprudencial que se vinha registando em torno da aplicabilidade (ou não) do processo especial de revitalização (PER) às pessoas singulares não empresários ou comerciantes. Com o desiderato de pôr cobro a essa querela, o legislador decidiu intervir reservando o recurso ao PER a pessoas colectivas, passando as pessoas singulares não empresários ou comerciantes a dispor de um instrumento pré-insolvencial mais simplificado, destinado a obter um acordo de pagamento com os seus credores. De forma semelhante ao propósito do PER, também o PEAP tem como objectivo permitir ao devedor estabelecer negociações com os respectivos credores, de modo a celebrar um acordo com estes, cujo fim é o de evitar que o devedor se venha a constituir em estado de insolvência. Contudo, se no caso do PER, será um acordo tendente à revitalização da empresa (art. 17º-A, nº 1), no caso do PEAP faz-se apenas referência ao objectivo de estabelecer negociações com os credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento (art. 222º-A, nº 1). Ficam, assim, afastadas do PEAP as ideias de recuperabilidade e de revitalização do devedor (não empresário)[2], assumindo, no entanto, as características típicas do PER, designadamente ser um processo pré-insolvencial, especial, híbrido, concursal e urgente[3]. De acordo com o desenho legal, o PEAP visa abarcar as chamadas situações de pré-insolvência, ou de insolvência preventiva, permitindo ao devedor iniciar um processo de negociação com os seus credores que evite a sua declaração de insolvência e os seus efeitos, através da reestruturação da dívida. No desenvolvimento dessas negociações, caso venha a ser aprovado[4] o acordo de pagamento, deve o processo ser concluso ao juiz a fim de aferir se se encontram reunidas as condições para a sua homologação, aplicando-se, para esse efeito e com as necessárias adaptações, o regime que se mostra estabelecido nos arts. 215º e 216º (ex vi do nº 5 do art. 222º-F). Assim, em consonância com o preceituado no art. 215º, o juiz deve recusar oficiosamente a homologação do plano aprovado com algum dos seguintes fundamentos alternativos: a)- Violação não negligenciável de normas procedimentais (vício de procedimento); b)- Violação não negligenciável[5] de normas aplicáveis ao conteúdo do acordo (vício de conteúdo). Por seu turno, no art. 216º está prevista a recusa de homologação a requerimento dos interessados, isto é, de interessado que se tenha oposto à aprovação do acordo e que essa oposição tenha sido manifestada nos autos antes dessa aprovação. Nesse caso, torna-se ainda mister que o interessado requerente consiga demonstrar em termos plausíveis e em alternativa que: a)- a «sua situação ao abrigo do acordo é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer acordo, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas»; b)- o «acordo proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar». Como se viu, a ora apelante busca suporte jurídico para a sua pretensão recursória convocando o regime plasmado no art. 215º, por considerar que, in casu, se verifica violação não negligenciável quer de normas procedimentais, quer de normas aplicáveis ao conteúdo do acordo aprovado e homologado. Registe-se, a este propósito, que malgrado a referida normatividade esteja, em primeira linha, dirigida ao juiz, no sentido de lhe conferir o papel de guardião da legalidade - cabendo-lhe, por conseguinte, evitar, ex officio, a ocorrência de vícios de procedimento ou de conteúdo -, nada obstaculizará (ao invés do que defende a devedora/apelada) que qualquer interessado que não tenha aprovado o acordo possa submeter a questão à apreciação do tribunal, solicitando então uma decisão não homologatória tendo por base a existência de vício não negligenciável de normas procedimentais ou de normas aplicáveis ao conteúdo do mesmo. Dito de outro modo, o interessado que pretenda obter a recusa da homologação pode fundar essa pretensão seja na invocação dos fundamentos a que se alude no art. 215º, seja na alegação das circunstâncias referidas no art. 216º. Ponto é que essa violação assuma a gravidade legalmente suposta, isto é, na expressão da lei, que se esteja em presença de “violação não negligenciável” de normas procedimentais[6] ou de normas aplicáveis ao conteúdo do acordo[7] e, neste caso, “qualquer que seja a natureza” da norma violada. A lei não definiu, no entanto, o que se deva entender por violação não negligenciável. Apesar de tal omissão na densificação desse conceito indeterminado, não será, como escrevem CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA[8], «especialmente difícil identificar, tanto na área do procedimento como na do conteúdo, situações que, consubstanciando todas elas a transgressão do que está legalmente determinado, em todo o caso revelam diferenças notórias no que tange à tutela dos interesses em causa, às vezes com o reconhecimento expresso da própria lei». E depois de elencarem vários exemplos, concluem que há um critério geral que é possível apontar, qual seja o de que «são não negligenciáveis, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são descartáveis as infrações que atinjam simplesmente as regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido». Em análogo sentido tem militado a jurisprudência que, neste domínio, vem considerando deverem ter-se por não negligenciáveis as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado não permitido pela lei, com influência na decisão do PEAP[9]. Portanto, no juízo apreciativo que lhe é cometido pelo citado nº 5 do art. 222º-F, o juiz deve cingir-se às situações de violação não negligenciável no sentido definido, excluindo do seu campo de avaliação as violações de caráter menor que, por não porem em causa o interesse do devedor e dos credores, não constituem, por isso, causa suficiente para recusa de homologação. Isto posto, importa, pois, dilucidar se o ajuizado acordo de pagamento enferma dos vícios de procedimento e de conteúdo que lhe são assacados pela apelante, por alegadamente o mesmo afrontar regras imperativas, concretamente: i) por não estarem verificados os pressupostos de aplicação do PEAP em virtude de a devedora se encontrar em situação de insolvência actual; ii) por ser inexequível esse acordo; iii) por haver omissão na indicação dos meios de cumprimento do mesmo; iv) e por derrogação não admitida do nº 4 do art. 217º.*Começando pelo primeiro dos referidos fundamentos, como anteriormente se deu nota, o regime do PEAP (cfr. arts. 1º, nº 3 e 222º-A, nº 1) é destinado a permitir ao devedor, que não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento. Exige-se, portanto, que o recurso ao PEAP se realize mediante a observância de dois pressupostos: um pressuposto de natureza subjectiva e outro de natureza objectiva. Não se discutindo, na espécie, a verificação do pressuposto subjectivo (posto que a devedora é uma pessoa singular não titular de empresa), a questão que, neste conspecto, é trazida à apreciação deste tribunal de recurso prende-se, precisamente, com a possibilidade de afirmação do requisito objectivo, qual seja saber se a devedora se encontra “em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente” ou antes - como sustenta a apelante - numa situação de verdadeira insolvência actual. Nas contra-alegações que apresentou a devedora advoga que a aludida questão não pode ser objecto de apreciação em sede recursiva na medida em que se baseia em “factos novos” que não foram alegados pelos credores nos requerimentos de não homologação. Não lhe assiste, contudo, razão. Na verdade, os dados de facto referentes à situação económica da devedora foram aportados aos autos pela própria, pelos credores e pelo administrador judicial provisório ainda em momento anterior à prolação da decisão de homologação do acordo de pagamento, não constituindo, pois, “factos novos” no sentido definido pela lei adjectiva (cfr., v.g. arts. 5º, 265º e 588º, todos do Cód. Processo Civil). Com efeito, como resultou provado, o passivo da devedora cifra-se no montante de €89.214.958,82. De igual modo, no que tange ao seu património, no requerimento com que deu início ao presente processo a devedora reconhece que apresenta “falta de liquidez que lhe permita efectuar o pagamento de algumas das suas dívidas, até porque lhe é difícil (senão impossível) obter crédito para o efeito”, instruindo essa peça processual com diversos documentos referentes à sua situação patrimonial. Assim, como documento nº 3, juntou cópia da declaração modelo 3 que apresentou perante a administração tributária referente aos rendimentos por si auferidos no ano de 2018, declarando um rendimento anual global de €50.026,03 (na sua essência resultantes de rendimentos da categoria A). Por seu turno, apresentou uma relação dos seus bens (documento nº 6) onde refere ser titular de: participações em sociedades comerciais, mas cujo valor global estimou em €0.00; um prédio urbano, sito em …, freguesia …, concelho de Santa Maria da Feira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº 2104 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. 