I – Na doação de bens móveis, na falta de forma escrita, para se concluir se houve, ou não, aceitação da doação, é fundamental a alegação e prova de factos que consubstanciem a tradição da coisa ou direito; II – A traditio tanto pode revelar-se numa entrega material da própria coisa como numa entrega simbólica do bem doado, como seja um título representativo (um título de registo de propriedade, um título representativo de um direito de crédito, etc.); III – Tendo havido uma doação verbal de valores pecuniários existentes em contas de depósitos (à ordem ou a prazo), e sendo inequívoco o animus donandi da doadora, a transmutação das contas singulares em contas colectivas solidárias constitui meio idóneo para operar a tradição desses valores e assim perfectibilizar a doação; IV – É válida a doação verbal de um veículo automóvel, em que ocorreu a sua tradição simbólica mediante a entrega à donatária da chave e do título de registo de propriedade, que os recebeu, assim evidenciando a sua vontade de aceitar a doação.
Processo n.º 1550/21.0T8PVZ.P1 Comarca do Porto Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim (Juiz 6) Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I - Relatório 1. Configuração da acção Em 03 de Novembro de 2021, AA intentou no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB e CC, alegando, em síntese, o seguinte: No dia 08 de fevereiro de 2021, faleceu a sua filha DD, no estado de divorciada, sem descendentes e sem ter outorgado testamento público ou feito qualquer outra disposição de última vontade, pelo que é o único e universal herdeiro desta filha sua filha. A ré BB é, também, sua filha e a progenitora da ré CC, sua neta. Além de outros, a sua filha DD deixou os seguintes bens: - veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-JT-..; - os créditos correspondentes aos saldos das seguintes contas de depósitos: - conta à ordem n.º ... no Banco 1..., conta solidária, de que eram titulares, além da DD, a ré CC e uma outra sobrinha (da falecida), que apresentava um saldo de € 2.512,96; - conta depósito a prazo n.º ..., conta solidária com os mesmos titulares, no valor de €20.054,79, no Banco 1...; - conta à ordem n.º ... na Banco 2..., de que era única titular a falecida DD, com o saldo de € 73.434,16. Os valores depositados nessas contas pertenciam, exclusivamente, à DD, pois eram fruto do seu trabalho (como professora) e das poupanças que fazia. Com o seu decesso, as rés «delapidaram todo o valor monetário depositados nas contas bancárias» e subtraíram da conta existente na Banco 2... a quantia de € 72.055,89 e, bem assim, o montante de € 22.000,00 da conta no Banco 1.... Além disso, as rés apoderaram-se do referido veículo automóvel, apossando-se das respectivas chaves. Remata o articulado inicial formulando os seguintes pedidos: a) Que seja reconhecida judicialmente a qualidade de único e universal herdeiro do aqui Autor, cabeça de casal da herança aberta por óbito da filha – DD; b) Que as Rés sejam condenadas solidariamente a restituir à herança a quantia de € 94.055,89 (noventa e quatro mil e cinquenta e cinco euros e oitante e nove cêntimos); acrescido dos juros legais desde a interpelação até efetivo e integral pagamento. c) Que seja reconhecido que a falecida – DD - era a única e exclusiva beneficiária das quantias depositadas/aplicadas na conta bancária do Banco 1..., S.A., devendo a herança ressarcida da totalidade dos valores ali depositados, tudo com as demais consequências legais; d) Que as Rés sejam condenadas a restituir à herança o veículo automóvel BMW, modelo ..., com a matrícula ..-JT-.., que já se encontra registado a favor do aqui Autor, por sucessão hereditária e que por cada dia de atraso na entrega do veículo sejam condenadas ao pagamento da quantia de €75,00 (setenta e cinco euros), a título de sanção pecuniária compulsória. e) Que as Rés sejam condenadas em custas, custas de parte e procuradoria condigna. 2. Oposição das rés Citadas, as rés apresentaram contestação conjunta, defendendo-se por impugnação, e deduziram reconvenção. Alegam que o autor, depois do divórcio, abandonou os filhos e só forçado por decisão judicial pagava pensão de alimentos; por isso que havia muito tempo que inexistiam quaisquer contactos entre o autor e as filhas e era propósito da DD fazer disposição de última vontade sobre o seu património a favor das suas sobrinhas, designadamente da ré CC, o que não se concretizou porque a sua doença se agravou rapidamente e levou à sua morte. Na fase mais difícil da doença (do foro oncológico), foram a irmã, aqui ré BB, e as sobrinhas (a ré CC e EE) da DD quem mais a apoiou, pois havia uma relação de grande proximidade entre elas. Foi nesse contexto que a DD doou o referido veículo automóvel à ré BB, a quem entregou o respectivo título de propriedade e as chaves, que esta aceitou, assim se consumando a “tradito” da coisa. Quanto ao dinheiro das contas de depósitos, é verdade que pertencia, em exclusivo, à DD, que o doou àquelas suas sobrinhas, as quais aceitaram a liberalidade, tendo recebido das mãos da tia os Cartões Multibanco relativos a essas contas, bem como os respectivos códigos de acesso, e só não as movimentaram porque não quiseram fazê-lo ainda a em vida da sua tia e porque não tinham necessidade desse dinheiro. Em reconvenção, alegam que, por força da doação, a ré BB adquiriu a propriedade do veículo automóvel e pedem que lhe seja reconhecida titularidade desse direito e se mande cancelar o registo existente a favor do autor. 3. Réplica Em articulado de resposta à matéria da reconvenção, o autor/reconvindo nega a existência de qualquer doação e muito menos tradição dos bens alegadamente doados; tanto assim que, relativamente à viatura automóvel, já no final de junho de 2021, deslocou-se à fração autónoma sita em ..., Vila do Conde, que fora propriedade da falecida DD, para dela “tomar posse” e no lugar de parqueamento que lhe estava destinado encontrava-se o BMW estacionado, com evidentes sinais de não ser utilizado há muito tempo. Foi daí que a ré/reconvinte o retirou, sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, dele se apoderando, o que o levou a apresentar queixa contra ela. Concluiu pela improcedência da reconvenção. 4. Saneamento e condensação Sem oposição das partes, foi dispensada a realização de audiência prévia e, em 18.02.2022, foi proferido despacho em que: - se saneou o processo (despacho saneador tabelar); - foi admitida a reconvenção; - se identificou o objecto do litígio; - se elencaram os factos considerados já assentes; - se enunciaram os temas de prova; - se admitiram as provas oferecidas e se designou, de imediato, data para a audiência final. 5. Audiência final e sentença Realizou-se a audiência final, em uma só sessão, após o que, com data de 13.06.2022, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Por todo o exposto, decide-se: - Reconhecer o Autor como único e universal herdeiro de sua filha DD; - Absolver as Rés dos demais pedidos formulados pelo Autor; - Julgar procedente, por provado o pedido reconvencional, reconhecendo o direito de propriedade da Ré/reconvinte BB sobre o veículo de marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-JT-..; - Mais se decide ordenar o cancelamento do registo de propriedade do mencionado veículo a favor do aqui Autor; Custas pelo Autor.» 6. Impugnação da sentença Inconformado com a sentença, em 05.09.2022, o autor dela interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões: «1 – O presente recurso pretende dar a conhecer aos Venerandos Juízes Desembargadores os motivos pelos quais o Recorrente discorda da douta sentença proferida pelo Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 6, no âmbito do Processo nº 1550/21.0T8PVZ, tendo como fundamento a impugnação da matéria de facto (artigo 640.º do CPC) e da matéria de direito (artigo 639.º, n.º 2, do CPC). 2 – Ao decidir como decidiu, o M.M. Juiz a quo não fez uma correta interpretação de toda prova carreada aos autos, considerando que da análise efetuada, resulta que alguns factos dados como provados deveriam ter sido julgados de outra forma, bem como foram desconsiderados factos que interessam para a boa decisão da causa e aplicação do direito, bem como também não foi feita uma correta aplicação do direito, isto é, a douta sentença deve ser revogada, porquanto o Tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto e de direito. 3 – DO PEDIDO DE REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO: O Recorrente considera que, não apenas foi incorretamente julgados os pontos 12), 22) e 23) dados como provados, como também, dos depoimentos das Recorridas e depoimentos testemunhais, resultaram outros factos, de suma importância para a boa decisão da causa e que não foram levados ao elenco de factos provados, como deveriam. 4 – A alteração da matéria factual dada como provada e a introdução de novos factos, assentará, sobretudo, no depoimento das Recorridas, bem como no depoimento de cada uma das testemunhas ouvidas em sede de Audiência de Julgamento, que se requer, ao abrigo do disposto no artigo 640º, nºs 1 e 2, do C.P.C, que sejam devidamente reapreciados e valorados, para cada um dos pontos assinalados. 5 – Quanto ao facto 12) dado como provado na douta sentença: “O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chave encontra-se na posse da primeira Ré.” – a sua redação terá de ser alterada, dando-se como provado o seguinte: 12) O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chaves encontra-se na posse da primeira Ré, por uma questão de segurança, para que o mesmo não ficasse estacionado na via pública, considerando que a falecida DD tinha receio de estacioná-lo no lugar de garagem do seu imóvel sito em ... 6 – Deve ser aditado ao elenco dos Factos Provados, o seguinte facto: “O veículo automóvel de marca BMW, com a matrícula ..-JT-.., de modelo ..., nunca foi utilizado pela I Recorrida, mesmo após a doação do mesmo por parte da falecida DD àquela.” 7 – Deve ser aditado ao elenco dos Factos Provados, o seguinte facto: “A I Recorrida não pretendia, em vida da sua irmã DD, transferir para si a propriedade do veículo automóvel.” 8 – Deve ser aditado ao elenco dos Factos Provados, o seguinte facto: “A II Recorrida e a sua prima EE apenas passaram a ser contitulares das contas do Banco 1..., S.A., numa altura em que a tia DD já havia adoecido e não dispunha de total autonomia, nomeadamente para gerir o seu património e a sua vida financeira.” 9 – Deve ser aditado ao elenco dos Factos Provados, o seguinte facto: “A II Recorrida e a sua prima passaram a ter acesso aos cartões bancários e respetivos códigos das contas bancárias tituladas pela tia DD a partir do momento em que esta adoeceu, mas apenas para permitir a movimentação e consequente satisfação das necessidades desta última.” 10 – Deve ser aditado ao elenco dos Factos Provados, o seguinte facto: “As contas eram movimentadas pela II Recorrida e a sua prima apenas e tão só para satisfação das necessidades da tia DD, nunca as tendo movimentado em proveito próprio ou aí depositado quaisquer verbas.” 11 – Quanto ao facto 22) dado como provado na douta sentença, a sua redação terá de ser alterada, dando-se como provado o seguinte: “22) A falecida DD expressamente declarou doar essas quantias a essas sobrinhas, tendo recebido das mãos de sua tia os cartões de débito relativos a essas contas, bem como os respectivos códigos.” 12 – Quanto ao facto 23) dado como provado na douta sentença, a sua redação terá de ser alterada, dando-se como provado o seguinte: “23) Entre estas foi combinado que, em vida da Tia, não movimentariam as contas.” 13 – DO DIREITO APLICÁVEL AO CASO: começando por analisar o regime jurídico da doação, o 947º, nº 2, do CC exige a forma escrita para a perfeição da doação de bens móveis, salvo quando ela é acompanhada de tradição da coisa doada. 14 – Ora, na situação sub judice, mostra-se inequívoco que a falecida filha do Recorrente não deixou qualquer escrito que consubstancie a alegada doação do veículo automóvel e dos valores monetários às Recorridas, pelo que, para estarmos perante doações válidas, há que ter ocorrido a tradição das coisas e a correspondente aceitação por parte das donatárias. 15 – Quanto às contas bancárias tituladas pela falecida filha do Recorrente, estamos perante doações de valores, provenientes exclusivamente do trabalho/aforro da filha do Recorrente [Facto 9) dado como provado] e depositados por esta em contas bancárias anteriormente abertas e mantidas inalteradas. 16 – Por outro lado, a II Recorrida e a sua prima somente passaram, em dezembro de 2020, a serem contitulares das contas existentes no Banco 1..., S.A. numa altura de fragilidade na vida da DD, em que a mesma já havia adoecido e não dispunha de total autonomia, nomeadamente para gerir o seu património e, por isso, a contitularidade das referidas contas teve como único propósito facilitar os movimentos por aquelas para pagamento das despesas desta. 17 – Portanto, o facto de a II Recorrida e a sua prima EE terem passado, em dezembro de 2020, a serem contitulares das contas bancárias à ordem e a prazo existentes no Banco 1..., S.A. não lhes confere a propriedade sobre o saldo nelas depositado, mas apenas a possibilidade de as mesmas o movimentarem, tal como também o podia fazer a sua proprietária DD. 18 – As contas eram movimentadas pela II Recorrida e a sua prima apenas e tão só para satisfação das necessidades da tia DD e foi com esse propósito que a II Recorrida e a sua prima passaram a ter na sua posse os cartões e os respetivos códigos e não após a alegada doação. 19 – Mesmo após a alegada doação, a falecida manteve-se até ao seu decesso como cotitular das contas existentes no Banco 1..., S.A. e como titular exclusiva da conta existente na Banco 2..., S.A. e a qualquer momento poderia fazer uso, como bem entendesse, das quantias ali existentes e alegadamente doadas, não existindo uma cessão da relação material com a coisa objeto da doação por parte da doadora. 20 – A II Recorrida e a sua prima apenas movimentavam as contas para satisfação das necessidades da falecida, nunca, mesmo após a doação, movimentaram as contas em proveito próprio ou aí depositaram quaisquer verbas, não existindo um empossamento por parte das donatárias. 21 – A tradição dos bens móveis (depósito bancário) deve materializar-se em atos concretos dos quais resulte inequivocamente a doação, nomeadamente quando a donatária movimente o saldo a seu favor, revelando apropriação do mesmo, o que não ocorreu na presente situação. 22 – Curiosamente, após a doação e numa altura em que supostamente já se consideravam donas do dinheiro, a II Recorrida e a sua prima alegam ter entregue os cartões à I Recorrida. 23 – Caso se considerassem efetivamente donas daqueles valores, mantinham a postura que sempre adotaram: tomavam na sua posse os cartões, e até faziam novos (um para cada), continuavam a movimentar as contas, com acréscimo de que agora o fariam para fins pessoais. 24 – Para além disso, a atitude das alegadas beneficiárias da doação dos valores depositados, de entrega dos cartões à I Recorrida, a não movimentação em proveito próprio, entre outras, claramente demonstra que não existiu aceitação da sua parte, pelo que, nunca poderemos estar perante uma doação, outrossim uma proposta de doação, que caducou com a morte da doadora (artigo 945º, nº 1 do CC). 25 – Acresce que, os valores monetários depositados nas contas bancárias tituladas pela filha do Recorrente e alegadamente doadas por esta à II Recorrida e uma sua prima foram movimentados pela I Recorrida (não beneficiária da doação dos valores monetários) e transferidos para uma conta sua, já após a morte daquela. 