Processo:
Relator: Tribunal:
Decisão: Meio processual:

Profissão: Data de nascimento: Invalid Date
Tipo de evento:
Descricao acidente:

Importancias a pagar seguradora:

Relator
CORREIA PINTO
Descritores
MAUS TRATOS A CÔNJUGE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO IN DUBIO PRO REO
No do documento
Data do Acordão
03/25/2010
Votação
UNANIMIDADE
Texto integral
S
Meio processual
RECURSO
Decisão
PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário
1. Com a alteração efectuada ao artigo 152.º do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, não se visou subsumir a esta norma todo e qualquer acto de agressão entre cônjuges ou ex-cônjuges, de modo a que deixe de ser configurável, entre tais intervenientes, a incriminação do artigo 143.º do Código Penal (ofensa à integridade física simples). 2. A actual configuração do crime de violência doméstica, não exigindo comportamentos reiterados, pressupõe comportamento que se possa qualificar como maus tratos, o que não ocorre com qualquer agressão; ou seja, a configuração do crime pressupõe a existência de maus tratos físicos e psíquicos, ainda que praticados uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, actos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.
Decisão integral
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I)
Relatório

1. No processo comum singular n.º …, do Tribunal Judicial do Entroncamento, é arguido N., melhor identificado nos autos.

O mesmo foi pronunciado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal.

O arguido apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando procedente a pronúncia, condenou o arguido, pela prática do aludido crime, na pena de dois anos e um mês de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período.

2. O arguido, não se conformando com esta decisão, interpôs recurso da sentença.
Na respectiva motivação, formula as seguintes conclusões:

D 1 – Da prova produzida em sede de audiência de julgamento.

1. O arguido discorda da condenação que sobre ele recaiu, e consequentemente da pena que lhe foi aplicada e assim:

2. Da prova produzida em sede de audiência de julgamento não resultou provado o constante dos pontos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º dos “Factos provados”, pelo que se impugna a douta sentença, nos termos que se seguem:

No que respeita ao ponto 2.º dos “Factos provados”:

3. Da prova produzida não resulta claramente que existiu algum mau trato psicológico, até porque, o arguido negou sempre ter proferido tal afirmação, como supra se transcreveu e consta da inquirição do Arguido a Instâncias da Meritíssima Juiz, conforme o CD Julgamento a minutos 03:09 e seguintes.

4. Ora, tendo ficado provado que “9.º O arguido é … pessoa calma, afável e ponderada, pessoa simples e humilde”, bem como que “… o arguido tem um comportamento social exemplar … é pessoa calma, ponderada e humilde”, acrescido do facto de ter deposto de forma clara, concisa e demonstrando segurança nas suas declarações, consideramos deveriam as mesmas ter sido tidas como credíveis e verdadeiras, pois nada foi apontado em sentido contrário.

5. Para além do exposto nada resultou das inquirições das testemunhas que permitisse concluir que o facto ocorreu dentro da residência do casal, antes pelo contrário, o mesmo, a ter ocorrido, terá sido pela internet, por escrito (tal como proferido pela ofendida/testemunha e como acima se transcreve) estando o arguido em Angola. (Conforme inquirição da ofendida ML a Instâncias da Sra. Procuradora Adjunta do CD Julgamento, minuto 19:00 e seguintes, a instâncias da Defensora do Arguido_CD Julgamento, minuto 27:20 e seguintes e a inquirição da testemunha Amélia a Instâncias da Defensora do Arguido_CD Julgamento, minuto 37:36 e seguintes).

6. Aliás, o próprio ponto 2.º é contraditório pois refere que “… durante o período em que o arguido esteve em Missão em Angola …” e mais à frente “… no interior da residência do casal, o arguido disse à ofendida, pelo menos, por três vezes, que ela era “burra””.

7. Discordamos também que se possa considerar provado que o tenha feito pelo menos por três vezes, pois tal foi apenas referido pela ofendida testemunha, tendo a mesma dito que foram duas ou três vezes quando lhe perguntava isto ou aquilo, demonstrando incerteza quanto ao enquadramento contextual do facto e quanto à repetição do mesmo, conforme as declarações desta acima transcritas.

8. Para além disso, das declarações da mãe da ofendida resultam claras contradições, pois a mesma num primeiro momento referiu que ouviu o genro chamar burra à filha, num segundo momento que afinal ouviu foi a filha a dizer-lhe que o genro lhe estava a chamar burra e depois finalmente após alguma insistência da Meritíssima Juiz referiu que afinal quem tinha ouvido era o genro, com consta da inquirição da testemunha A. do dia 21/07/2009 a instâncias do Defensor do Arguido e do CD Julgamento do dia 21-07-2009 minuto 1:51 e seguintes.

9. Declarações estas que são também contraditórias às da sua filha que referiu terem tais ofensas sido proferidas por escrito, conforme declarações acima transcritas.

10. Resulta do requerimento apresentado em acta da audiência de julgamento de 21/07/2009, pelo defensor do arguido, que a Sra. Dona A. não sabe ler. Pelo que não seria capaz de ler qualquer imputação que estivesse escrita no computador.

11. Como se tudo isto não fosse suficiente, a Meritíssima Juiz considerou, e a nosso ver bem, que se extrai dos depoimentos da ofendida e da sua mãe uma “personalidade … algo agitada e com uma certa obsessão em imputar ao arguido os comportamentos que ditaram a separação”, tendo considerado provado que “10.º A ofendida aparenta ter um carácter possessivo e algo instável.” Acrescendo a isto as declarações proferidas por ambas concluímos serem as mesmas contraditórias, inseguras, demonstrando bastante nervosismo e desejo de prejudicar o arguido pelo facto de este ter deixado o lar conjugal. Discordamos assim com a Meritíssima Juiz que se bastou com estas declarações para considerar terem ficado provados os factos.

12. A acrescer ao exposto convém salientar que das declarações proferidas pela testemunha Amélia em sede de inquérito, declarações que foram lidas na audiência de julgamento, esta “refere que a relação da sua filha com o seu genro foi sempre muito boa até ao verão de 2007” não tendo feito qualquer referência ao facto do genro ter chamado o que quer que fosse à sua filha durante os 21 anos em que foram casados, bem como referiu que “não tem conhecimento da existência qualquer outro litígio desavença entre o seu genro e a sua filha …”.

13. Perante tal contradição só podemos concluir pela falta de credibilidade desta testemunha pois não é possível e muito menos credível que no dia 7 de Abril de 2008, data em que foi inquirida junto do Ministério Público, esta não se lembrar deste facto e depois em sede de audiência, em data muito posterior, demonstrar tanta certeza na ocorrência do mesmo, contrariando as regras do bom censo que nos dizem que com o decorrer do tempo vamos nos esquecendo.
No que respeita ao ponto 3.º dos “Factos provados”

14. Considerando o tribunal como verosímeis as declarações da ofendida por ter considerando credível o depoimento da sua mãe, descrevendo na motivação uma passagem na qual a ofendida/testemunha terá dito que o arguido lhe deu uma bofetada, descrevendo também uma passagem das declarações da mãe da ofendida, na qual esta refere que a sua filha lhe mostrou a cara e que esta estava vermelha e marcada com a mão.

15. Ora, a nosso ver das declarações da mãe da testemunha não resulta de forma segura que o arguido praticou o facto supra referido, pois a mesma refere não ter visto a bofetada, nem resulta sequer de forma segura que a cara da sua filha estava vermelha ou com qualquer marca que seja pois, como acima transcrito em diversos momentos proferiu diferentes afirmações, dizendo primeiro que com toda a certeza a filha tinha uma marca branca na cara, depois quando confrontada com a leitura das declarações que prestou junto do Ministério Público em sede de inquérito, onde tinha anteriormente dito que a cara da filha estava vermelha, já não sabendo depois afirmar se a marca era vermelha ou branca.

16. Mas as contradições das declarações da testemunha A., não ficam por aqui, pois num primeiro momento, afirmou com toda a certeza que a filha lhe mostrou a cara quando estava na garagem, sendo confrontada com a leitura das declarações por si prestadas em sede de inquérito, onde constava que tinha visto a marca quando estavam dentro do veículo conduzido pela ofendida/testemunha, dizendo depois que a sua cabeça já não estava boa, demonstrando com isto que afinal as certezas absolutas que anteriormente tinha, não eram assim tão certas, para além do mais referiu que se dirigiram logo de seguida para a esquadra da PSP para apresentar queixa, e deste documento consta não existir qualquer marca visível das agressões (tudo conforme supra transcrito e constante da inquirição da testemunha A. a Instâncias da Sra. Procuradora Adjunta (CD Julgamento - minuto 15:38 e seguintes) e inquirição da testemunha A. a Instâncias da Defensora do Arguido (CD Julgamento - minuto 34:20 e seguintes).

17. Ora perante tais contradições consideramos não poder esta testemunha ser credível, muito menos servir o seu depoimento para por si só tornar verosímil a versão apresentada pela sua filha, até porque, esta testemunha não poderá ser considerada isenta uma vez que é mãe da ofendida, com esta quase residindo, tendo a chave de sua residência e inclusive tendo mostrado estar completamente envolvida emocionalmente neste drama, pois chegou em sede de julgamento a dizer que a irmã do arguido era uma “velhaca” (conforme supra transcrito) e até porque a Meritíssima Juiz considerou que tanto a ofendida como a mãe tinham uma certa obsessão em imputar ao arguido os comportamentos que ditaram a separação, o que só por si nos leva a duvidar da isenção das suas declarações (Conforme inquirição da testemunha A. a Instâncias da Sra. Procuradora Adjunta e CD Julgamento - minuto 26:24 e seguintes).

18. Pelo exposto consideramos que quanto muito e porque permanecem em oposição as declarações da ofendida e do arguido, fica no ar a dúvida de ter o arguido praticado o facto considerado provado no ponto 2.º dos “factos provados”, pelo que em virtude da aplicação do princípio “in dubio pro reo” deveria tal facto ter sido considerado como facto não provado.

19. Até porque o arguido negou a prática do facto como consta da inquirição do Arguido – Instâncias da Meritíssima Juiz, CD Julgamento – minuto 03:09 e seguintes.

No que respeita ao ponto 4.º dos “Factos provados”

20. Da prova produzida em sede de julgamento nada permite concluir que o arguido agarrou o pulso da ofendida, pois, esta e a sua mãe o que disseram foi que o arguido tinha feito uma manobra no pulso da ofendida com o intuito de que esta abrisse a mão e largasse o telemóvel/placa 3G que esta pretendia partir, tendo o arguido negado sempre ter praticado tal facto, (como supra transcrito e constante da inquirição da ofendida ML a Instâncias da Defensora do Arguido, CD Julgamento - minuto 32:21 e seguintes, da inquirição da testemunha A. a Instâncias da Sra. Procuradora Adjunta, CD Julgamento – minuto 15:38 e seguintes e a instâncias da Defensora do Arguido, CD Julgamento – minuto 34:49 e seguintes e da inquirição do Arguido a Instâncias da Meritíssima Juiz, CD Julgamento - minuto 03:09 e seguintes.

21- Acresce ao exposto que, as declarações proferidas pela testemunha A. (mãe da ofendida) são contraditórias com aquelas por si proferidas em sede de inquérito, conforme foi lido na audiência, tendo esta dito em sede de inquérito que quando “abriu a porta da casa da sua filha e de imediato viu que a sua filha e o seu genro estavam agarrados um ao outro pretendendo ela ficar na posse de um aparelho que julga ser de acesso à internet. Porque o seu genro tem mais força que a sua filha ele conseguiu retirar tal aparelho. Estavam ambos muito exaltados e por isso procurou chamá-los à razão”. Ora, perante tal contradição, este depoimento não deveria por si só ter sido considerado como credível e como tal susceptível de convencer o tribunal da certeza da sua realização, pelo que a acrescer aos factos supra mencionados que nos levam a concluir pela falta de credibilidade desta testemunha, tal facto, em virtude da existência das duas posições contraditórias deixaria no ar a dúvida da sua realização, pelo que deveria ter sido considerado não provado (in dubio pro reo).

Dos pontos 5.º e 6.º dos “factos provados”

22. Retira-se claramente que conclui a douta sentença ter o ora recorrente praticado os factos de que vem acusado de forma dolosa e na modalidade directa do dolo.

23. Ora, a admitir que o arguido tenha chamado burra à ofendida, dando-lhe uma bofetada e apertando-lhe os pulsos, o que não poderemos de forma alguma admitir, a nosso ver, não ficou provado em sede de julgamento, a existência de qualquer intenção em ofender a saúde física ou psíquica da ofendida.

24. Quanto ao eventual mau trato psicológico “a imputação da expressão burra à ofendida/testemunha” consideramos que não resulta da prova produzida qualquer elemento que permita aferir que o arguido apelidou a ofendida de “burra” no intuito de ofender a honra e consideração (conforme supra transcrito).

25. Aliás, resulta até das regras do censo comum que na grande maioria das casas de família portuguesas, marido e mulher chamam “burro(a)” um ao outro, ou outras expressões insignificantes, em diversas ocasiões da vida conjugal sem que com isto pretendam ofender a honra ou dignidade do outro, não passando a maioria das vezes de meros desabafos.

26. Conforme resulta do texto da sentença e das declarações da ofendida e sua mãe, tal facto terá ocorrido num contexto em que a mesma pergunta algo ao recorrente, resultando das declarações do arguido, que o mesmo já cansado de ouvir as mesmas perguntas disse “Mas é assim tão difícil perceber que tem que carregar no botão?” “é preciso tirar algum curso?” referindo que a partir daí ela começou a dizer que ele lhe chamava burra. Assim, de tal contexto apenas se pode aferir, a admitir que o arguido proferiu tal expressão, o que não se admite, que a mesma ter-se-á tratado de um mero desabafo e não de um acto consciente proferido com o intuito de ofender a honra ou dignidade da ofendida/testemunha, ou sequer de a humilhar ou maltratar psicologicamente ainda que à distância, pelo que a nosso ver nunca tal acto teria sido praticado de forma dolosa.

27. No que respeita à bofetada na face da ofendida e ao agarrar dos pulsos desta, consideramos não estar preenchido o elemento subjectivo do ilícito pois, resulta claramente das declarações da ofendida e de sua mãe, as únicas que foram tidas em consideração pelo tribunal, que tudo se terá passado num momento de grande tensão, no qual a ofendida de forma descontrolada acabava de partir um computado portátil e preparava-se para atirá-lo pela janela, bem como no momento posterior pretendia partir uma placa 3G/telemóvel e sabe-se lá mais o quê de seguida, (conforme supra transcrito e constante da inquirição da ofendida ML a instâncias da Defensora do Arguido, CD Julgamento – minuto 30:00 e seguintes, inquirição da testemunha A. a Instâncias da Sra. Procuradora Adjunta, CD Julgamento – minuto 15:38 e seguintes e inquirição da testemunha A. a Instâncias da Defensora do Arguido, CD Julgamento minuto 34:49 e seguintes.

28. Tal atitude, conforme resulta da sentença terá motivado um descontrolo no arguido, ora ao admitir-se que houve tal descontrolo não se pode depois concluir pela existência de dolo, muito menos na forma directa, muito menos aceitar ter sido intenção do arguido ofender o bem-estar físico e/ou psíquico da ofendida e como tal pretendendo maltratar o corpo da mesma. Quanto muito poderíamos admitir que o arguido procurou evitar que a ofendida partisse os materiais informáticos e até ferir-se com as suas peças.

29. Ora, conforme o Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 334 “No caso de maus tratos físicos, o dolo estende-se ao próprio resultado danoso da integridade física …” assim, ao admitir o estado descontrolado do arguido nunca se poderá concluir que o mesmo tivesse a intenção de ofender a integridade física, mormente de lhe provocar dor, marcas ou qualquer outro dano, pois um acto descontrolado é uma acto desprovido de consciência, não existindo neste qualquer reflexão.

30. Assim sendo entendemos não poder ser considerados dolosos os factos supra referidos e assim não poderia o arguido ser condenado pela prática dos mesmos.

31. Apesar do exposto e mesmo que se considerasse ter o acto sido reflectido nunca poderíamos admitir que o agarrar dos pulsos consubstanciasse um acto doloso na forma directa pois como se extrai da prova produzida este facto terá sido praticado com o intuito de retirar da mão da ofendida um objecto, pelo que quanto muito o dolo em apreço seria na modalidade de dolo necessário, conforme supra transcrito.

No que respeita ao ponto 7.º dos “Factos provados”

32. Entendemos não poder ser considerado provado o referido facto pois tal não resulta das declarações da ofendida, nem das declarações da sua mãe que a nosso ver não deveriam ter sido consideradas credíveis, pois esta referiu que há alguns anos que a filha e o genro se desentendiam, tendo anteriormente dito em sede de inquérito, conforme declarações lidas no julgamento, que a relação do casal “foi sempre muito boa até ao verão de 2007” e que “não tem conhecimento de qualquer outro litígio de desavença entre o seu genro e a sua filha, conforme supra transcrito e constante da inquirição da testemunha A. a Instâncias da Defensora do Arguido, CD Julgamento – minuto 43:44 e seguintes.

D 2 – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e violação do princípio “in dubio pro reo”.

33. Não resulta do texto da douta sentença prova suficiente e necessária para a condenação do arguido; na certeza de que o tribunal se baseou unicamente no depoimento da ofendida, nitidamente parcial por ter interesse na sua condenação, e no depoimento da mãe da ofendida que com ela quase vive.

Do ponto 2.º dos “factos provados”

34. Consta que entre 12 de Abril de 2007 e 10 de Outubro de 2007 no interior da residência do casal, o arguido disse à ofendida, pelo menos, por três vezes, que ela era “burra”, ora, nada consta do texto da sentença que permita concluir que o arguido se encontrava no interior da residência do casal nesse período.

35. Aliás, no referido ponto 2.º dos “factos provados” consta que o facto ocorreu no período em que o arguido esteve em missão em Angola.

36. Claro está que nada obsta a que o arguido se tenha deslocado nesse período a Portugal, que se tenha dirigido à residência comum do casal e lá tenha proferido as expressões pelas quais foi condenado.

37. Sucede, no entanto, que o exposto na “Motivação” da sentença contradiz a decisão plasmada no referido ponto 2.º.

38. Consta da sentença Referindo-se às declarações da testemunha/ofendida “ML” “… na altura em que o arguido estava na segunda missão, que teve lugar entre a Páscoa até ao dia 5 de Outubro, dizendo-lhe através de comunicação pelo computador “Não tens vergonha de ser tão burra?”. Chamou-lhe o termo de “burra” pelo menos três vezes, quando a ofendida lhe perguntava como é que fazia isto e aquilo”.

39. Mais à frente, referindo-se às declarações da testemunha “A.” “... Disse que quando o genro esteve em Angola, a sua filha e o marido falavam através da internet e numa dessas ocasiões ouviu o genro dizer à mulher “Não sabes disto? É preciso tirar um curso? És mesmo burra.”

40. Pelo exposto nunca se poderia ter considerado como provado que tais expressões foram proferidas no interior da residência do casal.

41. Consideramos também que mesmo admitindo, o que não sucede, que tais factos ocorreram no interior da residência do casal, não resulta do texto da sentença prova suficiente de que tais expressões foram realmente proferidas, nem que foram proferidas três vezes, até porque, conforme já se expôs da “Motivação” da sentença, a Sra. A., mãe da ofendia, referiu que ouviu dizer “És mesmo burra” constando da sentença que tal expressão foi proferida numa das ocasiões em que a filha e o genro falavam através da internet. As declarações supra, diferem das constantes da sentença como proferidas pela ofendida/testemunha, pois, destas consta que o arguido disse “Não tens vergonha de ser tão burra?”, tendo-lhe chamado “burra” pelo menos 3 vezes, quando lhe perguntava isto ou aquilo.

42. Ora dizer “És mesmo burra” não é a mesma coisa que “não tens vergonha de ser tão burra?”, o que significa que só aqui há contradição, mas ao acreditarmos nas palavras de uma ou da outra, estas são contrárias ao que consta da sentença como referido pelo arguido que diz “que nunca lhe chamou burra”.

43. Nestes termos, apesar de considerarmos as declarações isoladas de qualquer uma das testemunhas, insuficientes para fundamentar a decisão, consideramos que as mesmas estando em contradição com as proferidas pelo arguido quanto muito colocariam o tribunal numa situação de dúvida e não de certeza quanto à ocorrência do facto, pelo que o mesmo não deveria ter sido considerado como provado.

44. Consideramos também que mesmo admitindo-se que o arguido proferiu uma vez a expressão supra referida (burra), o que não se admite, não podemos aceitar como suficiente para considerar sem sombra de dúvida provado que o mesmo apelidou a ofendida/testemunha de burra por pelo menos três vezes, pois nada consta a este respeito das declarações da sua mãe, expressas no texto da sentença, bem como porque das declarações da ofendida/testemunha que são demasiado vagas, até abstractas e não permitem por si só concluir sem qualquer dúvida pela prática deste facto por três vezes, referindo esta “Chamou-lhe o termo de “burra” pelo menos três vezes, quando a ofendida lhe perguntava como é que fazia isto e aquilo” não concretizando em que consistia o isto ou aquilo.

No que respeita ao ponto 3.º dos “factos provados”

45. Consta do texto da sentença que “No dia 02 de Dezembro de 2007, pelas 01h15, no interior da então residência do casal, (…), por motivos relacionados com a quebra de um computador portátil pela ofendida, o arguido desferiu uma bofetada no lado esquerdo da face da ofendida”. É nossa opinião que o constante da “motivação” da sentença, é insuficiente para considerar provado tal facto, senão vejamos:

46. Referindo-se às declarações da testemunha “A.” a sentença refere “… A filha quis sair de casa e mostrou a cara à mãe. A depoente diz que viu da filha vermelha marcada com a mão.”

47. Ora, tais declarações, mesmo que se admita que a cara da ofendida/testemunha, estivesse vermelha e com a marca de uma mão não permitem, por si só, concluir que a autoria da referida marca se deveu a um acto praticado pelo recorrente.