5321, no valor actual estimado de €187.000,00. Acresce que (como, aliás, se refere na decisão recorrida), o administrador judicial provisório apresentou, em 9 de abril do corrente ano, informação no processo onde noticia que “os únicos bens detidos pela devedora (e que poderiam ser vendidos em processo de liquidação) são participações sociais das sociedades devedoras originais que se apresentaram a Processos Especiais de Revitalização ou Processos Especiais de Insolvência com recuperação, pelo que o seu valor económico e de mercado destas participações será muito diminuto e de difícil liquidação”. Perante a descrita realidade a questão que, então, importa apreciar é se a devedora se encontra (ou não) em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, sendo que apenas na afirmativa está legitimado o recurso ao PEAP. A situação económica difícil verifica-se, diz a lei (art. 222º-B), quando o devedor tenha “[d]ificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito”. Trata-se, todavia, de uma definição que não é particularmente informativa, na medida em que faz entrar substancialmente o definido na definição. Segundo GONÇALVES MACHADO[10], o conceito indeterminado “dificuldade” aponta para uma certa insuficiência de recursos financeiros do devedor para fazer face ao pagamento pontual e integral das suas obrigações, não se traduzindo, contudo, “numa incapacidade absoluta ou generalizada de cumprimento das obrigações”. O elemento “séria” traduz-se num incumprimento das obrigações, mas “que, atendendo ao seu montante e às condições económico-financeiras do devedor, sejam perfeitamente pagáveis”. A estes elementos devem ainda acrescentar-se “a falta de liquidez ou de meios próprios; não conseguir obter crédito; incumprimento, sobretudo quando reiterado de obrigações para com o Estado ou entidades bancárias; passivo superior ao ativo”, sendo pacificamente aceite pela doutrina que estes indícios são meramente exemplificativos não pretendendo o legislador com isto excluir outras situações que pudessem conduzir ao agravamento da situação patrimonial, designadamente perda de emprego, divórcio, aumento de dependentes a cargo, entre outros. Isso mesmo é enfatizado por CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA[11] quando escrevem que se encontra “em situação económica difícil o devedor que, pela ponderação dos diversos fatores que relevem na sua vida económica concreta, nomeadamente pela sua liquidez e capacidade de a obter e pela qualidade, consistência e evolução expectável das componentes do seu património, se encontre já, ou se anteveja já, na contingência efetiva de não cumprir pontualmente as suas obrigações (…)”. Na mesma senda SALAZAR CASANOVA/SEQUEIRA DINIS[12] entendem que “a situação económica difícil é a situação anterior à da insolvência iminente na qual o devedor, tendo embora um ativo suficiente para fazer face às suas obrigações, não as pode cumprir sem para isso praticar actos – designadamente negócios desfavoráveis em condições normais de mercado – que ponham em causa a sua viabilidade económica”. Podemos então afirmar que existe situação económica difícil sempre que o devedor enfrente dificuldades sérias no cumprimento das suas obrigações, designadamente por falta de liquidez, mesmo quando o ativo é ainda superior ao passivo mas não há liquidez disponível, ou por não conseguir obter crédito. Contudo mais difícil é definir a expressão “dificuldade séria”, que é um conceito vago meramente exemplificativo, que necessita de ser concretizado, afigurando-se-nos, na esteira da mencionada doutrina, poder afirmar-se que “dificuldade séria” é a dificuldade para cumprir pontualmente as obrigações, mas tal não pode implicar uma impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, pois neste caso o devedor encontrar-se-á já em situação de insolvência. No concernente ao conceito de insolvência meramente iminente o mesmo não é sequer concretizado no CIRE. ANA PRATA et al.[13] aduzem que deve considerar-se como tal “a situação em que o devedor está prestes a encontrar-se impossibilitado de cumprir as suas obrigações (art. 3º, nº 1) ou o passivo está prestes a ser superior ao ativo (art. 3º, nº 2), mas ainda seja possível a recuperação”. Citando Catarina Frade, mais indicam estes autores que “a insolvência iminente é uma situação difícil de definir, e por consequência difícil de diagnosticar. Na prática, não é fácil distingui-la com absoluta segurança da situação económica difícil e nem sequer da insolvência atual”. Dentro da mesma linha, LUÍS MARTINS[14] afirma que “o conceito de insolvência iminente é aberto e indefinido, implicando uma análise concreta da situação do devedor (tipo de obrigações que se vão vencer, incapacidade de recurso a crédito, impossibilidade de vender ativos, perdas empresariais, etc.). Esta situação passa sempre por uma previsão futura sobre a insuficiência económica e sua incapacidade de, a curto prazo, vir a realizar e honrar as obrigações assumidas e ainda não vencidas. A situação de insolvência iminente é conjeturada quando o devedor, de acordo com os critérios do homem comum ou um gestor criterioso e empenhado, sabe e não pode desconhecer que não conseguirá vir a honrar as obrigações assumidas a curto prazo (…). Em bom rigor, estar numa situação económica difícil ou em situação de insolvência eminente, acaba por ser a mesma coisa e com a mesma abrangência. Se tem dificuldades sérias em cumprir pontualmente as suas obrigações, acaba por se encontrar em situação de insolvência iminente. (…)”. Em suma: o devedor será considerado em situação de insolvência meramente iminente quando previsivelmente não irá estar na posição de cumprir as obrigações de pagamento existentes no momento do seu vencimento. Postos tais considerandos, é tempo de enfrentar a questão acima equacionada, sendo certo que, contrariamente ao que parece ser o entendimento da apelada, o facto de os credores (maxime a ora apelante) não terem suscitado directamente o problema da inverificação do aludido requisito objectivo, não obstaculiza que o tribunal, no contexto do citado art. 215º, possa (rectius, deva) ocupar-se desse pressuposto material e recusar a homologação do acordo de pagamento que tenha sido aprovado se concluir que os factos revelam o estado actual de insolvência da devedora. De facto, malgrado o papel residual que está deferido ao tribunal no PEAP, dúvidas não pode haver que esse papel é determinante em sede de aferição da legalidade do procedimento, devendo recusar oficiosamente a sua homologação se acaso concluir por uma violação não negligenciável de regras procedimentais. Ora, temos por certo que não poderá deixar de se catalogar como tal (isto é, como violação não negligenciável de regra procedimental) a apresentação de PEAP por devedor que se encontre impossibilitado de cumprimento das obrigações vencidas, ou seja, em situação de insolvência actual. Aliás, a este respeito, não será despiciendo registar que a doutrina pátria tem recorrentemente alertado para a necessidade de se evitar a prática de permitir a apresentação de PEAP em situações em que o requerente se encontra já em situação de insolvência, na justa medida em que essa atuação corresponde a uma adulteração da ratio essendi deste processo, enquanto processo pré-insolvencial[15]. Aqui chegados, perante a realidade acima descrita a propósito da situação patrimonial da devedora, afigura-se-nos claro que a mesma, aquando da abertura do presente processo, se encontrava – e continua a encontrar-se – em situação de insolvência actual, tal como esta é legalmente caracterizada no art. 3º, nº 1, e não em simples situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente. Como se referiu, é a própria devedora a reconhecer - através dos factos que indicou no seu requerimento inicial (arts. 10º a 12º) e nos documentos com que o instruiu - que quando instaurou o presente processo estava em situação que não lhe permitia proceder ao pontual cumprimento, designadamente, das obrigações pecuniárias em que havia prestado garantias pessoais e que se encontravam já vencidas[16]. Da mesma forma que significou nas peças processuais que apresentou que, pura e simplesmente, não possuía recursos (nem crédito) para liquidar as suas dívidas, sendo que o seu património não sofreu qualquer incremento positivo que lhe permita satisfazer o seu passivo global, que se cifra em valor superior a 89 milhões de euros. É facto que parte substancial desse passivo corresponde a garantias (pessoais) prestadas a sociedades comerciais de que é administradora, que viram ser aprovados e homologados planos de revitalização (no caso da “E…, SGPS, S.A.) ou planos de insolvência e recuperação (no caso das sociedades “F…, S.A.” e “H…, SGPS, S.A.”). No entanto, essa circunstância não contende com a posição dos credores relativamente aos garantes desses entes societários, já que, por mor do disposto no art. 217º, nº 4, os efeitos dessas aprovações não lhes são extensivos, mantendo aqueles incólumes os direitos que contra eles dispõem, podendo deles exigir (no imediato) tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário[17]. É certo que, como acima se deixou evidenciado, os conceitos de situação económica difícil e de situação de insolvência meramente iminente se resolvem em proposições algo vagas e nem sempre claramente distinguíveis do conceito de insolvência actual. Porém, essa dificuldade de distinção não se coloca no caso vertente, porquanto é inequívoco que a devedora se encontra (ainda antes da propositura do PEAP) em situação de insolvência, pois que a realidade anteriormente descrita revela que caiu em estado de (manifesta) impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas face à notória desproporção entre as situações jurídicas ativas e passivas que se registam na sua esfera jurídica patrimonial e da (por si) reconhecida incapacidade de recorrer ao crédito. O que indica com toda a clareza uma situação de incontornável impossibilidade de satisfação pontual da generalidade dos seus débitos, sendo que não é o facto de se ter logrado obter a aprovação do acordo de pagamento que altera esse efeito. Consequentemente, ocorre, in casu, violação não negligenciável de regra procedimental (qual seja a inviabilidade de ser requerido PEAP por devedor insolvente) que conduzirá inelutavelmente à recusa de homologação do acordo de pagamento. Procedem, por conseguinte, as conclusões 1.7 e 1.8 ficando, nessa medida, prejudicada a apreciação das questões atinentes à ocorrência dos apontados vícios de conteúdo (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Processo Civil).*** III. DISPOSITIVOPelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, em consequência do que se decide revogar a decisão que homologou o ajuizado acordo de pagamento. Custas do recurso a cargo da apelada/devedora.*Porto, 26 de outubro de 2020 Miguel Baldaia de Morais Jorge Seabra Pedro Damião e Cunha _____________________ [1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem. [2] O conceito de devedor não empresário resulta da conjugação dos arts. 2º e 5º. [3] Cfr., para maior desenvolvimento sobre a natureza e regime deste processo, SOVERAL MARTINS, As alterações ao CIRE quanto ao PER e ao PEAP, in Estudos de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, págs. 7 e seguintes, ANA ALVES LEAL/CLÁUDIA TRINDADE, O processo especial para acordo de pagamento (PEAP): o novo regime pré-insolvencial para devedores não empresários, in Revista de Direito das Sociedades, Ano IX (2017), n.