26 – Assim sendo, nos dizeres do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa [Proc. <a href="https://acordao.pt/decisoes/106916" target="_blank">865/13.6TBPDL.L1-8</a>, datado de 17/12/2015), se a II Recorrida e sua prima movimentassem as contas a seu favor em vida da DD, estariam a agir ao abrigo de um contrato de doação válido e este estaria a cumprir os seus efeitos; porém, não foi isso que aconteceu, uma vez que, a II Recorrida - na verdade, a I Recorrida – só movimenta a conta após o óbito da filha do Recorrente. 27 – Pelo que, “dado o momento em que a Ré aparece a movimentar a conta – já depois do falecimento da doadora – forçosamente temos de concluir que a doação, para produzir os seus efeitos, já os produz depois da morte da doadora, depois da abertura da sucessão desta. E nestas condições terá de se considerar que os seus efeitos são os de uma doação por morte – artigo 946º de C. Civil, para o que a mesma não respeita a forma legal. A actuação da Ré deixou de se efectuar ao abrigo da doação, que agora, no momento da entrega da coisa doada, já não reveste a forma exigida, já é ineficaz, já não pode produzir os efeitos típicos aludidos.” [citado Ac. TRL; negrito nosso] 28 – Ou seja, nunca tendo as Recorridas movimentado as contas em proveito próprio, limitando-se a retirar todo o dinheiro só depois do falecimento da doadora, a doação produz os seus efeitos depois da morte da doadora, depois da abertura da sucessão desta; nesse sentido, os seus efeitos são os de uma doação por morte, a qual só é válida se observados os formalismos dos testamentos, o que não ocorre no presente caso. 29 – Por último, a intenção da falecida DD, mesmo depois da alegada doação, sempre foi a de outorgar um testamento, o qual apenas produziria efeitos após a sua morte, o que significa que a sua verdadeira intenção era a de dispor dos seus bens para depois do seu decesso. 30 – Desta forma, até à data em que tal testamento produzisse os seus efeitos, a filha do Recorrente considerava os depósitos bancários como sendo exclusivamente seus; aliás, se a falecida DD efetivamente tivesse deixado de ser proprietária daqueles valores em janeiro de 2021, porque já os havia doado às suas sobrinhas, nunca os poderia legar em testamento, pois estes já não integravam a sua esfera jurídica. 31 – Destarte, a doação dos valores monetários feita pela filha do Recorrente à II Recorrida e uma sua prima, de nome EE não é válida, porquanto não chegou a ocorrer “tradição” da coisa, com a consequente e imprescindível aceitação por parte das donatárias, nem revestiu a forma escrita. 32 – Quanto à alegada doação do veículo automóvel pela filha do Recorrente à I Recorrida, convém começar por referir que, se o mesmo se encontra na garagem desta ainda antes do falecimento daquela, tal apenas ocorreu por uma questão de segurança, para que o automóvel não ficasse na via pública. 33 – Ademais, a I Recorrida nunca utilizou este veículo automóvel, o que releva uma não apropriação do mesmo por parte da donatária, e não tinha intenção de transferir a propriedade do veículo automóvel para seu nome em vida da DD, o que significa que, enquanto esta vivesse, a I Recorrida não se considerava verdadeiramente proprietária da viatura - desta forma, não ocorreu a necessária aceitação da doação e, consequentemente estamos perante uma mera proposta de doação, a qual caducou com a morte da doadora (artigo 945º, nº 1 do CC). 34 – Não obstante, também neste caso, a intenção da falecida filha do Recorrente seria a de contemplar a I Recorrida em testamento, que só produziria efeitos após a sua morte, o que significa que, até esse momento, a mesma considerava-se proprietária do veículo automóvel. 35 – Desta forma, tanto os saldos das contas bancárias, como o veículo automóvel integravam a esfera jurídica da falecida filha do Recorrente, sendo da sua propriedade exclusiva e, por isso, integram a sua herança, da qual o Recorrente é o único herdeiro, e devem ser restituídas à mesma pelas Recorridas. 36 – A sentença de que agora se recorre peca por defeito, uma vez que centrou-se apenas e tão só na entrega dos cartões bancários e das chaves e documentos do veículo automóvel para concluir ter ocorrido a tradição das coisas doadas, olvidando todos os demais circunstancialismos referidos ao longo destas alegações, nomeadamente a não cessação da relação material com as coisas objeto das doações por parte da doadora, nem o empossamento em vida daquela por parte das donatárias, o facto de os valores apenas terem sido retirados já após a morte da doadora, a intenção da falecida ter sido sempre a de realizar um testamento dispondo dos seus bens para depois da morte, mesmo após a alegada doação. 37 – Factos estes que nos revelam não estarem verificados os pressupostos da tradição da coisa, ou seja, o veículo automóvel e os saldos bancários para as I e II Recorridas, respetivamente, nem ter ocorrido a aceitação por parte das donatárias em vida da doadora (necessária para a perfeição das doações), e, consequentemente tais doações são inválidas, em face dos artigos 945º, nº 1 e 2, 946º e 947º, todos do CC – é aí que reside o erro de julgamento, no qual incorre a sentença de que ora se recorre. 38 – O erro de julgamento resulta da apreciação dos presentes autos em desconformidade com a lei, nomeadamente quanto ao conceito de doação, à forma exigida para a doação de coisas móveis (que não foi respeitada, nem a forma escrita, nem a tradição das coisas doadas) e a necessária aceitação por parte das donatárias em vida da doadora (que, não tendo ocorrido, implicaria sempre estarmos perante uma mera proposta de doação, que caducou com a morte da DD). 39 – Quanto muito poderíamos equacionar estarmos em presença de doações por morte, as quais, não respeitando os formalismos dos testamentos, são proibidas por lei. 40 – Ou seja, e mesmo que tivesse ocorrido a entrega das chaves e documentos do veículo automóvel e dos cartões bancários, o Tribunal a quo, face ao regime jurídico das doações plasmado no Código Civil, teria sempre que considerar que as doações são nulas (inválidas e ineficazes). 41 – Salvo o devido respeito, a sentença de que ora se recorre fez uma errada interpretação da lei aplicável ao caso, nomeadamente os artigos 940º, nº 1, 945º, 946º, 947º, todos do Código Civil. 42 – Devendo assim o Venerando Tribunal da Relação, revogar a sentença ora recorrida, substituindo-a por outra que julgue inválidas e ineficazes as doações verbais do veículo automóvel marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-JT-.. e dos valores depositados nas contas do Banco 1..., S.A. e na Banco 2... S.A., e, consequentemente considerar que tais bens integram a herança deixada pela filha do Recorrente, condenando as Recorridas nos exatos termos peticionados na Petição Inicial.». As rés contra-alegaram, pugnando pela confirmação do julgado. O recurso foi admitido (com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo) por despacho de 18.10.2022. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. Objecto do recurso São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo). Resulta bem claro das conclusões formuladas pela recorrente que a sua discordância em relação à sentença recorrida abrange, quer a matéria de facto, quer a respectiva subsunção jurídica. As questões que submete à apreciação deste tribunal de recurso são, pois, as seguintes: - se o tribunal a quo fez incorrecta apreciação e valoração da prova produzida, assim incorrendo em erro de julgamento quanto à matéria de facto, impondo-se uma alteração da decisão; - repercussão de uma eventual alteração factual na solução jurídica do caso ou se, como defende, independentemente de qualquer modificação do quadro factual a ter em conta, deve ser diverso o seu enquadramento jurídico. II – Fundamentação 1. Fundamentos de facto Delimitado o thema decidendum, atentemos na factualidade que a primeira instância deu por assente, bem como a que considerou não provada. A) Factos provados 1) No dia 8 de Fevereiro de 2021 faleceu DD, no estado de divorciada, sem descendentes e sem ter outorgado testamento público e ou qualquer outra disposição de última vontade; 2) Sucedeu-lhe como único e universal herdeiro o seu pai, aqui Autor; 3) À data do óbito daquela DD encontrava-se registada a seu favor, na competente conservatória do registo automóvel, um veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-JT-.., de marca BMW, de modelo ...; 4) A mesma DD era titular de uma conta à ordem no Banco 1..., SA com o n.º ..., que à data do falecimento tinha o saldo de € 2.512,96 (dois mil quinhentos e doze euros e noventa e seis cêntimos); 5) A partir de 3 de Dezembro de 2020, passaram a ser contitulares solidários dessa conta a aqui Ré CC e outra sobrinha da dita DD; 6) E era titular de uma outra conta de depósitos no Banco 1..., SA com o n.º ... que, à data do óbito tinha o saldo de € 20.054,79 (vinte mil e cinquenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos); 7) A partir de 20 de Dezembro de 2020, passaram a ser contitulares solidários dessa conta a aqui Ré CC e outra sobrinha da dita DD; 8) A dita DD era ainda titular exclusiva de uma conta à ordem na Banco 2..., S.A. com o n.º ..., cujo saldo, à data do óbito, era de € 73.434,16 (setenta e três mil quatrocentos e trinta e quatro euros e dezasseis cêntimos); 9) Todos os valores mobiliários constantes das contas bancárias acima referidos foram depositados exclusivamente pela aludida DD e eram unicamente provenientes do seu trabalho/aforro; 10) Após a morte da dita DD foi retirado o montante global de €72.055,89 (setenta e dois mil cinquenta e cinco euros e oitenta e nove cêntimos) da conta bancária na Banco 2..., S.A.; 11) Após o óbito da mesma DD foram foi retirado das aludidas contas bancárias do Banco 1..., SA a quantia global de €22.000,00 (vinte e dois mil euros), depositados à ordem nesse mesmo banco; 12) O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chave encontra-se na posse da primeira Ré; 13) A titularidade deste veículo encontra-se registada na competente conservatória do registo automóvel a favor do aqui Autor; 14) A foi a Ré BB, quem, por conta da Ré CC de EE, (procedeu?) à retirada do dinheiro aludida em 10) e 11), através dos cartões de débito e dos códigos bancários que lhe permitiam movimentar tais contas; 15) Após a morte da DD, a Ré BB manteve-se na posse do supra identificado veículo da marca BMW; 16) Porque a identificada DD pretendia fazer testamento, foi marcado a deslocação de uma Senhora Notária à habitação onde a mesma se encontrava; 17) Contudo, veio a falecer dois dias antes da altura em que se encontrava marcada essa deslocação, que não ocorreu anteriormente por motivo da existência da pandemia; 18) Desde o momento e que se apercebeu do agravamento do seu estado de saúde até ao seu decesso mediou um lapso de tempo muito curto; 19) O veículo automóvel aludido em 3) foi doado pela falecida DD à aqui Ré BB a quem entregou o documento único automóvel e as chaves o que esta aceitou; 20) A falecida DD fazia questão que esse carro integrasse o património da Ré, sua irmã, pessoa de quem era muito próxima e com quem passava todos os seus tempos; 21) As quantias identificadas em 10) e 11) foram doadas pela D. DD a suas sobrinhas, a aqui 2ª Ré e a EE, em partes iguais, quando se apercebeu que a doença se agravava; 22) A falecida DD expressamente declarou doaeu (doar?) essas quantias a essas sobrinhas que as aceitaram, tendo a recebido das mãos de sua tia os cartões de débito relativos a essas contas, bem como os respectivos códigos. 23) Entre estas foi combinado que, em vida da Tia, não movimentariam as contas, não obstante terem aceite a doação. 24) E foi ainda acordado que, uma vez que cada conta só dispunha de um cartão de débito, que esse ficaria na posse da aqui 1ª Ré, como aconteceu. 25) Com essas doações, a mencionada DD visava recompensar as sobrinhas, a aqui 2ª Ré e a EE, pois que sempre foram elas que acompanharam a Tia, maxime na fase difícil da doença, de que veio a falecer, que era do foro oncológico. B) Factos não provados a) O Autor desconhecia o património da sua filha; b) A tomar posse dos bens imóveis da sua falecida filha o Autor deparou-se com estes totalmente desfalcados, deles tendo sido retirados os bens de maior valor, designadamente móveis, electrodomésticos, ouro e prata que pertenciam àquela, bem como os cartões bancários das contas de depósito bancário pela mesma tituladas; c) O referido veículo automóvel encontrava-se estacionado na fracção autónoma da DD, sita em ... e, em Agosto de 202 (2021?), foi dali retirado pelas Rés uma semanas após o Autor ter tomado posse do dito imóvel; d) O dito veículo automóvel tinha o valor comercial de €20.000,00; e) Quando tomou posse da referida fracção autónoma o Autor presenciou que o veículo automóvel acima identificado estava estacionado na garagem da fracção autónoma da falecida DD.*A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso e daí que um dos ónus de especificação que o artigo 640.º do CPC faz recair sobre o recorrente é o de indicar os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido, obrigação que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida[1]. A recorrente é bem clara na especificação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados: a impugnação visa os factos descritos nos n.os 12, 22 e 23 do elenco dos provados; além disso, pretende o aditamento de novos factos (que também especifica). A reapreciação (parcelar) da matéria de facto requer (sempre nos limites traçados pelo objecto do recurso) a reponderação especificada, um juízo autónomo da força e compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção, formada na primeira instância, relativamente aos factos impugnados e por isso é fundamental que o recorrente especifique as concretas provas (constantes do processo ou que nele tenham sido registadas) que impõem decisão diversa da recorrida, ónus que se cumpre com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe outra decisão[2]. Nesse conspecto (especificação das provas que imporiam decisão diversa da recorrida), o recorrente, nas conclusões do recurso, limita-se a referir genericamente «o depoimento das Recorridas” e «o depoimento de cada uma das testemunhas ouvidas em sede de Audiência de Julgamento» (conclusão4.ª). No entanto, no “corpo” da motivação do recurso, o recorrente assinala as passagens desses depoimentos (reproduzindo o seu conteúdo) em que se baseia para fundamentar, quer a alteração do conteúdo dos referidos pontos de facto, quer a ampliação da matéria de facto, pelo que também este ónus se mostra cumprido. Vejamos, então, se é fundada a pretensão do recorrente. Objecto de doação tanto pode ser a disposição gratuita de uma coisa ou direito, como a assunção de uma obrigação. Neste caso, temos duas doações: uma, a favor da ré BB, de uma coisa (um veículo automóvel); outra, uma doação conjunta de um direito de crédito (com origem nos depósitos bancários), com duas beneficiárias (a ré CC e EE). O primeiro ponto de facto que o recorrente impugna tem o seguinte conteúdo: «12) O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chave encontra-se na posse da primeira Ré» O recorrente pretende que passe a ser do seguinte teor: «12) O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chaves encontra-se na posse da primeira Ré, por uma questão de segurança, para que o mesmo não ficasse estacionado na via pública, considerando que a falecida DD tinha receio de estacioná-lo no lugar de garagem do seu imóvel sito em ...» Além disso, o recorrente defende que sejam aditados os seguintes factos: «O veículo automóvel de marca BMW, com a matrícula ..