48. Até porque como consta da referida “Motivação” da sentença “… o arguido é uma pessoa calma, cordata e paciente”; tendo ficado provado que “9.º O arguido é reputado como sendo pessoa calma, afável e ponderada, pessoa simples e humilde” e que a ofendida/testemunha é “… algo agitada e com uma certa obsessão em imputar ao arguido os comportamentos que ditaram a separação …” tendo ficado provado que “10.º A ofendida aparenta ter um carácter possessivo e algo instável” o que por si só é susceptível de deixar a dúvida quanto à veracidade da ocorrência dos factos pois, não se pode concluir pelas declarações da mãe da ofendida/testemunha ter sido uma acção do arguido a provocar o efeito referido (cara vermelha/marca de mão), uma vez que não consta da sentença que esta tenha visto a bofetada, pelo que deveria o tribunal ter considerado como não provado o referido facto, até porque a acrescer ao exposto resulta da sentença a refutação de tal acto por parte do arguido.

49. Aliás, para além dos infindáveis motivos que podem originar uma marca vermelha numa cara, o próprio temperamento da ofendida/queixosa, plasmado na sentença, leva-nos inclusive a admitir como possível que, a ser verdade que a tal marca existisse, tivesse sido ela mesma a provocá-la.

50. Pelo que mais uma vez deveria ter imperado o princípio "in dubio pro reo" não sendo considerado provado tal facto.

Quanto ao ponto 4.º dos “factos provados”

51. Consta do texto da sentença que o ora recorrente agarrou os pulsos da ofendida/testemunha, não fazendo referência a qualquer dano sofrido pela mesma em virtude de tal conduta, nem fazendo referência a qualquer força ou violência empregue pelo ora recorrente na prática desse acto, pelo que não podemos admitir que, mesmo que aceitássemos que tal acto tivesse ocorrido, o que não acontece, o mesmo preenchesse o tipo de ilícito constante no artigo 152.º do Código Penal.

52. Nesse sentido, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 333 “As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físico (isto é, ofensas corporais simples) …”

53. Do mesmo Comentário Conimbricense, a páginas 204 e 205 “Trata-se de um crime material de dano. O tipo legal em análise abrange, com efeito um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem …” “Por ofensa no corpo poder-se-á entender “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante” …”

54. Ora, para que se possa considerar tal facto como violador do tipo legal do crime de violência doméstica, necessário seria que da sentença resultassem elementos donde se depreendesse qual o prejuízo causado ao bem-estar físico da ofendida/testemunha e que permitissem apurar a insignificância ou não do mesmo.

Dos pontos 5.º e 6.º dos “factos provados”

55. Retira-se claramente que conclui a douta sentença ter o ora recorrente praticado os factos de que vem acusado de forma dolosa e na modalidade directa do dolo.

56. Ora, a nosso ver, em virtude do texto da sentença em apreço, tal não poderá ser considerado porquanto:

57. Quanto ao eventual mau trato psicológico “a imputação da expressão burra à ofendida/testemunha” consideramos que não resulta do texto da sentença qualquer elemento que permita aferir que o arguido apelidou a ofendida de “burra” no intuito de ofender a honra e consideração.

58. Aliás, resulta até das regras do censo comum que na grande maioria das casas de família portuguesas, marido e mulher chamam “burro(a)” um ao outro em diversas ocasiões da vida conjugal sem que com isto pretendam ofender a honra ou dignidade do outro, não passando a maioria das vezes de meros desabafos.

59. Aliás conforme resulta do texto da sentença e das declarações da ofendida e sua mãe, tal facto terá ocorrido num contexto em que a mesma pergunta algo ao recorrente, resultando das declarações do arguido, que o mesmo já cansado de ouvir as mesmas perguntas disse “Mas é assim tão difícil perceber que tem que carregar no botão?” “é preciso tirar algum curso?” referindo que a partir daí ela começou a dizer que ele lhe chamava burra. Assim, de tal contexto apenas se pode aferir, a admitir que o arguido proferiu tal expressão, o que não se admite, que a mesma ter-se-á tratado de um mero desabafo e não de um acto consciente proferido com o intuito de ofender a honra ou dignidade da ofendida/testemunha, ou sequer de a humilhar ou maltratar psicologicamente ainda que à distância, pelo que a nosso ver nunca tal acto teria sido praticado de forma dolosa.

60. No que respeita à bofetada na face da ofendida e ao agarrar dos pulsos desta, consideramos não estar preenchido o elemento subjectivo do ilícito pois, resulta claramente da “Motivação” e do “Enquadramento jurídico-penal” da sentença que tudo se terá passado num momento de descontrolo da ofendida e do arguido, conforme supra transcrito:

61. Ora, conforme o Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 1, Coimbra Editora, 1999, pág. 334 “No caso de maus tratos físicos, o dolo estende-se ao próprio resultado danoso da integridade física …” assim, ao admitir o estado descontrolado do arguido nunca se poderá concluir que o mesmo tivesse a intenção de ofender a integridade física, mormente de lhe provocar dor, marcas ou qualquer outro dano, pelo menos tal não resulta do texto da sentença nem dos factos considerados como provados, pois um acto descontrolado é uma acto desprovido de consciência, não existindo neste qualquer reflexão.

62. Assim sendo entendemos não poder ser considerados dolosos os factos supra referidos.

63. Apesar do exposto e mesmo que se considerasse ter o acto sido reflectido, ainda que do texto da sentença resulte que foi descontrolado, nunca poderíamos admitir que o agarrar dos pulsos consubstanciasse um acto doloso na forma directa pois como resulta da sentença este facto terá sido praticado com o intuito de retirar da mão da ofendida um objecto, pelo que quanto muito o dolo em apreço seria na modalidade de dolo necessário.

D 3 – Das normas jurídicas violadas

64. Por tudo o que se expôs neste recurso a douta Sentença violou os artigos 14.º, 31.º, 34.º, 152.º do Código Penal e os artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código Processo Penal.

65. Violou também os artigos 13.º, n.º 2 e 18.º, n.º 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa.

66. Ao interpretar o artigo 152.º no sentido que fez ao proferir a douta sentença o julgador, produziu uma interpretação inconstitucional, pois diz o artigo 18.º da CRP que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias … devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, dizendo o n.º 2 que “As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias … não podem … diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais” ora, ao admitirmos ter o referido artigo 152.º como ratio a protecção de homens/mulheres que eventualmente possam vir a ser vítimas de maus tratos, admite a restrição do direito fundamental “liberdade” em beneficio da salvaguarda do direito fundamental “integridade física e psicológica” em que esta é atacada de forma gratuita e com vista a maltratar alguém que se encontra numa situação fragilizada.

67. Sucede que no caso concreto não existe qualquer situação de fragilidade da vítima, nem sequer podemos admitir existir aqui violência gratuita pois, conforme ficou provado na sentença recorrida, a ofendida estava descontrolada e a partir objectos, computador portátil e placa 3G e sabe-se lá que mais iria partir e que tal acto poderá ter provocado um descontrolo no arguido que se excedeu no intuito de evitar que a mesma praticasse maiores danos. Assim não é de admitir que existe neste caso concreto a necessidade de prevenção geral, no sentido da visada pelo artigo 152.º nem sequer de prevenção especial, pois conforme ficou provado tudo se deveu a uma reacção a um acto descontrolado da ofendida com vista a evitar danos maiores, bem como pelo facto de o arguido ter saído de casa, tendo-se extinguido a relação conjugal, pelo que não mais se vislumbra a possibilidade de ocorrer outra situação, nem de violência gratuita, nem de outra natureza.

68. Assim, a limitação do direito à “liberdade” encontra-se aqui claramente a ser prejudicado de forma desproporcional em relação ao que se pretende salvaguardar “saúde” até porque conforme ficou provado das agressões não resultaram qualquer danos, pelo que a terem ocorrido tais agressões as mesmas são de tal forma insignificantes que não podem merecer sequer censura penal, quanto mais forçar a limitação de um direito fundamental constitucionalmente consagrado “liberdade” pelo que in casu, com a aplicação de uma pena de prisão de 2 anos e 1 mês ao arguido, foi claramente violada a CRP, mormente em virtude da desproporcionalidade entre a pena aplicada e o bem jurídico a salvaguardar.

Conclui sustentando que o presente recurso deve merecer provimento e, em consequência, deve revogar-se a Sentença proferida que condenou o arguido pela prática do crime que vinha acusado na pena de prisão de 2 anos e 1 mês, suspensa por igual período de tempo, revogar igualmente a pena em que foi condenado e absolver o arguido da prática do crime de que é acusado, com todas as consequências legais.

3.1	Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou a resposta, formulando as seguintes conclusões:

1.	A matéria de facto foi correctamente julgada e a prova produzida em audiência não impunha decisão diversa da recorrida.

2.	Neste tipo de criminalidade as declarações das vítimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que os maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservado da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada dum casal.

3.	O arguido embora negue o cometimento dos factos contextualiza as situações, descrevendo os factos de modo sensivelmente idêntico à descrição feita pela ofendida.

4.	O depoimento da testemunha A. é circunstanciado e não empola os factos, o que certamente teria sucedido caso se tratasse de um depoimento parcial e interessado.

5.	Mesmo colocando a hipótese de o arguido ter proferido a expressão “burra” em jeito de desabafo e de ter agido de forma descontrolada e irreflectida, tais circunstâncias não abalam a conclusão de que agiu com dolo directo, pois a sede própria para avaliar e ponderar tais circunstâncias é a da motivação do agente, do grau da sua culpa e consequentemente, da censurabilidade da sua conduta.

6.	Da factualidade dada como assente resultam preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, pelo que outra não pode ser a conclusão a não ser a de que a matéria de facto provada é suficiente para a decisão.

7.	Não existe contradição da fundamentação pelo facto de o ponto 2 dos factos assentes ter suporte probatório no depoimento da ofendida e esta ter afirmado, conforme se explanou e ponderou na motivação da decisão recorrida, que o arguido lhe havia chamado “burra”, pelo menos por três vezes, através de comunicação efectuada por via de computador quando se encontrava na segunda missão em Angola.

8.	A existir algum vício seria o erro notório na apreciação da prova, o qual, porém, também não existe pois o arguido utilizou um meio de comunicação à distância e embora ele não se encontrasse na casa do casal, era aí que se encontrava a destinatária da comunicação, no caso a ofendida.

9.	Da fundamentação da decisão não resulta que a prova tenha sido apreciada de forma arbitrária.
10.	Pelo facto de o tribunal ter valorado o depoimento da ofendida e da testemunha A., e não o do arguido, que os contraria, não resulta necessariamente que tenha violado o princípio in dubio pro reo, o qual pressupõe a criação no espírito do julgador de uma dúvida séria e razoável quanto à verificação dos factos e à sua autoria.

11.	Não se verifica nenhum dos vícios invocados pelo recorrente.

12.	A sentença recorrida não violou nenhuma das disposições legais invocadas.

13.	A sentença recorrida não merece censura e deve ser mantida na íntegra.

3.2	Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público, com vista nos autos e acolhendo a argumentação da resposta em 1.ª instância, emite parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.	
3.3	O arguido, notificado nos termos do artigo 417.º do Código de Processo Penal, não respondeu.
4.	Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso, nomeadamente as que estão previstas no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a motivação do recurso enuncia especificamente os respectivos fundamentos e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido.

O objecto do recurso consubstancia-se então na apreciação das seguintes questões:

§	A eventual verificação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – nesse âmbito se conhecendo as questões que o recorrente suscita a esse título.

§	A alegada falta de prova da matéria vertida nos pontos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º dos “factos provados”.

§	A alegada insuficiência para a decisão da matéria provada, contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e violação do princípio “in dubio pro reo”.

§	A alegada violação dos artigos 14.º, 31.º, 34.º, 152.º do Código Penal, 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 13.º, n.º 2 e 18.º, n.º 2 e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.

II)
Fundamentação

1.	Factos relevantes.

1.1	Com interesse, importa considerar os factos que foram julgados provados na sentença recorrida, aí consignados nos seguintes termos:

A) FACTOS PROVADOS

Da prova produzida em audiência, resultaram provados os seguintes factos:

1.º	O arguido N. é casado com a ofendida ML desde 09 de Agosto de 1986.

2.º 	Em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante o período em que o arguido esteve em Missão em Angola, desde 12 de Abril de 2007 até 10 de Outubro de 2007, no interior da residência do casal, o arguido disse à ofendida, pelo menos, por três vezes, que ela era “burra”.

3.º	No dia 02 de Dezembro de 2007, pelas 01h15, no interior da então residência do casal, sita na Rua …, no Entroncamento, área desta cidade e comarca, por motivos relacionados com a quebra de um computador portátil pela ofendida, o arguido desferiu uma bofetada no lado esquerdo da face da ofendida.

4.º	Ainda nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da ofendida.

5.º	Agiu o arguido de modo livre, voluntário e consciente, com perfeito conhecimento de que, com a sua conduta, maltratava física e psicologicamente o seu cônjuge, no domicílio comum.

6.º	Mais sabia o arguido que tal conduta era proibida e punida por lei. 

Mais se provou que:

7.º	Nos períodos de tempo que antecederam os factos o arguido e a ofendida vinham tendo um mau relacionamento entre si, desentendendo-se frequentemente.

8.º	O arguido esteve integrado na Missão de Cooperação Técnico-Policial com Angola, no período compreendido entre 12 de Abril e 10 de Outubro de 2007.

9.º	O arguido é reputado como sendo pessoa calma, afável e ponderada, pessoa simples e humilde.
10.º 	A ofendida aparenta ter um carácter possessivo e algo instável.

Condições económicas do arguido:

11.º 	O arguido é Subcomissário da PSP, exercendo funções na Escola Prática da PSP, em Torres Novas, actividade pela qual aufere mensalmente a quantia de € 1.500. 

12.º	O arguido está separado da mulher desde o dia 02 de Dezembro de 2007 e não tem filhos.
13.º 	Vive em casa da mãe e contribui para as despesas da casa desta.

14.º	Paga, a título de pensão de alimentos provisórios à sua mulher, a quantia mensal de € 350.
15.º	O arguido circula habitualmente com um veículo que tem 22 anos de existência.

16.º 	O arguido é licenciado em Ciências Sociais.

17.º	Nada consta do certificado de registo criminal do arguido.

1.2	Quanto a factos não provados com relevo para a boa decisão da causa, consignou-se a sua inexistência.

1.3	Para fundamentar a convicção do tribunal, mostra-se consignado o seguinte:

C) MOTIVAÇÃO

O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida, analisada na audiência de discussão e julgamento, valorada à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, designadamente:

Neste julgamento foram apresentadas duas versões contraditórias e incompatíveis entre si: a do arguido e a da ofendida.

O arguido N. prestou declarações e negou peremptoriamente que tenha desferido uma bofetada à ofendida, que alguma vez a tenha apelidado de burra e que lhe tenha apertado os pulsos. 

A ofendida ML afirmou que o marido lhe chamou “burra” três vezes, lhe deu uma bofetada e lhe apertou os pulsos.

Perante tais versões opostas, importa analisar criticamente tais depoimentos.

Efectivamente, quer o arguido quer a ofendida descreveram as circunstâncias em que tais factos ocorreram de forma globalmente coincidente. Efectivamente, o arguido afirmou que nunca lhe chamou burra. Disse que efectivamente houve um episódio, em Setembro de 2007, no período em que esteve a trabalhar em Angola. A mulher telefonou-lhe cinco vezes porque não conseguia ligar o ar condicionado e que ao quinto telefonema lhe disse algo no sentido “Mas é assim tão difícil perceber que tem que carregar no botão?” “é preciso tirar algum curso?”, referindo que a partir daí começou a dizer que lhe chamava “burra”. 
Quanto aos factos ocorridos no dia 2 de Dezembro de 2007, disse que nesse dia ela teve uma crise psicológica e queria que o arguido lhe comprasse um carro. Que na sequência da discussão sobre o carro a arguida pegou no computador que lhes pertencia e atirou-o ao chão, partindo-o. E porque a ofendida queria voltar a pegar no computador para o atirar pela janela, agarrou-a pelo ombro para a impedir de voltar a pegar nele. Logo de seguida, a ofendida dirigiu-se ao quarto e pegou no telemóvel, tendo o arguido agarrado a ofendida pelas mãos, durante breves segundos para lhe tirar o telemóvel, a fim de tentar evitar que ela o partisse. 

Salientou o arguido que a ofendida, durante a vida de casados, teve várias crises psicológicas e que as mesmas derivavam de algumas frustrações, designadamente do facto de não terem filhos e que ela procurava superá-las com a aquisição de bens materiais. Referiu que muitas discussões tinham origem na compra dos bens. Disse que no dia seguinte o arguido resolveu separar-se da mulher e foi para casa da mãe, estando separados desde então até ao dia de hoje.

A ofendida, por seu turno, descreveu a situação ocorrida no dia 2 de Dezembro de 2007, da seguinte forma: que já vinha desconfiando que o marido mantinha uma relação extra-conjugal, do que se apercebeu desde a viagem do marido a Luanda. Afirmou que desde então o marido passava os dias ao computador e ao telemóvel. Que nesse dia, cerca da 1h da manhã veio à cozinha beber um copo de água, olhou para o computador e decidiu acabar com tudo, razão pela qual partiu o computador. O arguido veio ter com ela à cozinha e quando viu o computador partido deu-lhe uma bofetada na face esquerda. Logo de seguida, a ofendida foi pegar novamente no computador para o atirar pela janela e o arguido impediu-a. Que a ofendida pegou na placa 3G do computador e queria parti-la, tendo o arguido agarrado nos seus pulsos e tirado a placa das suas mãos.

Mais referiu que já se lhe tinha dirigido, na altura em que o arguido estava na segunda missão, que teve lugar desde a Páscoa até ao dia 5 de Outubro, dizendo-lhe através de comunicação pelo computador “Não tens vergonha de ser tão burra?”. Chamou-lhe o termo de “burra” pelo menos três vezes, quando a ofendida lhe perguntava como é que fazia isto e aquilo. 

Salientou, no entanto, que foi a primeira vez que o marido lhe bateu.

Disse que o marido saiu de casa no dia seguinte e que ao aperceber-se que ele tinha ido embora, desmaiou e foi conduzida ao Hospital tendo sido encaminhada para a psiquiatria.

Ambos afirmaram que estavam casados há cerca de 20 anos e que ambos já se vinham desentendendo desde há algum tempo. A ofendida afirmou, ainda, que desde há algum tempo que havia muita intromissão por parte dos familiares directos do arguido na vida do casal. 

Depôs a testemunha A., mãe da ofendida, que afirmou que reside na casa situada imediatamente por baixo da dos arguido e ofendida. Que sempre se deu bem com o genro, a quem apoiou em muitas circunstâncias, designadamente, economicamente. 

Disse que no dia dos factos ouviu barulho em casa da filha, achou estranho e como tinha a chave foi lá ver o que se passava. Disse que quando o genro esteve em Angola, a sua filha e o marido falavam através da Internet e numa dessas ocasiões ouviu o genro dizer à mulher “Não sabes disto? É preciso tirar um curso? És mesmo burra.”

No dia 2 já estava deitada e ouviu um grande barulho. Depois percebeu que tinha sido a filha a atirar o computador ao chão. Chegou a casa da filha e eles tinham uma coisa na mão, que depois viu que era a net do computador, de seguida o genro apertou-lhe o pulso e tirou-lhe aquilo da mão. A filha quis sair de casa e mostrou a cara à mãe. A depoente diz que viu da filha vermelha e marcada com a mão. Logo de seguida foram à Polícia apresentar queixa.

Disse que nessa noite a filha dormiu na sua casa e que no dia seguinte constataram que o genro tinha tirado a roupa dele de casa e que se ia embora. A filha desmaiou e foi levada ao hospital, onde ficou internada. Disse que desde esse dia nunca mais viveram juntos.

Apesar de ser a mãe da ofendida, falou com objectividade, descreveu de forma segura o que viu, não empolou as situações, o que até seria natural que fizesse uma vez que se discutiam factos que antecederam a separação da sua filha. Afirmou que sempre acompanhou a vida do casal porque vivia na casa de baixo e porque esta é a sua única filha.

O tribunal considerou como verosímil a versão da ofendida porque, em primeiro lugar, o tribunal julgou credível o depoimento da mãe da ofendida, pela forma como depôs. Depois, apesar da emotividade evidenciada pela ofendida, compreensível por se tratar de factos relacionados com a sua separação, a forma circunstanciada como depôs tornam credível a sua versão.

Acresce que a ofendida também não procurou ocultar factos, assumindo que partiu o computador, que pretendia atirá-lo pela janela e que era, ainda sua intenção dar o mesmo destino à placa 3G da Vodafone. Efectivamente, a ofendida nada escondeu assumindo que o arguido apenas lhe chamou “burra” por três vezes e que esta foi a única vez que aquele lhe bateu.

Na verdade, apesar de ter resultado provado que o arguido é pessoa calma, cordata e paciente, certo é que, a personalidade evidenciada pela ofendida faz-nos acreditar que o arguido em algum momento, quiçá cansado de uma relação que vinha sendo pautado pelo desentendimento e por atitudes mais possessivas por parte da ofendida, se tenha descontrolado e desferido a bofetada depois de constatar que a ofendida partiu o computador e que agia de forma igualmente descontrolada, pois pretendia, ainda, atirar o computador pela janela.

Sejam ou não fundadas as imputações que a ofendida fez ao arguido, relativamente ao relacionamento extra-conjugal deste, o que é certo é que ela disso estava convencida e agiu com essa motivação, circunstâncias que também não ocultou.

Por outro lado, ainda, extrai-se dos depoimentos da ofendida e da mãe que, apesar da personalidade evidenciada por ambas, algo agitada e com uma certa obsessão em imputar ao arguido os comportamentos que ditaram a separação, e que vêm motivando o grande sofrimento da ofendida, ambas descreveram os factos que constituem o crime sem os empolar, enquadrando-os no contexto daquele dia, contexto este que o arguido também não negou.

A testemunha A. voltou a depor e confirmou que quando a filha estava a conversar com o marido na net ouviu-o a chamar “burra”. Foi confrontada com o facto de as ligações faladas serem muito difíceis, mas a testemunha acabou por afirmar que no momento em que o marido chamou burra à filha estava presente, fosse escrito e/ou falado e em face da credibilidade que se atribuiu aos seus depoimentos, esta nova inquirição em nada veio alterar a convicção do tribunal.