º 1. págs. 70 e seguintes e CATARINA SERRA, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2019, págs. 585 e seguintes, que o carateriza como um processo híbrido que combina uma fase informal (ou negocial) e uma fase formal (judicial), ressaltando outrossim que o mesmo é dominado pela autonomia dos credores e do devedor, pela desjudicialização e bem assim pela celeridade. [4] Nos termos do nº 3 do art. 222º-F, o acordo considera-se aprovado se da lista de créditos elaborada pelo administrador judicial provisório tiverem votado credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto; recolher mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondam a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções. [5] Vem-se discutido se a recusa oficiosa da homologação com base na violação das normas aplicáveis ao conteúdo só deve ocorrer se aquela violação também for “não negligenciável” – neste sentido CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABEREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3ª edição, pág. 825, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, Almedina, 6ª edição, pág. 301 e SOVERAL MARTINS, Um curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pág. 444; em contrário, TARSO DOMINGUES, O CIRE e a recuperação das sociedades comerciais em crise, pág. 38, que contrapõe “violação não negligenciável de regras procedimentais” a “violação de normas aplicáveis ao conteúdo, qualquer que seja a sua natureza”. [6] Como tal se considerando aquelas que regulam o iter processualmente estabelecido para o desenvolvimento do PEAP, ou seja os passos que nele devem ser dados até à aprovação e homologação do acordo e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado. [7] Nesta categoria integram-se não só todas as normas respeitantes à parte dispositiva do acordo, mas, além delas, ainda as que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que o mesmo deve contemplar. [8] Ob. citada, págs. 713 e seguinte. [9] Cfr., inter alia, acórdão da Relação de Évora de 7.06.2018 (processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/204996" target="_blank">1022/17.8T8OLH.E1</a>) e acórdão da Relação de Guimarães de 23.01.2020 (processo nº <a href="https://acordao.pt/decisoes/190671" target="_blank">1873/19.9T8VNF.G1</a>), acessíveis em www.dgsi.pt. [10] In O dever de renegociar no âmbito pré-insolvencial – Estudo comparativo sobre os principais mecanismos de recuperação, Almedina, 2017, págs. 125 e seguinte. [11] Ob. citada, pág. 144. [12] In O Processo Especial de Revitalização – Comentários aos artigos 17.º-A a 17.º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora, 2014, pág. 24. [13] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pág. 54. [14] In Recuperação de Pessoas Singulares, vol. I, 2ª ed., pág. 20. [15] Cfr., por todos, CATARINA SERRA, ob. citada, págs. 584-586. [16] Desde logo por aplicação do art. 91º. [17] Refira-se, a este propósito, que a devedora filia, em grande medida, a sua argumentação para requerer o PEAP numa convicção (meramente subjectiva) de que os débitos por si garantidos serão satisfeitos pelas sociedades devedoras originárias, adiantando (cfr. art. 8º do requerimento inicial) que “confia seriamente que as referidas sociedades vão cumprir com os planos de recuperação”.
Processo nº 3975/19.2T8OAZ.P1Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Oliveira de Azeméis – Juízo de Comércio, Juiz 1Relator: Miguel Baldaia Morais 1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra 2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha * SUMÁRIO............................................. ............................................. .............................................* I- RELATÓRIOB… veio propor o presente processo especial para acordo de pagamento com o propósito de estabelecer negociações com os seus credores, de modo a concluir com estes um acordo de pagamento, alegando, para tanto, encontrar-se presentemente com falta de liquidez que lhe permita efectuar o pagamento integral dos seus débitos. Nomeado administrador judicial provisório, deu-se início às negociações que culminaram com a aprovação do acordo de pagamento apresentado com os votos favoráveis de 78,95% dos 99,39% dos votos emitidos. Os credores Banco C… S.A. e Banco D… S.A. formularam pedidos de não homologação do referido acordo alegando, em síntese, que fixando-se o passivo da devedora em mais de 80 milhões de euros e estando previsto o pagamento, nos primeiros onze anos de 3,55% da dívida e no 12º ano de 96,45% dos créditos, tal acordo é inexequível. Invocaram ainda que se o acordo não for homologado os credores podem accionar todos os mecanismos de ressarcimento dos respectivos créditos junto da devedora, sem que, para tal, estejam dependentes do incumprimento de outros planos e sem qualquer moratória ou sem que tenham de esperar 12 anos para perceber se o seu crédito será pago ou não. Notificados o administrador judicial provisório e a devedora para responderem aos pedidos dos credores oponentes, defendeu o primeiro a viabilidade do acordo alegando que os Processos Especiais de Revitalização das devedoras originais encontram-se a ser cumpridos, que os créditos aqui reconhecidos são créditos comuns, que os únicos bens detidos pela devedora (e que poderiam ser vendidos em processo de liquidação) são participações sociais das sociedades devedoras originais que se apresentaram a PER ou que apresentaram plano de insolvência pelo que o seu valor económico e de mercado será muito diminuto e de difícil liquidação, a que acresce o facto de neste PEAP não se prever qualquer perdão dos créditos ao passo que, numa insolvência, e com o pedido de exoneração do passivo restante, o pagamento aos credores só se faria nos cinco anos da cessão, após o que ficariam perdoados. Por seu turno, a devedora alegou que os pedidos de recusa de homologação não deveriam ser aceites até porque os credores oponentes não concretizaram de que modo, num processo de insolvência, com liquidação dos bens da devedora, ficariam em situação mais favorável. * A devedora foi convidada a esclarecer de que forma conseguiria no 12º ano pagar 96,45% dos créditos relacionados, acaso o acordo fosse cumprido durante os primeiros 11 anos de execução e explicou que o acordo de pagamentos aqui aprovado está em total conjugação com todos os planos de pagamento das várias sociedades devedoras originárias e dos planos dos co-devedores avalistas prevendo-se que o pagamento dos créditos comuns que resultem de aval ou fiança fica subordinado à exigência de incumprimento pelos devedores originários (sociedades avalizadas) dos Planos de Recuperação, Planos de Pagamento ou Planos de Insolvência, aprovados ou a aprovar, iniciando-se o seu pagamento seis meses após a declaração de insolvência ou incumprimento do Plano de Pagamentos ou do Plano de Recuperação aprovado em Processo Especial de Revitalização ou em Processo de Insolvência. Foi então proferida decisão que homologou o acordo de pagamentos apresentado e aprovado pela maioria dos credores da devedora. Não se conformando com o assim decidido, a credora “Banco D… S.A. – Sociedade Aberta” interpôs o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES:1. O acordo de pagamento apresentado pelo recorrida B… foi, erradamente, homologado pelo Tribunal a quo, não só porque o seu raciocínio está inquinado por se ter baseado em factos que não poderiam ter sido dados como provados, mas também porque foram violadas normas imperativas relativas à natureza do processo especial para acordo de pagamento e ao conteúdo de qualquer acordo de pagamento. 1.1. Os factos nºs 4 e 8 que constam da matéria de facto provada na sentença recorrida não correspondem à realidade, bastando confrontar os planos de recuperação das sociedades “E…” e “F…, S.A.”, para perceber que foram previstos perdões de dívida: no caso daquela sociedade, estabeleceu-se um perdão de parte do capital e da totalidade dos juros vencidos; no caso desta sociedade, estabeleceu-se um perdão dos juros vencidos – cfr. planos juntos como documentos nºs 2 e 4 com o requerimento da devedora de 12 de maio de 2020 (com a referência eletrónica n.º 10097286). 1.2. Neste sentido, os factos nºs 4 e 8 que constam da matéria de facto provada deverão passar a constar da matéria de facto provada. 1.3. Já o facto n.º 6 da matéria de facto provada não corresponde, inteiramente, à realidade, uma vez que – ao contrário do que fez o Tribunal a quo - não se pode dar como garantido o valor do património imobiliário da sociedade “E…”, com base numa avaliação feita pela própria sociedade. 1.4. Na melhor das hipóteses, as regras da lógica e da experiência comum permitiriam que se desse como provado o seguinte facto: "A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário avaliado, pela própria em 2014, em 99.312.069,00€ e esse património está hipotecado aos credores D… e G… que reclamaram nestes autos a sua dívida avalizada pela devedora;" 1.5. Impugnam-se, assim, os factos dados como provados sob os nºs 4, 6 e 8 da matéria de facto provada. 1.6. Ainda que os factos provados não sofressem alteração, o desfecho dos presentes autos teria de ser a não homologação do acordo de pagamento. 1.7. O processo especial para acordo de pagamento está vedado a quem já se encontra em situação de insolvência (art. 222.º-A n.º 1 do CIRE), como é o caso da recorrida, porque, como a própria admite, o seu passivo excede, em grande medida, o seu ativo e não tem rendimentos que lhe permitam liquidar a dívida vencida por força do incumprimento das sociedades F…, S.A. e H…, SGPS, S.A., cujas obrigações foram por si avalizadas. 1.8. O Tribunal a quo dispõe de vários elementos que atestam a situação de insolvência atual da devedora/recorrida (nomeadamente a lista de dívidas junta como documento n.º 5 com o requerimento inicial, a relação de bens junta como documento n.º 6 com o requerimento inicial e a lista de créditos reconhecidos) e, a título oficioso, deveria ter recusado a homologação do acordo de pagamento, por violação, não negligenciável, da regra do art. 222.