-JT-.., de modelo ..., nunca foi utilizado pela I Recorrida, mesmo após a doação do mesmo por parte da falecida DD àquela» e «A I Recorrida não pretendia, em vida da sua irmã DD, transferir para si a propriedade do veículo automóvel». Os pontos de facto 22 e 23 reportam-se à segunda doação e têm o seguinte conteúdo: «22) A falecida DD expressamente declarou doaeu (doar?) essas quantias a essas sobrinhas que as aceitaram, tendo a recebido das mãos de sua tia os cartões de débito relativos a essas contas, bem como os respectivos códigos» «23) Entre estas foi combinado que, em vida da Tia, não movimentariam as contas, não obstante terem aceite a doação» O recorrente pretende que sejam alterados e passem a ter a seguinte formulação: «22) A falecida DD expressamente declarou doar essas quantias a essas sobrinhas, tendo recebido das mãos de sua tia os cartões de débito relativos a essas contas, bem como os respetivos códigos.» «23) Entre estas foi combinado que, em vida da Tia, não movimentariam as contas.» E pretende que sejam acrescentados os seguintes: «A II Recorrida e a sua prima EE apenas passaram a ser contitulares das contas do Banco 1..., S.A., numa altura em que a tia DD já havia adoecido e não dispunha de total autonomia, nomeadamente para gerir o seu património e a sua vida financeira.» «A II Recorrida e a sua prima passaram a ter acesso aos cartões bancários e respetivos códigos das contas bancárias tituladas pela tia DD a partir do momento em que esta adoeceu, mas apenas para permitir a movimentação e consequente satisfação das necessidades desta última.» «As contas eram movimentadas pela II Recorrida e a sua prima apenas e tão só para satisfação das necessidades da tia DD, nunca as tendo movimentado em proveito próprio ou aí depositado quaisquer verbas.» A primeira nota a realçar é esta: nenhum dos factos que o recorrente quer ver acrescentados ao conjunto dos provados foi por ele alegado. Por isso, só estaria justificada a sua inclusão no elenco dos provados se pudessem considerar-se factos complementares dos constitutivos do direito que invoca (mas não identificadores desse direito) ou concretizadores de afirmações de cariz mais genérico que tenha feito na exposição dos fundamentos da acção. E, obviamente, que esses factos têm suficiente suporte probatório. Como já se assinalou no antecedente relatório, o facto que o recorrente invoca como constitutivo do direito sobre os bens supra identificados (veículo automóvel e os créditos correspondentes aos saldos das contas bancárias) é a sucessão hereditária e tais bens fazerem parte da herança aberta por óbito de DD: sendo sua filha e tendo falecido no estado de divorciada, sem descendentes e sem que tenha feito testamento, ele seria o único e universal herdeiro. Daí exigir a restituição desses bens à herança, ou seja, a si próprio, uma vez que já houve habilitação de herdeiro. Por seu turno, as rés alegaram que tais bens lhes foram doados pela DD e que aceitaram a doação. A doação (tal como a sucessão) é uma forma de transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito (artigos 1316.º e 954.º, al. a), do CC). Impõe-se, pois, um breve apontamento sobre o regime jurídico da doação. O contrato de doação conclui-se com a aceitação. Esta pode ser expressa (feita no próprio acto ou em qualquer momento desde que em vida do doador) ou tácita, valendo como aceitação a tradição para o donatário de coisa móvel. A doação de imóveis é um contrato formal: deve ser celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado (artigo 947.º, n.º 1, do CC). Na doação de móveis, a regra é a consensualidade, desde que acompanhada de tradição da coisa. Se não houver tradição, exige-se a forma escrita (n.º 2 do mesmo artigo). A tradição (material ou simbólica) da coisa[3] é uma forma de transmissão da posse (artigo 1263.º, al. b), do CC) e traduz-se na sua colocação, por parte do anterior possuidor, à disposição do novo possuidor. Por outras palavras, «a traditio é um acto materialmente translativo que atribui ao accipiens o domínio efectivo e empírico sobre a coisa; ele é o produto da confluência, por um lado, de uma vontade negativa do possuidor de deixar a relação material que exercia ao abrigo da posse, e por outro, da vontade positivamente manifestada do promissário[4] em iniciar essa mesma relação material» (acórdão da Relação de Coimbra de 10.12.2013, processo n.º 1729/12.6TBCTB-B.C1, acessível in www.dgsi.pt). A tradição material concretiza-se através de uma acção física de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões[5]. Neste caso, as doações que as rés invocam não foram feitas por escrito, pelo que a conclusão de que houve aceitação por parte das donatárias depende da existência de factos que permitam afirmar que ocorreu a tradição dos bens. Nesse enquadramento, os factos que o recorrente pretende que sejam aditados podem ser considerados factos instrumentais, que serviriam para afastar a verificação da traditio, logo, da aceitação da doação. Ora, na sentença devem estar enunciados os factos essenciais nucleares, ou seja, aqueles que individualizam ou identificam o direito em causa (bem como aqueles em que se baseiam as excepções) e os factos essenciais complementares (os que não desempenham essa função, mas são imprescindíveis para que a acção proceda porque são, também, constitutivos do direito invocado). Poderão, ainda, dela constar, mas não é forçoso que assim aconteça, os factos concretizadores de anteriores afirmações de pendor mais genérico que tenham sido feitas. Quanto aos chamados factos probatórios ou factos instrumentais (aqueles que, conjugados com as máximas da experiência, permitem a afirmação, por recurso a raciocínios indutivos, de factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da excepção), não carecem de alegação e não têm que integrar o elenco de factos provados, pois o seu relevo limita-se à motivação da decisão sobre os restantes factos, e por isso bastará que sejam revelados ou expostos na motivação da decisão, no segmento em que o juiz, analisando criticamente as provas produzidas, exterioriza o percurso lógico que o conduziu à formulação do juízo probatório sobre o factos essenciais. Como anotam A.S. Abrantes Geraldes, L.F. Pires de Sousa e P. Pimenta (in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 29), «sobre os mesmos não tem de existir necessariamente uma pronúncia judicial, na medida em que sirvam apenas de apoio à formação da convicção acerca da restante factualidade, mxime quando, a partir deles, se possam inferir outros factos mediante presunções judiciais (arts. 607.º, n.º 4, 5.º, n.º 2, al. a)), situações em que basta que sejam enunciados na motivação da sentença». Nos termos do disposto na alínea c) (trecho final) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, a Relação determina a ampliação da decisão da matéria de facto sempre que a considere indispensável, ou seja, sempre que à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito e tendo em conta o objeto do recurso, determinado facto ou acervo factual seja necessário para dar suporte a uma dessas soluções e isso independentemente da solução perfilhada pelo Tribunal da Relação, havendo lugar à anulação da decisão em que se verifique a omissão da matéria objeto de ampliação sempre que não constem do processo todos os elementos que nos termos do n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil permitam a ampliação da decisão da matéria de facto[6]. Não é o que aqui acontece, como cremos ter evidenciado, pelo que não se justifica a ampliação pretendida. Vejamos se a prova produzida impõe a alteração por que pugna o recorrente nos pontos 12, 22 e 23. No ponto 12, o recorrente entende que ao seu conteúdo deve ser acrescentado o seguinte: «… por uma questão de segurança, para que o mesmo não ficasse estacionado na via pública, considerando que a falecida DD tinha receio de estacioná-lo no lugar de garagem do seu imóvel sito em ...» No ponto 22, defende que deve ser eliminado o segmento “que as aceitaram”. No ponto 23, a alteração pretendida consiste na eliminaçã0 de segmento de sentido idêntico: «não obstante terem aceite a doação». Cabe aqui assinalar que, ao aceitar que o veículo automóvel (BMW, modelo ..., matrícula ..-JT-..) está na posse da ré BB e que assim era mesmo em vida da DD, o autor admite ter faltado à verdade ao alegar que as rés furtaram a viatura, retirando-a da garagem do prédio sito em ..., onde esta era condómina (proprietária de uma fracção autónoma), e que o levou a apresentar queixa-crime (artigos 36.º e 37.º da p.i.). É verdade que da prova produzida, designadamente das declarações da ré BB e do depoimento da testemunha FF (marido desta ré) decorre que a viatura estava guardada na garagem do prédio sito em ..., onde estes são condóminos, por razões de segurança (visto que é uma garagem fechada, tipo box) e porque a DD teria dificuldade em estacioná-la no lugar de parqueamento que lhe estava destinado na garagem do seu prédio. No entanto, quer a ré, quer a testemunha referiam-se a um tempo anterior à doação. Depois desta, podem ser outros os motivos por que a viatura está (continua a estar) na posse da ré BB. O recorrente não põe em causa que a DD fez declarações dispondo gratuitamente dos bens (o veículo automóvel e os valores pecuniários existentes nas contas bancárias) a favor das rés. O que contesta é que tenham sido doações válidas, por não ter havido aceitação. No entanto, nem os factos que pretende acrescentar ao ponto 12 afastam a aceitação, nem as referências nos pontos 22 e 23 à aceitação são suficientes para a ter como certa. Como já se fez notar, a falta de forma escrita implica que se prove a tradição dos bens para se concluir que houve aceitação. Por outras palavras, o que importa saber é se os factos provados consubstanciam a exigida traditio, indispensável para se concluir se houve, ou não, aceitação da doação. Por isso, o que aqui, verdadeiramente, se controverte é uma questão de direito. Impõe-se, assim, julgar improcedente a impugnação da decisão sobre matéria de facto. 1. Fundamentos de direito Na sentença recorrida está assim justificada a solução jurídica adoptada para a questão de saber se estamos perante doações válidas: «Isto posto, a questão que se coloca é a de saber se tais doações cumpriram ou não os requisitos de forma referido no supra transcrito art. 927º, n.º 2 do Código Civil[7]. No caso vertente, nenhum documento escrito existe que declare a doação do veículo e do dinheiro depositado nas mencionadas contas de depósito bancárias, pelo que estamos perante doações verbais de coisa móveis cuja validade depende da correspondente tradição da coisa. Nas palavras de Vaz Serra (Anotação ao acórdão do STJ, de 18/05/1976, in RLJ Ano 110.º, p. 212), a exigência legal de que a doação verbal de móveis seja acompanhada da tradição da coisa, “(…) funda-se na circunstância de a doação poder ser perigosa se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade do acto». Como se transcreve no Ac. do STJ de 16/06/2016 (in www.dgsi./jstj), nos termos preconizados por Baptista Lopes (in das “Doações” pág.44): «(…) a necessidade de escrito, para a doação de móveis, quando não seja manual, funda-se na conveniência de evitar doações levianas, atitudes imponderadas e precipitadas, pois o escrito chama a atenção do doador para o acto pelo qual, doando móveis sem os entregar ao donatário, desfalca o seu património de uma maneira não visível materialmente. Havendo tradição, esta chama já por si mesma essa atenção.» Tal tradição ou entrega não terá de ser necessariamente simultânea da declaração de doar, podendo ser anterior ou mesmo posterior a esta e podendo consistir seja numa entrega material da própria coisa doada seja numa entrega simbólica do bem doado, por exemplo do seu título representativo, como decorre, aliás, do disposto nos artigos 945.º, n.º 2, e 1263.º, alínea b), do Código Civil. No caso dos autos, entendemos ter existido, da parte da doadora, não apenas a entrega (simbólica) do veículo à donatária, consubstanciada na entrega à Ré BB das chaves e dos documentos do mesmo veículo, como também do próprio dinheiro existente nas supra mencionadas contas bancária, neste caso, traduzida na entrega à Ré CC e à mencionada EE dos únicos cartões de que dispunha e que permitiam às donatárias a imediata movimentação, em seu benefício, daqueles depósitos. Existe, portanto, também quanto estes ao dinheiro depositado, uma tradição na medida em que o animus donandi é acompanhado duma entrega – o cartão que permitia movimentar tais depósitos - ou seja, um meio suscetível de tornar efetivo o apossamento, pelas donatárias, do dinheiro depositado. Conclui-se, assim, que estamos perante doações válidas, pelo que, nessa medida, nem o identificado veículo automóvel, nem o dinheiro depositado nas contas acima identificadas integram a herança da mencionada DD, pelo facto de, à data da morte desta, já não integrarem o património da mesma.». O recorrente contra-argumentou nos seguintes termos: «A tradição dos bens móveis (depósito bancário) deve materializar-se em atos concretos dos quais resulte inequivocamente a doação, nomeadamente quando a donatária movimente o saldo a seu favor, revelando apropriação do mesmo, o que não ocorreu na presente situação. Aliás, curiosamente, após a alegada doação, a II Recorrida e sua prima dizem ter entregue os cartões bancários à I Recorrida, irmã da falecida. Não se consegue perceber o porquê de, antes da alegada doação, a II Recorrida em sua prima possuírem os cartões e movimentarem as contas para pagar as despesas da falecida e, após a alegada doação, quando aparentemente já seriam proprietárias do dinheiro, decidem entregar tudo nas mãos da I Recorrida. Caso se considerassem efetivamente donas daqueles valores, mantinham a postura que sempre adotaram: tomavam na sua posse os cartões, e até faziam novos (um para cada), continuavam a movimentar as contas, com acréscimo de que agora o fariam para fins pessoais. Assim sendo, podemos concluir que não existiu uma cessação da relação material com a coisa objeto da doação (dinheiro depositado nas contas bancárias) por parte da falecida, nem o empossamento por parte da II Recorrida e sua prima.» Depreende-se deste trecho do discurso motivador do recurso que para o recorrente só haverá tradição da coisa se o beneficiário do acto de disposição tiver uma actuação de facto de domínio material sobre a coisa transmitida («nomeadamente quando a donatária movimente o saldo a seu favor, revelando apropriação do mesmo»). Porém, não é essa a melhor doutrina, tal como não é a orientação jurisprudencial prevalecente, apesar da citação de arestos[8] que, supostamente, confortariam a sua posição. Escreve, a propósito, o Professor A. Menezes Cordeiro [in Tratado de Direito Civil, XI, Contratos em Especial (1.ª parte), Almedina, 2019, pág. 407], em resposta à questão de saber se a abertura de contas bancárias em conjunto (e, dizemos nós, nas situações em que, havendo já uma conta aberta, o seu titular associa a essa conta outra ou outras pessoas) envolve a doação do dinheiro, responde assim (reprodução da parte que para aqui releva): «Temos dois problemas diferentes. A abertura de uma conta conjunta, quando haja solidariedade, isto é, quando um dos dois cotitulares possa, sozinho, movimentá-la, envolve seguramente tradição da coisa. Questão diversa é a de saber se houve animus donandi, partilha em vida ou qualquer outra situação legitimadora: podem-se provar livremente, nos termos gerais. A tradição será um primeiro indício, neste sentido». E acrescenta: «A tradição corresponde a uma noção própria da posse: pode ser material ou simbólica – 1263.