A testemunha P., colega e amigo do arguido veio descrever o modo como comunicavam para Portugal quando estavam em missão e salientou o facto de as comunicações faladas serem muito difíceis de estabelecer, ainda que não impossíveis. Não se questiona que assim seja, porém, essa circunstância não veio abalar o entendimento do tribunal sobre as circunstâncias deste caso. 

Depuseram como testemunhas abonatórias do arguido M., colega de profissão do arguido e amiga de ambos, S., sobrinha por afinidade do arguido e MC, colega do arguido desde 1992 e amiga de ambos, que de forma natural referiram-se ao arguido como sendo pessoa calma, ponderada, afável e prestável, donde a prova do facto 9.º.

Saliente-se que a última testemunha referiu também que após estes factos a ofendida a contactou, pedindo-lhe que intercedesse junto do arguido para voltar para casa e que estava disposta a perdoar-lhe o facto de a ter agredido. Mais referiu que o arguido à data disse-lhe que a queixa seria infundada e que por isso seria insustentável continuar a relação.

O tribunal, apoiado em todas estas circunstâncias, criticamente conjugadas de acordo com as regras da experiência comum e com a naturalidade das coisas julgou credível e sustentada a versão apresentada pela ofendida L. razão pela qual deu como provados os factos 1.º a 6.º. A nosso ver, cai por terra a versão do arguido de que a queixa apresentada teria como fundamento meramente uma vingança por parte da ofendida.

O tribunal considerou, ainda, os documentos de fls. 97 a 100, relativos a um episódio de urgência ocorrido no dia dos factos; a declaração da entidade patronal do arguido de fls. 78, donde a prova do facto 8.º; o assento de casamento de fls. 67.

O facto 10.º resultou da descrição dos factos que constituíram o casamento deste casal, feita quer pelo arguido quer pela ofendida, quer, ainda pela mãe da ofendida e, ainda, resultou evidenciado pelo modo como a própria depôs em tribunal.

O arguido quis falar sobre as suas condições sócio-económicas, o que fez de forma que ao tribunal mereceu credibilidade, donde a prova dos factos 11.º a 16.º.

Os antecedentes criminais extraem-se do certificado de registo criminal junto aos autos.

2.	Enquadramento legal.

2.1 - O arguido não se conforma com o facto de ter sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, com referência ao artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, na sua redacção actual, resultante da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro – que alterou a anterior redacção do artigo 152.º e introduziu o artigo 152.º-A, sob a epígrafe “maus tratos”.

O artigo 152.º, na sua actual redacção, sob a epígrafe “violência doméstica”, sanciona com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade ou ofensas sexuais, ao cônjuge ou ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, a progenitor de descendente comum em 1.º grau ou a pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ela coabite, sendo a pena agravada no respectivo limite mínimo se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.

Em termos, a incriminação pressupõe a existência de uma actuação dolosa do agente, segundo o disposto nos artigos 13.º e 14.º do Código Penal.

2.2	Nos termos dos artigos 124.º e 125.º do Código de Processo Penal, constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis, sendo admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.

Salvo quando a lei dispuser diferentemente – como ocorre nos casos de prova vinculada – o Tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção – artigo 127.º do Código de Processo Penal.

“Como uniformemente expendem os autores, livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova” – Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal”, Almedina, página 354, em anotação ao artigo 127.º.

“O princípio da livre apreciação da prova é direito constitucional concretizado. Ele não viola a CRP antes a concretiza (acórdão do TC n.º 1165/96, reiterado pelo acórdão n.º 464/97): “A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessário para uma efectiva motivação da decisão”.

O princípio tem, portanto, limites. A CRP e a lei estabelecem limites endógenos e exógenos ao exercício do poder de livre apreciação da prova. Esses limites dizem respeito (…) ao grau de convicção requerido para a decisão, (…) à proibição de meios de prova, (…) à observância do princípio da presunção da inocência, (…) à observância do princípio in dubio pro reo” – Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, páginas 329 e 330, em anotação ao mesmo artigo.

O limite normativo do princípio da livre apreciação da prova consubstancia-se no princípio “in dubio pro reo”, que impõe ao julgador que decida para além de toda a dúvida razoável, beneficiando o arguido sempre que, perante as provas disponíveis, exista dúvida séria acerca dos factos.

“O princípio in dubio pro reo consubstancia um princípio geral do direito processual penal (…). Trata-se da aplicação de uma regra de decisão (…). A aplicação deficiente desta regra, bem como a sua não aplicação são passíveis de controlo pelo STJ (…). Mas é importante que se note que este controlo não inclui as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e deveria ter tido (…), pois o princípio in dubio não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio in dubio não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto” – autor e obra anteriormente citados, página 341, em anotação ao artigo 127.º.

2.3	A sentença começa por um relatório ao qual se segue a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – artigo 374.º do Código de Processo Penal.

É permitido o recurso das sentenças; e, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida; e mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova – artigos 399.º a 410.º do Código de Processo Penal.

No ensinamento de Simas Santos e Leal-Henriques (“Recursos em Processo Penal”, 6.ª Edição, Editora Reis dos Livros, páginas 69 e seguintes), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher.

Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.

Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a «formulação incorrecta de um juízo» em que «a conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão» ”.

No ensinamento dos mesmos autores (obra citada, página 71), a contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão verifica-se quando se detecta “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”.

O erro notório na apreciação da prova consubstancia-se (autores e obra citados, página 74) em “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.

Erro notório, no fundo, é, pois, a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido).

Assim, não poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no artigo 127.º (…)”.

Nos casos em que a prova foi documentada, não se verificam as restrições antecedentes, quanto ao recurso relativo à matéria de facto, devendo o Tribunal da Relação proceder à audição ou visualização das passagens indicadas pelo recorrente e recorrido e de outras que julgue relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa – artigo 431.º do Código de Processo Penal.

3.	Deixaram-se enunciados, em momento anterior, os pressupostos da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal.

3.1	É pacífico que se trata de questão de conhecimento oficioso, importando averiguar se se verifica nos presentes autos.

A imputação da prática do crime ao arguido assenta em três factos essenciais, conforme resulta da sentença: o arguido disse à queixosa, no interior da residência do casal, em data indeterminada entre 12 de Abril e 10 de Outubro de 2007 e pelo menos por três vezes, que ela era “burra”; no dia 2 de Dezembro de 2007 e também no interior da residência do casal, por motivos relacionados com a quebra de um computador portátil pela queixosa, o arguido desferiu-lhe uma bofetada no lado esquerdo da face; nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou-lhe os pulsos.

Em princípio, relevam os factos descritos na acusação (ou no despacho de pronúncia, caso tenha havido instrução) – que, definindo o objecto do processo, deve conter, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada – artigos 283.º e 308.º do Código de Processo Penal.

Ao arguido é facultada a possibilidade de, além do mais, relatar factos que sejam relevantes para a apreciação da matéria em discussão, em sede de contestação – artigo 315.º do Código de Processo Penal.
A apreciação a fazer para determinar se ocorreu ou não a prática do crime assenta no elenco dos factos provados, cabendo ao tribunal proceder a todos os actos de produção de prova, mesmo que com prejuízo da ordem legalmente fixada para eles, sempre que o entender necessário para a descoberta da verdade, ordenando, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa – artigos 323.º, alínea a), e 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

A discussão da matéria de facto em audiência de julgamento assenta nos factos que integram as referidas peças processuais – acusação ou pronúncia e contestação. Sem prejuízo e no âmbito do princípio da investigação oficiosa, cabe ao tribunal promover as diligências que considerar relevantes e aditar os factos que resultem da discussão e que, obviamente, relevem para a decisão a proferir.

No caso dos autos, os factos antes mencionados como provados, sob os artigos 1.º a 6.º, resultam do que consta do despacho de pronúncia, a que foram aditados os factos 7.º a 10.º, referentes ao relacionamento do casal e caracterizando o arguido e a queixosa, e os factos 11.º a 17.º, referentes às condições económicas do arguido.

Conforme se vê na motivação e apesar do arguido, além de outras divergências pontuais, refutar ter chamado “burra” à queixosa, ter-lhe dado a bofetada e ter-lhe apertado os pulsos, há similitude de relato quanto às circunstâncias em que os factos ocorreram, quer o arguido quer a queixosa as descrevem “de forma globalmente coincidente”.

Da própria motivação resulta a existência de factos que se revelam determinantes para a correcta apreciação da matéria que se discute, incluindo a própria qualificação jurídica dos factos.

Assim, relativamente à matéria que integra o artigo 2.º dos factos provados e pese embora a divergência dos relatos no que diz respeito à efectiva utilização da palavra “burra”, é certo que a comunicação entre o arguido e a queixosa se estabeleceu através de computadores e pelo circuito internet, encontrando-se o arguido temporariamente em Angola e a queixosa no interior da casa que era então a residência do casal, no Entroncamento.

Quanto ao artigo 3.º e aos factos ocorridos em 2 de Dezembro de 2007, pese embora o facto do arguido refutar ter dado a bofetada à queixosa, é certo que, nos termos por esta relatados, tal ocorreu na sequência de ela própria ter destruído o computador portátil, atirando-o ao chão. No relato da queixosa, transcrito na sentença, “já vinha desconfiando que o marido mantinha uma relação extra-conjugal, do que se apercebeu desde a viagem do marido a Luanda. Afirmou que desde então o marido passava os dias ao computador e ao telemóvel. Que nesse dia, cerca da 1h da manhã veio à cozinha beber um copo de água, olhou para o computador e decidiu acabar com tudo, razão pela qual partiu o computador. O arguido veio ter com ela à cozinha e quando viu o computador partido deu-lhe uma bofetada na face esquerda”.

O relato do arguido confirma a destruição do computador, nos termos sumariados na sentença; os relatos são coincidentes quando afirmam que, depois de atirar o computador ao chão, a queixosa foi pegar novamente no mesmo para o atirar pela janela e o arguido impediu-a (agarrando-a pelo ombro, no relato deste e sempre nos termos sumariados na sentença).

Relativamente à matéria do artigo 4.º, aí se consigna que, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da queixosa. Esta, no seu próprio relato, transcrito na sentença, pegara entretanto na placa 3G do computador e queria parti-la, tendo o arguido agarrado nos seus pulsos e tirado a placa das suas mãos.

Os factos em questão, apesar de não constarem do despacho de pronúncia, foram objecto de discussão em audiência de julgamento, como se afirma expressamente na sentença recorrida e nos termos que aí se transcrevem de forma sumária.

Os mesmos afiguram-se imprescindíveis para a correcta apreciação da causa; a própria sentença recorrida se reporta a tais factos, na parte em que procede à “determinação da medida da pena”.

Contudo, para poderem ser validamente considerados, os factos em questão têm necessariamente que integrar o elenco dos factos provados; a sua omissão determina a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, nos termos e com as implicações que anteriormente se deixaram enunciadas.

Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio – artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estabelecendo o artigo 426.º-A a competência para novo julgamento.

Sem prejuízo de tais regras e do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3 do artigo 412.º ou se tiver havido renovação da prova – artigo 431.º do Código de Processo Penal.

No caso dos autos, além de constarem do processo todos os elementos de prova que lhe serviram de base, houve impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto; em tais circunstâncias, estando ao alcance deste tribunal da relação a possibilidade de modificação da matéria de facto, fica prejudicado o reenvio do processo para novo julgamento, pese embora a verificação do vício apontado.

3.2	O arguido, em sede de recurso, também suscita a existência, entre outros, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ainda que reportando-se a pressupostos diferentes – parágrafo D2, números 33 e seguintes, das conclusões de recurso.

É assim que o arguido, relativamente ao ponto 2.º dos factos provados, defende que “não podemos aceitar como suficiente para considerar sem sombra de dúvida provado que o mesmo apelidou a ofendida/testemunha de burra por pelo menos três vezes, pois nada consta a este respeito das declarações da sua mãe, expressas no texto da sentença, bem como porque das declarações da ofendida/testemunha que são demasiado vagas, até abstractas e não permitem por si só concluir sem qualquer dúvida pela prática deste facto por três vezes, referindo esta “Chamou-lhe o termo de “burra” pelo menos três vezes, quando a ofendida lhe perguntava como é que fazia isto e aquilo” não concretizando em que consistia o isto ou aquilo” (conclusão 44); e, no que respeita ao ponto 3.º, sustenta que as declarações da testemunha Amélia, “mesmo que se admita que a cara da ofendida/testemunha, estivesse vermelha e com a marca de uma mão não permitem, por si só, concluir que a autoria da referida marca se deveu a um acto praticado pelo recorrente” (conclusão 47); ou ainda, quanto aos pontos 5.º e 6.º, pretende que, “no que respeita à bofetada na face da ofendida e ao agarrar dos pulsos desta, consideramos não estar preenchido o elemento subjectivo do ilícito pois, resulta claramente da “Motivação” e do “Enquadramento jurídico-penal” da sentença que tudo se terá passado num momento de descontrolo da ofendida e do arguido” (conclusão 60).
As questões assim suscitadas pelo recorrente, pese embora a referência que faz à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, não integram o vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, configurando antes a sua discordância em relação à forma como o tribunal recorrido apreciou a prova produzida em audiência.

Ora, “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto tomada.

Para que exista aquele vício, é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão proferida, por se verificar uma lacuna no apuramento da matéria necessária para uma decisão de direito.

Não ocorre esse vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar.

A demonstração dessa insuficiência não pode emergir da mera discordância em relação à forma como o tribunal recorrido terá apreciado a prova produzida, pois aí poderá haver apenas erro de julgamento da matéria de facto” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Julho de 1998, processo n.º 436/98, citado por Simas Santos e Leal-Henriques (“Recursos em Processo Penal”, página 70).
Em tais circunstâncias, fica prejudicada, nesta parte, a argumentação do arguido.

No mesmo capítulo (D2) e quanto ao ponto 4.º dos factos provados, o arguido refuta que os mesmos preencham o tipo de ilícito constante no artigo 152.º do Código Penal. A questão assim suscitada também não se integra no vício que aqui se aprecia, configurando antes uma divergência quanto à qualificação jurídica – questão que, em momento ulterior, se apreciará.

4.	O arguido invoca ainda, no mesmo capítulo das conclusões de recurso, a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal.

A propósito do ponto 2.º dos factos provados e se bem se interpreta o entendimento do recorrente, este alega que “consta que entre 12 de Abril de 2007 e 10 de Outubro de 2007 no interior da residência do casal, o arguido disse à ofendida, pelo menos, por três vezes, que ela era “burra”, ora, nada consta do texto da sentença que permita concluir que o arguido se encontrava no interior da residência do casal nesse período (conclusão 34); aliás, no referido ponto 2.º dos “factos provados” consta que o facto ocorreu no período em que o arguido esteve em missão em Angola (conclusão 35); claro está que nada obsta a que o arguido se tenha deslocado nesse período a Portugal, que se tenha dirigido à residência comum do casal e lá tenha proferido as expressões pelas quais foi condenado (conclusão 36); sucede, no entanto, que o exposto na “Motivação” da sentença contradiz a decisão plasmada no referido ponto 2.º (conclusão 37); nunca se poderia ter considerado como provado que tais expressões foram proferidas no interior da residência do casal (conclusão 40).

Analisado o texto da sentença, verifica-se que a redacção do ponto 2.º dos factos provados é susceptível de interpretações contraditórias e de gerar a dúvida quanto às concretas circunstâncias em que ocorreram os factos.

Contudo, a leitura da motivação dos factos provados evidencia o alcance do texto em questão.


Na verdade, a sentença é expressa ao afirmar que “o tribunal considerou como verosímil a versão da ofendida (…), a forma circunstanciada como depôs tornam credível a sua versão (…) não procurou ocultar factos, assumindo que partiu o computador, que pretendia atirá-lo pela janela e que era, ainda sua intenção dar o mesmo destino à placa 3G (…), nada escondeu assumindo que o arguido apenas lhe chamou “burra” por três vezes e que esta foi a única vez que aquele lhe bateu”. É igualmente explícita ao consignar que a queixosa “referiu que já se lhe tinha dirigido, na altura em que o arguido estava na segunda missão, que teve lugar desde a Páscoa até ao dia 5 de Outubro, dizendo-lhe através de comunicação pelo computador “Não tens vergonha de ser tão burra?”. Chamou-lhe o termo de “burra” pelo menos três vezes, quando a ofendida lhe perguntava como é que fazia isto e aquilo” (texto igualmente transcrito pelo arguido na conclusão 38).

Perante estes elementos e nos termos que se deixaram mencionados em momento anterior, é pacífico que, relativamente à matéria que integra o artigo 2.º dos factos provados e pese embora a divergência dos relatos no que diz respeito à efectiva utilização da palavra “burra”, a comunicação entre o arguido e a queixosa se estabeleceu através de computadores e pelo circuito internet, encontrando-se o arguido em Angola e a queixosa no interior da casa que era a residência do casal, sita na Rua…, no Entroncamento, conforme consta do ponto 3.º.

Perante estes factos, fez-se a leitura que integra o ponto 2.º dos factos provados, traduzindo-se esta realidade em afirmações feitas “no interior da residência do casal”.

Se bem se aprecia a matéria em questão, havendo contradição, não se vê que a mesma seja insanável, perante os fundamentos que constam da motivação e que esclarecem o alcance do que se deixou vertido no ponto 2.º.

Por isso, também aqui fica prejudicada a argumentação do arguido, sem prejuízo de subsistir a apreciação a fazer nos termos anteriormente enunciados, a propósito da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – insuficiência que se traduz em omissão de factos relevantes para a correcta apreciação do comportamento do arguido e da qualificação jurídica dos respectivos actos. 

5.	Analisado o teor da sentença sob recurso, não se vê, nem é invocada, a existência de erro notório na apreciação da prova, vício a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal e que anteriormente se deixou caracterizado.

6.	A impugnação pelo arguido da sentença no que concerne aos pontos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º dos factos provados por, alegadamente, não terem resultado provados da prova produzida em sede de audiência de julgamento.

6.1	Nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, o Tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.

Deixou-se enunciado em momento anterior o alcance e as limitações de tais princípios.

É permitido o recurso em matéria de facto, sendo este irrestrito quando, como é o caso, a prova foi documentada. Ao recorrente impõe-se a observação de regras especiais. A este propósito e nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Penal, interposto recurso, a motivação enuncia especificamente os respectivos fundamentos e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda as normas jurídicas violadas [n.º 2, alínea a)], o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada [n.º 2, alínea b)] e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada [n.º 2, alínea c)].

Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados [n.º 3, alínea a)], as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida [n.º 3, alínea b)] e as provas que devem ser renovadas [n.º 3, alínea c)]. Quando as provas tenham sido gravadas (que é, actualmente, a regra), as especificações previstas nas alíneas b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

Esta última norma estabelece que, quando houver lugar a gravação magnetofónica ou audiovisual, deve ser consignado na acta o início e o termo da gravação de cada declaração.

É pacífico que, em princípio, não se trata aqui de proceder a um novo julgamento, pelo tribunal superior. Visa-se antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último, proceder à reponderação dos factos provados e não provados e da respectiva fundamentação, corrigindo-se no que for essencial e relevante os factos provados e não provados, colmatando-se erros de julgamento – que devem ser indicados pelo recorrente, sem perder de vista as regras processuais de produção e valoração da prova.

6.2	No caso dos autos, pretende o arguido que a prova produzida em audiência de julgamento não permite que se tenham por demonstrados os factos que integram os pontos 2.º a 7.º.

Especificamente no que diz respeito aos factos vertidos nos artigos 2.º a 4.º, a sua objecção assenta, no essencial, nos seguintes pressupostos: o arguido, prestando declarações em audiência de julgamento e fazendo-o de modo credível, refutou os factos aí enunciados, especificamente, que tenha chamado “burra” à queixosa, que lhe tenha dado uma bofetada na face e que lhe tenha agarrado os pulsos; a queixosa e a testemunha A., sua mãe, prestaram depoimentos contraditórios, pouco credíveis, sendo a primeira caracterizada na sentença recorrida como pessoa que aparenta um carácter possessivo e algo instável, imputando ao arguido os comportamentos que ditaram a separação.

O arguido transcreve trechos das declarações por si prestadas e dos depoimentos das testemunhas, com o intuito de confirmar as razões invocadas.

Feita a análise dos elementos transcritos, verifica-se que os mesmos foram considerados na sentença recorrida, onde se dá conta da existência do relato contraditório do arguido e das aludidas testemunhas e se explicitam as razões que levaram o tribunal a acolher a descrição dos factos feita pela queixosa – nos termos que em momento anterior se deixaram transcritos.

Salienta-se a este propósito que a queixosa evidenciou no respectivo depoimento que não procurou ocultar factos, assumindo que partiu o computador, que pretendia atirá-lo pela janela e que era ainda sua intenção dar o mesmo destino à placa 3G da Vodafone; salienta-se ainda que, apesar da personalidade evidenciada por ambas, algo agitada e com uma certa obsessão em imputar ao arguido os comportamentos que ditaram a separação, a queixosa e sua mãe descreveram os factos ocorridos em 2 de Dezembro sem os empolar, enquadrando-os no contexto daquele dia, contexto este que, apesar de divergências pontuais, o arguido também não negou.

Em termos mais genéricos e conforme se extrai igualmente da sentença, quer o arguido quer a queixosa, apesar dos elementos contraditórios, descreveram as circunstâncias em que os factos ocorreram de forma globalmente coincidente.

Conclui-se que o tribunal, apoiado em todas as circunstâncias enunciadas, criticamente conjugadas de acordo com as regras da experiência comum e com a naturalidade das coisas, julgou credível e sustentada a versão apresentada pela queixosa, razão pela qual deu como provados os factos 1.º a 6.º.
Os factos que aqui se discutem ocorreram em circunstâncias restritas e espaço fechado, sem o acesso de terceiros; este facto não pode deixar de ser ponderado ao aferir a credibilidade do relato dos intervenientes; na ausência de elementos consistentes que ponham em causa a credibilidade do relato da queixosa, não pode deixar de prevalecer o seu relato.

Nos termos anteriormente apontados, o elemento determinante foi o depoimento prestado pela queixosa, complementado pelo da testemunha A., sua mãe.