º-A n.º 1 (aplicando o art. 215.º, para o qual remete o art. 222.º-F n.º 5). 1.9. Sabendo que está insolvente e que não tem capacidade para cumprir qualquer plano de pagamento prestacional, a devedora/recorrida não referiu no acordo de pagamento os meios financeiros que lhe permitiriam liquidar os créditos em dívida, que ascendem a €89.214.958,82 (oitenta e nove milhões, duzentos e catorze mil, novecentos e cinquenta e oito euros e oitenta e dois cêntimos) – cfr. lista de credores reconhecidos junta aos autos com o requerimento do Administrador Judicial Provisório de 16 de dezembro de 2019 com a referência n.º 9592439 – como era sua obrigação, por imposição do art. 195.º n.º 2, al. c) do CIRE (aplicável por remissão do art. 222.º-F n.º 5). 1.10. A omissão dos meios de cumprimento do acordo de pagamento constitui uma violação não negligenciável do art. 195.º n.º 2, al. c) do CIRE, relativa ao conteúdo do plano, porque a vontade de aprovar ou não aprovar o acordo de pagamento é, diretamente, influenciada pela capacidade que a devedora demonstre para cumprir esse acordo e o mesmo se diz relativamente à decisão de homologação, porque não pode ser homologado um acordo de pagamento inexequível. 1.11. Ainda que a devedora/recorrida tivesse cumprido este requisito, a verdade é que seria sempre evidente a sua incapacidade para suportar qualquer plano de pagamento, porque os seus rendimentos anuais, embora superiores ao padrão do cidadão comum (sendo superiores a €50.000,00 (cinquenta mil euros) – cfr. declaração de rendimentos junta como documento n.º 3 com o requerimento inicial), são diminutos perante a quantia em dívida. 1.12. Por não possuir meios financeiros para liquidar a dívida abrangida pelo acordo de pagamento, é manifesta a sua inexequibilidade, o que contraria a essência e o objectivo fundamental do processo especial de acordo de pagamento, que é recuperar a devedora e evitar a sua insolvência (art. 222.º-A). 1.13. Portanto, quer por não serem expostos os meios financeiros que permitiriam suportar as prestações previstas no acordo de pagamento, quer por não ser exequível, deveria ter sido recusada, oficiosamente, a homologação do acordo (art. 215.º, aplicável por remissão do art. 222.º-F n.º 5). 1.14. Mesmo que o acordo de pagamento explicasse como seriam obtidos os meios financeiros para cumprir as prestações previstas no acordo de pagamento e mesmo que o acordo fosse exequível, continuaria a estar vedada a sua homologação, por violação do regime do aval (arts. 30.º e 32.º da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças e do art. 601.º do Código Civil) e do princípio da igualdade de tratamento de credores (art. 194.º do CIRE). 1.15. O acordo de pagamento subordina o nascimento, na esfera jurídica da devedora/recorrida, da obrigação de pagar qualquer quantia à recorrente à verificação de um acontecimento futuro e incerto, mais propriamente o incumprimento das sociedades E…, SGPS, S.A., F…, S.A. e H…, SGPS, S.A. dos seus planos de recuperação – cfr. página 9 do acordo de pagamento homologado, erradamente, pelo Tribunal a quo. 1.16. Não se verificando este incumprimento, a devedora/recorrida não pagará qualquer quantia ao recorrente, nem aos demais credores, extinguindo-se as dívidas que foram objecto de perdão nos planos de recuperação das sociedades E…, SGPS, S.A., F…, S.A. e H…, SGPS, S.A.. 1.17. Nos planos de recuperação da F…, S.A. e H…, SGPS, S.A. – que são do conhecimento funcional do Tribunal a quo, porque foram aprovados em processos que correm termos no mesmo Tribunal – encontra-se previsto o perdão dos juros remuneratórios e moratórios vencidos e vincendos; no plano de recuperação da E…, SGPS, S.A. prevê-se o não pagamento de parte do capital, bem como de juros vencidos. 1.18. Por isso, se as sociedades E…, SGPS, S.A., F…, S.A. e H…, SGPS, S.A. cumprirem os seus planos de recuperação, a devedora/recorrida não pagará qualquer quantia ao recorrente relativa aos juros remuneratórios e moratórios vencidos e vincendos, quando reconhece auferir rendimentos anuais de cerca de €50.000,00 (cinquenta mil euros) – cfr. declaração de rendimentos junta como documento n.º 3 com o requerimento inicial. 1.19. O processo especial de acordo de pagamento visa reestruturar as dívidas em função das capacidades da devedora em situação económica difícil ou de insolvência iminente (o que, como vimos, não é o caso da recorrida) e não impor a extinção dos direitos de crédito em dívida, independentemente da capacidade de pagamento da devedora, como resulta do acordo de pagamento homologado. 1.20. O acordo de pagamento homologado apenas visa estender os efeitos dos planos de recuperação das sociedades E…, SGPS, S.A., F…, S.A. e H…, SGPS, S.A. à própria devedora/recorrida, beneficiando dos perdões de dívida aí previstos, (i) em flagrante fraude ao art. 217.º n.º 4 do CIRE, (ii) em violação da natureza solidária do aval (arts. 30.º e 32.º da LULL) e (iii) em violação da garantia geral das obrigações concedida pelo património da devedora (art. 601.º do CC). 1.21. Assim, a sujeição do pagamento dos créditos emergentes de aval ao incumprimento das sociedades E…, SGPS, S.A., F…, S.A. e H…, SGPS, S.A. dos seus planos de recuperação viola normas imperativas relativas ao conteúdo do acordo de pagamento, que obrigam à sua não homologação (art. 215.º do CIRE). 1.22. Em conclusão, o Tribunal a quo violou os arts. 192.º nºs 1 e 2, 194.º nºs 1 e 2, 195.º n.º 2, al. c), 207.º n.º 1, al. a) e c), 215.º, 216.º, 217.º n.º 4, 222.º-A e 222.º-F n.º 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os arts. 30.º e 32.º da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças e o art. 601.º do Código Civil. 1.23. A correta interpretação e aplicação destas normas obriga à não homologação do acordo de pagamento apresentado pela recorrida B….*A devedora apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.*Após os vistos legais, cumpre decidir.*** II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO 1. Definição do objeto do recursoO objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil ex vi do art. 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas: determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto; determinar se o acordo de pagamento aprovado e homologado no âmbito do presente processo enferma (ou não) de vícios de procedimento e/ou de conteúdo que importam a recusa de homologação do mesmo.*** 2. Recurso da matéria de facto 2.1. Factualidade considerada provada na sentençaNa 1ª instância consideraram-se provados os seguintes factos: 1 – Nestes autos foram reconhecidos créditos no montante de 89.214.958,82€; 2 – [A devedora] é administradora das sociedades “F…, S.A.” e “H…, SGPS, S.A.”; 3 – Para além do crédito reconhecido ao ISS, no montante de 970.262,11€, todos os demais créditos reconhecidos se referem a dívidas avalizadas à E…, SGPS, S.A. e suas participadas, a aval a garantias bancárias de boa execução de obra prestadas à devedora originária F…, S.A., a dívidas avalizadas à F…, S.A., e a dívidas avalizadas à H…, SGPS, S.A. 4 – A E…, SGPS, S.A. aprovou, no PER nº 2179/13.2TBABF, um plano de recuperação no qual é previsto o pagamento integral da dívida aos seus credores através do produto da venda de todos os imóveis, bem como dos proveitos que resultam da exploração da Marina I… (concessionada até ao ano de 2082) e dos Apartamentos Turísticos da …. 5 – O plano de recuperação da E…, SGPS, S.A., foi homologado por sentença transitada em julgado em 28/04/2014, termina em 28/04/2034 e o capital em dívida nesse processo ascende a 75.552.143,39€; 6 – A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário avaliado, em 2014, em 99.312.069,00€ e esse património está hipotecado aos credores D… e G… que reclamaram nestes autos a sua dívida avalizada pela devedora; 7 - A F…, S.A. aprovou um plano de insolvência e recuperação no processo de insolvência nº 3022/16.6T8OAZ cuja decisão de homologação transitou em julgado em 27 de Junho de 2017 e que está a ser cumprido. 8 – Nesse plano está previsto o pagamento integral das dívidas aos seus credores que termina em 31 de Dezembro de 2032; 9 – A F…, S.A. tem um património cujo valor de aquisição ascende a 46.030.384,15€; 10 – No ano de aprovação do plano de insolvência (2017) e no ano de 2018 teve resultados positivos que ascendem a 368.453,41€; 11 – A H…, SGPS, S.A. aprovou, no processo de insolvência nº 3531/19.5T8OAZ, um plano de insolvência e recuperação que prevê o integral pagamento do capital em dívida aos seus credores até ao ano 2035; 12 – O plano de insolvência tem por base os proveitos obtidos pela venda de participações sociais e bem assim os dividendos que lhe sejam distribuídos pelas suas participadas e também prevê um pagamento “bullet” em 2032 levando em consideração que nesse ano a participada com maior potencial de crescimento (a F…, S.A.) terá já cumprido o seu plano de pagamento e será uma sociedade com património elevado e isenta de dívidas; uma parte (ou mesmo a totalidade) do capital social da F…, S.A. poderá ser vendido numa altura em que o plano de recuperação da mesma estará cumprido; 13 – A aqui devedora é, conjuntamente com o seu pai, J…, sua mãe, K… e sua irmã, L… (que, consigo, são co-devedores avalistas) detentora da totalidade de capital da H…, SGPS, S.A. e indirectamente de todas as participadas desta; 14 – Está prevista a venda, em 2032, das participações societárias detidas.