º, b). Todavia, temos de alarga-la para além das meras coisas corpóreas, de modo a abranger os créditos e outras situações imateriais. Haverá, para efeitos da doação de móveis, tradição sempre que a realidade a doar fique na disponibilidade do donatário: veja-se o caso do dinheiro e das contas conjuntas.» Num caso de contornos muito semelhantes a este, a Relação de Lisboa (acórdão de 17.12.2015, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/106916" target="_blank">865/13.6TBPDL.L1-8</a>) decidiu: «- Se a doação tem por objecto bens móveis, a lei exige a forma escrita, a menos que ocorra a tradição da coisa concomitantemente ao acto. A dispensa da forma escrita apenas ocorre na doação de coisas móveis acompanhada da tradição da coisa, constituindo porém, nesse caso a tradição uma formalidade essencial ao contrato, não se podendo considerar válida a doação se esta não se verificar – cfr. artigo 497º, 2 do C.Civil. - Se a doadora verbal de valores depositados em conta bancária a que associou a donatária como contitular, ambas com poderes de movimentação solidária, se mantém com tais poderes até falecer, e não entrega de facto o dinheiro à donatária nem esta o movimenta a seu favor em vida da doadora, o que só vem a acontecer depois do decesso desta, tal significa que não houve tradição da coisa, obrigando a doação a produzir os seus efeitos já depois da morte da doadora, o que implica a ineficácia da doação efectuada por falta de forma mínima.» Na sua alegação recursiva, o recorrente segue o iter argumentativo deste aresto (aliás, na esteira do também citado acórdão desta Relação de 10.10.2001), que considera fundamental para se ter como válido o contrato de doação que o donatário, ainda em vida do doador, movimente a conta em seu benefício, assim se consumando a traditio. Porém, esta decisão foi revogada por acórdão do STJ de 16.06.2016 (relatado pelo Sr. Conselheiro Tomé Gomes), publicado com o seguinte sumário (com negrito nosso para sublinhar os pontos de contacto com este caso): «I. A validade de doação verbal de coisa móvel depende da prova de que essa doação foi acompanhada da entrega da coisa doada, nos termos do artigo 947.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC. II. Tal entrega não tem de ser necessariamente simultânea da declaração de doar, podendo ser anterior ou mesmo posterior a esta e podendo consistir seja numa entrega material da própria coisa doada seja numa entrega simbólica do bem doado, por exemplo do seu título representativo, como decorre do disposto nos artigos 945.º, n.º 2, e 1263.º, alínea b), do CC. III. O documento em que se consubstancia uma conta de depósito bancário representa o dinheiro que dele foi objeto, pelo que a colocação pelo doador na disponibilidade do donatário de movimentar ou dispor dos valores ali depositados pode, em determinadas circunstâncias, traduzir-se em entrega simbólica desses valores ou do direito de crédito a eles correspondente. IV. Se, por decorrência de uma doação verbal de valores pecuniários a depositar numa conta bancária, a doadora alterar a titularidade singular que detinha nessa conta para uma titularidade solidária com a donatária e seguidamente ali depositar esses valores, tais factos são, em correspondência com o animus donandi, representativos da entrega simbólica dos valores assim doados, nos termos e para os efeitos do artigo 947.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC. V. O facto de a donatária não ter procedido ao levantamento de tais valores em vida da doadora não descaracteriza, por si só, aquela entrega simbólica, já que a donatária passou a poder dispor dos fundos ali provisionados como, pelo menos, contitular dos mesmos, segundo a vontade expressamente manifestada pela doadora. VI. O ónus de prova dos factos determinativos da nulidade de uma doação de bens futuros, nos termos do artigo 942.º, n.º 1, do CC, recai sobre aquele contra quem a doação é invocada.» Este aresto do STJ insere-se numa corrente jurisprudencial iniciada em 1992, com o acórdão desta Relação de 21.05.1992 (Des. Pais de Sousa), segundo a qual a constituição, pelo doador e pelo donatário, de uma conta conjunta envolve tradição, e continuada, entre outros, pelos acórdãos do STJ de 03.03.2005 (Cons. Bettencourt de Faria)[9] e de 06.10.2005 (Cons. Pereira da Silva)[10], pelo acórdão desta Relação e desta Secção de 19.09.2011 (Des. A. Mendes Coelho)[11] e do acórdão da Relação de Coimbra de 29.01.2013 (Des. Sílvia Pires)[12]. Consabidamente, uma conta de depósitos que, ab initio ou supervenientemente, tem uma pluralidade de titulares pode assumir a modalidade de conta conjunta (em que para a sua movimentação é necessária a intervenção de todos) e a de conta solidária (em que um único titular pode movimentá-la sem o consentimento ou intervenção dos demais titulares), presumindo-se que são iguais as participações de cada um deles (cfr. artigos 534.º, 1403.º e 1404.º do CC para a conta conjunta e artigo 516.º do mesmo código para a conta solidária). Mas, como é, frequentemente, sublinhado, a titularidade da conta bancária (que autoriza a sua movimentação) não se confunde com a titularidade efetiva do crédito correspondente aos valores depositados. Neste caso, é ponto assente que os valores pecuniários existentes nas contas supra identificadas pertenciam, exclusivamente, à sua titular inicial, a falecida DD. No entanto, ao contrário do que alega o recorrente, ao fazê-las cotitulares de duas das aludidas contas de depósitos (as contas no Banco 1..., com os n.os ... e n.º ...), a DD não se limitou a autorizar as suas sobrinhas CC (2.ª ré) e EE a movimentar essas contas porque, fragilizada que estava devido à doença de que padecia, deixou de ter total autonomia e precisava de ajuda para realizar pagamentos de despesas. Se assim fosse, bastaria que lhes disponibilizasse os respectivos cartões de débito e os códigos de acesso. Na realidade, houve uma doação verbal dos valores pecuniários existentes nessas contas e é inequívoco o animus donandi da DD nela expresso, como resulta dos factos descritos sob os n.os 22 e 25. A transmutação daquelas duas contas singulares em contas colectivas solidárias constitui meio idóneo para operar a tradição desses valores e assim perfectibilizar a doação. Noutros termos, do animus donandi expresso na doação verbal resulta que a conversão da conta singular da falecida DD em conta solidária com as sobrinhas CC e EE, feita nessa sequência, corresponde a uma atribuição a estas da contitularidade dos valores depositados. A tanto não obsta o facto de as novas titulares das contas não terem procedido ao levantamento de tais valores em vida da DD, o que bem se compreende: por uma questão de pudor, de decoro e de respeito pela tia doente, decidiram não as movimentar em vida desta. Qualquer pessoa de boa índole não deixaria de se sentir constrangida se tivesse que ir, lestamente, retirar o dinheiro das contas. O que não oferece qualquer dúvida é que, na decorrência daquela doação verbal e da subsequente alteração da titularidade das contas, aquelas CC e EE passaram a poder dispor dos fundos que as provisionavam, pelo menos, como contitulares dos mesmos, segundo a vontade expressamente manifestada pela doadora. Assim se verifica uma iniludível correspondência entre o animus donandi da DD e a materialidade consistente na alteração da titularidade das referidas contas bancárias, o que, por si só, afasta a hipótese de que a contitularidade atribuída por aquela às sobrinhas se destinaria à simples movimentação ou gestão da conta, como alega o recorrente. Em suma, houve tradição da coisa doada, necessária para que possa considerar-se consumada a doação dos valores pecuniários depositados nas aludidas contas bancárias. Mas, se assim é quanto às contas de depósitos no Banco 1..., a conclusão oposta teremos de chegar quanto ao valor depositado na conta da Banco 2..., da qual a DD continuou a ser a única titular até ao seu decesso e só após o seu óbito foi retirado da conta (pela ré BB) o montante de € 72.055,89. Aqui há que reconhecer razão ao recorrente quando alega que a doacção só produz efeitos depois da morte da doadora, depois da abertura da sucessão desta, e nestas condições terá de se considerar que os seus efeitos são os de uma doação por morte (artigo 946.º de C. Civil). Não tendo sido respeitada a forma legal, a doação é ineficaz (não pode produzir os seus efeitos típicos), pelo que a quantia retirada terá de ser restituída à herança. Quanto à doação do veículo automóvel, é perfeitamente claro que houve tradição simbólica da coisa, com a entrega à donatária (a ré BB) da chave e do título de registo de propriedade, que os recebeu, assim evidenciando a sua vontade de aceitar a doação. Para este efeito, é, de todo, irrelevante que o autor/recorrente se tenha antecipado à ré BB e registado a seu favor a propriedade do veículo na competente conservatória do registo automóvel. Tal como seria inócuo (se tivesse sido dado como provado) o facto de a donatária nunca ter feito utilização da viatura. Se não o fez, pode ter sido pela singela razão de não ter precisado ou porque pretende dar-lhe outro destino, que não o uso próprio. De modo algum esses factos põem em crise a existência de tradição da coisa doada em vida da doadora. III – Dispositivo Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação de AA e, em consequência, 1) revogar parcialmente a sentença recorrida e, na parcial procedência da acção, condenar as rés a restituir à herança aberta por óbito de DD a quantia de € 73.434,16 (setenta e três mil, quatrocentos e trinta e quatro euros e dezasseis cêntimos), correspondente ao saldo credor existente, à data do seu óbito, na conta à ordem n.º ... da Banco 2..., a que acrescem juros de mora a contar da citação. 2) no mais, confirmar a sentença recorrida. As custas da acção e do recurso serão suportadas pelo autor/recorrente e pelas rés/recorridas em partes iguais. (Processado e revisto pelo primeiro signatário). Porto, 17/4/2023 Joaquim Moura Ana Paula Amorim Manuel Domingos Fernandes ________________ [1] Sendo certo que, em casos-limite, a impugnação pode implicar toda a matéria de facto, nem por isso o recorrente está desobrigado de especificar os concretos pontos de facto por cuja alteração se bate (cfr. Cons. A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5.ª edição, pág. 163, em nota de pé de página). Esta especificação serve para delimitar o objecto do recurso e por isso tem de constar das conclusões. [2] O Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes (ob. cit., pág. 170, nota de pé de página) afirma ser «infundada a rejeição do recurso da matéria de facto com fundamento na falta de indicação, nas conclusões, dos meios probatórios ou dos segmentos da gravação em que o recorrente se funda. O cumprimento desses ónus no segmento da motivação parece suficiente para que a impugnação da decisão da matéria de facto ultrapasse a fase liminar, passando para a apreciação do respectivo mérito», citando jurisprudência do STJ nesse sentido. No Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 771, de que é autor em conjunto com Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, precisa-se que «é objecto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões, sob pena de rejeição do recurso» e anota-se que «o Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação». [3] O conceito ganhou particular relevância a propósito da questão, muito debatida na doutrina e na jurisprudência, de saber se o promitente comprador de imóvel ou de fracção autónoma de um prédio (num contrato-promessa sem eficácia real), que é beneficiário da traditio, ou seja, a quem o promitente vendedor fez a entrega, permitindo que o ocupe e habite, do imóvel prometido vender, adquire a sua posse nomine proprio (e, portanto, uma posse boa para usucapião). [4] No nosso caso, do donatário. [5] Cfr. o Ac. STJ de 25.03.2014 (processo n.º 1729/12.6TBCTB-B.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt [6] Assim, A. S. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, pág. 307, que adverte: «Não basta que os factos tenham conexão com alguma “das soluções plausíveis da questão de direito”. Considerando a fase em que agora nos encontramos, a Relação deve ponderar o enquadramento jurídico em face do objecto do recurso ou de outros elementos a que oficiosamente puder atender, contando também com o que possa esperar-se de uma eventual intervenção do Supremo ao abrigo do disposto no art. 682.º, n.º 3.» [7] É lapso manifesto, pois o que se quis referir foi o artigo 947.º, n.º 2, do CC. [8] O recorrente cita, em particular, o acórdão desta Relação de 10.10.2001 (relatado pelo Sr. Desembargador Dr. Gonçalo Silvano), também citado pelo Professor Menezes Cordeiro, que o Prof. Luís M. T. de Menezes Leitão (Direito das Obrigações, III, Contratos em Especial, Almedina, 5.ª edição, pág. 178) comenta em nota de pé de página (n.º 382) nos seguintes termos «(…) considerou-se que, tendo a doação de coisas móveis que ser celebrada por escrito, não seria válida por falta de forma a doação consistente no depósito de dinheiro em conta conjunta, que não é levantado até à morte da doadora. A decisão é inteiramente correcta, uma vez que o depósito em conta conjunta não priva o doador da disponibilidade das quantias depositadas pelo que não pode ser visto como tradição da coisa doada». [9] Cujo sumário é o seguinte: «I - A conta bancária conjunta é meio idóneo para efectuar a tradição da quantia depositada, se, simultaneamente, se provar o animus donandi. II - A doação de coisa móvel, quando haja tradição, pode ser provada por prova testemunhal, não sendo exigível o documento escrito.» [10] Publicado com o seguinte sumário: «I. No depósito bancário colectivo e solidário, no concernente à propriedade da quantia depositada, importa ter presente o prescrito no art. 516º do CC. II. Se o simples facto de se consentir na constituição de um depósito bancário, solidário, em nome, simultaneamente, do dono do dinheiro e de terceiro(s) não permite, sem mais, concluir no sentido da ocorrência de "animus donandi", por banda do primeiro, deve ter-se como acontecida doação, acompanhada de tradição (simbólica) do bem doado (dinheiro), o que releva visto o disposto no art. 947º nº 2 do CC, escrito não havendo, se provar a existência de "animus donandi", que foi intenção do titular da conta solidária que depositou o numerário, que este passasse a ser propriedade do(s) outro(s) titular(es), este(s) podendo dele dispor como entendesse(m). [11] Publicado com o seguinte sumário: «I- Do n.º2 do art. 945.º não resulta que só há tradição da coisa móvel doada quando a própria coisa ou o seu título representativo passe para o donatário ou lhe seja entregue. II- Efectivamente, a tradição não tem necessariamente que ser material (entrega da própria coisa ou do título que a representa), já que pode haver lugar à chamada tradição ficta, a qual consiste na entrega de documentos ou na prática de actos que passam a pôr a coisa na disponibilidade do donatário (vide, a propósito desta figura, Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1979, pág. 753).» [12] Publicado com o seguinte sumário: «I - O facto de na data do óbito existirem contas de depósitos bancários em nome do falecido não permite que se conclua que o saldo dessas contas pertencia necessariamente ao seu titular, integrando por isso o acervo da herança aberta pela sua morte. II - A titularidade de uma conta de depósito bancário pode nada ter a haver com a propriedade das quantias nela existentes. III - É válida a doação verbal do saldo de uma conta bancária desde que acompanhada da subscrição e entrega à donatária dos documentos para esta proceder à transferência ou levantamento da respectiva importância.»
