Acordam os Juízes, após conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. Relatório. No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão corre termos o processo de inquérito …, no qual o arguido J.M. foi acusado da prática, em autoria material, em concurso efectivo e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a) do Código Penal, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea c), com referência ao artº 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal e de um crime de dano, p. e p. pelos artigos 212º, nº 1 e 213º, nº 1, alínea c), com referência ao artº 204º, nº 4, todos do Código Penal. Relativamente aos crimes de ameaça pelos quais o arguido foi acusado, foram, pelos ofendidos, apresentadas declarações de desistência da queixa / procedimento criminal (cfr. fls. 104 e 76). O Mmº JIC homologou então as referidas desistências de queixa e declarou extinto o procedimento criminal atinente. Inconformado, interpôs o MP o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões: 1 - Com a alteração ao Código Penal operada pela Lei nº 59/2007, de 4/09, o crime de ameaça agravada/qualificada sofreu profundas alterações. 2 - O artigo 11º, alínea a), da Lei nº 59/2007, de 4/09, revogou expressamente o nº 2 do artigo 153º do Código Penal, fazendo desaparecer a agravação/qualificação ai contida. O artigo 1º dessa mesma lei alterou a numeração desse artigo 153º do Código Penal, atribuindo o nº 2 ao anterior nº 3, o qual falava na necessidade de queixa para o procedimento criminal. 3 - Ao mesmo tempo, esse artigo 1º da Lei nº 59/2007, de 4/09, alterou o artigo 155º do Código Penal, o qual passou a ter a epígrafe “ Agravação ” e a aplicar-se, não só ao crime base – coacção, mas também ao crime base – ameaça. 4 - Esta alteração legislativa não foi casual, mas pensada e intencional, como revela não só a revogação expressa do nº 2 do artigo 153º e a renumeração do mesmo, mas também a Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 98/X , a qual deu origem à Lei nº 59/2007, de 4/09 ( acessível em HYPERLINK "http://www.parlamento.pt" www.parlamento.pt ) , no seu ponto 8 , parágrafo 3º . 5 - De uma leitura atenta da Parte Especial do Código Penal, ressalta a utilização de uma técnica legislativa que o legislador na última alteração teve o cuidado de manter. Verifica-se que o legislador define um tipo base, que contém os elementos essenciais de uma determinada conduta criminal e, seguidamente, acrescenta elementos que determinam a qualificação desse tipo base, criando tipos derivados. 6 - O crime de ameaça agravada/qualificada prevista no artigo 155º do Código Penal é um tipo qualificado, derivado do tipo base de ameaça, previsto no artigo 153º. 7 - Do facto do crime de ameaça agravada/qualificada se tratar de um crime derivado, não se pode extrair consequências quanto à natureza jurídica do mesmo, aplicando a mesma natureza jurídica que possui o tipo base – ameaça. 8 - Relativamente à natureza jurídica dos tipos simples e dos tipos derivados, o legislador utiliza uma técnica clara: sempre que entende que o tipo base e o tipo qualificado têm a mesma natureza jurídica, cria uma norma específica relativamente à necessidade de queixa, que coloca no final do capítulo ou secção respectivos (é o que acontece, por exemplo, nos crimes sexuais e nos crimes contra a reserva da vida privada); quando entende que apenas o tipo base possui natureza semi-pública, estabelece a necessidade de queixa antes dos artigos que tratam do tipo qualificado (é o que acontece, por exemplo, com o crime de ofensa à integridade física, com o crime de furto e com o crime de dano). 9 - Essa técnica foi novamente utilizada pelo legislador com a recente alteração ao Código Penal, quanto ao crime de ameaça e ao crime de ameaça agravada/qualificada. Isto é, definiu o tipo base no artigo 153º, nº 1, colocou a necessidade de queixa no nº 2 desse artigo 153.º e previu o tipo qualificado no artigo 155º, nada referindo quanto à natureza do mesmo. 10 - Nem se diga que ao se referir ao artigo 153º na agravação do artigo 155º o legislador quis atribuir natureza semi-pública ao crime de ameaça agravada. Essa referência tem como único objectivo alertar o intérprete para o facto do tipo base estar contido no artigo 153º e que os elementos desse tipo base têm de se verificar também quando se está perante o tipo qualificado do artigo 155º. 11 - Não podemos olvidar que o direito penal não permite uma interpretação analógica e se a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado/qualificado não consta do tipo, nem de norma autónoma que a ele faça referência, não lhe podemos atribuir essa natureza pela simples razão de o tipo base a possuir. 12 - Quando o legislador nada diz quanto à natureza jurídica de um crime, o mesmo reveste natureza pública. É precisamente essa a natureza do crime de ameaça agravada/qualificada. 13 - Revestindo o crime de ameaça agravada/qualificada a natureza pública, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal e as desistências de queixa constantes dos autos não possuem qualquer relevância. 14 - Por esse motivo, o despacho do Mmo. Juiz de Direito afecto à Instrução Criminal é ilegal, por violação do disposto nos artigos 113º, 116º e 155º, do Código Penal e artigos 48º, 49º e 51º do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos. Notificado para o efeito, o arguido não respondeu. A Exmª PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do provimento do recurso. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. Levaremos em conta o teor da decisão recorrida, que se reproduz na parte que interessa: '' A admissibilidade da desistência de queixa no que concerne ao crime de ameaça agravada. O Ministério Público em despacho prévio à dedução da acusação tomou, e bem, posição sobre esta matéria pugnando, no sentido, de se tratar de crime público e, nessa medida, dispor de legitimidade para prosseguir o exercício da acção penal, razão porque deduziu acusação pública incluindo o crime em causa, apesar de o ofendido J. ter manifestado nos autos não desejar procedimento criminal contra o arguido, manifestação esta que esteve na génese do arquivamento parcial relativo ao crime de injúria. Já após a dedução da acusação também o ofendido J.C. veio apresentar aos autos a sua declaração de desistência do procedimento criminal em face do arguido ( … ) Quid juris? O crime de ameaça possui natureza semipública desde, pelo menos, a redacção originária do Código Penal de 1982; Nenhuma das revisões intercalares do Código Penal alterou essa natureza; Na versão actual do Código Penal, o crime de ameaça p. no artigo 153º-1 e 2 do Código Penal continua a ter a mesma natureza semipública; A alteração mais relevante que o crime de ameaça sofreu foi a redução da tipicidade (artigo 153º-1) decorrente da revisão de 1995 mas manteve a aludida natureza. A inclusão da exigência de queixa não é um capricho mas obedece ou está fundada em razões de política criminal; O crime de coacção p. no artigo 154º - 1, do Código Penal, tem natureza pública (à margem do nº 4) e sempre a teve ; O crime de ofensa à integridade física p. no artigo 143º-1 do Código Penal, teve natureza semipública desde a versão originária do Código Penal até 2001, quando essa natureza foi restringida pela ressalva do nº 2; Qualquer derrogação do princípio da oficialidade, seja por via da queixa, seja por via da dedução da acusação particular, obedece ou tem fundamento em razões de política criminal; Quando o legislador pretende derrogar o princípio da oficialidade inscreve essa vontade expressamente no tipo de ilícito; Foi o que fez no artigo 143º-2 do Código Penal, com a alteração decorrente da Lei 100/2001 referida e é o que faz no artigo 153º-2 do Código Penal; O artigo 155º-1 corpo, als. a ) a d ) e 2 do Código Penal vigente contém uma arrumação sistemática de várias circunstâncias que agravam as penas previstas nos tipos dos artigos 153º e 154º para onde reenvia expressamente ; As circunstâncias agravantes não constituem, de per si, novos tipos de ilícito; As circunstâncias agravantes contidas no artigo 155º-1 do Código Penal, não alteram a natureza dos crimes de ameaça (semipúblico) e de coacção (público); O crime de ameaça constitui, por comparação com o crime de coacção, ambos na sua forma simples, um ilícito de bem menor gravidade e, em conformidade, é punido de forma muito mais branda. Visto o arrazoado que antecede, sopesadas as razões aí expendidas, entendo, em síntese final, que o procedimento penal pelo crime de ameaça, ainda que se verifique qualquer das circunstâncias agravantes previstas no artigo 155º do Código Penal, continua a manter a sua natureza de crime semipúblico e, em consequência, a carecer de um impulso do ofendido, de uma manifestação expressa de vontade, em três palavras: depende de queixa. '' 2. Fundamentação. A. Delimitação do objecto do recurso. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal – CPP), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso. Contudo, apesar da delimitação do âmbito do recurso efectuada pelo recorrente, o tribunal de '' ad quem '' deve oficiosamente [1] conhecer dos vícios referidos no artº 410º, nº 2 do CPP, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito. Nenhuma destas circunstâncias se encontra verificada no caso dos autos. O MP apenas vem recorrer da matéria de direito (a questão é, aliás, exclusivamente jurídica), suscitando a questão, única, que importa decidir, a saber, a da natureza do crime de ameaça agravado p. e p. p. artº 155º, nº 1, alínea c ) do C. Penal , pugnando pela natureza pública do mesmo, ao contrário do entendimento constante do despacho da 1ª instância ora em apreciação. B. Decidindo. Relativamente à questão de saber a quem compete a iniciativa ( o impulso ) de investigar a prática de crime e de a submeter ou não a julgamento , distingue a doutrina três tipos de delitos , a saber : '' dizem-se públicos aqueles delitos relativamente aos quais o M. P. exerce a acção penal incondicionalmente, i. e , sem dependência de denúncia ou acusação dos particulares . São particulares latu sensu , os delitos cuja acusação pública terá de ser ou precedida de denúncia particular ou acompanhada de acusação particular ( … ) . A denúncia e a acusação particulares são, pois, nestes casos condições de procedibilidade. '' [2]. Em termos legais, constituem, hoje, as mencionadas condições de procedibilidade, a queixa (artº 49º nº 1 do CPP), quanto aos crimes semi-públicos, bem como esta mesma queixa, a constituição de assistente e a dedução de acusação particular (cfr. artº 50º, nº 1 do CPP), quanto aos crimes particulares. '' O fundamento da existência de crimes particulares lato sensu reside, por um lado, em que certas infracções (por exemplo, certas formas de ofensas corporais, danos, furtos, injúrias) não