* 2.2. Apreciação da impugnação da matéria de factoNas conclusões recursivas veio a apelante requerer a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto vertida nos pontos nºs 4, 6 e 8 dos factos provados, com fundamento em erro na apreciação da prova. Vejamos. Nos referidos pontos deu-se como provado que: “A E…, SGPS, S.A. aprovou, no PER nº 2179/13.2TBABF, um plano de recuperação no qual é previsto o pagamento integral da dívida aos seus credores através do produto da venda de todos os imóveis, bem como dos proveitos que resultam da exploração da Marina I… (concessionada até ao ano de 2082) e dos Apartamentos Turísticos da …” (ponto nº 4); “A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário avaliado, em 2014, em 99.312.069,00€ e esse património está hipotecado aos credores D… e G… que reclamaram nestes autos a sua dívida avalizada pela devedora” (ponto nº 6); “Nesse plano [da sociedade F…, S.A.] está previsto o pagamento integral das dívidas aos seus credores que termina em 31 de Dezembro de 2032” (ponto nº 8). Sustenta a apelante que, contrariamente ao que consta dos pontos nºs 4 e 8, os planos de recuperação da “E…, SGPS, S.A.” e da “F…, S.A.” não prevêem o pagamento integral das suas dívidas, devendo, nessa medida, as referidas proposições factuais transitar para o elenco dos factos não provados. Por seu turno, em relação ao ponto nº 6 preconiza a alteração da sua redacção, porquanto a materialidade aí acolhida - no que especialmente respeita à avaliação do património imobiliário da “E…, SGPS, S.A.” - se filiou única e exclusivamente numa lista de valores de imóveis apresentada pela própria “E…” e não por qualquer entidade avaliadora credenciada e independente. Pugna, assim, pela inserção nesse ponto da expressão “[A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário] avaliado, pela própria em 2014, em 99.312,069,00€”. Começando pelos pontos nºs 4 e 6, após consultar o plano de recuperação da “E…, SGPS, S.A.” e o plano de insolvência e recuperação da “F…, S.A.” que foram juntos aos autos, verifica-se, na verdade, que a redacção dada a esses pontos de facto não traduz com exactidão o que nesses planos foi objecto de aprovação e de posterior homologação. No entanto, ao invés do que advoga a apelante, tal não justifica que essas proposições factuais, pura e simplesmente, transitem para os factos não provados, devendo antes ser rectificada a redacção dos pontos em crise de modo a que os mesmos acolham, com fidedignidade, o que efectivamente consta dos referidos planos. Como assim, por se mostrar mais conforme com elementos probatórios que adrede foram aportados a estes autos, decide alterar-se a redacção dos pontos nºs 4 e 8 que passarão a ter o seguinte teor: Ponto nº 4 “No Processo Especial de Revitalização proposto pela sociedade E… SGPS, S.A., que correu seus termos pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira sob o nº 2179/13.2TBABF, foi aprovado um plano de recuperação no qual se prevê Quanto aos créditos comuns: i). Perdão dos juros e encargos vencidos e vincendos; ii). Perdão de parte do capital já perdoado em acordos de pagamento anteriores ao PER (ainda que incumpridos); iii). Prazo reembolso de 20 anos, contado após o trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação; iv). Um período de carência de capital de 12 anos, contado após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação; v). Pagamento dos créditos, em 12 anos, em 32 amortizações de capital, trimestrais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira 147 meses, após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação. Quanto aos créditos garantidos i). Perdão dos juros vencidos até à data de homologação do Plano de Recuperação”; ii). Perdão de juros vincendos até ao trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano; iii). Do 1º ao 10º ano a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação, cálculo de juros à taxa EURIBOR a 12 Meses acrescida de 0,25%, não capitalizável; iv). Do 11º ao 20º ano: a) Cálculo de juros à taxa Euribor a 12 Meses acrescida de 1,25%, ou, em opção a exercer pelos credores garantidos, b) Perdão de juros entre o 11º ano e 15º ano e remuneração sobre o capital em dívida entre o 16º ano e o 20º ano à taxa Euribor a 12 acrescida de um spread de 1,5%, gozando os credores que optaram por esta situação de uma cláusula de regresso de melhor fortuna sobre os valores calculados até ao limite do valor que seria devido de juros entre o 11º ano e 15º ano sobre o diferencial que exceder em 10% a tabela de vendas conforme anexo K; v). Prazo reembolso de 20 anos, contado após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação; vi). Vencimento anual de juros, até ao integral pagamento, com carência do seu pagamento pelo período de 10 anos após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação; vii). Um período de carência de capital de 10 anos, contado após a data de homologação do Plano de Recuperação, excepto em caso de venda de activos imobiliários durante o período de carência, caso em que serão observadas o conjunto de regras de pagamento descritas em V, VI e VII (amortização antecipada da dívida); viii). Pagamento de 100% dos créditos, em 10 anos, em 40 amortizações de capital e juros, trimestrais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira 123 meses, após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação, sendo o valor liquidado antecipadamente nos termos da alínea anterior (produto da venda de activos imobiliários), deduzido pro rata no valor de cada uma das amortizações ainda não liquidadas; Manutenção das actuais garantias, nomeadamente garantias reais (hipotecas e penhores), prestadas pela Devedora, holding e demais sociedades do grupo, assim como todas as garantias pessoais prestadas para bom cumprimento dos créditos». Ponto nº 8 «Nesse plano [de insolvência e recuperação da F…, S.A.] está previsto o pagamento dos créditos nos seguintes termos: Créditos garantidos Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar semestralmente e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 65% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte plano (…); Perdão de juros vencidos e não pagos até à data de declaração da insolvência, incluindo os juros que tenham sido capitalizados; Os juros durante o período do plano serão calculados à taxa EURIBOR 12M, tendo como limite mínimo Zero (“Floor 0”) + 0,75% a aplicar ao saldo em dívida e serão liquidados semestralmente e postecipadamente, com início 6 meses após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação; Manutenção das garantias existentes. Quanto aos créditos comuns Os credores comuns poderão optar por um dos seguintes planos de pagamento, devendo tal opção ser comunicada por escrito à devedora até ao prazo máximo de oito dias a contar da data da homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação (caso não exerçam a opção, considerar-se-á a opção B1):Plano de Pagamento – B.1:Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar anual e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 60% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte escalonamento (…); Perdão total dos juros vencidos, incluindo os juros que tenham sido capitalizados, e vincendos.Plano de Pagamento – B.2Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar anual e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 70% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte plano (…); Perdão de juros vencidos até à data de declaração de insolvência, incluindo os juros que tenham sido capitalizados; O indexante para os créditos denominados em kwanzas (AOA) será a LUIBOR a 12 meses, mantendo-se o spread acima proposto para as operações em EUR; Os juros durante todo o período do plano serão calculados à taxa EURIBOR 12M, tendo como limite mínimo Zero (“Floor 0”) + 0,50% a aplicar ao saldo em dívida e serão liquidados semestral e postecipadamente, com início 6 meses após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de insolvência e de recuperação; Manutenção das garantias existentes». Por último, no concernente à requerida alteração da redacção do ponto nº 6, assiste razão à apelante porquanto o valor do património imobiliário da sociedade “E…, SGPS, S.A.” aí indicado se ancorou unicamente numa declaração (que constitui o anexo K do respectivo PER) elaborada por esse ente societário onde é feita referência – sem qualquer justificação objectiva e desacompanhada de outros elementos que o comprovem, designadamente documentos fiscais e/ou contabilísticos – ao montante de €99.312.069,00 como correspondendo ao valor global do seu património imobiliário. Justifica-se, por isso, a alteração do aludido ponto factual que passará a ter a seguinte redacção: «A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário avaliado, pela própria em 2014, em 99.312,069,00€ e esse património está hipotecado aos credores D… e G… que reclamaram nestes autos a sua dívida avalizada pela devedora».*** 3. FUNDAMENTOS DE FACTOFace à decisão que antecede, passa a ser a seguinte a factualidade provada: 1 – Nestes autos foram reconhecidos créditos no montante de 89.214.958,82€; 2 – [A devedora] é administradora das sociedades “F…, S.A.” e “H…, SGPS, S.A.”; 3 – Para além do crédito reconhecido ao ISS, no montante de 970.262,11€, todos os demais créditos reconhecidos se referem a dívidas avalizadas à E…, SGPS, S.A. e suas participadas, a aval a garantias bancárias de boa execução de obra prestadas à devedora originária F…, S.A., a dívidas avalizadas à F…, S.A., e a dívidas avalizadas à H…, SGPS, S.A. 4 - No Processo Especial de Revitalização proposto pela sociedade E… SGPS, S.A., que correu seus termos pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira sob o nº 2179/13.2TBABF, foi aprovado um plano de recuperação no qual se prevê Quanto aos créditos comuns: i). Perdão dos juros e encargos vencidos e vincendos; ii). Perdão de parte do capital já perdoado em acordos de pagamento anteriores ao PER (ainda que incumpridos); iii). Prazo reembolso de 20 anos, contado após o trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação; iv). Um período de carência de capital de 12 anos, contado após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação; v). Pagamento dos créditos, em 12 anos, em 32 amortizações de capital, trimestrais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira 147 meses, após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação. Quanto aos créditos garantidos i). Perdão dos juros vencidos até à data de homologação do Plano de Recuperação”; ii). Perdão de juros vincendos até ao trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano; iii). Do 1º ao 10º ano a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação, cálculo de juros à taxa EURIBOR a 12 Meses acrescida de 0,25%, não capitalizável; iv). Do 11º ao 20º ano: a) Cálculo de juros à taxa Euribor a 12 Meses acrescida de 1,25%, ou, em