Processo n.º 1550/21.0T8PVZ.P1 Comarca do Porto Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim (Juiz 6) Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I - Relatório 1. Configuração da acção Em 03 de Novembro de 2021, AA intentou no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB e CC, alegando, em síntese, o seguinte: No dia 08 de fevereiro de 2021, faleceu a sua filha DD, no estado de divorciada, sem descendentes e sem ter outorgado testamento público ou feito qualquer outra disposição de última vontade, pelo que é o único e universal herdeiro desta filha sua filha. A ré BB é, também, sua filha e a progenitora da ré CC, sua neta. Além de outros, a sua filha DD deixou os seguintes bens: - veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-JT-..; - os créditos correspondentes aos saldos das seguintes contas de depósitos: - conta à ordem n.º ... no Banco 1..., conta solidária, de que eram titulares, além da DD, a ré CC e uma outra sobrinha (da falecida), que apresentava um saldo de € 2.512,96; - conta depósito a prazo n.º ..., conta solidária com os mesmos titulares, no valor de €20.054,79, no Banco 1...; - conta à ordem n.º ... na Banco 2..., de que era única titular a falecida DD, com o saldo de € 73.434,16. Os valores depositados nessas contas pertenciam, exclusivamente, à DD, pois eram fruto do seu trabalho (como professora) e das poupanças que fazia. Com o seu decesso, as rés «delapidaram todo o valor monetário depositados nas contas bancárias» e subtraíram da conta existente na Banco 2... a quantia de € 72.055,89 e, bem assim, o montante de € 22.000,00 da conta no Banco 1.... Além disso, as rés apoderaram-se do referido veículo automóvel, apossando-se das respectivas chaves. Remata o articulado inicial formulando os seguintes pedidos: a) Que seja reconhecida judicialmente a qualidade de único e universal herdeiro do aqui Autor, cabeça de casal da herança aberta por óbito da filha – DD; b) Que as Rés sejam condenadas solidariamente a restituir à herança a quantia de € 94.055,89 (noventa e quatro mil e cinquenta e cinco euros e oitante e nove cêntimos); acrescido dos juros legais desde a interpelação até efetivo e integral pagamento. c) Que seja reconhecido que a falecida – DD - era a única e exclusiva beneficiária das quantias depositadas/aplicadas na conta bancária do Banco 1..., S.A., devendo a herança ressarcida da totalidade dos valores ali depositados, tudo com as demais consequências legais; d) Que as Rés sejam condenadas a restituir à herança o veículo automóvel BMW, modelo ..., com a matrícula ..-JT-.., que já se encontra registado a favor do aqui Autor, por sucessão hereditária e que por cada dia de atraso na entrega do veículo sejam condenadas ao pagamento da quantia de €75,00 (setenta e cinco euros), a título de sanção pecuniária compulsória. e) Que as Rés sejam condenadas em custas, custas de parte e procuradoria condigna. 2. Oposição das rés Citadas, as rés apresentaram contestação conjunta, defendendo-se por impugnação, e deduziram reconvenção. Alegam que o autor, depois do divórcio, abandonou os filhos e só forçado por decisão judicial pagava pensão de alimentos; por isso que havia muito tempo que inexistiam quaisquer contactos entre o autor e as filhas e era propósito da DD fazer disposição de última vontade sobre o seu património a favor das suas sobrinhas, designadamente da ré CC, o que não se concretizou porque a sua doença se agravou rapidamente e levou à sua morte. Na fase mais difícil da doença (do foro oncológico), foram a irmã, aqui ré BB, e as sobrinhas (a ré CC e EE) da DD quem mais a apoiou, pois havia uma relação de grande proximidade entre elas. Foi nesse contexto que a DD doou o referido veículo automóvel à ré BB, a quem entregou o respectivo título de propriedade e as chaves, que esta aceitou, assim se consumando a “tradito” da coisa. Quanto ao dinheiro das contas de depósitos, é verdade que pertencia, em exclusivo, à DD, que o doou àquelas suas sobrinhas, as quais aceitaram a liberalidade, tendo recebido das mãos da tia os Cartões Multibanco relativos a essas contas, bem como os respectivos códigos de acesso, e só não as movimentaram porque não quiseram fazê-lo ainda a em vida da sua tia e porque não tinham necessidade desse dinheiro. Em reconvenção, alegam que, por força da doação, a ré BB adquiriu a propriedade do veículo automóvel e pedem que lhe seja reconhecida titularidade desse direito e se mande cancelar o registo existente a favor do autor. 3. Réplica Em articulado de resposta à matéria da reconvenção, o autor/reconvindo nega a existência de qualquer doação e muito menos tradição dos bens alegadamente doados; tanto assim que, relativamente à viatura automóvel, já no final de junho de 2021, deslocou-se à fração autónoma sita em ..., Vila do Conde, que fora propriedade da falecida DD, para dela “tomar posse” e no lugar de parqueamento que lhe estava destinado encontrava-se o BMW estacionado, com evidentes sinais de não ser utilizado há muito tempo. Foi daí que a ré/reconvinte o retirou, sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, dele se apoderando, o que o levou a apresentar queixa contra ela. Concluiu pela improcedência da reconvenção. 4. Saneamento e condensação Sem oposição das partes, foi dispensada a realização de audiência prévia e, em 18.02.2022, foi proferido despacho em que: - se saneou o processo (despacho saneador tabelar); - foi admitida a reconvenção; - se identificou o objecto do litígio; - se elencaram os factos considerados já assentes; - se enunciaram os temas de prova; - se admitiram as provas oferecidas e se designou, de imediato, data para a audiência final. 5. Audiência final e sentença Realizou-se a audiência final, em uma só sessão, após o que, com data de 13.06.2022, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Por todo o exposto, decide-se: - Reconhecer o Autor como único e universal herdeiro de sua filha DD; - Absolver as Rés dos demais pedidos formulados pelo Autor; - Julgar procedente, por provado o pedido reconvencional, reconhecendo o direito de propriedade da Ré/reconvinte BB sobre o veículo de marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-JT-..; - Mais se decide ordenar o cancelamento do registo de propriedade do mencionado veículo a favor do aqui Autor; Custas pelo Autor.» 6. Impugnação da sentença Inconformado com a sentença, em 05.09.2022, o autor dela interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões: «1 – O presente recurso pretende dar a conhecer aos Venerandos Juízes Desembargadores os motivos pelos quais o Recorrente discorda da douta sentença proferida pelo Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 6, no âmbito do Processo nº 1550/21.0T8PVZ, tendo como fundamento a impugnação da matéria de facto (artigo 640.º do CPC) e da matéria de direito (artigo 639.º, n.º 2, do CPC). 2 – Ao decidir como decidiu, o M.M. Juiz a quo não fez uma correta interpretação de toda prova carreada aos autos, considerando que da análise efetuada, resulta que alguns factos dados como provados deveriam ter sido julgados de outra forma, bem como foram desconsiderados factos que interessam para a boa decisão da causa e aplicação do direito, bem como também não foi feita uma correta aplicação do direito, isto é, a douta sentença deve ser revogada, porquanto o Tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto e de direito. 3 – DO PEDIDO DE REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO: O Recorrente considera que, não apenas foi incorretamente julgados os pontos 12), 22) e 23) dados como provados, como também, dos depoimentos das Recorridas e depoimentos testemunhais, resultaram outros factos, de suma importância para a boa decisão da causa e que não foram levados ao elenco de factos provados, como deveriam. 4 – A alteração da matéria factual dada como provada e a introdução de novos factos, assentará, sobretudo, no depoimento das Recorridas, bem como no depoimento de cada uma das testemunhas ouvidas em sede de Audiência de Julgamento, que se requer, ao abrigo do disposto no artigo 640º, nºs 1 e 2, do C.P.C, que sejam devidamente reapreciados e valorados, para cada um dos pontos assinalados. 5 – Quanto ao facto 12) dado como provado na douta sentença: “O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chave encontra-se na posse da primeira Ré.” – a sua redação terá de ser alterada, dando-se como provado o seguinte: 12) O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chaves encontra-se na posse da primeira Ré, por uma questão de segurança, para que o mesmo não ficasse estacionado na via pública, considerando que a falecida DD tinha receio de estacioná-lo no lugar de garagem do seu imóvel sito em ... 6 – Deve ser aditado ao elenco dos Factos Provados, o seguinte facto: “O veículo automóvel de marca BMW, com a matrícula ..-JT-.., de modelo ..., nunca foi utilizado pela I Recorrida, mesmo após a doação do mesmo por parte da falecida DD àquela.” 7 – Deve ser aditado ao elenco dos Factos Provados, o seguinte facto: “A I Recorrida não pretendia, em vida da sua irmã DD, transferir para si a propriedade do veículo automóvel.” 8 – Deve ser aditado ao elenco dos Factos Provados, o seguinte facto: “A II Recorrida e a sua prima EE apenas passaram a ser contitulares das contas do Banco 1..., S.A., numa altura em que a tia DD já havia adoecido e não dispunha de total autonomia, nomeadamente para gerir o seu património e a sua vida financeira.” 9 – Deve ser aditado ao elenco dos Factos Provados, o seguinte facto: “A II Recorrida e a sua prima passaram a ter acesso aos cartões bancários e respetivos códigos das contas bancárias tituladas pela tia DD a partir do momento em que esta adoeceu, mas apenas para permitir a movimentação e consequente satisfação das necessidades desta última.” 10 – Deve ser aditado ao elenco dos Factos Provados, o seguinte facto: “As contas eram movimentadas pela II Recorrida e a sua prima apenas e tão só para satisfação das necessidades da tia DD, nunca as tendo movimentado em proveito próprio ou aí depositado quaisquer verbas.” 11 – Quanto ao facto 22) dado como provado na douta sentença, a sua redação terá de ser alterada, dando-se como provado o seguinte: “22) A falecida DD expressamente declarou doar essas quantias a essas sobrinhas, tendo recebido das mãos de sua tia os cartões de débito relativos a essas contas, bem como os respectivos códigos.” 12 – Quanto ao facto 23) dado como provado na douta sentença, a sua redação terá de ser alterada, dando-se como provado o seguinte: “23) Entre estas foi combinado que, em vida da Tia, não movimentariam as contas.” 13 – DO DIREITO APLICÁVEL AO CASO: começando por analisar o regime jurídico da doação, o 947º, nº 2, do CC exige a forma escrita para a perfeição da doação de bens móveis, salvo quando ela é acompanhada de tradição da coisa doada. 14 – Ora, na situação sub judice, mostra-se inequívoco que a falecida filha do Recorrente não deixou qualquer escrito que consubstancie a alegada doação do veículo automóvel e dos valores monetários às Recorridas, pelo que, para estarmos perante doações válidas, há que ter ocorrido a tradição das coisas e a correspondente aceitação por parte das donatárias. 15 – Quanto às contas bancárias tituladas pela falecida filha do Recorrente, estamos perante doações de valores, provenientes exclusivamente do trabalho/aforro da filha do Recorrente [Facto 9) dado como provado] e depositados por esta em contas bancárias anteriormente abertas e mantidas inalteradas. 16 – Por outro lado, a II Recorrida e a sua prima somente passaram, em dezembro de 2020, a serem contitulares das contas existentes no Banco 1..., S.A. numa altura de fragilidade na vida da DD, em que a mesma já havia adoecido e não dispunha de total autonomia, nomeadamente para gerir o seu património e, por isso, a contitularidade das referidas contas teve como único propósito facilitar os movimentos por aquelas para pagamento das despesas desta. 17 – Portanto, o facto de a II Recorrida e a sua prima EE terem passado, em dezembro de 2020, a serem contitulares das contas bancárias à ordem e a prazo existentes no Banco 1..., S.A. não lhes confere a propriedade sobre o saldo nelas depositado, mas apenas a possibilidade de as mesmas o movimentarem, tal como também o podia fazer a sua proprietária DD. 18 – As contas eram movimentadas pela II Recorrida e a sua prima apenas e tão só para satisfação das necessidades da tia DD e foi com esse propósito que a II Recorrida e a sua prima passaram a ter na sua posse os cartões e os respetivos códigos e não após a alegada doação. 19 – Mesmo após a alegada doação, a falecida manteve-se até ao seu decesso como cotitular das contas existentes no Banco 1..., S.A. e como titular exclusiva da conta existente na Banco 2..., S.A. e a qualquer momento poderia fazer uso, como bem entendesse, das quantias ali existentes e alegadamente doadas, não existindo uma cessão da relação material com a coisa objeto da doação por parte da doadora. 20 – A II Recorrida e a sua prima apenas movimentavam as contas para satisfação das necessidades da falecida, nunca, mesmo após a doação, movimentaram as contas em proveito próprio ou aí depositaram quaisquer verbas, não existindo um empossamento por parte das donatárias. 21 – A tradição dos bens móveis (depósito bancário) deve materializar-se em atos concretos dos quais resulte inequivocamente a doação, nomeadamente quando a donatária movimente o saldo a seu favor, revelando apropriação do mesmo, o que não ocorreu na presente situação. 22 – Curiosamente, após a doação e numa altura em que supostamente já se consideravam donas do dinheiro, a II Recorrida e a sua prima alegam ter entregue os cartões à I Recorrida. 23 – Caso se considerassem efetivamente donas daqueles valores, mantinham a postura que sempre adotaram: tomavam na sua posse os cartões, e até faziam novos (um para cada), continuavam a movimentar as contas, com acréscimo de que agora o fariam para fins pessoais. 24 – Para além disso, a atitude das alegadas beneficiárias da doação dos valores depositados, de entrega dos cartões à I Recorrida, a não movimentação em proveito próprio, entre outras, claramente demonstra que não existiu aceitação da sua parte, pelo que, nunca poderemos estar perante uma doação, outrossim uma proposta de doação, que caducou com a morte da doadora (artigo 945º, nº 1 do CC). 25 – Acresce que, os valores monetários depositados nas contas bancárias tituladas pela filha do Recorrente e alegadamente doadas por esta à II Recorrida e uma sua prima foram movimentados pela I Recorrida (não beneficiária da doação dos valores monetários) e transferidos para uma conta sua, já após a morte daquela. 26 – Assim sendo, nos dizeres do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa [Proc. 865/13.6TBPDL.L1-8, datado de 17/12/2015), se a II Recorrida e sua prima movimentassem as contas a seu favor em vida da DD, estariam a agir ao abrigo de um contrato de doação válido e este estaria a cumprir os seus efeitos; porém, não foi isso que aconteceu, uma vez que, a II Recorrida - na verdade, a I Recorrida – só movimenta a conta após o óbito da filha do Recorrente. 