se relacionam com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo tão directo e imediato que aquela sinta, em todas as circunstâncias da lesão – v g. atenta a sua insignificância -, necessidade de reagir automaticamente contra o infractor . Se o ofendido entende não fazer valer a exigência de retribuição, a comunidade considera que o assunto não merece ser apreciado em processo penal. Complementa a consideração anterior a ideia de que em certas infracções (…) a promoção processual contra ou sem a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou mesmo prejudicial para interesses seus dignos de toda a consideração, porque estreitamente relacionados com a sua esfera íntima ou familiar; perante um tal conflito de interesses juridicamente relevantes o legislador dá prevalência ao interesse do particular, considerado em si mesmo e no reflexo que assume em interesses públicos. '' [3] . In casu, no despacho recorrido interpreta-se o artº 155º do C. Penal como uma norma definidora apenas de um conjunto de circunstâncias agravantes, não constituindo autonomamente qualquer crime, o que implica que se mantêm intocadas, quanto ao impulso processual, as naturezas originárias dos crimes abrangidos, ou seja, a natureza semi-pública do crime de ameaça (cf. artº 153º, nº 2 do C. Penal) e pública do crime de coacção (cf. artº 154º, nº 4 do C. Penal, a contrario). A questão que se coloca é : será tal interpretação de seguir? Segundo o artº 9º, nº 1 do C. Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei , mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo , tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico , as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada . Segundo o nº 2 do mesmo normativo, não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Como nos diz José de Oliveira Ascensão [4] o ponto de partida da interpretação tem de estar na letra, que, porém, não é só o ponto de partida mas também um elemento irremovível de toda a interpretação (podemos dizer, de outro modo, que toda a interpretação começa com as palavras). A técnica que o CP segue para apontar, quanto ao impulso processual, a natureza do crime, é a de, em caso de omissão à necessidade de queixa ou acusação particular [5] , ter aplicação plena o princípio da oficialidade, ou seja, tratar-se de um crime público. Assim, uma interpretação (meramente) literal do artº 155º do C. Penal, aponta para a natureza pública do crime de ameaça agravado, dada a inexistência de norma ressalvando a necessidade de queixa ou acusação particular. Porém, se entendermos que o artº 155º apenas define atomisticamente um conjunto de circunstâncias agravantes, mantendo-se o tipo-base do crime de ameaça no artº 153º, também resulta indiscutível que, assim, terá de se considerar a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado (por força do disposto no artº 153º, nº 2 do C. Penal). Deste modo, o elemento literal da interpretação é insuficiente para nos dar uma resposta sobre a questão em causa. Será que o pensamento legislativo (cf. o acima mencionado artº 9º, nº 1 do C. Civil) permitirá esclarecer qual a interpretação correcta do referido binómio normativo (artº 153º / 155º)? Mostra-se hoje obsoleta a concepção subjectiva do pensamento legislativo que o identificava com os trabalhos preparatórios, conferindo-lhes quase a autoridade duma interpretação autêntica [6]. De qualquer forma, e uma vez que (apesar de não decisivo) se trata de um elemento interpretativo relevante, sempre diremos que a Exposição de Motivos da Proposta de Lei de Revisão do Código Penal não esclarece cabalmente este ponto interpretativo concreto: Com efeito, quer o despacho recorrido (a fls. 176 dos autos), quer a motivação do recurso (a fls. 211/2 dos autos) se referem ao mesmo parágrafo daquela, onde se refere a intenção expressa de equiparar o regime do crime de ameaça agravada ao regime do crime de coacção agravada. Porém, como se afirma no despacho recorrido, '' nem uma palavra '' é dita quanto à natureza dos dois tipos fundamentais, quanto à questão do impulso processual. Já o ponto 2, parágrafo 1 da mencionada Exposição de Motivos (mencionado na motivação de recurso a fls. 212) nos parece um pouco menos inócuo, se bem que não determinante. Com efeito, afirmar que uma das orientações da reforma é o reforço da tutela dos destinatários previstos nas alíneas b) e c) do nº 1 do artº 155º do C. Penal, poderá constituir um indício quanto à natureza dos crimes em causa. É hoje dominante a tese que identifica o pensamento legislativo com a intenção objectiva da lei: «A intenção objectiva são os fins que a lei prossegue, as soluções que tem em vista realizar e que constituem a sua razão de ser; a interpretação funcional visa a descobrir essa razão da norma, ou seja, o interesse específico socialmente relevante que a lei pretende tutelar.» [7] Em sede específica de direito penal, deve hoje entender-se a querela da escolha da interpretação objectiva / subjectiva da lei (a que acima aludimos) nos seguintes termos: A solução correcta está no meio termo: há que dar razão à teoria objectiva de que não são decisivas as efectivas representações (que normalmente nem se podem averiguar) das pessoas e grupos que participaram no processo legislativo; por outro lado, tem razão a teoria subjectiva segundo a qual o juiz está vinculado à decisão valorativa politico-jurídica do legislador