opção a exercer pelos credores garantidos, b) Perdão de juros entre o 11º ano e 15º ano e remuneração sobre o capital em dívida entre o 16º ano e o 20º ano à taxa Euribor a 12 acrescida de um spread de 1,5%, gozando os credores que optaram por esta situação de uma cláusula de regresso de melhor fortuna sobre os valores calculados até ao limite do valor que seria devido de juros entre o 11º ano e 15º ano sobre o diferencial que exceder em 10% a tabela de vendas conforme anexo K; v). Prazo reembolso de 20 anos, contado após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação; vi). Vencimento anual de juros, até ao integral pagamento, com carência do seu pagamento pelo período de 10 anos após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação; vii). Um período de carência de capital de 10 anos, contado após a data de homologação do Plano de Recuperação, excepto em caso de venda de activos imobiliários durante o período de carência, caso em que serão observadas o conjunto de regras de pagamento descritas em V, VI e VII (amortização antecipada da dívida); viii). Pagamento de 100% dos créditos, em 10 anos, em 40 amortizações de capital e juros, trimestrais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira 123 meses, após a data de trânsito em julgado da homologação do Plano de Recuperação, sendo o valor liquidado antecipadamente nos termos da alínea anterior (produto da venda de activos imobiliários), deduzido pro rata no valor de cada uma das amortizações ainda não liquidadas; Manutenção das actuais garantias, nomeadamente garantias reais (hipotecas e penhores), prestadas pela Devedora, holding e demais sociedades do grupo, assim como todas as garantias pessoais prestadas para bom cumprimento dos créditos. 5 – O plano de recuperação da E…, SGPS, S.A., foi homologado por sentença transitada em julgado em 28/04/2014, termina em 28/04/2034 e o capital em dívida nesse processo ascende a 75.552.143,39€; 6 – A E…, SGPS, S.A. tem um património imobiliário avaliado, em 2014, em 99.312.069,00€ e esse património está hipotecado aos credores D… e G… que reclamaram nestes autos a sua dívida avalizada pela devedora; 7 - A F…, S.A. aprovou um plano de insolvência e recuperação no processo de insolvência nº 3022/16.6T8OAZ cuja decisão de homologação transitou em julgado em 27 de Junho de 2017 e que está a ser cumprido. 8 – Nesse plano [de insolvência e recuperação da F…, S.A.] está previsto o pagamento dos créditos nos seguintes termos: Créditos garantidos Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar semestralmente e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 65% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte plano (…); Perdão de juros vencidos e não pagos até à data de declaração da insolvência, incluindo os juros que tenham sido capitalizados; Os juros durante o período do plano serão calculados à taxa EURIBOR 12M, tendo como limite mínimo Zero (“Floor 0”) + 0,75% a aplicar ao saldo em dívida e serão liquidados semestralmente e postecipadamente, com início 6 meses após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação; Manutenção das garantias existentes. Quanto aos créditos comuns Os credores comuns poderão optar por um dos seguintes planos de pagamento, devendo tal opção ser comunicada por escrito à devedora até ao prazo máximo de oito dias a contar da data da homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação (caso não exerçam a opção, considerar-se-á a opção B1):Plano de Pagamento – B.1:Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar anual e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 60% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte escalonamento (…); Perdão total dos juros vencidos, incluindo os juros que tenham sido capitalizados, e vincendos.Plano de Pagamento – B.2Período de carência de 4 anos, contado após trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência e de Recuperação, prestações crescentes a liquidar anual e postecipadamente, ao longo dos 11 anos seguintes ao período de carência, com amortização de 70% da dívida no 11º ano (correspondente ao 15º, considerando a carência) de acordo com o seguinte plano (…); Perdão de juros vencidos até à data de declaração de insolvência, incluindo os juros que tenham sido capitalizados; O indexante para os créditos denominados em kwanzas (AOA) será a LUIBOR a 12 meses, mantendo-se o spread acima proposto para as operações em EUR; Os juros durante todo o período do plano serão calculados à taxa EURIBOR 12M, tendo como limite mínimo Zero (“Floor 0”) + 0,50% a aplicar ao saldo em dívida e serão liquidados semestral e postecipadamente, com início 6 meses após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de insolvência e de recuperação; Manutenção das garantias existentes. 9 – A F…, S.A. tem um património cujo valor de aquisição ascende a 46.030.384,15€; 10 – No ano de aprovação do plano de insolvência (2017) e no ano de 2018 teve resultados positivos que ascendem a 368.453,41€; 11 – A H…, SGPS, S.A. aprovou, no processo de insolvência nº 3531/19.5T8OAZ, um plano de insolvência e recuperação que prevê o integral pagamento do capital em dívida aos seus credores até ao ano 2035; 12 – O plano de insolvência tem por base os proveitos obtidos pela venda de participações sociais e bem assim os dividendos que lhe sejam distribuídos pelas suas participadas e também prevê um pagamento “bullet” em 2032 levando em consideração que nesse ano a participada com maior potencial de crescimento (a F…, S.A.) terá já cumprido o seu plano de pagamento e será uma sociedade com património elevado e isenta de dívidas; uma parte (ou mesmo a totalidade) do capital social da F…, S.A. poderá ser vendido numa altura em que o plano de recuperação da mesma estará cumprido; 13 – A aqui devedora é, conjuntamente com o seu pai, J…, sua mãe, K… e sua irmã, L… (que, consigo, são co-devedores avalistas) detentora da totalidade de capital da H… SGPS, S.A. e indirectamente de todas as participadas desta; 14 – Está prevista a venda, em 2032, das participações societárias detidas.*** 4. FUNDAMENTOS DE DIREITO Como se referiu, a devedora intentou o processo especial para acordo de pagamento (PEAP), o qual veio a culminar com a aprovação pelos credores do acordo apresentado, sendo subsequentemente objecto de homologação jurisdicional. A apelante rebela-se agora contra a referida decisão homologatória por considerar que a mesma não deveria ter tido lugar porquanto foram infringidas regras procedimentais e bem assim normas aplicáveis ao conteúdo do acordo de pagamento. Que dizer? Como é consabido, o PEAP foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo DL nº 79/2017, de 30.06, que aditou os artigos 222º-A a 222º-J ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1]. A criação desse processo está estritamente relacionada com a controvérsia jurisprudencial que se vinha registando em torno da aplicabilidade (ou não) do processo especial de revitalização (PER) às pessoas singulares não empresários ou comerciantes. Com o desiderato de pôr cobro a essa querela, o legislador decidiu intervir reservando o recurso ao PER a pessoas colectivas, passando as pessoas singulares não empresários ou comerciantes a dispor de um instrumento pré-insolvencial mais simplificado, destinado a obter um acordo de pagamento com os seus credores. De forma semelhante ao propósito do PER, também o PEAP tem como objectivo permitir ao devedor estabelecer negociações com os respectivos credores, de modo a celebrar um acordo com estes, cujo fim é o de evitar que o devedor se venha a constituir em estado de insolvência. Contudo, se no caso do PER, será um acordo tendente à revitalização da empresa (art. 17º-A, nº 1), no caso do PEAP faz-se apenas referência ao objectivo de estabelecer negociações com os credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento (art. 222º-A, nº 1). Ficam, assim, afastadas do PEAP as ideias de recuperabilidade e de revitalização do devedor (não empresário)[2], assumindo, no entanto, as características típicas do PER, designadamente ser um processo pré-insolvencial, especial, híbrido, concursal e urgente[3]. De acordo com o desenho legal, o PEAP visa abarcar as chamadas situações de pré-insolvência, ou de insolvência preventiva, permitindo ao devedor iniciar um processo de negociação com os seus credores que evite a sua declaração de insolvência e os seus efeitos, através da reestruturação da dívida. No desenvolvimento dessas negociações, caso venha a ser aprovado[4] o acordo de pagamento, deve o processo ser concluso ao juiz a fim de aferir se se encontram reunidas as condições para a sua homologação, aplicando-se, para esse efeito e com as necessárias adaptações, o regime que se mostra estabelecido nos arts. 215º e 216º (ex vi do nº 5 do art. 222º-F). Assim, em consonância com o preceituado no art. 215º, o juiz deve recusar oficiosamente a homologação do plano aprovado com algum dos seguintes fundamentos alternativos: a)- Violação não negligenciável de normas procedimentais (vício de procedimento); b)- Violação não negligenciável[5] de normas aplicáveis ao conteúdo do acordo (vício de conteúdo). Por seu turno, no art. 216º está prevista a recusa de homologação a requerimento dos interessados, isto é, de interessado que se tenha oposto à aprovação do acordo e que essa oposição tenha sido manifestada nos autos antes dessa aprovação. Nesse caso, torna-se ainda mister que o interessado requerente consiga demonstrar em termos plausíveis e em alternativa que: a)- a «sua situação ao abrigo do acordo é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer acordo, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas»; b)- o «acordo proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar». Como se viu, a ora apelante busca suporte jurídico para a sua pretensão recursória convocando o regime plasmado no art. 215º, por considerar que, in casu, se verifica violação não negligenciável quer de normas procedimentais, quer de normas aplicáveis ao conteúdo do acordo aprovado e homologado. Registe-se, a este propósito, que malgrado a referida normatividade esteja, em primeira linha, dirigida ao juiz, no sentido de lhe conferir o papel de