27 – Pelo que, “dado o momento em que a Ré aparece a movimentar a conta – já depois do falecimento da doadora – forçosamente temos de concluir que a doação, para produzir os seus efeitos, já os produz depois da morte da doadora, depois da abertura da sucessão desta. E nestas condições terá de se considerar que os seus efeitos são os de uma doação por morte – artigo 946º de C. Civil, para o que a mesma não respeita a forma legal. A actuação da Ré deixou de se efectuar ao abrigo da doação, que agora, no momento da entrega da coisa doada, já não reveste a forma exigida, já é ineficaz, já não pode produzir os efeitos típicos aludidos.” [citado Ac. TRL; negrito nosso] 28 – Ou seja, nunca tendo as Recorridas movimentado as contas em proveito próprio, limitando-se a retirar todo o dinheiro só depois do falecimento da doadora, a doação produz os seus efeitos depois da morte da doadora, depois da abertura da sucessão desta; nesse sentido, os seus efeitos são os de uma doação por morte, a qual só é válida se observados os formalismos dos testamentos, o que não ocorre no presente caso. 29 – Por último, a intenção da falecida DD, mesmo depois da alegada doação, sempre foi a de outorgar um testamento, o qual apenas produziria efeitos após a sua morte, o que significa que a sua verdadeira intenção era a de dispor dos seus bens para depois do seu decesso. 30 – Desta forma, até à data em que tal testamento produzisse os seus efeitos, a filha do Recorrente considerava os depósitos bancários como sendo exclusivamente seus; aliás, se a falecida DD efetivamente tivesse deixado de ser proprietária daqueles valores em janeiro de 2021, porque já os havia doado às suas sobrinhas, nunca os poderia legar em testamento, pois estes já não integravam a sua esfera jurídica. 31 – Destarte, a doação dos valores monetários feita pela filha do Recorrente à II Recorrida e uma sua prima, de nome EE não é válida, porquanto não chegou a ocorrer “tradição” da coisa, com a consequente e imprescindível aceitação por parte das donatárias, nem revestiu a forma escrita. 32 – Quanto à alegada doação do veículo automóvel pela filha do Recorrente à I Recorrida, convém começar por referir que, se o mesmo se encontra na garagem desta ainda antes do falecimento daquela, tal apenas ocorreu por uma questão de segurança, para que o automóvel não ficasse na via pública. 33 – Ademais, a I Recorrida nunca utilizou este veículo automóvel, o que releva uma não apropriação do mesmo por parte da donatária, e não tinha intenção de transferir a propriedade do veículo automóvel para seu nome em vida da DD, o que significa que, enquanto esta vivesse, a I Recorrida não se considerava verdadeiramente proprietária da viatura - desta forma, não ocorreu a necessária aceitação da doação e, consequentemente estamos perante uma mera proposta de doação, a qual caducou com a morte da doadora (artigo 945º, nº 1 do CC). 34 – Não obstante, também neste caso, a intenção da falecida filha do Recorrente seria a de contemplar a I Recorrida em testamento, que só produziria efeitos após a sua morte, o que significa que, até esse momento, a mesma considerava-se proprietária do veículo automóvel. 35 – Desta forma, tanto os saldos das contas bancárias, como o veículo automóvel integravam a esfera jurídica da falecida filha do Recorrente, sendo da sua propriedade exclusiva e, por isso, integram a sua herança, da qual o Recorrente é o único herdeiro, e devem ser restituídas à mesma pelas Recorridas. 36 – A sentença de que agora se recorre peca por defeito, uma vez que centrou-se apenas e tão só na entrega dos cartões bancários e das chaves e documentos do veículo automóvel para concluir ter ocorrido a tradição das coisas doadas, olvidando todos os demais circunstancialismos referidos ao longo destas alegações, nomeadamente a não cessação da relação material com as coisas objeto das doações por parte da doadora, nem o empossamento em vida daquela por parte das donatárias, o facto de os valores apenas terem sido retirados já após a morte da doadora, a intenção da falecida ter sido sempre a de realizar um testamento dispondo dos seus bens para depois da morte, mesmo após a alegada doação. 37 – Factos estes que nos revelam não estarem verificados os pressupostos da tradição da coisa, ou seja, o veículo automóvel e os saldos bancários para as I e II Recorridas, respetivamente, nem ter ocorrido a aceitação por parte das donatárias em vida da doadora (necessária para a perfeição das doações), e, consequentemente tais doações são inválidas, em face dos artigos 945º, nº 1 e 2, 946º e 947º, todos do CC – é aí que reside o erro de julgamento, no qual incorre a sentença de que ora se recorre. 38 – O erro de julgamento resulta da apreciação dos presentes autos em desconformidade com a lei, nomeadamente quanto ao conceito de doação, à forma exigida para a doação de coisas móveis (que não foi respeitada, nem a forma escrita, nem a tradição das coisas doadas) e a necessária aceitação por parte das donatárias em vida da doadora (que, não tendo ocorrido, implicaria sempre estarmos perante uma mera proposta de doação, que caducou com a morte da DD). 39 – Quanto muito poderíamos equacionar estarmos em presença de doações por morte, as quais, não respeitando os formalismos dos testamentos, são proibidas por lei. 40 – Ou seja, e mesmo que tivesse ocorrido a entrega das chaves e documentos do veículo automóvel e dos cartões bancários, o Tribunal a quo, face ao regime jurídico das doações plasmado no Código Civil, teria sempre que considerar que as doações são nulas (inválidas e ineficazes). 41 – Salvo o devido respeito, a sentença de que ora se recorre fez uma errada interpretação da lei aplicável ao caso, nomeadamente os artigos 940º, nº 1, 945º, 946º, 947º, todos do Código Civil. 42 – Devendo assim o Venerando Tribunal da Relação, revogar a sentença ora recorrida, substituindo-a por outra que julgue inválidas e ineficazes as doações verbais do veículo automóvel marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-JT-.. e dos valores depositados nas contas do Banco 1..., S.A. e na Banco 2... S.A., e, consequentemente considerar que tais bens integram a herança deixada pela filha do Recorrente, condenando as Recorridas nos exatos termos peticionados na Petição Inicial.». As rés contra-alegaram, pugnando pela confirmação do julgado. O recurso foi admitido (com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo) por despacho de 18.10.2022. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. Objecto do recurso São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo). Resulta bem claro das conclusões formuladas pela recorrente que a sua discordância em relação à sentença recorrida abrange, quer a matéria de facto, quer a respectiva subsunção jurídica. As questões que submete à apreciação deste tribunal de recurso são, pois, as seguintes: - se o tribunal a quo fez incorrecta apreciação e valoração da prova produzida, assim incorrendo em erro de julgamento quanto à matéria de facto, impondo-se uma alteração da decisão; - repercussão de uma eventual alteração factual na solução jurídica do caso ou se, como defende, independentemente de qualquer modificação do quadro factual a ter em conta, deve ser diverso o seu enquadramento jurídico. II – Fundamentação 1. Fundamentos de facto Delimitado o thema decidendum, atentemos na factualidade que a primeira instância deu por assente, bem como a que considerou não provada. A) Factos provados 1) No dia 8 de Fevereiro de 2021 faleceu DD, no estado de divorciada, sem descendentes e sem ter outorgado testamento público e ou qualquer outra disposição de última vontade; 2) Sucedeu-lhe como único e universal herdeiro o seu pai, aqui Autor; 3) À data do óbito daquela DD encontrava-se registada a seu favor, na competente conservatória do registo automóvel, um veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-JT-.., de marca BMW, de modelo ...; 4) A mesma DD era titular de uma conta à ordem no Banco 1..., SA com o n.º ..., que à data do falecimento tinha o saldo de € 2.512,96 (dois mil quinhentos e doze euros e noventa e seis cêntimos); 5) A partir de 3 de Dezembro de 2020, passaram a ser contitulares solidários dessa conta a aqui Ré CC e outra sobrinha da dita DD; 6) E era titular de uma outra conta de depósitos no Banco 1..., SA com o n.º ... que, à data do óbito tinha o saldo de € 20.054,79 (vinte mil e cinquenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos); 7) A partir de 20 de Dezembro de 2020, passaram a ser contitulares solidários dessa conta a aqui Ré CC e outra sobrinha da dita DD; 8) A dita DD era ainda titular exclusiva de uma conta à ordem na Banco 2..., S.A. com o n.º ..., cujo saldo, à data do óbito, era de € 73.434,16 (setenta e três mil quatrocentos e trinta e quatro euros e dezasseis cêntimos); 9) Todos os valores mobiliários constantes das contas bancárias acima referidos foram depositados exclusivamente pela aludida DD e eram unicamente provenientes do seu trabalho/aforro; 10) Após a morte da dita DD foi retirado o montante global de €72.055,89 (setenta e dois mil cinquenta e cinco euros e oitenta e nove cêntimos) da conta bancária na Banco 2..., S.A.; 11) Após o óbito da mesma DD foram foi retirado das aludidas contas bancárias do Banco 1..., SA a quantia global de €22.000,00 (vinte e dois mil euros), depositados à ordem nesse mesmo banco; 12) O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chave encontra-se na posse da primeira Ré; 13) A titularidade deste veículo encontra-se registada na competente conservatória do registo automóvel a favor do aqui Autor; 14) A foi a Ré BB, quem, por conta da Ré CC de EE, (procedeu?) à retirada do dinheiro aludida em 10) e 11), através dos cartões de débito e dos códigos bancários que lhe permitiam movimentar tais contas; 15) Após a morte da DD, a Ré BB manteve-se na posse do supra identificado veículo da marca BMW; 16) Porque a identificada DD pretendia fazer testamento, foi marcado a deslocação de uma Senhora Notária à habitação onde a mesma se encontrava; 17) Contudo, veio a falecer dois dias antes da altura em que se encontrava marcada essa deslocação, que não ocorreu anteriormente por motivo da existência da pandemia; 18) Desde o momento e que se apercebeu do agravamento do seu estado de saúde até ao seu decesso mediou um lapso de tempo muito curto; 19) O veículo automóvel aludido em 3) foi doado pela falecida DD à aqui Ré BB a quem entregou o documento único automóvel e as chaves o que esta aceitou; 20) A falecida DD fazia questão que esse carro integrasse o património da Ré, sua irmã, pessoa de quem era muito próxima e com quem passava todos os seus tempos; 21) As quantias identificadas em 10) e 11) foram doadas pela D. DD a suas sobrinhas, a aqui 2ª Ré e a EE, em partes iguais, quando se apercebeu que a doença se agravava; 22) A falecida DD expressamente declarou doaeu (doar?) essas quantias a essas sobrinhas que as aceitaram, tendo a recebido das mãos de sua tia os cartões de débito relativos a essas contas, bem como os respectivos códigos. 23) Entre estas foi combinado que, em vida da Tia, não movimentariam as contas, não obstante terem aceite a doação. 24) E foi ainda acordado que, uma vez que cada conta só dispunha de um cartão de débito, que esse ficaria na posse da aqui 1ª Ré, como aconteceu. 25) Com essas doações, a mencionada DD visava recompensar as sobrinhas, a aqui 2ª Ré e a EE, pois que sempre foram elas que acompanharam a Tia, maxime na fase difícil da doença, de que veio a falecer, que era do foro oncológico. B) Factos não provados a) O Autor desconhecia o património da sua filha; b) A tomar posse dos bens imóveis da sua falecida filha o Autor deparou-se com estes totalmente desfalcados, deles tendo sido retirados os bens de maior valor, designadamente móveis, electrodomésticos, ouro e prata que pertenciam àquela, bem como os cartões bancários das contas de depósito bancário pela mesma tituladas; c) O referido veículo automóvel encontrava-se estacionado na fracção autónoma da DD, sita em ... e, em Agosto de 202 (2021?), foi dali retirado pelas Rés uma semanas após o Autor ter tomado posse do dito imóvel; d) O dito veículo automóvel tinha o valor comercial de €20.000,00; e) Quando tomou posse da referida fracção autónoma o Autor presenciou que o veículo automóvel acima identificado estava estacionado na garagem da fracção autónoma da falecida DD.*A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso e daí que um dos ónus de especificação que o artigo 640.º do CPC faz recair sobre o recorrente é o de indicar os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido, obrigação que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida[1]. A recorrente é bem clara na especificação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados: a impugnação visa os factos descritos nos n.os 12, 22 e 23 do elenco dos provados; além disso, pretende o aditamento de novos factos (que também especifica). A reapreciação (parcelar) da matéria de facto requer (sempre nos limites traçados pelo objecto do recurso) a reponderação especificada, um juízo autónomo da força e compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção, formada na primeira instância, relativamente aos factos impugnados e por isso é fundamental que o recorrente especifique as concretas provas (constantes do processo ou que nele tenham sido registadas) que impõem decisão diversa da recorrida, ónus que se cumpre com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe outra decisão[2]. Nesse conspecto (especificação das provas que imporiam decisão diversa da recorrida), o recorrente, nas conclusões do recurso, limita-se a referir genericamente «o depoimento das Recorridas” e «o depoimento de cada uma das testemunhas ouvidas em sede de Audiência de Julgamento» (conclusão4.ª). No entanto, no “corpo” da motivação do recurso, o recorrente assinala as passagens desses depoimentos (reproduzindo o seu conteúdo) em que se baseia para fundamentar, quer a alteração do conteúdo dos referidos pontos de facto, quer a ampliação da matéria de facto, pelo que também este ónus se mostra cumprido. Vejamos, então, se é fundada a pretensão do recorrente. Objecto de doação tanto pode ser a disposição gratuita de uma coisa ou direito, como a assunção de uma obrigação. Neste caso, temos duas doações: uma, a favor da ré BB, de uma coisa (um veículo automóvel); outra, uma doação conjunta de um direito de crédito (com origem nos depósitos bancários), com duas beneficiárias (a ré CC e EE). O primeiro ponto de facto que o recorrente impugna tem o seguinte conteúdo: «12) O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chave encontra-se na posse da primeira Ré» O recorrente pretende que passe a ser do seguinte teor: «12) O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chaves encontra-se na posse da primeira Ré, por uma questão de segurança, para que o mesmo não ficasse estacionado na via pública, considerando que a falecida DD tinha receio de estacioná-lo no lugar de garagem do seu imóvel sito em ...» Além disso, o recorrente defende que sejam aditados os seguintes factos: «O veículo automóvel de marca BMW, com a matrícula ..