O recurso de facto em análise radica essencialmente no entendimento do recorrente de que a sua versão dos factos é que é merecedora de credibilidade, e não a versão oposta que veio a ser acolhida na sentença, pretendendo o mesmo substituir a convicção alcançada pelo tribunal recorrido com base na valoração que fez sobre determinados meios de prova, à sua própria convicção fundada, obviamente, na valoração que fez dos mesmos meios de prova.

Mas foi o tribunal recorrido quem beneficiou da imediação da prova. Foi pois ele quem pôde avaliar a forma como cada interveniente prestou as suas declarações e depoimentos, a forma como se expressou e reagiu aos sucessivos estímulos para, a final, aferir do grau de credibilidade que cada um lhe mereceu. E foi isso o que o tribunal recorrido fez, explicando as razões que o levaram a tal.

Ponderados as declarações prestadas pelo arguido e os depoimentos da queixosa e de sua mãe e pese embora a existência de elementos contraditórios no depoimento desta, particularmente no que concerne às circunstâncias em que o arguido chamou “burra” à queixosa e a pormenores referentes às circunstâncias em que observou na cara de sua filha a marca compatível com uma bofetada, a que poderá não ser estranho o tempo entretanto decorrido, não se vê que sejam apontados elementos consistentes para desacreditar o relato da queixosa e para questionar a decisão do tribunal, não bastando para esse efeito a discordância do arguido quanto aos fundamentos de convicção do tribunal.

O facto da queixosa, no âmbito do artigo 4.º dos factos provados, confirmando que o arguido a agarrou nos pulsos, ter pormenorizado imediatamente de seguida que ele lhe fez “uma técnica qualquer que há” para que ela abrisse as mãos e lhe tirasse a placa que agarrava e que se propunha estragar (cf. transcrição do recorrente na motivação de recurso, fls. 16), ou da testemunha A. ter referido que o arguido “tanto andou que ele apertou-lhe o pulso e ela teve que abrir a mão e ele ficou com aquilo na mão dele (cf. transcrição do recorrente na motivação de recurso, fls. 17), não prejudica o facto vertido nesse artigo – que o arguido, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, agarrou os pulsos da queixosa.

Conclui-se então nesta parte – relativamente aos artigos 2.º a 4.º dos factos provados – que não procedem as razões afirmadas pelo recorrente ao procurar contrariar a fundamentação de facto da decisão recorrida.

Isso sem prejuízo da ponderação que se efectuará em momento ulterior e consequente alteração da matéria de facto, suprindo a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos anteriormente enunciados e ao abrigo do disposto nos artigos 410.º e 431.º do Código de Processo Penal.  

Especificamente no que diz respeito aos factos vertidos nos artigos 5.º e 6.º, a sua objecção assenta, no essencial, nos seguintes pressupostos: mesmo a admitir-se que apelidou a queixosa de “burra”, tal comportamento não passou de mero desabafo, à semelhança do que ocorre na grande maioria das casas de famílias portuguesas, em que marido e mulher chamam “burro(a)” um ao outro, ou outras expressões semelhantes, sem que com isto pretendam ofender a honra ou a dignidade do outro; ao admitir-se o estado descontrolado do arguido nunca se poderá concluir que o mesmo agisse com dolo, que tivesse a intenção de ofender a integridade física, mormente de lhe provocar dor, marcas ou qualquer outro dano, pois um acto descontrolado é um acto desprovido de consciência, não existindo neste qualquer reflexão.

A este propósito, importa começar por salientar que se desconhece se, “na grande maioria das casas de famílias portuguesas”, marido e mulher chamam “burro(a)” um ao outro, não se mostrando tal facto comprovado no processo nem se evidenciando que se trate de facto notório.

De qualquer modo, esse facto não retira ao arguido a consciência do seu significado e alcance e não prejudica uma actuação intencional.

Quanto ao alegado descontrolo, é certo que se afirma na sentença recorrida que é admissível que o arguido em algum momento, quiçá cansado de uma relação que vinha sendo pautado pelo desentendimento e por atitudes mais possessivas por parte da ofendida, se tenha descontrolado e desferido a bofetada depois de constatar que a ofendida partiu o computador e que agia de forma igualmente descontrolada, pois pretendia, ainda, atirar o computador pela janela.

Importa começar por salientar que esta afirmação pretende justificar um comportamento do arguido que não é conforme ao seu comportamento habitual, caracterizado como pessoa calma, cordata e paciente. Por outro lado, um “comportamento descontrolado” não determina necessariamente e de forma absoluta uma falta de consciência que justifique falta de capacidade de percepção dos actos, do seu alcance e das suas implicações. O facto em questão – as concretas circunstâncias em que o arguido agiu – não é inócuo e tem seguramente relevância em outra sede: foi assim que, na sentença recorrida, se ponderaram positivamente para o arguido, no que concerne à determinação da medida da pena. Não justifica, no entanto, a ausência de dolo.

Por isso também aqui se conclui que não procedem as razões afirmadas pelo recorrente ao procurar contrariar a fundamentação de facto da decisão recorrida.

Finalmente, quanto ao que consta do artigo 7.º dos factos provados, pretende o arguido que também aqui não se fez prova de tal facto; o mesmo não resulta das declarações da queixosa nem do depoimento prestado por sua mãe – que, de qualquer forma, não deveria ter sido considerado credível.

A este propósito, afirma-se na sentença recorrida – mencionando parte das declarações prestadas pelo arguido – que este salientou que a ofendida, durante a vida de casados, teve várias crises psicológicas e que as mesmas derivavam de algumas frustrações, designadamente do facto de não terem filhos e que ela procurava superá-las com a aquisição de bens materiais. Referiu que muitas discussões tinham origem na compra dos bens. Em momento ulterior, refere-se que ambos (arguido e queixosa) afirmaram que estavam casados há cerca de 20 anos e que ambos já se vinham desentendendo desde há algum tempo. A ofendida afirmou, ainda, que desde há algum tempo que havia muita intromissão por parte dos familiares directos do arguido na vida do casal.

Não se afigura que o depoimento da testemunha A., nos termos transcritos pelo arguido em sede de motivação de recurso – ao afirmar em sede de inquérito (em auto que foi lido em audiência) que a relação do casal foi muito boa até ao Verão de 2007 e que não tem conhecimento de outra desavença e ao afirmar em audiência que eles nos primeiros anos foram muito felizes e que a certa altura a coisa começou a andar para trás – configure elemento relevante para contrariar a conclusão do tribunal, nos termos antes expostos e que levou à afirmação do que consta no artigo 7.º dos factos provados.

7.	A alegada violação do princípio “in dubio pro reo”.

7.1	Neste capítulo, o arguido suscita também a verificação dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto e de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

Os vícios assim referenciados estão previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Em momento anterior, procedeu-se à apreciação desta matéria (cf. pontos 3.2 e 4.), reiterando-se aqui o que então se afirmou e as respectivas conclusões.

7.2	Em momento anterior, deixaram-se sumariamente enunciados os pressupostos do princípio “in dubio pro reo” – que se consubstancia como limite normativo do princípio da livre apreciação da prova e que impõe ao julgador que decida para além de toda a dúvida razoável, beneficiando o arguido sempre que, perante as provas disponíveis, exista dúvida séria acerca dos factos.

Como aí também se mencionou, este controlo não inclui as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e deveria ter tido, não se aplicando quando o tribunal não tem dúvidas e não servindo para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.

Não resulta de tal princípio que a simples existência de versões diferentes e até contraditórias sobre factos relevantes imponha a prevalência da dúvida.

A preterição deste princípio pressupõe a existência de dúvida por parte do julgador, só podendo ser afirmada quando decorrer do texto da decisão recorrida que o tribunal, na dúvida, decidiu contra o arguido.

Pretende o recorrente que o tribunal recorrido não aplicou o aludido princípio face às reticências e dúvidas suscitadas pelas contradições das declarações prestadas pelo arguido e dos depoimentos das testemunhas L. e A.

A existência de algumas contradições nos depoimentos é assumida na sentença recorrida, como antes se deixou mencionado, bem como a existência das versões opostas do arguido e da queixosa.

Apesar disso, o tribunal recorrido firmou convicção quanto aos factos que julgou provados, fixando os mesmos e justificando a sua convicção em sede de motivação.

Como antes se assinalou, não se vê que haja fundamento consistente para contrariar a conclusão do tribunal recorrido 

Por isso, também aqui improcede o recurso.

8. A superação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

8.1 - Conforme anteriormente se deixou mencionado, a sentença sob recurso padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que justificaria a remessa para novo julgamento.

Contudo, nos termos do artigo 431.º do Código de Processo Penal e sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3 do artigo 412.º ou se tiver havido renovação da prova. No caso dos autos, além de constarem do processo todos os elementos de prova que lhe serviram de base, houve impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto; em tais circunstâncias, é admissível a modificação da matéria de facto, ficando prejudicado o reenvio do processo para novo julgamento.

A modificação em causa reporta-se aos artigos 2.º, 3.º e 4.º dos factos assentes e consubstancia-se na pormenorização das circunstâncias em que ocorreram os factos já aí mencionados, com relevância para a adequada decisão, conforme se deixou anteriormente referido.

8.2 - No artigo 2.º dos factos provados consta que, em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante o período em que o arguido esteve em Missão em Angola, desde 12 de Abril de 2007 até 10 de Outubro de 2007, no interior da residência do casal, o arguido disse à ofendida, pelo menos, por três vezes, que ela era “burra”.

Conforme consta da sentença, ao sumariar o relato da queixosa, esta referiu que o arguido estava na sua segunda missão e que comunicavam entre si através de computador, sendo esclarecido pelo depoimento da testemunha P. nos termos também sumariados na sentença recorrida, o modo como habitualmente eram feitos os contactos.

Em algumas dessas comunicações, a queixosa indagava o arguido sobre o modo como deveria proceder em algumas situações (nos termos que constam da sentença, perguntava-lhe “como é que se fazia isto e aquilo”).

A queixosa relatou que, nessas comunicações, perguntou por vezes ao arguido como deveria proceder em relação a “assuntos que ficaram cá por minha conta” e dado que “ele é que tratava de tudo” (cf. transcrição feita pelo arguido, a fls. 6 da motivação de recurso).

O próprio arguido afirmou em audiência que, em Setembro de 2007, no período em que esteve a trabalhar em Angola, a queixosa lhe telefonou cinco vezes porque não conseguia ligar o ar condicionado; afirmou ainda que, ao quinto telefonema lhe disse algo no sentido “Mas é assim tão difícil perceber que tem que carregar no botão?” e “É preciso tirar algum curso?”.

A queixosa confirmou que, no âmbito de contactos assim estabelecidos e por comunicação escrita, dadas as dificuldades de comunicação verbal, o arguido lhe indagou se seria preciso tirar um curso, afirmando ainda duas, três vezes, se era “burra”.

Os relatos em questão esclarecem as circunstâncias em que o arguido, dirigindo-se à queixosa, lhe chamou “burra”, bem como o modo como comunicavam entre si.

É relevante a inclusão de tais elementos no artigo em apreciação.

Assim, o artigo 2.º dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

“2.º-A – O arguido esteve em missão em Angola, desde 12 de Abril de 2007 até 10 de Outubro de 2007, período durante o qual o arguido e a queixosa comunicavam entre si através de computador, encontrando-se a queixosa no interior da residência do casal.

2.º-B – Em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante esse período e numa dessas comunicações, o arguido, questionado pela queixosa em relação a dúvidas que esta tinha sobre o modo como deveria proceder, disse-lhe se seria preciso tirar um curso, afirmando, por três vezes, que ela era “burra”.

8.3 - No artigo 3.º dos factos provados consta que, no dia 2 de Dezembro de 2007, pelas 01h15, no interior da então residência do casal, sita na Rua…, no Entroncamento, área desta cidade e comarca, por motivos relacionados com a quebra de um computador portátil pela ofendida, o arguido desferiu uma bofetada no lado esquerdo da face da ofendida.

A este propósito e como consta da sentença recorrida, a queixosa afirmou que vinha desconfiando que o marido mantinha uma relação extra-conjugal, do que se apercebeu desde a viagem do marido a Luanda; afirmou que desde então o marido passava os dias ao computador e ao telemóvel; que nesse dia, cerca da 1 hora da manhã veio à cozinha beber um copo de água, olhou para o computador e decidiu acabar com tudo, razão pela qual partiu o computador. O arguido veio ter com ela à cozinha e quando viu o computador partido deu-lhe uma bofetada na face esquerda. Logo de seguida, a queixosa foi pegar novamente no computador para o atirar pela janela e o arguido impediu-a.

O relato do arguido não confirma a existência da aludida suspeita e afirma que a queixosa tinha crises psicológicas, o que então ocorria, pretendendo que lhe comprasse um carro, sendo esta – de acordo com o seu relato – a origem de discussão entre ambos; os relatos não são aqui concordantes; o arguido, apesar de refutar ter desferido qualquer bofetada, confirma no entanto as razões imediatas que o levaram a abordar a queixosa: esta pegou no computador que lhes pertencia e atirou-o ao chão, partindo-o; e porque a mesma queria voltar a pegar no computador para o atirar pela janela, agarrou-a pelo ombro para a impedir de voltar a pegar nele.

Os elementos concordantes nos relatos do arguido e da queixosa evidenciam que o comportamento do arguido ocorreu na sequência da quebra do computador pela queixosa.

Também aqui se mostra relevante a inclusão pormenorizada de tais elementos no artigo em apreciação.

Assim, o artigo 3.º dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

“3.º-A – No dia 2 de Dezembro de 2007, pelas 01h15, no interior da então residência do casal, sita na Rua …, no Entroncamento, área desta cidade e comarca, a queixosa veio à cozinha, verificando que aí se encontrava o computador portátil usado pelo arguido.

3.º-B – Porque vinha desconfiando que o arguido mantinha relação extra-conjugal desde a viagem a Luanda, para cujo contacto usava o computador, pegou no mesmo e atirou-o ao chão, assim o partindo.

3.º-C – Apercebendo-se do barulho, o arguido veio ter à cozinha e, vendo o computador partido, desferiu uma bofetada na face esquerda da queixosa.

3.º-D – Posteriormente, segurou-a para a impedir de atirar o computador pela janela de casa”.

8.4	No artigo 4.º dos factos provados consta que, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da ofendida, sem que se mostrem esclarecidas as razões de tal procedimento.

O relato da queixosa esclarece que esta, depois do episódio antecedente, com o computador, pegou na placa 3G do mesmo e queria parti-la, tendo o arguido agarrado nos seus pulsos e tirado a placa das suas mãos.

O arguido, divergindo no objecto em questão (afirma que o objecto que a queixosa pegou foi um telemóvel) e no facto de a ter agarrado pelos pulsos, afirma que a agarrou pelas mãos, durante breves segundos, para lhe tirar o telemóvel, a fim de tentar evitar que ela o partisse.

Assim fica esclarecida a razão pela qual o arguido agarrou a queixosa, sendo a mesma relevante para a decisão.

Pelas razões enunciadas em sede de sentença quanto à credibilidade do relato da queixosa, relativamente às quais não se vê fundamento para divergir, acolhe-se aqui o mesmo.

Assim, o artigo 4.º dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

“4.º	Ainda nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da ofendida, para a impedir de partir uma placa 3G do computador, vindo a tirá-la das suas mãos”.

9.	A alegada violação dos artigos 152.º do Código Penal e 13.º, n.º 2 e 18.º, n.º 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.

9.1 - O recorrente pretende que, ao interpretar o artigo 152.º no sentido em que o fez, a sentença recorrida violou o artigo 18.º da Constituição: ao admitirmos ter o referido artigo 152.º como ratio a protecção de homens/mulheres que eventualmente possam vir a ser vítimas de maus tratos, admite a norma constitucional a restrição do direito fundamental “liberdade” em benefício da salvaguarda do direito fundamental “integridade física e psicológica” em que esta é atacada de forma gratuita e com vista a maltratar alguém que se encontra numa situação fragilizada. Sucede que no caso concreto não existe qualquer situação de fragilidade da vítima, nem sequer podemos admitir existir aqui violência gratuita.

O artigo 13.º da Constituição, consagrando o princípio da igualdade, estabelece que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei [n.º 1] e que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual [n.º 2].

O artigo 18.º estabelece que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas [n.º 1]; a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos [n.º 2]; as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais [n.º 3].

Relativamente ao crime de maus-tratos e na parte que aqui interessa, o artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção que vigorou até 14 de Setembro de 2007, introduzida pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio e anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, sancionava com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não fosse punível pelo artigo 144.º, quem infligisse ao cônjuge, ou a quem com ele convivesse em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos.

Eram várias as condutas a que se reportava a norma, incluindo os maus-tratos físicos, como as ofensas corporais, maus-tratos psíquicos, como humilhações e provocações, passando por um amplo leque de situações susceptíveis de integrar os maus-tratos.

Na vigência desta norma era discutido o respectivo alcance, remontando esta controvérsia à redacção inicial do Código Penal aprovado pelo Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, especificamente, ao seu artigo 153.º, com a epígrafe “maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges”.

Alguns autores defendiam que a autonomização deste crime pressupunha uma prática reiterada das condutas que o consubstanciavam, não se bastando com a prática de actos pontuais. Também a existência de um tempo longo entre os dois ou mais dos referidos actos afastava o elemento reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, volume I, página 334, em anotação ao artigo 152.º, subscrita por Américo Taipa de Carvalho).

Outros autores salientavam que a qualificação de um comportamento como mau trato ou tratamento cruel “deverá depender mais de uma certa medida de “gravidade traduzida por crueldade, insensibilidade e até vingança” da conduta, do que da reiteração dos comportamentos havidos, que poderá inclusivamente não estar presente. (…) Um dos critérios de valoração global da acção que poderá ser útil para decidir da coincidência entre a conduta e o sentido do tipo legal de crime é a adequação social”, pretendendo-se com isto dizer que “onde o sentido social da conduta formalmente abrangida pelo tipo não é aquele a que o legislador se quis referir, o tipo não está materialmente preenchido”, o que “sucederá frequentemente no caso de condutas bagatelares (…), mas também, e uma vez que a adequação social não está dependente ou vinculada a um critério de dimensão da lesão mas de uma valoração geral da conduta, no caso de lesões de certa intensidade, sempre que elas pela sua natureza, pela razão que as justificou (…), pelos motivos do agente e até pelas relações existentes entre as pessoas, não possam ser qualificadas como crime” (“Acerca da fronteira entre o castigo legítimo de um menor e o crime de maus tratos do artigo 152.º do Código Penal”, Maria Paula Ribeiro de Faria, “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 16, n.º 2, Abril/Junho de 2006, páginas 330 e 332).

Esta diversidade de entendimentos reflectia-se na jurisprudência.

Em acórdão proferido em 26 de Outubro de 2004, no processo 3988/2004-5, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, disponível em www.dgsi.pt, entendeu-se que “o âmbito de punição do crime de maus tratos a cônjuge implica que se verifiquem, de forma reiterada, comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge ou da pessoa a este equiparada, comportamentos esses que podem ser de várias espécies desde maus tratos físicos a maus tratos psíquicos tais como humilhações, provocações e ameaças mesmo que não configuradoras do crime de ameaças. Protege-se o bem jurídico saúde como bem complexo que abrange a saúde física e psíquica. Agressão física, ameaça de morte e proibição de acesso à garagem, à caixa de correio e de utilização do veículo automóvel são comportamento que, actuando o agente com dolo, preenchem o tipo de crime de maus-tratos a cônjuge”.

Mas, em 29 de Janeiro de 2003, afirmava-se em acórdão proferido pela Relação de Coimbra, no processo 3827/2002 e disponível na mesma base de dados, que não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge; o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade da vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.

A matéria referente a esta incriminação foi entretanto objecto de alteração pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro; este diploma legal alterou a redacção do artigo 152.º – que, conforme se deixou antes enunciado, sob a epígrafe “violência doméstica”, sanciona agora com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade ou ofensas sexuais, ao cônjuge ou ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, a progenitor de descendente comum em 1.º grau ou a pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ela coabite, sendo o limite mínimo da pena agravado para dois anos se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.

Em termos subjectivos e em qualquer dos casos, a incriminação pressupõe a existência de uma actuação dolosa do agente, segundo o disposto nos artigos 13.º e 14.º do Código Penal.

A prática do crime exige sempre uma conduta anti-jurídica, através da ofensa de um interesse penalmente tutelado, bem como a responsabilização do seu autor. A ilicitude do facto pressupõe um juízo de reprovação da ordem jurídica relativamente a este, incidindo a culpabilidade sobre o agente que praticou o facto ilícito objectivamente considerado e traduzindo-se num juízo de reprovação, de censura. A responsabilização penal do agente não se basta então com a atribuição a este do facto ilícito, através de um nexo de causalidade, sendo ainda necessário fixar as relações entre a vontade do agente e o facto, como pressuposto da imputação psíquica e pressuposto indispensável de responsabilidade penal.

Salienta-se que a norma em questão, na sua actual redacção e ultrapassando a polémica antes referida, vem explicitamente afirmar que a incriminação se verifica quando os factos caracterizadores ocorram de modo reiterado ou não.

Contudo, se bem se interpreta a lei e na parte que aqui interessa, não se pretendeu, com a alteração efectuada ao artigo 152.º pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, subsumir a esta norma todo e qualquer acto de agressão entre cônjuges ou ex-cônjuges, de modo a que deixe de ser configurável, entre tais intervenientes, a incriminação do artigo 143.º do Código Penal (ofensa à integridade física simples).

Já em 14 de Novembro de 1997, o Supremo Tribunal de Justiça afirmava que só as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja, traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente é que cabem na previsão do artigo 152.º do Código Penal (Colectânea de Jurisprudência – STJ, tomo 3/1997, página 235). Este acórdão, proferido antes da actual redacção da norma, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, é duplamente relevante: por um lado, quando esclarece a divergência antes mencionada e afirma que “o artigo 152.º do Código Penal, no seu número 2, pune a actuação de quem infligir ao cônjuge maus tratos físicos ou morais, e a sua redacção teve como propósito a eliminação de algumas dúvidas que doutrinariamente tinham surgido na interpretação do artigo 153.º do Código Penal de 1982, e que conduziram a ter-se discutido se, no crime de maus tratos a cônjuge, fazia ou não parte do tipo uma certa habitualidade ou repetição de condutas ofensivas da integridade física ou moral do consorte ofendido, embora, a final, se tivesse fixado a jurisprudência no sentido de que, mesmo com a redacção de 1982, a referida figura criminal se poderia verificar com uma única conduta agressiva, desde que a sua gravidade intrínseca a pudesse fazer qualificar como tal.