guardião da legalidade - cabendo-lhe, por conseguinte, evitar, ex officio, a ocorrência de vícios de procedimento ou de conteúdo -, nada obstaculizará (ao invés do que defende a devedora/apelada) que qualquer interessado que não tenha aprovado o acordo possa submeter a questão à apreciação do tribunal, solicitando então uma decisão não homologatória tendo por base a existência de vício não negligenciável de normas procedimentais ou de normas aplicáveis ao conteúdo do mesmo. Dito de outro modo, o interessado que pretenda obter a recusa da homologação pode fundar essa pretensão seja na invocação dos fundamentos a que se alude no art. 215º, seja na alegação das circunstâncias referidas no art. 216º. Ponto é que essa violação assuma a gravidade legalmente suposta, isto é, na expressão da lei, que se esteja em presença de “violação não negligenciável” de normas procedimentais[6] ou de normas aplicáveis ao conteúdo do acordo[7] e, neste caso, “qualquer que seja a natureza” da norma violada. A lei não definiu, no entanto, o que se deva entender por violação não negligenciável. Apesar de tal omissão na densificação desse conceito indeterminado, não será, como escrevem CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA[8], «especialmente difícil identificar, tanto na área do procedimento como na do conteúdo, situações que, consubstanciando todas elas a transgressão do que está legalmente determinado, em todo o caso revelam diferenças notórias no que tange à tutela dos interesses em causa, às vezes com o reconhecimento expresso da própria lei». E depois de elencarem vários exemplos, concluem que há um critério geral que é possível apontar, qual seja o de que «são não negligenciáveis, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são descartáveis as infrações que atinjam simplesmente as regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido». Em análogo sentido tem militado a jurisprudência que, neste domínio, vem considerando deverem ter-se por não negligenciáveis as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado não permitido pela lei, com influência na decisão do PEAP[9]. Portanto, no juízo apreciativo que lhe é cometido pelo citado nº 5 do art. 222º-F, o juiz deve cingir-se às situações de violação não negligenciável no sentido definido, excluindo do seu campo de avaliação as violações de caráter menor que, por não porem em causa o interesse do devedor e dos credores, não constituem, por isso, causa suficiente para recusa de homologação. Isto posto, importa, pois, dilucidar se o ajuizado acordo de pagamento enferma dos vícios de procedimento e de conteúdo que lhe são assacados pela apelante, por alegadamente o mesmo afrontar regras imperativas, concretamente: i) por não estarem verificados os pressupostos de aplicação do PEAP em virtude de a devedora se encontrar em situação de insolvência actual; ii) por ser inexequível esse acordo; iii) por haver omissão na indicação dos meios de cumprimento do mesmo; iv) e por derrogação não admitida do nº 4 do art. 217º.*Começando pelo primeiro dos referidos fundamentos, como anteriormente se deu nota, o regime do PEAP (cfr. arts. 1º, nº 3 e 222º-A, nº 1) é destinado a permitir ao devedor, que não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento. Exige-se, portanto, que o recurso ao PEAP se realize mediante a observância de dois pressupostos: um pressuposto de natureza subjectiva e outro de natureza objectiva. Não se discutindo, na espécie, a verificação do pressuposto subjectivo (posto que a devedora é uma pessoa singular não titular de empresa), a questão que, neste conspecto, é trazida à apreciação deste tribunal de recurso prende-se, precisamente, com a possibilidade de afirmação do requisito objectivo, qual seja saber se a devedora se encontra “em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente” ou antes - como sustenta a apelante - numa situação de verdadeira insolvência actual. Nas contra-alegações que apresentou a devedora advoga que a aludida questão não pode ser objecto de apreciação em sede recursiva na medida em que se baseia em “factos novos” que não foram alegados pelos credores nos requerimentos de não homologação. Não lhe assiste, contudo, razão. Na verdade, os dados de facto referentes à situação económica da devedora foram aportados aos autos pela própria, pelos credores e pelo administrador judicial provisório ainda em momento anterior à prolação da decisão de homologação do acordo de pagamento, não constituindo, pois, “factos novos” no sentido definido pela lei adjectiva (cfr., v.g. arts. 5º, 265º e 588º, todos do Cód. Processo Civil). Com efeito, como resultou provado, o passivo da devedora cifra-se no montante de €89.214.958,82. De igual modo, no que tange ao seu património, no requerimento com que deu início ao presente processo a devedora reconhece que apresenta “falta de liquidez que lhe permita efectuar o pagamento de algumas das suas dívidas, até porque lhe é difícil (senão impossível) obter crédito para o efeito”, instruindo essa peça processual com diversos documentos referentes à sua situação patrimonial. Assim, como documento nº 3, juntou cópia da declaração modelo 3 que apresentou perante a administração tributária referente aos rendimentos por si auferidos no ano de 2018, declarando um rendimento anual global de €50.026,03 (na sua essência resultantes de rendimentos da categoria A). Por seu turno, apresentou uma relação dos seus bens (documento nº 6) onde refere ser titular de: participações em sociedades comerciais, mas cujo valor global estimou em €0.00; um prédio urbano, sito em …, freguesia …, concelho de Santa Maria da Feira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº 2104 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. 5321, no valor actual estimado de €187.000,00. Acresce que (como, aliás, se refere na decisão recorrida), o administrador judicial provisório apresentou, em 9 de abril do corrente ano, informação no processo onde noticia que “os únicos bens detidos pela devedora (e que poderiam ser vendidos em processo de liquidação) são participações sociais das sociedades devedoras originais que se apresentaram a Processos Especiais de Revitalização ou Processos Especiais de Insolvência com recuperação, pelo que o seu valor económico e de mercado destas participações será muito diminuto e de difícil liquidação”. Perante a descrita realidade a questão que, então, importa apreciar é se a devedora se encontra (ou não) em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, sendo que apenas na afirmativa está legitimado o recurso ao PEAP. A situação económica difícil verifica-se, diz a lei (art. 222º-B), quando o devedor tenha “[d]ificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito”. Trata-se, todavia, de uma definição que não é particularmente informativa, na medida em que faz entrar substancialmente o definido na definição. Segundo GONÇALVES MACHADO[10], o conceito indeterminado “dificuldade” aponta para uma certa insuficiência de recursos financeiros do devedor para fazer face ao pagamento pontual e integral das suas obrigações, não se traduzindo, contudo, “numa incapacidade absoluta ou generalizada de cumprimento das obrigações”. O elemento “séria” traduz-se num incumprimento das obrigações, mas “que, atendendo ao seu montante e às condições económico-financeiras do devedor, sejam perfeitamente pagáveis”. A estes elementos devem ainda acrescentar-se “a falta de liquidez ou de meios próprios; não conseguir obter crédito; incumprimento, sobretudo quando reiterado de obrigações para com o Estado ou entidades bancárias; passivo superior ao ativo”, sendo pacificamente aceite pela doutrina que estes indícios são meramente exemplificativos não pretendendo o legislador com isto excluir outras situações que pudessem conduzir ao agravamento da situação patrimonial, designadamente perda de emprego, divórcio, aumento de dependentes a cargo, entre outros. Isso mesmo é enfatizado por CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA[11] quando escrevem que se encontra “em situação económica difícil o devedor que, pela ponderação dos diversos fatores que relevem na sua vida económica concreta, nomeadamente pela sua liquidez e capacidade de a obter e pela qualidade, consistência e evolução expectável das componentes do seu património, se encontre já, ou se anteveja já, na contingência efetiva de não cumprir pontualmente as suas obrigações (…)”. Na mesma senda SALAZAR CASANOVA/SEQUEIRA DINIS[12] entendem que “a situação económica difícil é a situação anterior à da insolvência iminente na qual o devedor, tendo embora um ativo suficiente para fazer face às suas obrigações, não as pode cumprir sem para isso praticar actos – designadamente negócios desfavoráveis em condições normais de mercado – que ponham em causa a sua viabilidade económica”. Podemos então afirmar que existe situação económica difícil sempre que o devedor enfrente dificuldades sérias no cumprimento das suas obrigações, designadamente por falta de liquidez, mesmo quando o ativo é ainda superior ao passivo mas não há liquidez disponível, ou por não conseguir obter crédito. Contudo mais difícil é definir a expressão “dificuldade séria”, que é um conceito vago meramente exemplificativo, que necessita de ser concretizado, afigurando-se-nos, na esteira da mencionada doutrina, poder afirmar-se que “dificuldade séria” é a dificuldade para cumprir pontualmente as obrigações, mas tal não pode implicar uma impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, pois neste caso o devedor encontrar-se-á já em situação de insolvência. No concernente ao conceito de insolvência meramente iminente o mesmo não é sequer concretizado no CIRE. ANA PRATA et al.