-JT-.., de modelo ..., nunca foi utilizado pela I Recorrida, mesmo após a doação do mesmo por parte da falecida DD àquela» e «A I Recorrida não pretendia, em vida da sua irmã DD, transferir para si a propriedade do veículo automóvel». Os pontos de facto 22 e 23 reportam-se à segunda doação e têm o seguinte conteúdo: «22) A falecida DD expressamente declarou doaeu (doar?) essas quantias a essas sobrinhas que as aceitaram, tendo a recebido das mãos de sua tia os cartões de débito relativos a essas contas, bem como os respectivos códigos» «23) Entre estas foi combinado que, em vida da Tia, não movimentariam as contas, não obstante terem aceite a doação» O recorrente pretende que sejam alterados e passem a ter a seguinte formulação: «22) A falecida DD expressamente declarou doar essas quantias a essas sobrinhas, tendo recebido das mãos de sua tia os cartões de débito relativos a essas contas, bem como os respetivos códigos.» «23) Entre estas foi combinado que, em vida da Tia, não movimentariam as contas.» E pretende que sejam acrescentados os seguintes: «A II Recorrida e a sua prima EE apenas passaram a ser contitulares das contas do Banco 1..., S.A., numa altura em que a tia DD já havia adoecido e não dispunha de total autonomia, nomeadamente para gerir o seu património e a sua vida financeira.» «A II Recorrida e a sua prima passaram a ter acesso aos cartões bancários e respetivos códigos das contas bancárias tituladas pela tia DD a partir do momento em que esta adoeceu, mas apenas para permitir a movimentação e consequente satisfação das necessidades desta última.» «As contas eram movimentadas pela II Recorrida e a sua prima apenas e tão só para satisfação das necessidades da tia DD, nunca as tendo movimentado em proveito próprio ou aí depositado quaisquer verbas.» A primeira nota a realçar é esta: nenhum dos factos que o recorrente quer ver acrescentados ao conjunto dos provados foi por ele alegado. Por isso, só estaria justificada a sua inclusão no elenco dos provados se pudessem considerar-se factos complementares dos constitutivos do direito que invoca (mas não identificadores desse direito) ou concretizadores de afirmações de cariz mais genérico que tenha feito na exposição dos fundamentos da acção. E, obviamente, que esses factos têm suficiente suporte probatório. Como já se assinalou no antecedente relatório, o facto que o recorrente invoca como constitutivo do direito sobre os bens supra identificados (veículo automóvel e os créditos correspondentes aos saldos das contas bancárias) é a sucessão hereditária e tais bens fazerem parte da herança aberta por óbito de DD: sendo sua filha e tendo falecido no estado de divorciada, sem descendentes e sem que tenha feito testamento, ele seria o único e universal herdeiro. Daí exigir a restituição desses bens à herança, ou seja, a si próprio, uma vez que já houve habilitação de herdeiro. Por seu turno, as rés alegaram que tais bens lhes foram doados pela DD e que aceitaram a doação. A doação (tal como a sucessão) é uma forma de transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito (artigos 1316.º e 954.º, al. a), do CC). Impõe-se, pois, um breve apontamento sobre o regime jurídico da doação. O contrato de doação conclui-se com a aceitação. Esta pode ser expressa (feita no próprio acto ou em qualquer momento desde que em vida do doador) ou tácita, valendo como aceitação a tradição para o donatário de coisa móvel. A doação de imóveis é um contrato formal: deve ser celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado (artigo 947.º, n.º 1, do CC). Na doação de móveis, a regra é a consensualidade, desde que acompanhada de tradição da coisa. Se não houver tradição, exige-se a forma escrita (n.º 2 do mesmo artigo). A tradição (material ou simbólica) da coisa[3] é uma forma de transmissão da posse (artigo 1263.º, al. b), do CC) e traduz-se na sua colocação, por parte do anterior possuidor, à disposição do novo possuidor. Por outras palavras, «a traditio é um acto materialmente translativo que atribui ao accipiens o domínio efectivo e empírico sobre a coisa; ele é o produto da confluência, por um lado, de uma vontade negativa do possuidor de deixar a relação material que exercia ao abrigo da posse, e por outro, da vontade positivamente manifestada do promissário[4] em iniciar essa mesma relação material» (acórdão da Relação de Coimbra de 10.12.2013, processo n.º 1729/12.6TBCTB-B.C1, acessível in www.dgsi.pt). A tradição material concretiza-se através de uma acção física de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões[5]. Neste caso, as doações que as rés invocam não foram feitas por escrito, pelo que a conclusão de que houve aceitação por parte das donatárias depende da existência de factos que permitam afirmar que ocorreu a tradição dos bens. Nesse enquadramento, os factos que o recorrente pretende que sejam aditados podem ser considerados factos instrumentais, que serviriam para afastar a verificação da traditio, logo, da aceitação da doação. Ora, na sentença devem estar enunciados os factos essenciais nucleares, ou seja, aqueles que individualizam ou identificam o direito em causa (bem como aqueles em que se baseiam as excepções) e os factos essenciais complementares (os que não desempenham essa função, mas são imprescindíveis para que a acção proceda porque são, também, constitutivos do direito invocado). Poderão, ainda, dela constar, mas não é forçoso que assim aconteça, os factos concretizadores de anteriores afirmações de pendor mais genérico que tenham sido feitas. Quanto aos chamados factos probatórios ou factos instrumentais (aqueles que, conjugados com as máximas da experiência, permitem a afirmação, por recurso a raciocínios indutivos, de factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da excepção), não carecem de alegação e não têm que integrar o elenco de factos provados, pois o seu relevo limita-se à motivação da decisão sobre os restantes factos, e por isso bastará que sejam revelados ou expostos na motivação da decisão, no segmento em que o juiz, analisando criticamente as provas produzidas, exterioriza o percurso lógico que o conduziu à formulação do juízo probatório sobre o factos essenciais. Como anotam A.S. Abrantes Geraldes, L.F. Pires de Sousa e P. Pimenta (in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 29), «sobre os mesmos não tem de existir necessariamente uma pronúncia judicial, na medida em que sirvam apenas de apoio à formação da convicção acerca da restante factualidade, mxime quando, a partir deles, se possam inferir outros factos mediante presunções judiciais (arts. 607.º, n.º 4, 5.º, n.º 2, al. a)), situações em que basta que sejam enunciados na motivação da sentença». Nos termos do disposto na alínea c) (trecho final) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, a Relação determina a ampliação da decisão da matéria de facto sempre que a considere indispensável, ou seja, sempre que à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito e tendo em conta o objeto do recurso, determinado facto ou acervo factual seja necessário para dar suporte a uma dessas soluções e isso independentemente da solução perfilhada pelo Tribunal da Relação, havendo lugar à anulação da decisão em que se verifique a omissão da matéria objeto de ampliação sempre que não constem do processo todos os elementos que nos termos do n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil permitam a ampliação da decisão da matéria de facto[6]. Não é o que aqui acontece, como cremos ter evidenciado, pelo que não se justifica a ampliação pretendida. Vejamos se a prova produzida impõe a alteração por que pugna o recorrente nos pontos 12, 22 e 23. No ponto 12, o recorrente entende que ao seu conteúdo deve ser acrescentado o seguinte: «… por uma questão de segurança, para que o mesmo não ficasse estacionado na via pública, considerando que a falecida DD tinha receio de estacioná-lo no lugar de garagem do seu imóvel sito em ...» No ponto 22, defende que deve ser eliminado o segmento “que as aceitaram”. No ponto 23, a alteração pretendida consiste na eliminaçã0 de segmento de sentido idêntico: «não obstante terem aceite a doação». Cabe aqui assinalar que, ao aceitar que o veículo automóvel (BMW, modelo ..., matrícula ..-JT-..) está na posse da ré BB e que assim era mesmo em vida da DD, o autor admite ter faltado à verdade ao alegar que as rés furtaram a viatura, retirando-a da garagem do prédio sito em ..., onde esta era condómina (proprietária de uma fracção autónoma), e que o levou a apresentar queixa-crime (artigos 36.º e 37.º da p.i.). É verdade que da prova produzida, designadamente das declarações da ré BB e do depoimento da testemunha FF (marido desta ré) decorre que a viatura estava guardada na garagem do prédio sito em ..., onde estes são condóminos, por razões de segurança (visto que é uma garagem fechada, tipo box) e porque a DD teria dificuldade em estacioná-la no lugar de parqueamento que lhe estava destinado na garagem do seu prédio. No entanto, quer a ré, quer a testemunha referiam-se a um tempo anterior à doação. Depois desta, podem ser outros os motivos por que a viatura está (continua a estar) na posse da ré BB. O recorrente não põe em causa que a DD fez declarações dispondo gratuitamente dos bens (o veículo automóvel e os valores pecuniários existentes nas contas bancárias) a favor das rés. O que contesta é que tenham sido doações válidas, por não ter havido aceitação. No entanto, nem os factos que pretende acrescentar ao ponto 12 afastam a aceitação, nem as referências nos pontos 22 e 23 à aceitação são suficientes para a ter como certa. Como já se fez notar, a falta de forma escrita implica que se prove a tradição dos bens para se concluir que houve aceitação. Por outras palavras, o que importa saber é se os factos provados consubstanciam a exigida traditio, indispensável para se concluir se houve, ou não, aceitação da doação. Por isso, o que aqui, verdadeiramente, se controverte é uma questão de direito. Impõe-se, assim, julgar improcedente a impugnação da decisão sobre matéria de facto. 1. Fundamentos de direito Na sentença recorrida está assim justificada a solução jurídica adoptada para a questão de saber se estamos perante doações válidas: «Isto posto, a questão que se coloca é a de saber se tais doações cumpriram ou não os requisitos de forma referido no supra transcrito art. 927º, n.º 2 do Código Civil[7]. No caso vertente, nenhum documento escrito existe que declare a doação do veículo e do dinheiro depositado nas mencionadas contas de depósito bancárias, pelo que estamos perante doações verbais de coisa móveis cuja validade depende da correspondente tradição da coisa. Nas palavras de Vaz Serra (Anotação ao acórdão do STJ, de 18/05/1976, in RLJ Ano 110.º, p. 212), a exigência legal de que a doação verbal de móveis seja acompanhada da tradição da coisa, “(…) funda-se na circunstância de a doação poder ser perigosa se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade do acto». Como se transcreve no Ac. do STJ de 16/06/2016 (in www.dgsi./jstj), nos termos preconizados por Baptista Lopes (in das “Doações” pág.44): «(…) a necessidade de escrito, para a doação de móveis, quando não seja manual, funda-se na conveniência de evitar doações levianas, atitudes imponderadas e precipitadas, pois o escrito chama a atenção do doador para o acto pelo qual, doando móveis sem os entregar ao donatário, desfalca o seu património de uma maneira não visível materialmente. Havendo tradição, esta chama já por si mesma essa atenção.» Tal tradição ou entrega não terá de ser necessariamente simultânea da declaração de doar, podendo ser anterior ou mesmo posterior a esta e podendo consistir seja numa entrega material da própria coisa doada seja numa entrega simbólica do bem doado, por exemplo do seu título representativo, como decorre, aliás, do disposto nos artigos 945.º, n.º 2, e 1263.º, alínea b), do Código Civil. No caso dos autos, entendemos ter existido, da parte da doadora, não apenas a entrega (simbólica) do veículo à donatária, consubstanciada na entrega à Ré BB das chaves e dos documentos do mesmo veículo, como também do próprio dinheiro existente nas supra mencionadas contas bancária, neste caso, traduzida na entrega à Ré CC e à mencionada EE dos únicos cartões de que dispunha e que permitiam às donatárias a imediata movimentação, em seu benefício, daqueles depósitos. Existe, portanto, também quanto estes ao dinheiro depositado, uma tradição na medida em que o animus donandi é acompanhado duma entrega – o cartão que permitia movimentar tais depósitos - ou seja, um meio suscetível de tornar efetivo o apossamento, pelas donatárias, do dinheiro depositado. Conclui-se, assim, que estamos perante doações válidas, pelo que, nessa medida, nem o identificado veículo automóvel, nem o dinheiro depositado nas contas acima identificadas integram a herança da mencionada DD, pelo facto de, à data da morte desta, já não integrarem o património da mesma.». O recorrente contra-argumentou nos seguintes termos: «A tradição dos bens móveis (depósito bancário) deve materializar-se em atos concretos dos quais resulte inequivocamente a doação, nomeadamente quando a donatária movimente o saldo a seu favor, revelando apropriação do mesmo, o que não ocorreu na presente situação. Aliás, curiosamente, após a alegada doação, a II Recorrida e sua prima dizem ter entregue os cartões bancários à I Recorrida, irmã da falecida. Não se consegue perceber o porquê de, antes da alegada doação, a II Recorrida em sua prima possuírem os cartões e movimentarem as contas para pagar as despesas da falecida e, após a alegada doação, quando aparentemente já seriam proprietárias do dinheiro, decidem entregar tudo nas mãos da I Recorrida. Caso se considerassem efetivamente donas daqueles valores, mantinham a postura que sempre adotaram: tomavam na sua posse os cartões, e até faziam novos (um para cada), continuavam a movimentar as contas, com acréscimo de que agora o fariam para fins pessoais. Assim sendo, podemos concluir que não existiu uma cessação da relação material com a coisa objeto da doação (dinheiro depositado nas contas bancárias) por parte da falecida, nem o empossamento por parte da II Recorrida e sua prima.» Depreende-se deste trecho do discurso motivador do recurso que para o recorrente só haverá tradição da coisa se o beneficiário do acto de disposição tiver uma actuação de facto de domínio material sobre a coisa transmitida («nomeadamente quando a donatária movimente o saldo a seu favor, revelando apropriação do mesmo»). Porém, não é essa a melhor doutrina, tal como não é a orientação jurisprudencial prevalecente, apesar da citação de arestos[8] que, supostamente, confortariam a sua posição. Escreve, a propósito, o Professor A. Menezes Cordeiro [in Tratado de Direito Civil, XI, Contratos em Especial (1.ª parte), Almedina, 2019, pág. 407], em resposta à questão de saber se a abertura de contas bancárias em conjunto (e, dizemos nós, nas situações em que, havendo já uma conta aberta, o seu titular associa a essa conta outra ou outras pessoas) envolve a doação do dinheiro, responde assim (reprodução da parte que para aqui releva): «Temos dois problemas diferentes. A abertura de uma conta conjunta, quando haja solidariedade, isto é, quando um dos dois cotitulares possa, sozinho, movimentá-la, envolve seguramente tradição da coisa. Questão diversa é a de saber se houve animus donandi, partilha em vida ou qualquer outra situação legitimadora: podem-se provar livremente, nos termos gerais. A tradição será um primeiro indício, neste sentido». E acrescenta: «A tradição corresponde a uma noção própria da posse: pode ser material ou simbólica – 1263.