histórico. A hipótese de que existe um '' sentido objectivo '' da lei, independente daquela decisão, do ponto de vista lógico, não é comprovável, sendo que a adopção de tal hipótese como válida, ou seja, alheada dos objectivos originários da lei, realmente consistiria em prosseguir, no plano interpretativo, concepções subjectivas do juiz, assim se depreciando o princípio da legalidade. [8] Procurando, assim, no caso dos autos, o referido meio termo interpretativo: Como é dito (com alusão especificada à evolução histórica do respectivo normativo) no despacho recorrido, até à reforma penal de 2007, o crime de ameaça (s) agravado sempre teve (desde o Código Penal de 1982), pacificamente, natureza semi-pública. Logo, devemos interrogar-nos – introduziu tal reforma uma alteração da natureza do crime de ameaça agravada, no sentido de o passar a público? Permitimo-nos recordar que, tal como Günther Jakobs [9] afirma, «a interpretação sistematicamente adequada supõe um sinal de que se acertou com a - patente ou meramente latente - '' vontade da lei ‘‘» Quanto à circunstância agravante prevista no artº 155º, nº 1, alínea c), entendemos que o bem jurídico protegido (a liberdade pessoal) transcende, na sua essência, a esfera individual, pretendendo-se evitar a possibilidade de interferência no exercício de funções que prosseguem interesses públicos. Nessa medida, não é o sujeito individual visado o ofendido, mas sim o Estado, entidade de visa a prossecução daqueles interesses. Uma vez que é o Estado o verdadeiro ofendido neste tipo de crimes, devem os mesmos revestir natureza pública. [10] Idêntico raciocínio se deve efectuar quanto à necessidade de defesa das pessoas particularmente indefesas referidas na alínea b) do citado normativo, entendendo-se que tal deve ser tarefa do Estado. Tudo, assim, indica que o artº 155º não traduz, ao invés do que se defende no despacho recorrido, apenas uma diferente '' arrumação sistemática '' de circunstâncias agravantes, mas um verdadeiro tipo qualificado, com diferente natureza relativamente ao tipo básico. Com efeito, existem no C. Penal diversos exemplos de tipos de crime que, na sua forma simples / básica têm natureza semi-pública, ao passo que na forma agravada têm natureza pública. (furto simples vs qualificado; ofensa à integridade física simples vs qualificada) Assim, entendemos que o legislador, ao eleger a fórmula de prever numa só norma os crimes agravados de coacção e de ameaça, não fazendo qualquer alusão à necessidade de queixa, quis conferir-lhes natureza pública. [11] Nestes termos, entendendo-se que o crime de ameaça agravada tem natureza pública, as desistências de queixa constantes dos autos são ineficazes, estando legalmente vedada a sua homologação, atento o disposto no artigo 155º do Código Penal e arº 48º, bem como 49º e 51º (a contrario) do Código de Processo Penal. É, consequentemente, de revogar a decisão recorrida. 3. Dispositivo. Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em dar provimento ao recurso, revogando, na parte em causa, a decisão recorrida. Sem custas. (Processado em computador e revisto pelo relator) Évora, 12 de Novembro de 2009 ------------------------------------------------------------- (Edgar Gouveia Valente) --------------------------------------------------------------- (Fernando Ribeiro Cardoso) _____________________________ [1] Cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência nº 7/95 , de 19.10.1995 , in DR I Série – A , de 28.12.1995 . [2] A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, página 114. [3] Jorge de Figueiredo Dias , Direito Processual Penal , Coimbra Editora , 1974 , página 121 . [4] In O Direito, Introdução e Teoria Geral, 2ª edição, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980, páginas 353/354. [5] Quando entende qualificar o tipo de crime como semi-público ou particular, o C. Penal fá-lo em número autónomo da descrição da factualidade típica, após esta ( artº 203º , nº 3 ) , ou em artigo diverso reportado aos crimes previstos no Capítulo em causa ( cfr. artº 188º ) ou a um conjunto de crimes ( artº 178º , números 1 e 2 ) . [6] Neste sentido, Francesco Ferrara in Interpretação e Aplicação das Leis (tradução de Manuel de Andrade), 4ª edição, Coimbra, 1987, página 145. [7] Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos in Notas ao Código Civil , Volume I , Lisboa , 1987 , página 39 . [8] Seguimos, numa tradução livre, o entendimento de Claus Roxin, in Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Civitas, 1997, página 150/1. [9] In Derecho Penal, Marcial Pons, 1995, página 94. [10] Neste sentido, quanto ao regime anterior ao C. Penal de 1982, vide José António Barreiros in Processo Penal – 1, Almedina, Coimbra, 1981, página 457. [11] Neste mesmo sentido, vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 01.07.2009 no âmbito do Processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/145325" target="_blank">968/07.6PBVLG.P1</a> disponível em http://www.dgsi.pt : '' o artº 155º não contém norma que estabeleça a natureza semi-pública dos tipos qualificados de ameaça e de coacção e também não se encontra norma autónoma que, referida ao artº 155º, a estabeleça, pelo que, na falta dessa expressa consagração, tem de concluir-se que os crimes de ameaça e de coacção qualificados, em função das circunstâncias elencadas nas alíneas do nº 1 ou em função do resultado previsto no nº 2 , têm a natureza de crimes públicos . ''