A actual redacção (leia-se, a redacção vigente em 1997), por consequência, mais não significa, no caso concreto, do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos”; por outro lado, quando salienta que “não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152.º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente”.

As alterações introduzidas no artigo 152.º pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, vieram consolidar este entendimento.

A consulta das actas da Unidade de Missão para a Reforma Penal, disponíveis em http://www.mj.gov.pt/sections/newhome/actas-da-unidade-de, não é particularmente esclarecedora. Evidencia-se no entanto, das actas 12 e 14, que se pretendeu, essencialmente, distinguir as diferentes incriminações que, integrando antes uma única norma, o artigo 152.º, passaram a constituir os artigos 152.º (violência doméstica), 152.º-A (maus tratos) e 152.º-B (violação de regras de segurança).

Entretanto, em comunicação proferida nas Comemorações do dia da Mulher, promovidas pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas e disponível em http://www.apmj.pt/blog/?page_id=229, o Prof. Rui Pereira, coordenador da aludida Unidade de Missão para a Reforma Penal, esclareceu que “os maus-tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus-tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa”. Em nota de rodapé salienta-se que “hoje, não há jurisprudência uniforme quanto a este ponto. O melhor entendimento indica que o crime pode ser cometido numa só ocasião, se, por exemplo, o agente der “uma tareia” à vítima. Cf., já neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Outubro de 1996, CJ, Acs. STJ, IV, t. 3, p. 170”.

Na mesma comunicação esclarece-se que, “no crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges. 

A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, desde que não lhes caiba pena mais grave. Introduz-se ainda uma agravação do limite mínimo da pena (de um para dois anos de prisão), no caso de o facto ser praticado contra menores, na presença de menores ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente”. 

Analisados os termos da lei e ponderados os elementos que se deixam expostos, reitera-se que a actual configuração do crime de violência doméstica, não exigindo comportamentos reiterados, pressupõe comportamento que se possa qualificar como maus tratos, o que não ocorre com qualquer agressão; sem se pretender branquear os comportamentos de violência doméstica e a gravidade dos mesmos na vida em sociedade e desvalorizar ou esvaziar de conteúdo útil a disposição do artigo 152.º, mas também sem reconduzir à mesma todo e qualquer acto de agressão entre cônjuges ou ex-cônjuges, entende-se que a configuração do crime pressupõe a existência de maus tratos físicos e psíquicos, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, actos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.

Em recente acórdão, proferido em 28 de Janeiro de 2010, no âmbito do processo n.º 61/07.0GCPBL.C1, disponível em www.dgsi.pt, também o Tribunal da Relação de Coimbra concluiu que não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal; não comete o crime previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1,alínea a), mas o previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, ambos do Código Penal, quando apenas resulta provado que num determinado dia o arguido colocou com força a mão na zona do pescoço da assistente e que, por essa forma lhe causou lesões.

9.2	Confrontando o que se deixa exposto com a matéria de facto dos presentes autos, logo avulta que é incorrecta a qualificação feita na sentença recorrida, ao considerar que o comportamento do arguido configura a prática de um crime de violência doméstica. 

No essencial, estão em causa os factos ocorridos em 2 de Dezembro de 2007, especificamente, o facto de, nesse dia, o arguido ter desferido uma bofetada na cara da queixosa e ter-lhe agarrado os pulsos.

É certo que tais factos se verificaram e que ocorreram no interior da casa onde então viviam o arguido e a queixosa, casados desde 9 de Agosto de 1986.

Contudo, a correcta qualificação dos factos exige que se considere o respectivo enquadramento, as concretas circunstâncias em que o arguido agiu. E a esse propósito, sabe-se que nesse dia, pela 1 hora e 15 minutos, no interior da então residência do casal, a queixosa veio à cozinha, verificando que aí se encontrava o computador portátil usado pelo arguido; porque vinha desconfiando que o arguido mantinha relação extra-conjugal desde a viagem a Luanda, para cujo contacto usava o computador, pegou no mesmo e atirou-o ao chão, assim o partindo; apercebendo-se do barulho, o arguido veio ter à cozinha e, vendo o computador partido, desferiu uma bofetada na face esquerda da queixosa; posteriormente, segurou-a para a impedir de atirar o computador pela janela de casa. Ainda nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da ofendida, para a impedir de partir uma placa 3G do computador, vindo a tirá-la das suas mãos.

Importa começar por salientar que, relativamente a este último facto – o arguido agarrou os pulsos da queixosa – não se vê que configurem, com inteira propriedade, um acto de agressão, tendo em conta as concretas razões que determinaram o arguido a tal procedimento e o facto de não se evidenciar que daí tenha resultado efectiva lesão para a queixosa. Esta conclusão é extensível ao facto do arguido ter, posteriormente, segurado a queixosa para a impedir de atirar o computador pela janela de casa.

A conclusão não é a mesma no que concerne à bofetada desferida pelo arguido: é certo que estamos perante agressão física que as circunstâncias do caso não justificam e que se traduz na prática de acto ilícito.

Contudo, não pode extrair-se daqui que estejamos perante comportamento que configure maus-tratos por parte do arguido sobre a respectiva cônjuge. Na verdade, sem se justificar tal procedimento, as concretas circunstâncias em que o arguido agiu não evidenciam um comportamento cruel ou insensível ou uma intenção perversa por parte do arguido, apresentando-se antes como uma resposta – censurável, é certo – ao procedimento da queixosa.

Esta conclusão não é contrariada pelo facto de se demonstrar que, nos períodos de tempo que antecederam os factos, o arguido e a queixosa vinham tendo um mau relacionamento entre si, desentendendo-se frequentemente. Por um lado, não se evidencia daqui que sejam de imputar ao arguido (ou apenas ao arguido) os desentendimentos verificados; por outro lado, desconhecem-se os concretos termos em que se traduziam tais desentendimentos, nomeadamente, que se traduzissem em actos de agressão física ou psicológica por parte do arguido em relação à queixosa.

Também aqui não releva o facto do arguido, em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante o período em que esteve em missão em Angola, desde 12 de Abril de 2007 até 10 de Outubro de 2007 e em que comunicava com a queixosa através de computador, questionado pela queixosa em relação a dúvidas que esta tinha sobre o modo como deveria proceder, lhe tenha dito se seria preciso tirar um curso, afirmando, por três vezes, que ela era “burra”. Sem prejuízo de se poder qualificar esta afirmação como injuriosa e sem se pretender vulgarizar a mesma, sob o pretexto de que resulta das regras do senso comum que, “na grande maioria das casas de família portuguesas, marido e mulher chamam “burro(a)” um ao outro em diversas ocasiões da vida conjugal sem que com isto se pretendam ofender a honra ou dignidade do outro, não passando a maioria das vezes de meros desabafos”, não se vê que tenha a gravidade necessária para a caracterização de uma situação de maus tratos psíquicos.

Conclui-se então que o comportamento do arguido configura a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º do Código Penal – e não de um crime de violência doméstica, com referência ao artigo 152.º do mesmo diploma legal e pelo qual vinha pronunciado – incorrendo, pela prática do mesmo, em pena de prisão de um mês até três anos ou pena de multa de dez a 360 dias (artigos 143.º, 41.º e 47.º do Código Penal).

Confrontando o que se deixa exposto com os princípios constitucionais dos artigos 13.º e 18.º da Constituição, não se vê que ocorra violação dos princípios da igualdade ou da proporcionalidade.

É certo que se altera aqui a qualificação dada aos factos pelo tribunal recorrido, por se considerar ter existido erro de qualificação; mas em tais circunstâncias, perante a qualificação que se julga correcta, mostram-se prejudicadas outras considerações quanto à alegada inconstitucionalidade.

10. Alegada violação de normas jurídicas.

O recorrente pretende que a sentença violou os artigos 14.º, 31.º e 34.º do Código Penal e 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

A primeira das referidas normas – que anteriormente se deixou transcrita – define as diferentes modalidades de dolo, integrando-se os artigos 31.º e 34.º no capítulo das causas que excluem a ilicitude e a culpa.

Especificamente, o artigo 31.º do Código Penal determina que o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, não sendo, nomeadamente, ilícito o facto praticado em legítima defesa, no exercício de um direito, no cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade ou com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado.
O artigo 34.º, sob a epígrafe “direito de necessidade”, estabelece que não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificar, cumulativamente, não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro, haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado e ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.

Confrontando as referidas normas com os factos que em sede própria ficaram consignados logo avulta a inexistência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, relativamente ao comportamento do arguido; na verdade e conforme antes se deixou enunciado, não se evidenciam, em relação à bofetada desferida pelo arguido, circunstâncias que o justifiquem, pese embora o facto de não ser conforme ao seu comportamento habitual, caracterizado como pessoa calma, cordata e paciente, sem que se tenha demonstrado uma falta de consciência que justificasse falta de capacidade de percepção, por parte do arguido, dos actos praticados, do seu alcance e das suas implicações.

Assim, não há violação dos artigos 14.º, 31.º e 34.º do Código Penal.

Esta conclusão é extensível à alegada violação das disposições dos artigos 127.º e 374.º do Código de Processo Penal, pelas razões anteriormente enunciadas, ao apreciar a impugnação feita pelo arguido, relativamente à matéria de facto.


11. Concluiu-se nos termos que anteriormente se deixaram enunciados que o comportamento do arguido configura a prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

Esta diferente qualificação jurídica e o facto de se tratar de crime semi-público não prejudica a subsistência do procedimento criminal, face à queixa que no próprio dia foi formulada pela queixosa – artigos 143.º, n.º 2, e 113.º e seguintes do Código Penal.

Importa então proceder à reapreciação da pena a aplicar ao arguido.

Na determinação da medida da pena dentro dos limites referidos e relativamente ao crime praticado pelo arguido e antes caracterizado, importa atender ao critério estabelecido pelos artigos 70.º e 71.º do Código Penal.

Nos termos deste normativo, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção; na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Relativamente aos critérios de escolha da pena, o artigo 70.º do Código Penal estabelece que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

No caso dos autos, regista-se que o arguido não tem antecedentes criminais, não se afigurando existirem prementes necessidades de prevenção especial, face às concretas circunstâncias e motivações que rodearam o seu acto e que em sede própria se deixaram transcritas, que surge como acto isolado, sem que haja referência a comportamentos idênticos em outras ocasiões.

O arguido e a queixosa estão separados desde a data em que ocorreram os factos, sem que se evidencie risco de se repetir a situação de conflito que aos mesmos deu origem, sendo o arguido caracterizado como pessoa habitualmente calma, afável e ponderada.

Nestas condições, afigura-se adequada a aplicação ao arguido de pena não privativa de liberdade, especificamente e ao abrigo do disposto no artigo 70.º do Código Penal, pela aplicação de pena de multa.

Na determinação da medida da pena considera-se que o arguido agiu com dolo directo, não ultrapassando a ilicitude o grau médio de previsão da norma incriminadora, face às circunstâncias em que o arguido agiu e à ausência de sequelas por parte da ofendida.

Nos termos afirmados na sentença recorrida, releva a favor do arguido o contexto em que deu a bofetada à ofendida, com desentendimento do casal e a constatação do facto de a ofendida ter acabado de partir o computador. Não tem antecedentes criminais, revelando-se os factos aqui em apreciação como episódio isolado da sua vida.

Ponderam-se prementes necessidades de prevenção geral, face à facilidade com que, em situações de conflito, se recorre à agressão física…

Considera-se que o arguido é Subcomissário da PSP, exercendo funções na Escola Prática da PSP, em Torres Novas, actividade pela qual aufere mensalmente a quantia de € 1.500,00. Não são referenciadas despesas regulares de valor expressivo.

Ponderando as circunstâncias em que ocorreram os factos e os elementos mencionados, julga-se ajustada a pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 8,00 (oito euros).

12.1	Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, os tribunais que condenem em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença a sua não transcrição nos certificados a que se referem os artigos 11.º e 12.º da mesma lei (certificados requeridos para fins de emprego ou para outros fins).

Tal poderá ser feito desde que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo da prática de novos crimes.

Atendendo à ausência de antecedentes criminais por parte do arguido bem como às concretas circunstâncias em que ocorreram os factos, não se depreende dos autos que haja perigo da prática de novos crimes por parte do arguido.

Face ao exposto, ao abrigo do artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, será determinada a não transcrição da sentença dos autos nos certificados a que aludem os artigos 11.º e 12.º da mesma Lei.

12.2	O decaimento parcial do arguido responsabiliza-o relativamente ao pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar, face ao disposto nos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, na redacção anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, aqui aplicável, e 87.º do Código das Custas Judiciais. 

III)

Decisão: 

Pelo exposto, acordam os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em dar parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em conformidade, decidem:

1. Alterar a sentença recorrida no que concerne à matéria de facto e, assim:

1.1 - O ponto 2 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

2.º-A – O arguido esteve em missão em Angola, desde 12 de Abril de 2007 até 10 de Outubro de 2007, período durante o qual o arguido e a queixosa comunicavam entre si através de computador, encontrando-se a queixosa no interior da residência do casal.

2.º-B – Em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante esse período e numa dessas comunicações, o arguido, questionado pela queixosa em relação a dúvidas que esta tinha sobre o modo como deveria proceder, disse-lhe se seria preciso tirar um curso, afirmando, por três vezes, que ela era “burra”.

1.2 - O ponto 3 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

3.º-A – No dia 2 de Dezembro de 2007, pelas 01h15, no interior da então residência do casal, sita na Rua …, no Entroncamento, área desta cidade e comarca, a queixosa veio à cozinha, verificando que aí se encontrava o computador portátil usado pelo arguido.

3.º-B – Porque vinha desconfiando que o arguido mantinha relação extra-conjugal desde a viagem a Luanda, para cujo contacto usava o computador, pegou no mesmo e atirou-o ao chão, assim o partindo.

3.º-C – Apercebendo-se do barulho, o arguido veio ter à cozinha e, vendo o computador partido, desferiu uma bofetada na face esquerda da queixosa.

3.º-D – Posteriormente, segurou-a para a impedir de atirar o computador pela janela de casa.

1.3 - O ponto 4 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

4.º – Ainda nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da ofendida, para a impedir de partir uma placa 3G do computador, vindo a tirá-la das suas mãos.

2. Absolver o arguido, em conformidade com o que em sede própria se deixou exposto, relativamente à prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, com a consequente revogação da sentença recorrida na parte em que, pela prática do aludido crime, decidiu condenar o arguido na pena de dois anos e um mês de prisão e suspender a execução da pena de prisão por igual período, ou seja, por dois anos e um mês.

3.1 - Declarar o arguido autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

3.2 - Condenar o arguido, N., pela prática do aludido crime, na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 8,00 (oito euros).

4. Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, determinar a não transcrição da condenação a que se reportam os autos nos certificados a que aludem os artigos 11.º e 12.º da mesma Lei.

5. O recorrente pagará as custas pelo decaimento parcial, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça a seu cargo.

Évora, 25 de Março de 2010.


(Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto)


(João Luís Nunes)