º, b). Todavia, temos de alarga-la para além das meras coisas corpóreas, de modo a abranger os créditos e outras situações imateriais. Haverá, para efeitos da doação de móveis, tradição sempre que a realidade a doar fique na disponibilidade do donatário: veja-se o caso do dinheiro e das contas conjuntas.» Num caso de contornos muito semelhantes a este, a Relação de Lisboa (acórdão de 17.12.2015, processo n.º 865/13.6TBPDL.L1-8) decidiu: «- Se a doação tem por objecto bens móveis, a lei exige a forma escrita, a menos que ocorra a tradição da coisa concomitantemente ao acto. A dispensa da forma escrita apenas ocorre na doação de coisas móveis acompanhada da tradição da coisa, constituindo porém, nesse caso a tradição uma formalidade essencial ao contrato, não se podendo considerar válida a doação se esta não se verificar – cfr. artigo 497º, 2 do C.Civil. - Se a doadora verbal de valores depositados em conta bancária a que associou a donatária como contitular, ambas com poderes de movimentação solidária, se mantém com tais poderes até falecer, e não entrega de facto o dinheiro à donatária nem esta o movimenta a seu favor em vida da doadora, o que só vem a acontecer depois do decesso desta, tal significa que não houve tradição da coisa, obrigando a doação a produzir os seus efeitos já depois da morte da doadora, o que implica a ineficácia da doação efectuada por falta de forma mínima.» Na sua alegação recursiva, o recorrente segue o iter argumentativo deste aresto (aliás, na esteira do também citado acórdão desta Relação de 10.10.2001), que considera fundamental para se ter como válido o contrato de doação que o donatário, ainda em vida do doador, movimente a conta em seu benefício, assim se consumando a traditio. Porém, esta decisão foi revogada por acórdão do STJ de 16.06.2016 (relatado pelo Sr. Conselheiro Tomé Gomes), publicado com o seguinte sumário (com negrito nosso para sublinhar os pontos de contacto com este caso): «I. A validade de doação verbal de coisa móvel depende da prova de que essa doação foi acompanhada da entrega da coisa doada, nos termos do artigo 947.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC. II. Tal entrega não tem de ser necessariamente simultânea da declaração de doar, podendo ser anterior ou mesmo posterior a esta e podendo consistir seja numa entrega material da própria coisa doada seja numa entrega simbólica do bem doado, por exemplo do seu título representativo, como decorre do disposto nos artigos 945.º, n.º 2, e 1263.º, alínea b), do CC. III. O documento em que se consubstancia uma conta de depósito bancário representa o dinheiro que dele foi objeto, pelo que a colocação pelo doador na disponibilidade do donatário de movimentar ou dispor dos valores ali depositados pode, em determinadas circunstâncias, traduzir-se em entrega simbólica desses valores ou do direito de crédito a eles correspondente. IV. Se, por decorrência de uma doação verbal de valores pecuniários a depositar numa conta bancária, a doadora alterar a titularidade singular que detinha nessa conta para uma titularidade solidária com a donatária e seguidamente ali depositar esses valores, tais factos são, em correspondência com o animus donandi, representativos da entrega simbólica dos valores assim doados, nos termos e para os efeitos do artigo 947.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC. V. O facto de a donatária não ter procedido ao levantamento de tais valores em vida da doadora não descaracteriza, por si só, aquela entrega simbólica, já que a donatária passou a poder dispor dos fundos ali provisionados como, pelo menos, contitular dos mesmos, segundo a vontade expressamente manifestada pela doadora. VI. O ónus de prova dos factos determinativos da nulidade de uma doação de bens futuros, nos termos do artigo 942.º, n.º 1, do CC, recai sobre aquele contra quem a doação é invocada.» Este aresto do STJ insere-se numa corrente jurisprudencial iniciada em 1992, com o acórdão desta Relação de 21.05.1992 (Des. Pais de Sousa), segundo a qual a constituição, pelo doador e pelo donatário, de uma conta conjunta envolve tradição, e continuada, entre outros, pelos acórdãos do STJ de 03.03.2005 (Cons. Bettencourt de Faria)[9] e de 06.10.2005 (Cons. Pereira da Silva)[10], pelo acórdão desta Relação e desta Secção de 19.09.2011 (Des. A. Mendes Coelho)[11] e do acórdão da Relação de Coimbra de 29.01.2013 (Des. Sílvia Pires)[12]. Consabidamente, uma conta de depósitos que, ab initio ou supervenientemente, tem uma pluralidade de titulares pode assumir a modalidade de conta conjunta (em que para a sua movimentação é necessária a intervenção de todos) e a de conta solidária (em que um único titular pode movimentá-la sem o consentimento ou intervenção dos demais titulares), presumindo-se que são iguais as participações de cada um deles (cfr. artigos 534.º, 1403.º e 1404.º do CC para a conta conjunta e artigo 516.º do mesmo código para a conta solidária). Mas, como é, frequentemente, sublinhado, a titularidade da conta bancária (que autoriza a sua movimentação) não se confunde com a titularidade efetiva do crédito correspondente aos valores depositados. Neste caso, é ponto assente que os valores pecuniários existentes nas contas supra identificadas pertenciam, exclusivamente, à sua titular inicial, a falecida DD. No entanto, ao contrário do que alega o recorrente, ao fazê-las cotitulares de duas das aludidas contas de depósitos (as contas no Banco 1..., com os n.os ... e n.º ...), a DD não se limitou a autorizar as suas sobrinhas CC (2.ª ré) e EE a movimentar essas contas porque, fragilizada que estava devido à doença de que padecia, deixou de ter total autonomia e precisava de ajuda para realizar pagamentos de despesas. Se assim fosse, bastaria que lhes disponibilizasse os respectivos cartões de débito e os códigos de acesso. Na realidade, houve uma doação verbal dos valores pecuniários existentes nessas contas e é inequívoco o animus donandi da DD nela expresso, como resulta dos factos descritos sob os n.os 22 e 25. A transmutação daquelas duas contas singulares em contas colectivas solidárias constitui meio idóneo para operar a tradição desses valores e assim perfectibilizar a doação. Noutros termos, do animus donandi expresso na doação verbal resulta que a conversão da conta singular da falecida DD em conta solidária com as sobrinhas CC e EE, feita nessa sequência, corresponde a uma atribuição a estas da contitularidade dos valores depositados. A tanto não obsta o facto de as novas titulares das contas não terem procedido ao levantamento de tais valores em vida da DD, o que bem se compreende: por uma questão de pudor, de decoro e de respeito pela tia doente, decidiram não as movimentar em vida desta. Qualquer pessoa de boa índole não deixaria de se sentir constrangida se tivesse que ir, lestamente, retirar o dinheiro das contas. O que não oferece qualquer dúvida é que, na decorrência daquela doação verbal e da subsequente alteração da titularidade das contas, aquelas CC e EE passaram a poder dispor dos fundos que as provisionavam, pelo menos, como contitulares dos mesmos, segundo a vontade expressamente manifestada pela doadora. Assim se verifica uma iniludível correspondência entre o animus donandi da DD e a materialidade consistente na alteração da titularidade das referidas contas bancárias, o que, por si só, afasta a hipótese de que a contitularidade atribuída por aquela às sobrinhas se destinaria à simples movimentação ou gestão da conta, como alega o recorrente. Em suma, houve tradição da coisa doada, necessária para que possa considerar-se consumada a doação dos valores pecuniários depositados nas aludidas contas bancárias. Mas, se assim é quanto às contas de depósitos no Banco 1..., a conclusão oposta teremos de chegar quanto ao valor depositado na conta da Banco 2..., da qual a DD continuou a ser a única titular até ao seu decesso e só após o seu óbito foi retirado da conta (pela ré BB) o montante de € 72.055,89. Aqui há que reconhecer razão ao recorrente quando alega que a doacção só produz efeitos depois da morte da doadora, depois da abertura da sucessão desta, e nestas condições terá de se considerar que os seus efeitos são os de uma doação por morte (artigo 946.º de C. Civil). Não tendo sido respeitada a forma legal, a doação é ineficaz (não pode produzir os seus efeitos típicos), pelo que a quantia retirada terá de ser restituída à herança. Quanto à doação do veículo automóvel, é perfeitamente claro que houve tradição simbólica da coisa, com a entrega à donatária (a ré BB) da chave e do título de registo de propriedade, que os recebeu, assim evidenciando a sua vontade de aceitar a doação. Para este efeito, é, de todo, irrelevante que o autor/recorrente se tenha antecipado à ré BB e registado a seu favor a propriedade do veículo na competente conservatória do registo automóvel. Tal como seria inócuo (se tivesse sido dado como provado) o facto de a donatária nunca ter feito utilização da viatura. Se não o fez, pode ter sido pela singela razão de não ter precisado ou porque pretende dar-lhe outro destino, que não o uso próprio. De modo algum esses factos põem em crise a existência de tradição da coisa doada em vida da doadora. III – Dispositivo Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação de AA e, em consequência, 1) revogar parcialmente a sentença recorrida e, na parcial procedência da acção, condenar as rés a restituir à herança aberta por óbito de DD a quantia de € 73.434,16 (setenta e três mil, quatrocentos e trinta e quatro euros e dezasseis cêntimos), correspondente ao saldo credor existente, à data do seu óbito, na conta à ordem n.º ... da Banco 2..., a que acrescem juros de mora a contar da citação. 2) no mais, confirmar a sentença recorrida. As custas da acção e do recurso serão suportadas pelo autor/recorrente e pelas rés/recorridas em partes iguais. (Processado e revisto pelo primeiro signatário). Porto, 17/4/2023 Joaquim Moura Ana Paula Amorim Manuel Domingos Fernandes ________________ [1] Sendo certo que, em casos-limite, a impugnação pode implicar toda a matéria de facto, nem por isso o recorrente está desobrigado de especificar os concretos pontos de facto por cuja alteração se bate (cfr. Cons. A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5.ª edição, pág. 163, em nota de pé de página). Esta especificação serve para delimitar o objecto do recurso e por isso tem de constar das conclusões. [2] O Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes (ob. cit., pág. 170, nota de pé de página) afirma ser «infundada a rejeição do recurso da matéria de facto com fundamento na falta de indicação, nas conclusões, dos meios probatórios ou dos segmentos da gravação em que o recorrente se funda. O cumprimento desses ónus no segmento da motivação parece suficiente para que a impugnação da decisão da matéria de facto ultrapasse a fase liminar, passando para a apreciação do respectivo mérito», citando jurisprudência do STJ nesse sentido. No Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 771, de que é autor em conjunto com Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, precisa-se que «é objecto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões, sob pena de rejeição do recurso» e anota-se que «o Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação». [3] O conceito ganhou particular relevância a propósito da questão, muito debatida na doutrina e na jurisprudência, de saber se o promitente comprador de imóvel ou de fracção autónoma de um prédio (num contrato-promessa sem eficácia real), que é beneficiário da traditio, ou seja, a quem o promitente vendedor fez a entrega, permitindo que o ocupe e habite, do imóvel prometido vender, adquire a sua posse nomine proprio (e, portanto, uma posse boa para usucapião). [4] No nosso caso, do donatário. [5] Cfr. o Ac. STJ de 25.03.2014 (processo n.º 1729/12.6TBCTB-B.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt [6] Assim, A. S. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, pág. 307, que adverte: «Não basta que os factos tenham conexão com alguma “das soluções plausíveis da questão de direito”. Considerando a fase em que agora nos encontramos, a Relação deve ponderar o enquadramento jurídico em face do objecto do recurso ou de outros elementos a que oficiosamente puder atender, contando também com o que possa esperar-se de uma eventual intervenção do Supremo ao abrigo do disposto no art. 682.º, n.º 3.» [7] É lapso manifesto, pois o que se quis referir foi o artigo 947.º, n.º 2, do CC. [8] O recorrente cita, em particular, o acórdão desta Relação de 10.10.2001 (relatado pelo Sr. Desembargador Dr. Gonçalo Silvano), também citado pelo Professor Menezes Cordeiro, que o Prof. Luís M. T. de Menezes Leitão (Direito das Obrigações, III, Contratos em Especial, Almedina, 5.ª edição, pág. 178) comenta em nota de pé de página (n.º 382) nos seguintes termos «(…) considerou-se que, tendo a doação de coisas móveis que ser celebrada por escrito, não seria válida por falta de forma a doação consistente no depósito de dinheiro em conta conjunta, que não é levantado até à morte da doadora. A decisão é inteiramente correcta, uma vez que o depósito em conta conjunta não priva o doador da disponibilidade das quantias depositadas pelo que não pode ser visto como tradição da coisa doada». [9] Cujo sumário é o seguinte: «I - A conta bancária conjunta é meio idóneo para efectuar a tradição da quantia depositada, se, simultaneamente, se provar o animus donandi. II - A doação de coisa móvel, quando haja tradição, pode ser provada por prova testemunhal, não sendo exigível o documento escrito.» [10] Publicado com o seguinte sumário: «I. No depósito bancário colectivo e solidário, no concernente à propriedade da quantia depositada, importa ter presente o prescrito no art. 516º do CC. II. Se o simples facto de se consentir na constituição de um depósito bancário, solidário, em nome, simultaneamente, do dono do dinheiro e de terceiro(s) não permite, sem mais, concluir no sentido da ocorrência de "animus donandi", por banda do primeiro, deve ter-se como acontecida doação, acompanhada de tradição (simbólica) do bem doado (dinheiro), o que releva visto o disposto no art. 947º nº 2 do CC, escrito não havendo, se provar a existência de "animus donandi", que foi intenção do titular da conta solidária que depositou o numerário, que este passasse a ser propriedade do(s) outro(s) titular(es), este(s) podendo dele dispor como entendesse(m). [11] Publicado com o seguinte sumário: «I- Do n.º2 do art. 945.º não resulta que só há tradição da coisa móvel doada quando a própria coisa ou o seu título representativo passe para o donatário ou lhe seja entregue. II- Efectivamente, a tradição não tem necessariamente que ser material (entrega da própria coisa ou do título que a representa), já que pode haver lugar à chamada tradição ficta, a qual consiste na entrega de documentos ou na prática de actos que passam a pôr a coisa na disponibilidade do donatário (vide, a propósito desta figura, Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1979, pág. 753).» [12] Publicado com o seguinte sumário: «I - O facto de na data do óbito existirem contas de depósitos bancários em nome do falecido não permite que se conclua que o saldo dessas contas pertencia necessariamente ao seu titular, integrando por isso o acervo da herança aberta pela sua morte. II - A titularidade de uma conta de depósito bancário pode nada ter a haver com a propriedade das quantias nela existentes. III - É válida a doação verbal do saldo de uma conta bancária desde que acompanhada da subscrição e entrega à donatária dos documentos para esta proceder à transferência ou levantamento da respectiva importância.»