Acordam os Juízes, após conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. Relatório. No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão corre termos o processo de inquérito …, no qual o arguido J.M. foi acusado da prática, em autoria material, em concurso efectivo e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a) do Código Penal, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea c), com referência ao artº 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal e de um crime de dano, p. e p. pelos artigos 212º, nº 1 e 213º, nº 1, alínea c), com referência ao artº 204º, nº 4, todos do Código Penal. Relativamente aos crimes de ameaça pelos quais o arguido foi acusado, foram, pelos ofendidos, apresentadas declarações de desistência da queixa / procedimento criminal (cfr. fls. 104 e 76). O Mmº JIC homologou então as referidas desistências de queixa e declarou extinto o procedimento criminal atinente. Inconformado, interpôs o MP o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões: 1 - Com a alteração ao Código Penal operada pela Lei nº 59/2007, de 4/09, o crime de ameaça agravada/qualificada sofreu profundas alterações. 2 - O artigo 11º, alínea a), da Lei nº 59/2007, de 4/09, revogou expressamente o nº 2 do artigo 153º do Código Penal, fazendo desaparecer a agravação/qualificação ai contida. O artigo 1º dessa mesma lei alterou a numeração desse artigo 153º do Código Penal, atribuindo o nº 2 ao anterior nº 3, o qual falava na necessidade de queixa para o procedimento criminal. 3 - Ao mesmo tempo, esse artigo 1º da Lei nº 59/2007, de 4/09, alterou o artigo 155º do Código Penal, o qual passou a ter a epígrafe “ Agravação ” e a aplicar-se, não só ao crime base – coacção, mas também ao crime base – ameaça. 4 - Esta alteração legislativa não foi casual, mas pensada e intencional, como revela não só a revogação expressa do nº 2 do artigo 153º e a renumeração do mesmo, mas também a Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 98/X , a qual deu origem à Lei nº 59/2007, de 4/09 ( acessível em HYPERLINK "http://www.parlamento.pt" www.parlamento.pt ) , no seu ponto 8 , parágrafo 3º . 5 - De uma leitura atenta da Parte Especial do Código Penal, ressalta a utilização de uma técnica legislativa que o legislador na última alteração teve o cuidado de manter. Verifica-se que o legislador define um tipo base, que contém os elementos essenciais de uma determinada conduta criminal e, seguidamente, acrescenta elementos que determinam a qualificação desse tipo base, criando tipos derivados. 6 - O crime de ameaça agravada/qualificada prevista no artigo 155º do Código Penal é um tipo qualificado, derivado do tipo base de ameaça, previsto no artigo 153º. 7 - Do facto do crime de ameaça agravada/qualificada se tratar de um crime derivado, não se pode extrair consequências quanto à natureza jurídica do mesmo, aplicando a mesma natureza jurídica que possui o tipo base – ameaça. 8 - Relativamente à natureza jurídica dos tipos simples e dos tipos derivados, o legislador utiliza uma técnica clara: sempre que entende que o tipo base e o tipo qualificado têm a mesma natureza jurídica, cria uma norma específica relativamente à necessidade de queixa, que coloca no final do capítulo ou secção respectivos (é o que acontece, por exemplo, nos crimes sexuais e nos crimes contra a reserva da vida privada); quando entende que apenas o tipo base possui natureza semi-pública, estabelece a necessidade de queixa antes dos artigos que tratam do tipo qualificado (é o que acontece, por exemplo, com o crime de ofensa à integridade física, com o crime de furto e com o crime de dano). 9 - Essa técnica foi novamente utilizada pelo legislador com a recente alteração ao Código Penal, quanto ao crime de ameaça e ao crime de ameaça agravada/qualificada. Isto é, definiu o tipo base no artigo 153º, nº 1, colocou a necessidade de queixa no nº 2 desse artigo 153.º e previu o tipo qualificado no artigo 155º, nada referindo quanto à natureza do mesmo. 10 - Nem se diga que ao se referir ao artigo 153º na agravação do artigo 155º o legislador quis atribuir natureza semi-pública ao crime de ameaça agravada. Essa referência tem como único objectivo alertar o intérprete para o facto do tipo base estar contido no artigo 153º e que os elementos desse tipo base têm de se verificar também quando se está perante o tipo qualificado do artigo 155º. 11 - Não podemos olvidar que o direito penal não permite uma interpretação analógica e se a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado/qualificado não consta do tipo, nem de norma autónoma que a ele faça referência, não lhe podemos atribuir essa natureza pela simples razão de o tipo base a possuir. 12 - Quando o legislador nada diz quanto à natureza jurídica de um crime, o mesmo reveste natureza pública. É precisamente essa a natureza do crime de ameaça agravada/qualificada. 13 - Revestindo o crime de ameaça agravada/qualificada a natureza pública, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal e as desistências de queixa constantes dos autos não possuem qualquer relevância. 14 - Por esse motivo, o despacho do Mmo. Juiz de Direito afecto à Instrução Criminal é ilegal, por violação do disposto nos artigos 113º, 116º e 155º, do Código Penal e artigos 48º, 49º e 51º do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos. Notificado para o efeito, o arguido não respondeu. A Exmª PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do provimento do recurso. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. Levaremos em conta o teor da decisão recorrida, que se reproduz na parte que interessa: '' A admissibilidade da desistência de queixa no que concerne ao crime de ameaça agravada. O Ministério Público em despacho prévio à dedução da acusação tomou, e bem, posição sobre esta matéria pugnando, no sentido, de se tratar de crime público e, nessa medida, dispor de legitimidade para prosseguir o exercício da acção penal, razão porque deduziu acusação pública incluindo o crime em causa, apesar de o ofendido J. ter manifestado nos autos não desejar procedimento criminal contra o arguido, manifestação esta que esteve na génese do arquivamento parcial relativo ao crime de injúria. Já após a dedução da acusação também o ofendido J.C. veio apresentar aos autos a sua declaração de desistência do procedimento criminal em face do arguido ( … ) Quid juris? O crime de ameaça possui natureza semipública desde, pelo menos, a redacção originária do Código Penal de 1982; Nenhuma das revisões intercalares do Código Penal alterou essa natureza; Na versão actual do Código Penal, o crime de ameaça p. no artigo 153º-1 e 2 do Código Penal continua a ter a mesma natureza semipública; A alteração mais relevante que o crime de ameaça sofreu foi a redução da tipicidade (artigo 153º-1) decorrente da revisão de 1995 mas manteve a aludida natureza. A inclusão da exigência de queixa não é um capricho mas obedece ou está fundada em razões de política criminal; O crime de coacção p. no artigo 154º - 1, do Código Penal, tem natureza pública (à margem do nº 4) e sempre a teve ; O crime de ofensa à integridade física p. no artigo 143º-1 do Código Penal, teve natureza semipública desde a versão originária do Código Penal até 2001, quando essa natureza foi restringida pela ressalva do nº 2; Qualquer derrogação do princípio da oficialidade, seja por via da queixa, seja por via da dedução da acusação particular, obedece ou tem fundamento em razões de política criminal; Quando o legislador pretende derrogar o princípio da oficialidade inscreve essa vontade expressamente no tipo de ilícito; Foi o que fez no artigo 143º-2 do Código Penal, com a alteração decorrente da Lei 100/2001 referida e é o que faz no artigo 153º-2 do Código Penal; O artigo 155º-1 corpo, als. a ) a d ) e 2 do Código Penal vigente contém uma arrumação sistemática de várias circunstâncias que agravam as penas previstas nos tipos dos artigos 153º e 154º para onde reenvia expressamente ; As circunstâncias agravantes não constituem, de per si, novos tipos de ilícito; As circunstâncias agravantes contidas no artigo 155º-1 do Código Penal, não alteram a natureza dos crimes de ameaça (semipúblico) e de coacção (público); O crime de ameaça constitui, por comparação com o crime de coacção, ambos na sua forma simples, um ilícito de bem menor gravidade e, em conformidade, é punido de forma muito mais branda. Visto o arrazoado que antecede, sopesadas as razões aí expendidas, entendo, em síntese final, que o procedimento penal pelo crime de ameaça, ainda que se verifique qualquer das circunstâncias agravantes previstas no artigo 155º do Código Penal, continua a manter a sua natureza de crime semipúblico e, em consequência, a carecer de um impulso do ofendido, de uma manifestação expressa de vontade, em três palavras: depende de queixa. '' 2. Fundamentação. A. Delimitação do objecto do recurso. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal – CPP), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso. Contudo, apesar da delimitação do âmbito do recurso efectuada pelo recorrente, o tribunal de '' ad quem '' deve oficiosamente [1] conhecer dos vícios referidos no artº 410º, nº 2 do CPP, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito. Nenhuma destas circunstâncias se encontra verificada no caso dos autos. O MP apenas vem recorrer da matéria de direito (a questão é, aliás, exclusivamente jurídica), suscitando a questão, única, que importa decidir, a saber, a da natureza do crime de ameaça agravado p. e p. p. artº 155º, nº 1, alínea c ) do C. Penal , pugnando pela natureza pública do mesmo, ao contrário do entendimento constante do despacho da 1ª instância ora em apreciação. B. Decidindo. Relativamente à questão de saber a quem compete a iniciativa ( o impulso ) de investigar a prática de crime e de a submeter ou não a julgamento , distingue a doutrina três tipos de delitos , a saber : '' dizem-se públicos aqueles delitos relativamente aos quais o M. P. exerce a acção penal incondicionalmente, i. e , sem dependência de denúncia ou acusação dos particulares . São particulares latu sensu , os delitos cuja acusação pública terá de ser ou precedida de denúncia particular ou acompanhada de acusação particular ( … ) . A denúncia e a acusação particulares são, pois, nestes casos condições de procedibilidade. '' [2]. Em termos legais, constituem, hoje, as mencionadas condições de procedibilidade, a queixa (artº 49º nº 1 do CPP), quanto aos crimes semi-públicos, bem como esta mesma queixa, a constituição de assistente e a dedução de acusação particular (cfr. artº 50º, nº 1 do CPP), quanto aos crimes particulares. '' O fundamento da existência de crimes particulares lato sensu reside, por um lado, em que certas infracções (por exemplo, certas formas