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I) Relatório 1. No processo comum singular n.º …, do Tribunal Judicial do Entroncamento, é arguido N., melhor identificado nos autos. O mesmo foi pronunciado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal. O arguido apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos. Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando procedente a pronúncia, condenou o arguido, pela prática do aludido crime, na pena de dois anos e um mês de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período. 2. O arguido, não se conformando com esta decisão, interpôs recurso da sentença. Na respectiva motivação, formula as seguintes conclusões: D 1 – Da prova produzida em sede de audiência de julgamento. 1. O arguido discorda da condenação que sobre ele recaiu, e consequentemente da pena que lhe foi aplicada e assim: 2. Da prova produzida em sede de audiência de julgamento não resultou provado o constante dos pontos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º dos “Factos provados”, pelo que se impugna a douta sentença, nos termos que se seguem: No que respeita ao ponto 2.º dos “Factos provados”: 3. Da prova produzida não resulta claramente que existiu algum mau trato psicológico, até porque, o arguido negou sempre ter proferido tal afirmação, como supra se transcreveu e consta da inquirição do Arguido a Instâncias da Meritíssima Juiz, conforme o CD Julgamento a minutos 03:09 e seguintes. 4. Ora, tendo ficado provado que “9.º O arguido é … pessoa calma, afável e ponderada, pessoa simples e humilde”, bem como que “… o arguido tem um comportamento social exemplar … é pessoa calma, ponderada e humilde”, acrescido do facto de ter deposto de forma clara, concisa e demonstrando segurança nas suas declarações, consideramos deveriam as mesmas ter sido tidas como credíveis e verdadeiras, pois nada foi apontado em sentido contrário. 5. Para além do exposto nada resultou das inquirições das testemunhas que permitisse concluir que o facto ocorreu dentro da residência do casal, antes pelo contrário, o mesmo, a ter ocorrido, terá sido pela internet, por escrito (tal como proferido pela ofendida/testemunha e como acima se transcreve) estando o arguido em Angola. (Conforme inquirição da ofendida ML a Instâncias da Sra. Procuradora Adjunta do CD Julgamento, minuto 19:00 e seguintes, a instâncias da Defensora do Arguido_CD Julgamento, minuto 27:20 e seguintes e a inquirição da testemunha Amélia a Instâncias da Defensora do Arguido_CD Julgamento, minuto 37:36 e seguintes). 6. Aliás, o próprio ponto 2.º é contraditório pois refere que “… durante o período em que o arguido esteve em Missão em Angola …” e mais à frente “… no interior da residência do casal, o arguido disse à ofendida, pelo menos, por três vezes, que ela era “burra””. 7. Discordamos também que se possa considerar provado que o tenha feito pelo menos por três vezes, pois tal foi apenas referido pela ofendida testemunha, tendo a mesma dito que foram duas ou três vezes quando lhe perguntava isto ou aquilo, demonstrando incerteza quanto ao enquadramento contextual do facto e quanto à repetição do mesmo, conforme as declarações desta acima transcritas. 8. Para além disso, das declarações da mãe da ofendida resultam claras contradições, pois a mesma num primeiro momento referiu que ouviu o genro chamar burra à filha, num segundo momento que afinal ouviu foi a filha a dizer-lhe que o genro lhe estava a chamar burra e depois finalmente após alguma insistência da Meritíssima Juiz referiu que afinal quem tinha ouvido era o genro, com consta da inquirição da testemunha A. do dia 21/07/2009 a instâncias do Defensor do Arguido e do CD Julgamento do dia 21-07-2009 minuto 1:51 e seguintes. 9. Declarações estas que são também contraditórias às da sua filha que referiu terem tais ofensas sido proferidas por escrito, conforme declarações acima transcritas. 10. Resulta do requerimento apresentado em acta da audiência de julgamento de 21/07/2009, pelo defensor do arguido, que a Sra. Dona A. não sabe ler. Pelo que não seria capaz de ler qualquer imputação que estivesse escrita no computador. 11. Como se tudo isto não fosse suficiente, a Meritíssima Juiz considerou, e a nosso ver bem, que se extrai dos depoimentos da ofendida e da sua mãe uma “personalidade … algo agitada e com uma certa obsessão em imputar ao arguido os comportamentos que ditaram a separação”, tendo considerado provado que “10.º A ofendida aparenta ter um carácter possessivo e algo instável.” Acrescendo a isto as declarações proferidas por ambas concluímos serem as mesmas contraditórias, inseguras, demonstrando bastante nervosismo e desejo de prejudicar o arguido pelo facto de este ter deixado o lar conjugal. Discordamos assim com a Meritíssima Juiz que se bastou com estas declarações para considerar terem ficado provados os factos. 12. A acrescer ao exposto convém salientar que das declarações proferidas pela testemunha Amélia em sede de inquérito, declarações que foram lidas na audiência de julgamento, esta “refere que a relação da sua filha com o seu genro foi sempre muito boa até ao verão de 2007” não tendo feito qualquer referência ao facto do genro ter chamado o que quer que fosse à sua filha durante os 21 anos em que foram casados, bem como referiu que “não tem conhecimento da existência qualquer outro litígio desavença entre o seu genro e a sua filha …”. 13. Perante tal contradição só podemos concluir pela falta de credibilidade desta testemunha pois não é possível e muito menos credível que no dia 7 de Abril de 2008, data em que foi inquirida junto do Ministério Público, esta não se lembrar deste facto e depois em sede de audiência, em data muito posterior, demonstrar tanta certeza na ocorrência do mesmo, contrariando as regras do bom censo que nos dizem que com o decorrer do tempo vamos nos esquecendo. No que respeita ao ponto 3.º dos “Factos provados” 14. Considerando o tribunal como verosímeis as declarações da ofendida por ter considerando credível o depoimento da sua mãe, descrevendo na motivação uma passagem na qual a ofendida/testemunha terá dito que o arguido lhe deu uma bofetada, descrevendo também uma passagem das declarações da mãe da ofendida, na qual esta refere que a sua filha lhe mostrou a cara e que esta estava vermelha e marcada com a mão. 15. Ora, a nosso ver das declarações da mãe da testemunha não resulta de forma segura que o arguido praticou o facto supra referido, pois a mesma refere não ter visto a bofetada, nem resulta sequer de forma segura que a cara da sua filha estava vermelha ou com qualquer marca que seja pois, como acima transcrito em diversos momentos proferiu diferentes afirmações, dizendo primeiro que com toda a certeza a filha tinha uma marca branca na cara, depois quando confrontada com a leitura das declarações que prestou junto do Ministério Público em sede de inquérito, onde tinha anteriormente dito que a cara da filha estava vermelha, já não sabendo depois afirmar se a marca era vermelha ou branca. 16. Mas as contradições das declarações da testemunha A., não ficam por aqui, pois num primeiro momento, afirmou com toda a certeza que a filha lhe mostrou a cara quando estava na garagem, sendo confrontada com a leitura das declarações por si prestadas em sede de inquérito, onde constava que tinha visto a marca quando estavam dentro do veículo conduzido pela ofendida/testemunha, dizendo depois que a sua cabeça já não estava boa, demonstrando com isto que afinal as certezas absolutas que anteriormente tinha, não eram assim tão certas, para além do mais referiu que se dirigiram logo de seguida para a esquadra da PSP para apresentar queixa, e deste documento consta não existir qualquer marca visível das agressões (tudo conforme supra transcrito e constante da inquirição da testemunha A. a Instâncias da Sra. Procuradora Adjunta (CD Julgamento - minuto 15:38 e seguintes) e inquirição da testemunha A. a Instâncias da Defensora do Arguido (CD Julgamento - minuto 34:20 e seguintes). 17. Ora perante tais contradições consideramos não poder esta testemunha ser credível, muito menos servir o seu depoimento para por si só tornar verosímil a versão apresentada pela sua filha, até porque, esta testemunha não poderá ser considerada isenta uma vez que é mãe da ofendida, com esta quase residindo, tendo a chave de sua residência e inclusive tendo mostrado estar completamente envolvida emocionalmente neste drama, pois chegou em sede de julgamento a dizer que a irmã do arguido era uma “velhaca” (conforme supra transcrito) e até porque a Meritíssima Juiz considerou que tanto a ofendida como a mãe tinham uma certa obsessão em imputar ao arguido os comportamentos que ditaram a separação, o que só por si nos leva a duvidar da isenção das suas declarações (Conforme inquirição da testemunha A. a Instâncias da Sra. Procuradora Adjunta e CD Julgamento - minuto 26:24 e seguintes). 18. Pelo exposto consideramos que quanto muito e porque permanecem em oposição as declarações da ofendida e do arguido, fica no ar a dúvida de ter o arguido praticado o facto considerado provado no ponto 2.º dos “factos provados”, pelo que em virtude da aplicação do princípio “in dubio pro reo” deveria tal facto ter sido considerado como facto não provado. 19. Até porque o arguido negou a prática do facto como consta da inquirição do Arguido – Instâncias da Meritíssima Juiz, CD Julgamento – minuto 03:09 e seguintes. No que respeita ao ponto 4.º dos “Factos provados” 20. Da prova produzida em sede de julgamento nada permite concluir que o arguido agarrou o pulso da ofendida, pois, esta e a sua mãe o que disseram foi que o arguido tinha feito uma manobra no pulso da ofendida com o intuito de que esta abrisse a mão e largasse o telemóvel/placa 3G que esta pretendia partir, tendo o arguido negado sempre ter praticado tal facto, (como supra transcrito e constante da inquirição da ofendida ML a Instâncias da Defensora do Arguido, CD Julgamento - minuto 32:21 e seguintes, da inquirição da testemunha A. a Instâncias da Sra. Procuradora Adjunta, CD Julgamento – minuto 15:38 e seguintes e a instâncias da Defensora do Arguido, CD Julgamento – minuto 34:49 e seguintes e da inquirição do Arguido a Instâncias da Meritíssima Juiz, CD Julgamento - minuto 03:09 e seguintes. 21- Acresce ao exposto que, as declarações proferidas pela testemunha A. (mãe da ofendida) são contraditórias com aquelas por si proferidas em sede de inquérito, conforme foi lido na audiência, tendo esta dito em sede de inquérito que quando “abriu a porta da casa da sua filha e de imediato viu que a sua filha e o seu genro estavam agarrados um ao outro pretendendo ela ficar na posse de um aparelho que julga ser de acesso à internet. Porque o seu genro tem mais força que a sua filha ele conseguiu retirar tal aparelho. Estavam ambos muito exaltados e por isso procurou chamá-los à razão”. Ora, perante tal contradição, este depoimento não deveria por si só ter sido considerado como credível e como tal susceptível de convencer o tribunal da certeza da sua realização, pelo que a acrescer aos factos supra mencionados que nos levam a concluir pela falta de credibilidade desta testemunha, tal facto, em virtude da existência das duas posições contraditórias deixaria no ar a dúvida da sua realização, pelo que deveria ter sido considerado não provado (in dubio pro reo). Dos pontos 5.º e 6.º dos “factos provados” 22. Retira-se claramente que conclui a douta sentença ter o ora recorrente praticado os factos de que vem acusado de forma dolosa e na modalidade directa do dolo. 23. Ora, a admitir que o arguido tenha chamado burra à ofendida, dando-lhe uma bofetada e apertando-lhe os pulsos, o que não poderemos de forma alguma admitir, a nosso ver, não ficou provado em sede de julgamento, a existência de qualquer intenção em ofender a saúde física ou psíquica da ofendida. 24. Quanto ao eventual mau trato psicológico “a imputação da expressão burra à ofendida/testemunha” consideramos que não resulta da prova produzida qualquer elemento que permita aferir que o arguido apelidou a ofendida de “burra” no intuito de ofender a honra e consideração (conforme supra transcrito). 25. Aliás, resulta até das regras do censo comum que na grande maioria das casas de família portuguesas, marido e mulher chamam “burro(a)” um ao outro, ou outras expressões insignificantes, em diversas ocasiões da vida conjugal sem que com isto pretendam ofender a honra ou dignidade do outro, não passando a maioria das vezes de meros desabafos. 26. Conforme resulta do texto da sentença e das declarações da ofendida e sua mãe, tal facto terá ocorrido num contexto em que a mesma pergunta algo ao recorrente, resultando das declarações do arguido, que o mesmo já cansado de ouvir as mesmas perguntas disse “Mas é assim tão difícil perceber que tem que carregar no botão?” “é preciso tirar algum curso?” referindo que a partir daí ela começou a dizer que ele lhe chamava burra. Assim, de tal contexto apenas se pode aferir, a admitir que o arguido proferiu tal expressão, o que não se admite, que a mesma ter-se-á tratado de um mero desabafo e não de um acto consciente proferido com o intuito de ofender a honra ou dignidade da ofendida/testemunha, ou sequer de a humilhar ou maltratar psicologicamente ainda que à distância, pelo que a nosso ver nunca tal acto teria sido praticado de forma dolosa. 27. No que respeita à bofetada na face da ofendida e ao agarrar dos pulsos desta, consideramos não estar preenchido o elemento subjectivo do ilícito pois, resulta claramente das declarações da ofendida e de sua mãe, as únicas que foram tidas em consideração pelo tribunal, que tudo se terá passado num momento de grande tensão, no qual a ofendida de forma descontrolada acabava de partir um computado portátil e preparava-se para atirá-lo pela janela, bem como no momento posterior pretendia partir uma placa 3G/telemóvel e sabe-se lá mais o quê de seguida, (conforme supra transcrito e constante da inquirição da ofendida ML a instâncias da Defensora do Arguido, CD Julgamento – minuto 30:00 e seguintes, inquirição da testemunha A. a Instâncias da Sra. Procuradora Adjunta, CD Julgamento – minuto 15:38 e seguintes e inquirição da testemunha A. a Instâncias da Defensora do Arguido, CD Julgamento minuto 34:49 e seguintes. 28. Tal atitude, conforme resulta da sentença terá motivado um descontrolo no arguido, ora ao admitir-se que houve tal descontrolo não se pode depois concluir pela existência de dolo, muito menos na forma directa, muito menos aceitar ter sido intenção do arguido ofender o bem-estar físico e/ou psíquico da ofendida e como tal pretendendo maltratar o corpo da mesma. Quanto muito poderíamos admitir que o arguido procurou evitar que a ofendida partisse os materiais informáticos e até ferir-se com as suas peças. 29. Ora, conforme o Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 334 “No caso de maus tratos físicos, o dolo estende-se ao próprio resultado danoso da integridade física …” assim, ao admitir o estado descontrolado do arguido nunca se poderá concluir que o mesmo tivesse a intenção de ofender a integridade física, mormente de lhe provocar dor, marcas ou qualquer outro dano, pois um acto descontrolado é uma acto desprovido de consciência, não existindo neste qualquer reflexão. 30. Assim sendo entendemos não poder ser considerados dolosos os factos supra referidos e assim não poderia o arguido ser condenado pela prática dos mesmos. 31. Apesar do exposto e mesmo que se considerasse ter o acto sido reflectido nunca poderíamos admitir que o agarrar dos pulsos consubstanciasse um acto doloso na forma directa pois como se extrai da prova produzida este facto terá sido praticado com o intuito de retirar da mão da ofendida um objecto, pelo que quanto muito o dolo em apreço seria na modalidade de dolo necessário, conforme supra transcrito. No que respeita ao ponto 7.º dos “Factos provados” 32. Entendemos não poder ser considerado provado o referido facto pois tal não resulta das declarações da ofendida, nem das declarações da sua mãe que a nosso ver não deveriam ter sido consideradas credíveis, pois esta referiu que há alguns anos que a filha e o genro se desentendiam, tendo anteriormente dito em sede de inquérito, conforme declarações lidas no julgamento, que a relação do casal “foi sempre muito boa até ao verão de 2007” e que “não tem conhecimento de qualquer outro litígio de desavença entre o seu genro e a sua filha, conforme supra transcrito e constante da inquirição da testemunha A. a Instâncias da Defensora do Arguido, CD Julgamento – minuto 43:44 e seguintes. D 2 – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e violação do princípio “in dubio pro reo”. 33. Não resulta do texto da douta sentença prova suficiente e necessária para a condenação do arguido; na certeza de que o tribunal se baseou unicamente no depoimento da ofendida, nitidamente parcial por ter interesse na sua condenação, e no depoimento da mãe da ofendida que com ela quase vive. Do ponto 2.º dos “factos provados” 34. Consta que entre 12 de Abril de 2007 e 10 de Outubro de 2007 no interior da residência do casal, o arguido disse à ofendida, pelo menos, por três vezes, que ela era “burra”, ora, nada consta do texto da sentença que permita concluir que o arguido se encontrava no interior da residência do casal nesse período. 35. Aliás, no referido ponto 2.º dos “factos provados” consta que o facto ocorreu no período em que o arguido esteve em missão em Angola. 36. Claro está que nada obsta a que o arguido se tenha deslocado nesse período a Portugal, que se tenha dirigido à residência comum do casal e lá tenha proferido as expressões pelas quais foi condenado. 37. Sucede, no entanto, que o exposto na “Motivação” da sentença contradiz a decisão plasmada no referido ponto 2.º. 38. Consta da sentença Referindo-se às declarações da testemunha/ofendida “ML” “… na altura em que o arguido estava na segunda missão, que teve lugar entre a Páscoa até ao dia 5 de Outubro, dizendo-lhe através de comunicação pelo computador “Não tens vergonha de ser tão burra?”. Chamou-lhe o termo de “burra” pelo menos três vezes, quando a ofendida lhe perguntava como é que fazia isto e aquilo”. 39. Mais à frente, referindo-se às declarações da testemunha “A.” “... Disse que quando o genro esteve em Angola, a sua filha e o marido falavam através da internet e numa dessas ocasiões ouviu o genro dizer à mulher “Não sabes disto? É preciso tirar um curso? És mesmo burra.” 40. Pelo exposto nunca se poderia ter considerado como provado que tais expressões foram proferidas no interior da residência do casal. 41. Consideramos também que mesmo admitindo, o que não sucede, que tais factos ocorreram no interior da residência do casal, não resulta do texto da sentença prova suficiente de que tais expressões foram realmente proferidas, nem que foram proferidas três vezes, até porque, conforme já se expôs da “Motivação” da sentença, a Sra. A., mãe da ofendia, referiu que ouviu dizer “És mesmo burra” constando da sentença que tal expressão foi proferida numa das ocasiões em que a filha e o genro falavam através da internet. As declarações supra, diferem das constantes da sentença como proferidas pela ofendida/testemunha, pois, destas consta que o arguido disse “Não tens vergonha de ser tão burra?”, tendo-lhe chamado “burra” pelo menos 3 vezes, quando lhe perguntava isto ou aquilo. 42. Ora dizer “És mesmo burra” não é a mesma coisa que “não tens vergonha de ser tão burra?”, o que significa que só aqui há contradição, mas ao acreditarmos nas palavras de uma ou da outra, estas são contrárias ao que consta da sentença como referido pelo arguido que diz “que nunca lhe chamou burra”. 43. Nestes termos, apesar de considerarmos as declarações isoladas de qualquer uma das testemunhas, insuficientes para fundamentar a decisão, consideramos que as mesmas estando em contradição com as proferidas pelo arguido quanto muito colocariam o tribunal numa situação de dúvida e não de certeza quanto à ocorrência do facto, pelo que o mesmo não deveria ter sido considerado como provado. 44. Consideramos também que mesmo admitindo-se que o arguido proferiu uma vez a expressão supra referida (burra), o que não se admite, não podemos aceitar como suficiente para considerar sem sombra de dúvida provado que o mesmo apelidou a ofendida/testemunha de burra por pelo menos três vezes, pois nada consta a este respeito das declarações da sua mãe, expressas no texto da sentença, bem como porque das declarações da ofendida/testemunha que são demasiado vagas, até abstractas e não permitem por si só concluir sem qualquer dúvida pela prática deste facto por três vezes, referindo esta “Chamou-lhe o termo de “burra” pelo menos três vezes, quando a ofendida lhe perguntava como é que fazia isto e aquilo” não concretizando em que consistia o isto ou aquilo. No que respeita ao ponto 3.º dos “factos provados” 45. Consta do texto da sentença que “No dia 02 de Dezembro de 2007, pelas 01h15, no interior da então residência do casal, (…), por motivos relacionados com a quebra de um computador portátil pela ofendida, o arguido desferiu uma bofetada no lado esquerdo da face da ofendida”. É nossa opinião que o constante da “motivação” da sentença, é insuficiente para considerar provado tal facto, senão vejamos: 46. Referindo-se às declarações da testemunha “A.” a sentença refere “… A filha quis sair de casa e mostrou a cara à mãe. A depoente diz que viu da filha vermelha marcada com a mão.” 47. Ora, tais declarações, mesmo que se admita que a cara da ofendida/testemunha, estivesse vermelha e com a marca de uma mão não permitem, por si só, concluir que a autoria da referida marca se deveu a um acto praticado pelo recorrente. 48. Até porque como consta da referida “Motivação” da sentença “… o arguido é uma pessoa calma, cordata e paciente”; tendo ficado provado que “9.º O arguido é reputado como sendo pessoa calma, afável e ponderada, pessoa simples e humilde” e que a ofendida/testemunha é “… algo agitada e com uma certa obsessão em imputar ao arguido os comportamentos que ditaram a separação …” tendo ficado provado que “10.º A ofendida aparenta ter um carácter possessivo e algo instável” o que por si só é susceptível de deixar a dúvida quanto à veracidade da ocorrência dos factos pois, não se pode concluir pelas declarações da mãe da ofendida/testemunha ter sido uma acção do arguido a provocar o efeito referido (cara vermelha/marca de mão), uma vez que não consta da sentença que esta tenha visto a bofetada, pelo que deveria o tribunal ter considerado como não provado o referido facto, até porque a acrescer ao exposto resulta da sentença a refutação de tal acto por parte do arguido. 49. Aliás, para além dos infindáveis motivos que podem originar uma marca vermelha numa cara, o próprio temperamento da ofendida/queixosa, plasmado na sentença, leva-nos inclusive a admitir como possível que, a ser verdade que a tal marca existisse, tivesse sido ela mesma a provocá-la. 50. Pelo que mais uma vez deveria ter imperado o princípio "in dubio pro reo" não sendo considerado provado tal facto. Quanto ao ponto 4.º dos “factos provados” 51. Consta do texto da sentença que o ora recorrente agarrou os pulsos da ofendida/testemunha, não fazendo referência a qualquer dano sofrido pela mesma em virtude de tal conduta, nem fazendo referência a qualquer força ou violência empregue pelo ora recorrente na prática desse acto, pelo que não podemos admitir que, mesmo que aceitássemos que tal acto tivesse ocorrido, o que não acontece, o mesmo preenchesse o tipo de ilícito constante no artigo 152.º do Código Penal. 52. Nesse sentido, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 333 “As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físico (isto é, ofensas corporais simples) …” 53. Do mesmo Comentário Conimbricense, a páginas 204 e 205 “Trata-se de um crime material de dano. O tipo legal em análise abrange, com efeito um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem …” “Por ofensa no corpo poder-se-á entender “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante” …” 54. Ora, para que se possa considerar tal facto como violador do tipo legal do crime de violência doméstica, necessário seria que da sentença resultassem elementos donde se depreendesse qual o prejuízo causado ao bem-estar físico da ofendida/testemunha e que permitissem apurar a insignificância ou não do mesmo. Dos pontos 5.º e 6.º dos “factos provados” 55. Retira-se claramente que conclui a douta sentença ter o ora recorrente praticado os factos de que vem acusado de forma dolosa e na modalidade directa do dolo. 56. Ora, a nosso ver, em virtude do texto da sentença em apreço, tal não poderá ser considerado porquanto: 57. Quanto ao eventual mau trato psicológico “a imputação da expressão burra à ofendida/testemunha” consideramos que não resulta do texto da sentença qualquer elemento que permita aferir que o arguido apelidou a ofendida de “burra” no intuito de ofender a honra e consideração. 58. Aliás, resulta até das regras do censo comum que na grande maioria das casas de família portuguesas, marido e mulher chamam “burro(a)” um ao outro em diversas ocasiões da vida conjugal sem que com isto pretendam ofender a honra ou dignidade do outro, não passando a maioria das vezes de meros desabafos. 59. Aliás conforme resulta do texto da sentença e das declarações da ofendida e sua mãe, tal facto terá ocorrido num contexto em que a mesma pergunta algo ao recorrente, resultando das declarações do arguido, que o mesmo já cansado de ouvir as mesmas perguntas disse “Mas é assim tão difícil perceber que tem que carregar no botão?” “é preciso tirar algum curso?” referindo que a partir daí ela começou a dizer que ele lhe chamava burra. Assim, de tal contexto apenas se pode aferir, a admitir que o arguido proferiu tal expressão, o que não se admite, que a mesma ter-se-á tratado de um mero desabafo e não de um acto consciente proferido com o intuito de ofender a honra ou dignidade da ofendida/testemunha, ou sequer de a humilhar ou maltratar psicologicamente ainda que à distância, pelo que a nosso ver nunca tal acto teria sido praticado de forma dolosa. 60. No que respeita à bofetada na face da ofendida e ao agarrar dos pulsos desta, consideramos não estar preenchido o elemento subjectivo do ilícito pois, resulta claramente da “Motivação” e do “Enquadramento jurídico-penal” da sentença que tudo se terá passado num momento de descontrolo da ofendida e do arguido, conforme supra transcrito: 61. Ora, conforme o Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 1, Coimbra Editora, 1999, pág. 334 “No caso de maus tratos físicos, o dolo estende-se ao próprio resultado danoso da integridade física …” assim, ao admitir o estado descontrolado do arguido nunca se poderá concluir que o mesmo tivesse a intenção de ofender a integridade física, mormente de lhe provocar dor, marcas ou qualquer outro dano, pelo menos tal não resulta do texto da sentença nem dos factos considerados como provados, pois um acto descontrolado é uma acto desprovido de consciência, não existindo neste qualquer reflexão. 