[13] aduzem que deve considerar-se como tal “a situação em que o devedor está prestes a encontrar-se impossibilitado de cumprir as suas obrigações (art. 3º, nº 1) ou o passivo está prestes a ser superior ao ativo (art. 3º, nº 2), mas ainda seja possível a recuperação”. Citando Catarina Frade, mais indicam estes autores que “a insolvência iminente é uma situação difícil de definir, e por consequência difícil de diagnosticar. Na prática, não é fácil distingui-la com absoluta segurança da situação económica difícil e nem sequer da insolvência atual”. Dentro da mesma linha, LUÍS MARTINS[14] afirma que “o conceito de insolvência iminente é aberto e indefinido, implicando uma análise concreta da situação do devedor (tipo de obrigações que se vão vencer, incapacidade de recurso a crédito, impossibilidade de vender ativos, perdas empresariais, etc.). Esta situação passa sempre por uma previsão futura sobre a insuficiência económica e sua incapacidade de, a curto prazo, vir a realizar e honrar as obrigações assumidas e ainda não vencidas. A situação de insolvência iminente é conjeturada quando o devedor, de acordo com os critérios do homem comum ou um gestor criterioso e empenhado, sabe e não pode desconhecer que não conseguirá vir a honrar as obrigações assumidas a curto prazo (…). Em bom rigor, estar numa situação económica difícil ou em situação de insolvência eminente, acaba por ser a mesma coisa e com a mesma abrangência. Se tem dificuldades sérias em cumprir pontualmente as suas obrigações, acaba por se encontrar em situação de insolvência iminente. (…)”. Em suma: o devedor será considerado em situação de insolvência meramente iminente quando previsivelmente não irá estar na posição de cumprir as obrigações de pagamento existentes no momento do seu vencimento. Postos tais considerandos, é tempo de enfrentar a questão acima equacionada, sendo certo que, contrariamente ao que parece ser o entendimento da apelada, o facto de os credores (maxime a ora apelante) não terem suscitado directamente o problema da inverificação do aludido requisito objectivo, não obstaculiza que o tribunal, no contexto do citado art. 215º, possa (rectius, deva) ocupar-se desse pressuposto material e recusar a homologação do acordo de pagamento que tenha sido aprovado se concluir que os factos revelam o estado actual de insolvência da devedora. De facto, malgrado o papel residual que está deferido ao tribunal no PEAP, dúvidas não pode haver que esse papel é determinante em sede de aferição da legalidade do procedimento, devendo recusar oficiosamente a sua homologação se acaso concluir por uma violação não negligenciável de regras procedimentais. Ora, temos por certo que não poderá deixar de se catalogar como tal (isto é, como violação não negligenciável de regra procedimental) a apresentação de PEAP por devedor que se encontre impossibilitado de cumprimento das obrigações vencidas, ou seja, em situação de insolvência actual. Aliás, a este respeito, não será despiciendo registar que a doutrina pátria tem recorrentemente alertado para a necessidade de se evitar a prática de permitir a apresentação de PEAP em situações em que o requerente se encontra já em situação de insolvência, na justa medida em que essa atuação corresponde a uma adulteração da ratio essendi deste processo, enquanto processo pré-insolvencial[15]. Aqui chegados, perante a realidade acima descrita a propósito da situação patrimonial da devedora, afigura-se-nos claro que a mesma, aquando da abertura do presente processo, se encontrava – e continua a encontrar-se – em situação de insolvência actual, tal como esta é legalmente caracterizada no art. 3º, nº 1, e não em simples situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente. Como se referiu, é a própria devedora a reconhecer - através dos factos que indicou no seu requerimento inicial (arts. 10º a 12º) e nos documentos com que o instruiu - que quando instaurou o presente processo estava em situação que não lhe permitia proceder ao pontual cumprimento, designadamente, das obrigações pecuniárias em que havia prestado garantias pessoais e que se encontravam já vencidas[16]. Da mesma forma que significou nas peças processuais que apresentou que, pura e simplesmente, não possuía recursos (nem crédito) para liquidar as suas dívidas, sendo que o seu património não sofreu qualquer incremento positivo que lhe permita satisfazer o seu passivo global, que se cifra em valor superior a 89 milhões de euros. É facto que parte substancial desse passivo corresponde a garantias (pessoais) prestadas a sociedades comerciais de que é administradora, que viram ser aprovados e homologados planos de revitalização (no caso da “E…, SGPS, S.A.) ou planos de insolvência e recuperação (no caso das sociedades “F…, S.A.” e “H…, SGPS, S.A.”). No entanto, essa circunstância não contende com a posição dos credores relativamente aos garantes desses entes societários, já que, por mor do disposto no art. 217º, nº 4, os efeitos dessas aprovações não lhes são extensivos, mantendo aqueles incólumes os direitos que contra eles dispõem, podendo deles exigir (no imediato) tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário[17]. É certo que, como acima se deixou evidenciado, os conceitos de situação económica difícil e de situação de insolvência meramente iminente se resolvem em proposições algo vagas e nem sempre claramente distinguíveis do conceito de insolvência actual. Porém, essa dificuldade de distinção não se coloca no caso vertente, porquanto é inequívoco que a devedora se encontra (ainda antes da propositura do PEAP) em situação de insolvência, pois que a realidade anteriormente descrita revela que caiu em estado de (manifesta) impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas face à notória desproporção entre as situações jurídicas ativas e passivas que se registam na sua esfera jurídica patrimonial e da (por si) reconhecida incapacidade de recorrer ao crédito. O que indica com toda a clareza uma situação de incontornável impossibilidade de satisfação pontual da generalidade dos seus débitos, sendo que não é o facto de se ter logrado obter a aprovação do acordo de pagamento que altera esse efeito. Consequentemente, ocorre, in casu, violação não negligenciável de regra procedimental (qual seja a inviabilidade de ser requerido PEAP por devedor insolvente) que conduzirá inelutavelmente à recusa de homologação do acordo de pagamento. Procedem, por conseguinte, as conclusões 1.7 e 1.8 ficando, nessa medida, prejudicada a apreciação das questões atinentes à ocorrência dos apontados vícios de conteúdo (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Processo Civil).*** III. DISPOSITIVOPelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, em consequência do que se decide revogar a decisão que homologou o ajuizado acordo de pagamento. Custas do recurso a cargo da apelada/devedora.*Porto, 26 de outubro de 2020 Miguel Baldaia de Morais Jorge Seabra Pedro Damião e Cunha _____________________ [1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem. [2] O conceito de devedor não empresário resulta da conjugação dos arts. 2º e 5º. [3] Cfr., para maior desenvolvimento sobre a natureza e regime deste processo, SOVERAL MARTINS, As alterações ao CIRE quanto ao PER e ao PEAP, in Estudos de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, págs. 7 e seguintes, ANA ALVES LEAL/CLÁUDIA TRINDADE, O processo especial para acordo de pagamento (PEAP): o novo regime pré-insolvencial para devedores não empresários, in Revista de Direito das Sociedades, Ano IX (2017), n.º 1. págs. 70 e seguintes e CATARINA SERRA, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2019, págs. 585 e seguintes, que o carateriza como um processo híbrido que combina uma fase informal (ou negocial) e uma fase formal (judicial), ressaltando outrossim que o mesmo é dominado pela autonomia dos credores e do devedor, pela desjudicialização e bem assim pela celeridade. [4] Nos termos do nº 3 do art. 222º-F, o acordo considera-se aprovado se da lista de créditos elaborada pelo administrador judicial provisório tiverem votado credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto; recolher mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondam a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções. [5] Vem-se discutido se a recusa oficiosa da homologação com base na violação das normas aplicáveis ao conteúdo só deve ocorrer se aquela violação também for “não negligenciável” – neste sentido CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABEREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3ª edição, pág. 825, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, Almedina, 6ª edição, pág. 301 e SOVERAL MARTINS, Um curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pág. 444; em contrário, TARSO DOMINGUES, O CIRE e a recuperação das sociedades comerciais em crise, pág. 38, que contrapõe “violação não negligenciável de regras procedimentais” a “violação de normas aplicáveis ao conteúdo, qualquer que seja a sua natureza”. [6] Como tal se considerando aquelas que regulam o iter processualmente estabelecido para o desenvolvimento do PEAP, ou seja os passos que nele devem ser dados até à aprovação e homologação do acordo e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado. [7] Nesta categoria integram-se não só todas as normas respeitantes à parte dispositiva do acordo, mas, além delas, ainda as que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que o mesmo deve contemplar. [8] Ob. citada, págs. 713 e seguinte. [9] Cfr., inter alia, acórdão da Relação de Évora de 7.06.2018 (processo nº 1022/17.8T8OLH.E1) e acórdão da Relação de Guimarães de 23.01.2020 (processo nº 1873/19.9T8VNF.G1), acessíveis em www.dgsi.pt. [10] In O dever de renegociar no âmbito pré-insolvencial – Estudo comparativo sobre os principais mecanismos de recuperação, Almedina, 2017, págs. 125 e seguinte. [11] Ob. citada, pág. 144. [12] In O Processo Especial de Revitalização – Comentários aos artigos 17.º-A a 17.º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora, 2014, pág. 24. [13] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pág. 54. [14] In Recuperação de Pessoas Singulares, vol. I, 2ª ed., pág. 20. [15] Cfr., por todos, CATARINA SERRA, ob. citada, págs. 584-586. [16] Desde logo por aplicação do art. 91º. [17] Refira-se, a este propósito, que a devedora filia, em grande medida, a sua argumentação para requerer o PEAP numa convicção (meramente subjectiva) de que os débitos por si garantidos serão satisfeitos pelas sociedades devedoras originárias, adiantando (cfr. art. 8º do requerimento inicial) que “confia seriamente que as referidas sociedades vão cumprir com os planos de recuperação”.