de ofensas corporais, danos, furtos, injúrias) não se relacionam com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo tão directo e imediato que aquela sinta, em todas as circunstâncias da lesão – v g. atenta a sua insignificância -, necessidade de reagir automaticamente contra o infractor . Se o ofendido entende não fazer valer a exigência de retribuição, a comunidade considera que o assunto não merece ser apreciado em processo penal. Complementa a consideração anterior a ideia de que em certas infracções (…) a promoção processual contra ou sem a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou mesmo prejudicial para interesses seus dignos de toda a consideração, porque estreitamente relacionados com a sua esfera íntima ou familiar; perante um tal conflito de interesses juridicamente relevantes o legislador dá prevalência ao interesse do particular, considerado em si mesmo e no reflexo que assume em interesses públicos. '' [3] . In casu, no despacho recorrido interpreta-se o artº 155º do C. Penal como uma norma definidora apenas de um conjunto de circunstâncias agravantes, não constituindo autonomamente qualquer crime, o que implica que se mantêm intocadas, quanto ao impulso processual, as naturezas originárias dos crimes abrangidos, ou seja, a natureza semi-pública do crime de ameaça (cf. artº 153º, nº 2 do C. Penal) e pública do crime de coacção (cf. artº 154º, nº 4 do C. Penal, a contrario). A questão que se coloca é : será tal interpretação de seguir? Segundo o artº 9º, nº 1 do C. Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei , mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo , tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico , as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada . Segundo o nº 2 do mesmo normativo, não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Como nos diz José de Oliveira Ascensão [4] o ponto de partida da interpretação tem de estar na letra, que, porém, não é só o ponto de partida mas também um elemento irremovível de toda a interpretação (podemos dizer, de outro modo, que toda a interpretação começa com as palavras). A técnica que o CP segue para apontar, quanto ao impulso processual, a natureza do crime, é a de, em caso de omissão à necessidade de queixa ou acusação particular [5] , ter aplicação plena o princípio da oficialidade, ou seja, tratar-se de um crime público. Assim, uma interpretação (meramente) literal do artº 155º do C. Penal, aponta para a natureza pública do crime de ameaça agravado, dada a inexistência de norma ressalvando a necessidade de queixa ou acusação particular. Porém, se entendermos que o artº 155º apenas define atomisticamente um conjunto de circunstâncias agravantes, mantendo-se o tipo-base do crime de ameaça no artº 153º, também resulta indiscutível que, assim, terá de se considerar a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado (por força do disposto no artº 153º, nº 2 do C. Penal). Deste modo, o elemento literal da interpretação é insuficiente para nos dar uma resposta sobre a questão em causa. Será que o pensamento legislativo (cf. o acima mencionado artº 9º, nº 1 do C. Civil) permitirá esclarecer qual a interpretação correcta do referido binómio normativo (artº 153º / 155º)? Mostra-se hoje obsoleta a concepção subjectiva do pensamento legislativo que o identificava com os trabalhos preparatórios, conferindo-lhes quase a autoridade duma interpretação autêntica [6]. De qualquer forma, e uma vez que (apesar de não decisivo) se trata de um elemento interpretativo relevante, sempre diremos que a Exposição de Motivos da Proposta de Lei de Revisão do Código Penal não esclarece cabalmente este ponto interpretativo concreto: Com efeito, quer o despacho recorrido (a fls. 176 dos autos), quer a motivação do recurso (a fls. 211/2 dos autos) se referem ao mesmo parágrafo daquela, onde se refere a intenção expressa de equiparar o regime do crime de ameaça agravada ao regime do crime de coacção agravada. Porém, como se afirma no despacho recorrido, '' nem uma palavra '' é dita quanto à natureza dos dois tipos fundamentais, quanto à questão do impulso processual. Já o ponto 2, parágrafo 1 da mencionada Exposição de Motivos (mencionado na motivação de recurso a fls. 212) nos parece um pouco menos inócuo, se bem que não determinante. Com efeito, afirmar que uma das orientações da reforma é o reforço da tutela dos destinatários previstos nas alíneas b) e c) do nº 1 do artº 155º do C. Penal, poderá constituir um indício quanto à natureza dos crimes em causa. É hoje dominante a tese que identifica o pensamento legislativo com a intenção objectiva da lei: «A intenção objectiva são os fins que a lei prossegue, as soluções que tem em vista realizar e que constituem a sua razão de ser; a interpretação funcional visa a descobrir essa razão da norma, ou seja, o interesse específico socialmente relevante que a lei pretende tutelar.» [7] Em sede específica de direito penal, deve hoje entender-se a querela da escolha da interpretação objectiva / subjectiva da lei (a que acima aludimos) nos seguintes termos: A solução correcta está no meio termo: há que dar razão à teoria objectiva de que não são decisivas as efectivas representações (que normalmente nem se podem averiguar) das pessoas e grupos que participaram no processo legislativo; por outro lado, tem razão a teoria subjectiva segundo a qual o juiz está vinculado à decisão