62. Assim sendo entendemos não poder ser considerados dolosos os factos supra referidos. 63. Apesar do exposto e mesmo que se considerasse ter o acto sido reflectido, ainda que do texto da sentença resulte que foi descontrolado, nunca poderíamos admitir que o agarrar dos pulsos consubstanciasse um acto doloso na forma directa pois como resulta da sentença este facto terá sido praticado com o intuito de retirar da mão da ofendida um objecto, pelo que quanto muito o dolo em apreço seria na modalidade de dolo necessário. D 3 – Das normas jurídicas violadas 64. Por tudo o que se expôs neste recurso a douta Sentença violou os artigos 14.º, 31.º, 34.º, 152.º do Código Penal e os artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código Processo Penal. 65. Violou também os artigos 13.º, n.º 2 e 18.º, n.º 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa. 66. Ao interpretar o artigo 152.º no sentido que fez ao proferir a douta sentença o julgador, produziu uma interpretação inconstitucional, pois diz o artigo 18.º da CRP que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias … devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, dizendo o n.º 2 que “As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias … não podem … diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais” ora, ao admitirmos ter o referido artigo 152.º como ratio a protecção de homens/mulheres que eventualmente possam vir a ser vítimas de maus tratos, admite a restrição do direito fundamental “liberdade” em beneficio da salvaguarda do direito fundamental “integridade física e psicológica” em que esta é atacada de forma gratuita e com vista a maltratar alguém que se encontra numa situação fragilizada. 67. Sucede que no caso concreto não existe qualquer situação de fragilidade da vítima, nem sequer podemos admitir existir aqui violência gratuita pois, conforme ficou provado na sentença recorrida, a ofendida estava descontrolada e a partir objectos, computador portátil e placa 3G e sabe-se lá que mais iria partir e que tal acto poderá ter provocado um descontrolo no arguido que se excedeu no intuito de evitar que a mesma praticasse maiores danos. Assim não é de admitir que existe neste caso concreto a necessidade de prevenção geral, no sentido da visada pelo artigo 152.º nem sequer de prevenção especial, pois conforme ficou provado tudo se deveu a uma reacção a um acto descontrolado da ofendida com vista a evitar danos maiores, bem como pelo facto de o arguido ter saído de casa, tendo-se extinguido a relação conjugal, pelo que não mais se vislumbra a possibilidade de ocorrer outra situação, nem de violência gratuita, nem de outra natureza. 68. Assim, a limitação do direito à “liberdade” encontra-se aqui claramente a ser prejudicado de forma desproporcional em relação ao que se pretende salvaguardar “saúde” até porque conforme ficou provado das agressões não resultaram qualquer danos, pelo que a terem ocorrido tais agressões as mesmas são de tal forma insignificantes que não podem merecer sequer censura penal, quanto mais forçar a limitação de um direito fundamental constitucionalmente consagrado “liberdade” pelo que in casu, com a aplicação de uma pena de prisão de 2 anos e 1 mês ao arguido, foi claramente violada a CRP, mormente em virtude da desproporcionalidade entre a pena aplicada e o bem jurídico a salvaguardar. Conclui sustentando que o presente recurso deve merecer provimento e, em consequência, deve revogar-se a Sentença proferida que condenou o arguido pela prática do crime que vinha acusado na pena de prisão de 2 anos e 1 mês, suspensa por igual período de tempo, revogar igualmente a pena em que foi condenado e absolver o arguido da prática do crime de que é acusado, com todas as consequências legais. 3.1 Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou a resposta, formulando as seguintes conclusões: 1. A matéria de facto foi correctamente julgada e a prova produzida em audiência não impunha decisão diversa da recorrida. 2. Neste tipo de criminalidade as declarações das vítimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que os maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservado da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada dum casal. 3. O arguido embora negue o cometimento dos factos contextualiza as situações, descrevendo os factos de modo sensivelmente idêntico à descrição feita pela ofendida. 4. O depoimento da testemunha A. é circunstanciado e não empola os factos, o que certamente teria sucedido caso se tratasse de um depoimento parcial e interessado. 5. Mesmo colocando a hipótese de o arguido ter proferido a expressão “burra” em jeito de desabafo e de ter agido de forma descontrolada e irreflectida, tais circunstâncias não abalam a conclusão de que agiu com dolo directo, pois a sede própria para avaliar e ponderar tais circunstâncias é a da motivação do agente, do grau da sua culpa e consequentemente, da censurabilidade da sua conduta. 6. Da factualidade dada como assente resultam preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, pelo que outra não pode ser a conclusão a não ser a de que a matéria de facto provada é suficiente para a decisão. 7. Não existe contradição da fundamentação pelo facto de o ponto 2 dos factos assentes ter suporte probatório no depoimento da ofendida e esta ter afirmado, conforme se explanou e ponderou na motivação da decisão recorrida, que o arguido lhe havia chamado “burra”, pelo menos por três vezes, através de comunicação efectuada por via de computador quando se encontrava na segunda missão em Angola. 8. A existir algum vício seria o erro notório na apreciação da prova, o qual, porém, também não existe pois o arguido utilizou um meio de comunicação à distância e embora ele não se encontrasse na casa do casal, era aí que se encontrava a destinatária da comunicação, no caso a ofendida. 9. Da fundamentação da decisão não resulta que a prova tenha sido apreciada de forma arbitrária. 10. Pelo facto de o tribunal ter valorado o depoimento da ofendida e da testemunha A., e não o do arguido, que os contraria, não resulta necessariamente que tenha violado o princípio in dubio pro reo, o qual pressupõe a criação no espírito do julgador de uma dúvida séria e razoável quanto à verificação dos factos e à sua autoria. 11. Não se verifica nenhum dos vícios invocados pelo recorrente. 12. A sentença recorrida não violou nenhuma das disposições legais invocadas. 13. A sentença recorrida não merece censura e deve ser mantida na íntegra. 3.2 Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público, com vista nos autos e acolhendo a argumentação da resposta em 1.ª instância, emite parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso. 3.3 O arguido, notificado nos termos do artigo 417.º do Código de Processo Penal, não respondeu. 4. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso, nomeadamente as que estão previstas no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a motivação do recurso enuncia especificamente os respectivos fundamentos e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido. O objecto do recurso consubstancia-se então na apreciação das seguintes questões: § A eventual verificação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – nesse âmbito se conhecendo as questões que o recorrente suscita a esse título. § A alegada falta de prova da matéria vertida nos pontos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º dos “factos provados”. § A alegada insuficiência para a decisão da matéria provada, contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e violação do princípio “in dubio pro reo”. § A alegada violação dos artigos 14.º, 31.º, 34.º, 152.º do Código Penal, 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 13.º, n.º 2 e 18.º, n.º 2 e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa. II) Fundamentação 1. Factos relevantes. 1.1 Com interesse, importa considerar os factos que foram julgados provados na sentença recorrida, aí consignados nos seguintes termos: A) FACTOS PROVADOS Da prova produzida em audiência, resultaram provados os seguintes factos: 1.º O arguido N. é casado com a ofendida ML desde 09 de Agosto de 1986. 2.º Em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante o período em que o arguido esteve em Missão em Angola, desde 12 de Abril de 2007 até 10 de Outubro de 2007, no interior da residência do casal, o arguido disse à ofendida, pelo menos, por três vezes, que ela era “burra”. 3.º No dia 02 de Dezembro de 2007, pelas 01h15, no interior da então residência do casal, sita na Rua …, no Entroncamento, área desta cidade e comarca, por motivos relacionados com a quebra de um computador portátil pela ofendida, o arguido desferiu uma bofetada no lado esquerdo da face da ofendida. 4.º Ainda nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da ofendida. 5.º Agiu o arguido de modo livre, voluntário e consciente, com perfeito conhecimento de que, com a sua conduta, maltratava física e psicologicamente o seu cônjuge, no domicílio comum. 6.º Mais sabia o arguido que tal conduta era proibida e punida por lei. Mais se provou que: 7.º Nos períodos de tempo que antecederam os factos o arguido e a ofendida vinham tendo um mau relacionamento entre si, desentendendo-se frequentemente. 8.º O arguido esteve integrado na Missão de Cooperação Técnico-Policial com Angola, no período compreendido entre 12 de Abril e 10 de Outubro de 2007. 9.º O arguido é reputado como sendo pessoa calma, afável e ponderada, pessoa simples e humilde. 10.º A ofendida aparenta ter um carácter possessivo e algo instável. Condições económicas do arguido: 11.º O arguido é Subcomissário da PSP, exercendo funções na Escola Prática da PSP, em Torres Novas, actividade pela qual aufere mensalmente a quantia de € 1.500. 12.º O arguido está separado da mulher desde o dia 02 de Dezembro de 2007 e não tem filhos. 13.º Vive em casa da mãe e contribui para as despesas da casa desta. 14.º Paga, a título de pensão de alimentos provisórios à sua mulher, a quantia mensal de € 350. 15.º O arguido circula habitualmente com um veículo que tem 22 anos de existência. 16.º O arguido é licenciado em Ciências Sociais. 17.º Nada consta do certificado de registo criminal do arguido. 1.2 Quanto a factos não provados com relevo para a boa decisão da causa, consignou-se a sua inexistência. 1.3 Para fundamentar a convicção do tribunal, mostra-se consignado o seguinte: C) MOTIVAÇÃO O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida, analisada na audiência de discussão e julgamento, valorada à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, designadamente: Neste julgamento foram apresentadas duas versões contraditórias e incompatíveis entre si: a do arguido e a da ofendida. O arguido N. prestou declarações e negou peremptoriamente que tenha desferido uma bofetada à ofendida, que alguma vez a tenha apelidado de burra e que lhe tenha apertado os pulsos. A ofendida ML afirmou que o marido lhe chamou “burra” três vezes, lhe deu uma bofetada e lhe apertou os pulsos. Perante tais versões opostas, importa analisar criticamente tais depoimentos. Efectivamente, quer o arguido quer a ofendida descreveram as circunstâncias em que tais factos ocorreram de forma globalmente coincidente. Efectivamente, o arguido afirmou que nunca lhe chamou burra. Disse que efectivamente houve um episódio, em Setembro de 2007, no período em que esteve a trabalhar em Angola. A mulher telefonou-lhe cinco vezes porque não conseguia ligar o ar condicionado e que ao quinto telefonema lhe disse algo no sentido “Mas é assim tão difícil perceber que tem que carregar no botão?” “é preciso tirar algum curso?”, referindo que a partir daí começou a dizer que lhe chamava “burra”. Quanto aos factos ocorridos no dia 2 de Dezembro de 2007, disse que nesse dia ela teve uma crise psicológica e queria que o arguido lhe comprasse um carro. Que na sequência da discussão sobre o carro a arguida pegou no computador que lhes pertencia e atirou-o ao chão, partindo-o. E porque a ofendida queria voltar a pegar no computador para o atirar pela janela, agarrou-a pelo ombro para a impedir de voltar a pegar nele. Logo de seguida, a ofendida dirigiu-se ao quarto e pegou no telemóvel, tendo o arguido agarrado a ofendida pelas mãos, durante breves segundos para lhe tirar o telemóvel, a fim de tentar evitar que ela o partisse. Salientou o arguido que a ofendida, durante a vida de casados, teve várias crises psicológicas e que as mesmas derivavam de algumas frustrações, designadamente do facto de não terem filhos e que ela procurava superá-las com a aquisição de bens materiais. Referiu que muitas discussões tinham origem na compra dos bens. Disse que no dia seguinte o arguido resolveu separar-se da mulher e foi para casa da mãe, estando separados desde então até ao dia de hoje. A ofendida, por seu turno, descreveu a situação ocorrida no dia 2 de Dezembro de 2007, da seguinte forma: que já vinha desconfiando que o marido mantinha uma relação extra-conjugal, do que se apercebeu desde a viagem do marido a Luanda. Afirmou que desde então o marido passava os dias ao computador e ao telemóvel. Que nesse dia, cerca da 1h da manhã veio à cozinha beber um copo de água, olhou para o computador e decidiu acabar com tudo, razão pela qual partiu o computador. O arguido veio ter com ela à cozinha e quando viu o computador partido deu-lhe uma bofetada na face esquerda. Logo de seguida, a ofendida foi pegar novamente no computador para o atirar pela janela e o arguido impediu-a. Que a ofendida pegou na placa 3G do computador e queria parti-la, tendo o arguido agarrado nos seus pulsos e tirado a placa das suas mãos. Mais referiu que já se lhe tinha dirigido, na altura em que o arguido estava na segunda missão, que teve lugar desde a Páscoa até ao dia 5 de Outubro, dizendo-lhe através de comunicação pelo computador “Não tens vergonha de ser tão burra?”. Chamou-lhe o termo de “burra” pelo menos três vezes, quando a ofendida lhe perguntava como é que fazia isto e aquilo. Salientou, no entanto, que foi a primeira vez que o marido lhe bateu. Disse que o marido saiu de casa no dia seguinte e que ao aperceber-se que ele tinha ido embora, desmaiou e foi conduzida ao Hospital tendo sido encaminhada para a psiquiatria. Ambos afirmaram que estavam casados há cerca de 20 anos e que ambos já se vinham desentendendo desde há algum tempo. A ofendida afirmou, ainda, que desde há algum tempo que havia muita intromissão por parte dos familiares directos do arguido na vida do casal. Depôs a testemunha A., mãe da ofendida, que afirmou que reside na casa situada imediatamente por baixo da dos arguido e ofendida. Que sempre se deu bem com o genro, a quem apoiou em muitas circunstâncias, designadamente, economicamente. Disse que no dia dos factos ouviu barulho em casa da filha, achou estranho e como tinha a chave foi lá ver o que se passava. Disse que quando o genro esteve em Angola, a sua filha e o marido falavam através da Internet e numa dessas ocasiões ouviu o genro dizer à mulher “Não sabes disto? É preciso tirar um curso? És mesmo burra.” No dia 2 já estava deitada e ouviu um grande barulho. Depois percebeu que tinha sido a filha a atirar o computador ao chão. Chegou a casa da filha e eles tinham uma coisa na mão, que depois viu que era a net do computador, de seguida o genro apertou-lhe o pulso e tirou-lhe aquilo da mão. A filha quis sair de casa e mostrou a cara à mãe. A depoente diz que viu da filha vermelha e marcada com a mão. Logo de seguida foram à Polícia apresentar queixa. Disse que nessa noite a filha dormiu na sua casa e que no dia seguinte constataram que o genro tinha tirado a roupa dele de casa e que se ia embora. A filha desmaiou e foi levada ao hospital, onde ficou internada. Disse que desde esse dia nunca mais viveram juntos. Apesar de ser a mãe da ofendida, falou com objectividade, descreveu de forma segura o que viu, não empolou as situações, o que até seria natural que fizesse uma vez que se discutiam factos que antecederam a separação da sua filha. Afirmou que sempre acompanhou a vida do casal porque vivia na casa de baixo e porque esta é a sua única filha. O tribunal considerou como verosímil a versão da ofendida porque, em primeiro lugar, o tribunal julgou credível o depoimento da mãe da ofendida, pela forma como depôs. Depois, apesar da emotividade evidenciada pela ofendida, compreensível por se tratar de factos relacionados com a sua separação, a forma circunstanciada como depôs tornam credível a sua versão. Acresce que a ofendida também não procurou ocultar factos, assumindo que partiu o computador, que pretendia atirá-lo pela janela e que era, ainda sua intenção dar o mesmo destino à placa 3G da Vodafone. Efectivamente, a ofendida nada escondeu assumindo que o arguido apenas lhe chamou “burra” por três vezes e que esta foi a única vez que aquele lhe bateu. Na verdade, apesar de ter resultado provado que o arguido é pessoa calma, cordata e paciente, certo é que, a personalidade evidenciada pela ofendida faz-nos acreditar que o arguido em algum momento, quiçá cansado de uma relação que vinha sendo pautado pelo desentendimento e por atitudes mais possessivas por parte da ofendida, se tenha descontrolado e desferido a bofetada depois de constatar que a ofendida partiu o computador e que agia de forma igualmente descontrolada, pois pretendia, ainda, atirar o computador pela janela. Sejam ou não fundadas as imputações que a ofendida fez ao arguido, relativamente ao relacionamento extra-conjugal deste, o que é certo é que ela disso estava convencida e agiu com essa motivação, circunstâncias que também não ocultou. Por outro lado, ainda, extrai-se dos depoimentos da ofendida e da mãe que, apesar da personalidade evidenciada por ambas, algo agitada e com uma certa obsessão em imputar ao arguido os comportamentos que ditaram a separação, e que vêm motivando o grande sofrimento da ofendida, ambas descreveram os factos que constituem o crime sem os empolar, enquadrando-os no contexto daquele dia, contexto este que o arguido também não negou. A testemunha A. voltou a depor e confirmou que quando a filha estava a conversar com o marido na net ouviu-o a chamar “burra”. Foi confrontada com o facto de as ligações faladas serem muito difíceis, mas a testemunha acabou por afirmar que no momento em que o marido chamou burra à filha estava presente, fosse escrito e/ou falado e em face da credibilidade que se atribuiu aos seus depoimentos, esta nova inquirição em nada veio alterar a convicção do tribunal. A testemunha P., colega e amigo do arguido veio descrever o modo como comunicavam para Portugal quando estavam em missão e salientou o facto de as comunicações faladas serem muito difíceis de estabelecer, ainda que não impossíveis. Não se questiona que assim seja, porém, essa circunstância não veio abalar o entendimento do tribunal sobre as circunstâncias deste caso. Depuseram como testemunhas abonatórias do arguido M., colega de profissão do arguido e amiga de ambos, S., sobrinha por afinidade do arguido e MC, colega do arguido desde 1992 e amiga de ambos, que de forma natural referiram-se ao arguido como sendo pessoa calma, ponderada, afável e prestável, donde a prova do facto 9.º. Saliente-se que a última testemunha referiu também que após estes factos a ofendida a contactou, pedindo-lhe que intercedesse junto do arguido para voltar para casa e que estava disposta a perdoar-lhe o facto de a ter agredido. Mais referiu que o arguido à data disse-lhe que a queixa seria infundada e que por isso seria insustentável continuar a relação. O tribunal, apoiado em todas estas circunstâncias, criticamente conjugadas de acordo com as regras da experiência comum e com a naturalidade das coisas julgou credível e sustentada a versão apresentada pela ofendida L. razão pela qual deu como provados os factos 1.º a 6.º. A nosso ver, cai por terra a versão do arguido de que a queixa apresentada teria como fundamento meramente uma vingança por parte da ofendida. O tribunal considerou, ainda, os documentos de fls. 97 a 100, relativos a um episódio de urgência ocorrido no dia dos factos; a declaração da entidade patronal do arguido de fls. 78, donde a prova do facto 8.º; o assento de casamento de fls. 67. O facto 10.º resultou da descrição dos factos que constituíram o casamento deste casal, feita quer pelo arguido quer pela ofendida, quer, ainda pela mãe da ofendida e, ainda, resultou evidenciado pelo modo como a própria depôs em tribunal. O arguido quis falar sobre as suas condições sócio-económicas, o que fez de forma que ao tribunal mereceu credibilidade, donde a prova dos factos 11.º a 16.º. Os antecedentes criminais extraem-se do certificado de registo criminal junto aos autos. 2. Enquadramento legal. 2.1 - O arguido não se conforma com o facto de ter sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, com referência ao artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, na sua redacção actual, resultante da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro – que alterou a anterior redacção do artigo 152.º e introduziu o artigo 152.º-A, sob a epígrafe “maus tratos”. O artigo 152.º, na sua actual redacção, sob a epígrafe “violência doméstica”, sanciona com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade ou ofensas sexuais, ao cônjuge ou ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, a progenitor de descendente comum em 1.º grau ou a pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ela coabite, sendo a pena agravada no respectivo limite mínimo se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima. Em termos, a incriminação pressupõe a existência de uma actuação dolosa do agente, segundo o disposto nos artigos 13.º e 14.º do Código Penal. 2.2 Nos termos dos artigos 124.º e 125.º do Código de Processo Penal, constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis, sendo admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. Salvo quando a lei dispuser diferentemente – como ocorre nos casos de prova vinculada – o Tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção – artigo 127.º do Código de Processo Penal. “Como uniformemente expendem os autores, livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova” – Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal”, Almedina, página 354, em anotação ao artigo 127.º. “O princípio da livre apreciação da prova é direito constitucional concretizado. Ele não viola a CRP antes a concretiza (acórdão do TC n.º 1165/96, reiterado pelo acórdão n.º 464/97): “A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessário para uma efectiva motivação da decisão”. O princípio tem, portanto, limites. A CRP e a lei estabelecem limites endógenos e exógenos ao exercício do poder de livre apreciação da prova. Esses limites dizem respeito (…) ao grau de convicção requerido para a decisão, (…) à proibição de meios de prova, (…) à observância do princípio da presunção da inocência, (…) à observância do princípio in dubio pro reo” – Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, páginas 329 e 330, em anotação ao mesmo artigo. O limite normativo do princípio da livre apreciação da prova consubstancia-se no princípio “in dubio pro reo”, que impõe ao julgador que decida para além de toda a dúvida razoável, beneficiando o arguido sempre que, perante as provas disponíveis, exista dúvida séria acerca dos factos. “O princípio in dubio pro reo consubstancia um princípio geral do direito processual penal (…). Trata-se da aplicação de uma regra de decisão (…). A aplicação deficiente desta regra, bem como a sua não aplicação são passíveis de controlo pelo STJ (…). Mas é importante que se note que este controlo não inclui as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e deveria ter tido (…), pois o princípio in dubio não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio in dubio não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto” – autor e obra anteriormente citados, página 341, em anotação ao artigo 127.º. 2.3 A sentença começa por um relatório ao qual se segue a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – artigo 374.º do Código de Processo Penal. É permitido o recurso das sentenças; e, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida; e mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova – artigos 399.º a 410.º do Código de Processo Penal. No ensinamento de Simas Santos e Leal-Henriques (“Recursos em Processo Penal”, 6.ª Edição, Editora Reis dos Livros, páginas 69 e seguintes), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher. Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final. Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a «formulação incorrecta de um juízo» em que «a conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão» ”. No ensinamento dos mesmos autores (obra citada, página 71), a contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão verifica-se quando se detecta “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”. O erro notório na apreciação da prova consubstancia-se (autores e obra citados, página 74) em “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis. Erro notório, no fundo, é, pois, a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido). Assim, não poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no artigo 127.º (…)”. Nos casos em que a prova foi documentada, não se verificam as restrições antecedentes, quanto ao recurso relativo à matéria de facto, devendo o Tribunal da Relação proceder à audição ou visualização das passagens indicadas pelo recorrente e recorrido e de outras que julgue relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa – artigo 431.º do Código de Processo Penal. 3. Deixaram-se enunciados, em momento anterior, os pressupostos da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal. 3.1 É pacífico que se trata de questão de conhecimento oficioso, importando averiguar se se verifica nos presentes autos. A imputação da prática do crime ao arguido assenta em três factos essenciais, conforme resulta da sentença: o arguido disse à queixosa, no interior da residência do casal, em data indeterminada entre 12 de Abril e 10 de Outubro de 2007 e pelo menos por três vezes, que ela era “burra”; no dia 2 de Dezembro de 2007 e também no interior da residência do casal, por motivos relacionados com a quebra de um computador portátil pela queixosa, o arguido desferiu-lhe uma bofetada no lado esquerdo da face; nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou-lhe os pulsos. Em princípio, relevam os factos descritos na acusação (ou no despacho de pronúncia, caso tenha havido instrução) – que, definindo o objecto do processo, deve conter, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada – artigos 283.º e 308.º do Código de Processo Penal. Ao arguido é facultada a possibilidade de, além do mais, relatar factos que sejam relevantes para a apreciação da matéria em discussão, em sede de contestação – artigo 315.