valorativa politico-jurídica do legislador histórico. A hipótese de que existe um '' sentido objectivo '' da lei, independente daquela decisão, do ponto de vista lógico, não é comprovável, sendo que a adopção de tal hipótese como válida, ou seja, alheada dos objectivos originários da lei, realmente consistiria em prosseguir, no plano interpretativo, concepções subjectivas do juiz, assim se depreciando o princípio da legalidade. [8] Procurando, assim, no caso dos autos, o referido meio termo interpretativo: Como é dito (com alusão especificada à evolução histórica do respectivo normativo) no despacho recorrido, até à reforma penal de 2007, o crime de ameaça (s) agravado sempre teve (desde o Código Penal de 1982), pacificamente, natureza semi-pública. Logo, devemos interrogar-nos – introduziu tal reforma uma alteração da natureza do crime de ameaça agravada, no sentido de o passar a público? Permitimo-nos recordar que, tal como Günther Jakobs [9] afirma, «a interpretação sistematicamente adequada supõe um sinal de que se acertou com a - patente ou meramente latente - '' vontade da lei ‘‘» Quanto à circunstância agravante prevista no artº 155º, nº 1, alínea c), entendemos que o bem jurídico protegido (a liberdade pessoal) transcende, na sua essência, a esfera individual, pretendendo-se evitar a possibilidade de interferência no exercício de funções que prosseguem interesses públicos. Nessa medida, não é o sujeito individual visado o ofendido, mas sim o Estado, entidade de visa a prossecução daqueles interesses. Uma vez que é o Estado o verdadeiro ofendido neste tipo de crimes, devem os mesmos revestir natureza pública. [10] Idêntico raciocínio se deve efectuar quanto à necessidade de defesa das pessoas particularmente indefesas referidas na alínea b) do citado normativo, entendendo-se que tal deve ser tarefa do Estado. Tudo, assim, indica que o artº 155º não traduz, ao invés do que se defende no despacho recorrido, apenas uma diferente '' arrumação sistemática '' de circunstâncias agravantes, mas um verdadeiro tipo qualificado, com diferente natureza relativamente ao tipo básico. Com efeito, existem no C. Penal diversos exemplos de tipos de crime que, na sua forma simples / básica têm natureza semi-pública, ao passo que na forma agravada têm natureza pública. (furto simples vs qualificado; ofensa à integridade física simples vs qualificada) Assim, entendemos que o legislador, ao eleger a fórmula de prever numa só norma os crimes agravados de coacção e de ameaça, não fazendo qualquer alusão à necessidade de queixa, quis conferir-lhes natureza pública. [11] Nestes termos, entendendo-se que o crime de ameaça agravada tem natureza pública, as desistências de queixa constantes dos autos são ineficazes, estando legalmente vedada a sua homologação, atento o disposto no artigo 155º do Código Penal e arº 48º, bem como 49º e 51º (a contrario) do Código de Processo Penal. É, consequentemente, de revogar a decisão recorrida. 3. Dispositivo. Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em dar provimento ao recurso, revogando, na parte em causa, a decisão recorrida. Sem custas. (Processado em computador e revisto pelo relator) Évora, 12 de Novembro de 2009 ------------------------------------------------------------- (Edgar Gouveia Valente) --------------------------------------------------------------- (Fernando Ribeiro Cardoso) _____________________________ [1] Cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência nº 7/95 , de 19.10.1995 , in DR I Série – A , de 28.12.1995 . [2] A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, página 114. [3] Jorge de Figueiredo Dias , Direito Processual Penal , Coimbra Editora , 1974 , página 121 . [4] In O Direito, Introdução e Teoria Geral, 2ª edição, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980, páginas 353/354. [5] Quando entende qualificar o tipo de crime como semi-público ou particular, o C. Penal fá-lo em número autónomo da descrição da factualidade típica, após esta ( artº 203º , nº 3 ) , ou em artigo diverso reportado aos crimes previstos no Capítulo em causa ( cfr. artº 188º ) ou a um conjunto de crimes ( artº 178º , números 1 e 2 ) . [6] Neste sentido, Francesco Ferrara in Interpretação e Aplicação das Leis (tradução de Manuel de Andrade), 4ª edição, Coimbra, 1987, página 145. [7] Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos in Notas ao Código Civil , Volume I , Lisboa , 1987 , página 39 . [8] Seguimos, numa tradução livre, o entendimento de Claus Roxin, in Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Civitas, 1997, página 150/1. [9] In Derecho Penal, Marcial Pons, 1995, página 94. [10] Neste sentido, quanto ao regime anterior ao C. Penal de 1982, vide José António Barreiros in Processo Penal – 1, Almedina, Coimbra, 1981, página 457. [11] Neste mesmo sentido, vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 01.07.2009 no âmbito do Processo 968/07.6PBVLG.P1 disponível em http://www.dgsi.pt : '' o artº 155º não contém norma que estabeleça a natureza semi-pública dos tipos qualificados de ameaça e de coacção e também não se encontra norma autónoma que, referida ao artº 155º, a estabeleça, pelo que, na falta dessa expressa consagração, tem de concluir-se que os crimes de ameaça e de coacção qualificados, em função das circunstâncias elencadas nas alíneas do nº 1 ou em função do resultado previsto no nº 2 , têm a natureza de crimes públicos . ''