º do Código de Processo Penal. A apreciação a fazer para determinar se ocorreu ou não a prática do crime assenta no elenco dos factos provados, cabendo ao tribunal proceder a todos os actos de produção de prova, mesmo que com prejuízo da ordem legalmente fixada para eles, sempre que o entender necessário para a descoberta da verdade, ordenando, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa – artigos 323.º, alínea a), e 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). A discussão da matéria de facto em audiência de julgamento assenta nos factos que integram as referidas peças processuais – acusação ou pronúncia e contestação. Sem prejuízo e no âmbito do princípio da investigação oficiosa, cabe ao tribunal promover as diligências que considerar relevantes e aditar os factos que resultem da discussão e que, obviamente, relevem para a decisão a proferir. No caso dos autos, os factos antes mencionados como provados, sob os artigos 1.º a 6.º, resultam do que consta do despacho de pronúncia, a que foram aditados os factos 7.º a 10.º, referentes ao relacionamento do casal e caracterizando o arguido e a queixosa, e os factos 11.º a 17.º, referentes às condições económicas do arguido. Conforme se vê na motivação e apesar do arguido, além de outras divergências pontuais, refutar ter chamado “burra” à queixosa, ter-lhe dado a bofetada e ter-lhe apertado os pulsos, há similitude de relato quanto às circunstâncias em que os factos ocorreram, quer o arguido quer a queixosa as descrevem “de forma globalmente coincidente”. Da própria motivação resulta a existência de factos que se revelam determinantes para a correcta apreciação da matéria que se discute, incluindo a própria qualificação jurídica dos factos. Assim, relativamente à matéria que integra o artigo 2.º dos factos provados e pese embora a divergência dos relatos no que diz respeito à efectiva utilização da palavra “burra”, é certo que a comunicação entre o arguido e a queixosa se estabeleceu através de computadores e pelo circuito internet, encontrando-se o arguido temporariamente em Angola e a queixosa no interior da casa que era então a residência do casal, no Entroncamento. Quanto ao artigo 3.º e aos factos ocorridos em 2 de Dezembro de 2007, pese embora o facto do arguido refutar ter dado a bofetada à queixosa, é certo que, nos termos por esta relatados, tal ocorreu na sequência de ela própria ter destruído o computador portátil, atirando-o ao chão. No relato da queixosa, transcrito na sentença, “já vinha desconfiando que o marido mantinha uma relação extra-conjugal, do que se apercebeu desde a viagem do marido a Luanda. Afirmou que desde então o marido passava os dias ao computador e ao telemóvel. Que nesse dia, cerca da 1h da manhã veio à cozinha beber um copo de água, olhou para o computador e decidiu acabar com tudo, razão pela qual partiu o computador. O arguido veio ter com ela à cozinha e quando viu o computador partido deu-lhe uma bofetada na face esquerda”. O relato do arguido confirma a destruição do computador, nos termos sumariados na sentença; os relatos são coincidentes quando afirmam que, depois de atirar o computador ao chão, a queixosa foi pegar novamente no mesmo para o atirar pela janela e o arguido impediu-a (agarrando-a pelo ombro, no relato deste e sempre nos termos sumariados na sentença). Relativamente à matéria do artigo 4.º, aí se consigna que, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da queixosa. Esta, no seu próprio relato, transcrito na sentença, pegara entretanto na placa 3G do computador e queria parti-la, tendo o arguido agarrado nos seus pulsos e tirado a placa das suas mãos. Os factos em questão, apesar de não constarem do despacho de pronúncia, foram objecto de discussão em audiência de julgamento, como se afirma expressamente na sentença recorrida e nos termos que aí se transcrevem de forma sumária. Os mesmos afiguram-se imprescindíveis para a correcta apreciação da causa; a própria sentença recorrida se reporta a tais factos, na parte em que procede à “determinação da medida da pena”. Contudo, para poderem ser validamente considerados, os factos em questão têm necessariamente que integrar o elenco dos factos provados; a sua omissão determina a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, nos termos e com as implicações que anteriormente se deixaram enunciadas. Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio – artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estabelecendo o artigo 426.º-A a competência para novo julgamento. Sem prejuízo de tais regras e do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3 do artigo 412.º ou se tiver havido renovação da prova – artigo 431.º do Código de Processo Penal. No caso dos autos, além de constarem do processo todos os elementos de prova que lhe serviram de base, houve impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto; em tais circunstâncias, estando ao alcance deste tribunal da relação a possibilidade de modificação da matéria de facto, fica prejudicado o reenvio do processo para novo julgamento, pese embora a verificação do vício apontado. 3.2 O arguido, em sede de recurso, também suscita a existência, entre outros, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ainda que reportando-se a pressupostos diferentes – parágrafo D2, números 33 e seguintes, das conclusões de recurso. É assim que o arguido, relativamente ao ponto 2.º dos factos provados, defende que “não podemos aceitar como suficiente para considerar sem sombra de dúvida provado que o mesmo apelidou a ofendida/testemunha de burra por pelo menos três vezes, pois nada consta a este respeito das declarações da sua mãe, expressas no texto da sentença, bem como porque das declarações da ofendida/testemunha que são demasiado vagas, até abstractas e não permitem por si só concluir sem qualquer dúvida pela prática deste facto por três vezes, referindo esta “Chamou-lhe o termo de “burra” pelo menos três vezes, quando a ofendida lhe perguntava como é que fazia isto e aquilo” não concretizando em que consistia o isto ou aquilo” (conclusão 44); e, no que respeita ao ponto 3.º, sustenta que as declarações da testemunha Amélia, “mesmo que se admita que a cara da ofendida/testemunha, estivesse vermelha e com a marca de uma mão não permitem, por si só, concluir que a autoria da referida marca se deveu a um acto praticado pelo recorrente” (conclusão 47); ou ainda, quanto aos pontos 5.º e 6.º, pretende que, “no que respeita à bofetada na face da ofendida e ao agarrar dos pulsos desta, consideramos não estar preenchido o elemento subjectivo do ilícito pois, resulta claramente da “Motivação” e do “Enquadramento jurídico-penal” da sentença que tudo se terá passado num momento de descontrolo da ofendida e do arguido” (conclusão 60). As questões assim suscitadas pelo recorrente, pese embora a referência que faz à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, não integram o vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, configurando antes a sua discordância em relação à forma como o tribunal recorrido apreciou a prova produzida em audiência. Ora, “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto tomada. Para que exista aquele vício, é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão proferida, por se verificar uma lacuna no apuramento da matéria necessária para uma decisão de direito. Não ocorre esse vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar. A demonstração dessa insuficiência não pode emergir da mera discordância em relação à forma como o tribunal recorrido terá apreciado a prova produzida, pois aí poderá haver apenas erro de julgamento da matéria de facto” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Julho de 1998, processo n.º 436/98, citado por Simas Santos e Leal-Henriques (“Recursos em Processo Penal”, página 70). Em tais circunstâncias, fica prejudicada, nesta parte, a argumentação do arguido. No mesmo capítulo (D2) e quanto ao ponto 4.º dos factos provados, o arguido refuta que os mesmos preencham o tipo de ilícito constante no artigo 152.º do Código Penal. A questão assim suscitada também não se integra no vício que aqui se aprecia, configurando antes uma divergência quanto à qualificação jurídica – questão que, em momento ulterior, se apreciará. 4. O arguido invoca ainda, no mesmo capítulo das conclusões de recurso, a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal. A propósito do ponto 2.º dos factos provados e se bem se interpreta o entendimento do recorrente, este alega que “consta que entre 12 de Abril de 2007 e 10 de Outubro de 2007 no interior da residência do casal, o arguido disse à ofendida, pelo menos, por três vezes, que ela era “burra”, ora, nada consta do texto da sentença que permita concluir que o arguido se encontrava no interior da residência do casal nesse período (conclusão 34); aliás, no referido ponto 2.º dos “factos provados” consta que o facto ocorreu no período em que o arguido esteve em missão em Angola (conclusão 35); claro está que nada obsta a que o arguido se tenha deslocado nesse período a Portugal, que se tenha dirigido à residência comum do casal e lá tenha proferido as expressões pelas quais foi condenado (conclusão 36); sucede, no entanto, que o exposto na “Motivação” da sentença contradiz a decisão plasmada no referido ponto 2.º (conclusão 37); nunca se poderia ter considerado como provado que tais expressões foram proferidas no interior da residência do casal (conclusão 40). Analisado o texto da sentença, verifica-se que a redacção do ponto 2.º dos factos provados é susceptível de interpretações contraditórias e de gerar a dúvida quanto às concretas circunstâncias em que ocorreram os factos. Contudo, a leitura da motivação dos factos provados evidencia o alcance do texto em questão. Na verdade, a sentença é expressa ao afirmar que “o tribunal considerou como verosímil a versão da ofendida (…), a forma circunstanciada como depôs tornam credível a sua versão (…) não procurou ocultar factos, assumindo que partiu o computador, que pretendia atirá-lo pela janela e que era, ainda sua intenção dar o mesmo destino à placa 3G (…), nada escondeu assumindo que o arguido apenas lhe chamou “burra” por três vezes e que esta foi a única vez que aquele lhe bateu”. É igualmente explícita ao consignar que a queixosa “referiu que já se lhe tinha dirigido, na altura em que o arguido estava na segunda missão, que teve lugar desde a Páscoa até ao dia 5 de Outubro, dizendo-lhe através de comunicação pelo computador “Não tens vergonha de ser tão burra?”. Chamou-lhe o termo de “burra” pelo menos três vezes, quando a ofendida lhe perguntava como é que fazia isto e aquilo” (texto igualmente transcrito pelo arguido na conclusão 38). Perante estes elementos e nos termos que se deixaram mencionados em momento anterior, é pacífico que, relativamente à matéria que integra o artigo 2.º dos factos provados e pese embora a divergência dos relatos no que diz respeito à efectiva utilização da palavra “burra”, a comunicação entre o arguido e a queixosa se estabeleceu através de computadores e pelo circuito internet, encontrando-se o arguido em Angola e a queixosa no interior da casa que era a residência do casal, sita na Rua…, no Entroncamento, conforme consta do ponto 3.º. Perante estes factos, fez-se a leitura que integra o ponto 2.º dos factos provados, traduzindo-se esta realidade em afirmações feitas “no interior da residência do casal”. Se bem se aprecia a matéria em questão, havendo contradição, não se vê que a mesma seja insanável, perante os fundamentos que constam da motivação e que esclarecem o alcance do que se deixou vertido no ponto 2.º. Por isso, também aqui fica prejudicada a argumentação do arguido, sem prejuízo de subsistir a apreciação a fazer nos termos anteriormente enunciados, a propósito da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – insuficiência que se traduz em omissão de factos relevantes para a correcta apreciação do comportamento do arguido e da qualificação jurídica dos respectivos actos. 5. Analisado o teor da sentença sob recurso, não se vê, nem é invocada, a existência de erro notório na apreciação da prova, vício a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal e que anteriormente se deixou caracterizado. 6. A impugnação pelo arguido da sentença no que concerne aos pontos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º dos factos provados por, alegadamente, não terem resultado provados da prova produzida em sede de audiência de julgamento. 6.1 Nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, o Tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção. Deixou-se enunciado em momento anterior o alcance e as limitações de tais princípios. É permitido o recurso em matéria de facto, sendo este irrestrito quando, como é o caso, a prova foi documentada. Ao recorrente impõe-se a observação de regras especiais. A este propósito e nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Penal, interposto recurso, a motivação enuncia especificamente os respectivos fundamentos e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda as normas jurídicas violadas [n.º 2, alínea a)], o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada [n.º 2, alínea b)] e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada [n.º 2, alínea c)]. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados [n.º 3, alínea a)], as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida [n.º 3, alínea b)] e as provas que devem ser renovadas [n.º 3, alínea c)]. Quando as provas tenham sido gravadas (que é, actualmente, a regra), as especificações previstas nas alíneas b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Esta última norma estabelece que, quando houver lugar a gravação magnetofónica ou audiovisual, deve ser consignado na acta o início e o termo da gravação de cada declaração. É pacífico que, em princípio, não se trata aqui de proceder a um novo julgamento, pelo tribunal superior. Visa-se antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último, proceder à reponderação dos factos provados e não provados e da respectiva fundamentação, corrigindo-se no que for essencial e relevante os factos provados e não provados, colmatando-se erros de julgamento – que devem ser indicados pelo recorrente, sem perder de vista as regras processuais de produção e valoração da prova. 6.2 No caso dos autos, pretende o arguido que a prova produzida em audiência de julgamento não permite que se tenham por demonstrados os factos que integram os pontos 2.º a 7.º. Especificamente no que diz respeito aos factos vertidos nos artigos 2.º a 4.º, a sua objecção assenta, no essencial, nos seguintes pressupostos: o arguido, prestando declarações em audiência de julgamento e fazendo-o de modo credível, refutou os factos aí enunciados, especificamente, que tenha chamado “burra” à queixosa, que lhe tenha dado uma bofetada na face e que lhe tenha agarrado os pulsos; a queixosa e a testemunha A., sua mãe, prestaram depoimentos contraditórios, pouco credíveis, sendo a primeira caracterizada na sentença recorrida como pessoa que aparenta um carácter possessivo e algo instável, imputando ao arguido os comportamentos que ditaram a separação. O arguido transcreve trechos das declarações por si prestadas e dos depoimentos das testemunhas, com o intuito de confirmar as razões invocadas. Feita a análise dos elementos transcritos, verifica-se que os mesmos foram considerados na sentença recorrida, onde se dá conta da existência do relato contraditório do arguido e das aludidas testemunhas e se explicitam as razões que levaram o tribunal a acolher a descrição dos factos feita pela queixosa – nos termos que em momento anterior se deixaram transcritos. Salienta-se a este propósito que a queixosa evidenciou no respectivo depoimento que não procurou ocultar factos, assumindo que partiu o computador, que pretendia atirá-lo pela janela e que era ainda sua intenção dar o mesmo destino à placa 3G da Vodafone; salienta-se ainda que, apesar da personalidade evidenciada por ambas, algo agitada e com uma certa obsessão em imputar ao arguido os comportamentos que ditaram a separação, a queixosa e sua mãe descreveram os factos ocorridos em 2 de Dezembro sem os empolar, enquadrando-os no contexto daquele dia, contexto este que, apesar de divergências pontuais, o arguido também não negou. Em termos mais genéricos e conforme se extrai igualmente da sentença, quer o arguido quer a queixosa, apesar dos elementos contraditórios, descreveram as circunstâncias em que os factos ocorreram de forma globalmente coincidente. Conclui-se que o tribunal, apoiado em todas as circunstâncias enunciadas, criticamente conjugadas de acordo com as regras da experiência comum e com a naturalidade das coisas, julgou credível e sustentada a versão apresentada pela queixosa, razão pela qual deu como provados os factos 1.º a 6.º. Os factos que aqui se discutem ocorreram em circunstâncias restritas e espaço fechado, sem o acesso de terceiros; este facto não pode deixar de ser ponderado ao aferir a credibilidade do relato dos intervenientes; na ausência de elementos consistentes que ponham em causa a credibilidade do relato da queixosa, não pode deixar de prevalecer o seu relato. Nos termos anteriormente apontados, o elemento determinante foi o depoimento prestado pela queixosa, complementado pelo da testemunha A., sua mãe. O recurso de facto em análise radica essencialmente no entendimento do recorrente de que a sua versão dos factos é que é merecedora de credibilidade, e não a versão oposta que veio a ser acolhida na sentença, pretendendo o mesmo substituir a convicção alcançada pelo tribunal recorrido com base na valoração que fez sobre determinados meios de prova, à sua própria convicção fundada, obviamente, na valoração que fez dos mesmos meios de prova. Mas foi o tribunal recorrido quem beneficiou da imediação da prova. Foi pois ele quem pôde avaliar a forma como cada interveniente prestou as suas declarações e depoimentos, a forma como se expressou e reagiu aos sucessivos estímulos para, a final, aferir do grau de credibilidade que cada um lhe mereceu. E foi isso o que o tribunal recorrido fez, explicando as razões que o levaram a tal. Ponderados as declarações prestadas pelo arguido e os depoimentos da queixosa e de sua mãe e pese embora a existência de elementos contraditórios no depoimento desta, particularmente no que concerne às circunstâncias em que o arguido chamou “burra” à queixosa e a pormenores referentes às circunstâncias em que observou na cara de sua filha a marca compatível com uma bofetada, a que poderá não ser estranho o tempo entretanto decorrido, não se vê que sejam apontados elementos consistentes para desacreditar o relato da queixosa e para questionar a decisão do tribunal, não bastando para esse efeito a discordância do arguido quanto aos fundamentos de convicção do tribunal. O facto da queixosa, no âmbito do artigo 4.º dos factos provados, confirmando que o arguido a agarrou nos pulsos, ter pormenorizado imediatamente de seguida que ele lhe fez “uma técnica qualquer que há” para que ela abrisse as mãos e lhe tirasse a placa que agarrava e que se propunha estragar (cf. transcrição do recorrente na motivação de recurso, fls. 16), ou da testemunha A. ter referido que o arguido “tanto andou que ele apertou-lhe o pulso e ela teve que abrir a mão e ele ficou com aquilo na mão dele (cf. transcrição do recorrente na motivação de recurso, fls. 17), não prejudica o facto vertido nesse artigo – que o arguido, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, agarrou os pulsos da queixosa. Conclui-se então nesta parte – relativamente aos artigos 2.º a 4.º dos factos provados – que não procedem as razões afirmadas pelo recorrente ao procurar contrariar a fundamentação de facto da decisão recorrida. Isso sem prejuízo da ponderação que se efectuará em momento ulterior e consequente alteração da matéria de facto, suprindo a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos anteriormente enunciados e ao abrigo do disposto nos artigos 410.º e 431.º do Código de Processo Penal. Especificamente no que diz respeito aos factos vertidos nos artigos 5.º e 6.º, a sua objecção assenta, no essencial, nos seguintes pressupostos: mesmo a admitir-se que apelidou a queixosa de “burra”, tal comportamento não passou de mero desabafo, à semelhança do que ocorre na grande maioria das casas de famílias portuguesas, em que marido e mulher chamam “burro(a)” um ao outro, ou outras expressões semelhantes, sem que com isto pretendam ofender a honra ou a dignidade do outro; ao admitir-se o estado descontrolado do arguido nunca se poderá concluir que o mesmo agisse com dolo, que tivesse a intenção de ofender a integridade física, mormente de lhe provocar dor, marcas ou qualquer outro dano, pois um acto descontrolado é um acto desprovido de consciência, não existindo neste qualquer reflexão. A este propósito, importa começar por salientar que se desconhece se, “na grande maioria das casas de famílias portuguesas”, marido e mulher chamam “burro(a)” um ao outro, não se mostrando tal facto comprovado no processo nem se evidenciando que se trate de facto notório. De qualquer modo, esse facto não retira ao arguido a consciência do seu significado e alcance e não prejudica uma actuação intencional. Quanto ao alegado descontrolo, é certo que se afirma na sentença recorrida que é admissível que o arguido em algum momento, quiçá cansado de uma relação que vinha sendo pautado pelo desentendimento e por atitudes mais possessivas por parte da ofendida, se tenha descontrolado e desferido a bofetada depois de constatar que a ofendida partiu o computador e que agia de forma igualmente descontrolada, pois pretendia, ainda, atirar o computador pela janela. Importa começar por salientar que esta afirmação pretende justificar um comportamento do arguido que não é conforme ao seu comportamento habitual, caracterizado como pessoa calma, cordata e paciente. Por outro lado, um “comportamento descontrolado” não determina necessariamente e de forma absoluta uma falta de consciência que justifique falta de capacidade de percepção dos actos, do seu alcance e das suas implicações. O facto em questão – as concretas circunstâncias em que o arguido agiu – não é inócuo e tem seguramente relevância em outra sede: foi assim que, na sentença recorrida, se ponderaram positivamente para o arguido, no que concerne à determinação da medida da pena. Não justifica, no entanto, a ausência de dolo. Por isso também aqui se conclui que não procedem as razões afirmadas pelo recorrente ao procurar contrariar a fundamentação de facto da decisão recorrida. Finalmente, quanto ao que consta do artigo 7.º dos factos provados, pretende o arguido que também aqui não se fez prova de tal facto; o mesmo não resulta das declarações da queixosa nem do depoimento prestado por sua mãe – que, de qualquer forma, não deveria ter sido considerado credível. A este propósito, afirma-se na sentença recorrida – mencionando parte das declarações prestadas pelo arguido – que este salientou que a ofendida, durante a vida de casados, teve várias crises psicológicas e que as mesmas derivavam de algumas frustrações, designadamente do facto de não terem filhos e que ela procurava superá-las com a aquisição de bens materiais. Referiu que muitas discussões tinham origem na compra dos bens. Em momento ulterior, refere-se que ambos (arguido e queixosa) afirmaram que estavam casados há cerca de 20 anos e que ambos já se vinham desentendendo desde há algum tempo. A ofendida afirmou, ainda, que desde há algum tempo que havia muita intromissão por parte dos familiares directos do arguido na vida do casal. Não se afigura que o depoimento da testemunha A., nos termos transcritos pelo arguido em sede de motivação de recurso – ao afirmar em sede de inquérito (em auto que foi lido em audiência) que a relação do casal foi muito boa até ao Verão de 2007 e que não tem conhecimento de outra desavença e ao afirmar em audiência que eles nos primeiros anos foram muito felizes e que a certa altura a coisa começou a andar para trás – configure elemento relevante para contrariar a conclusão do tribunal, nos termos antes expostos e que levou à afirmação do que consta no artigo 7.º dos factos provados. 7. A alegada violação do princípio “in dubio pro reo”. 7.1 Neste capítulo, o arguido suscita também a verificação dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto e de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Os vícios assim referenciados estão previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Em momento anterior, procedeu-se à apreciação desta matéria (cf. pontos 3.2 e 4.), reiterando-se aqui o que então se afirmou e as respectivas conclusões. 7.2 Em momento anterior, deixaram-se sumariamente enunciados os pressupostos do princípio “in dubio pro reo” – que se consubstancia como limite normativo do princípio da livre apreciação da prova e que impõe ao julgador que decida para além de toda a dúvida razoável, beneficiando o arguido sempre que, perante as provas disponíveis, exista dúvida séria acerca dos factos. Como aí também se mencionou, este controlo não inclui as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e deveria ter tido, não se aplicando quando o tribunal não tem dúvidas e não servindo para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto. Não resulta de tal princípio que a simples existência de versões diferentes e até contraditórias sobre factos relevantes imponha a prevalência da dúvida. A preterição deste princípio pressupõe a existência de dúvida por parte do julgador, só podendo ser afirmada quando decorrer do texto da decisão recorrida que o tribunal, na dúvida, decidiu contra o arguido. Pretende o recorrente que o tribunal recorrido não aplicou o aludido princípio face às reticências e dúvidas suscitadas pelas contradições das declarações prestadas pelo arguido e dos depoimentos das testemunhas L. e A. A existência de algumas contradições nos depoimentos é assumida na sentença recorrida, como antes se deixou mencionado, bem como a existência das versões opostas do arguido e da queixosa. Apesar disso, o tribunal recorrido firmou convicção quanto aos factos que julgou provados, fixando os mesmos e justificando a sua convicção em sede de motivação. Como antes se assinalou, não se vê que haja fundamento consistente para contrariar a conclusão do tribunal recorrido Por isso, também aqui improcede o recurso. 8. A superação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. 8.1 - Conforme anteriormente se deixou mencionado, a sentença sob recurso padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que justificaria a remessa para novo julgamento. Contudo, nos termos do artigo 431.º do Código de Processo Penal e sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3 do artigo 412.º ou se tiver havido renovação da prova. No caso dos autos, além de constarem do processo todos os elementos de prova que lhe serviram de base, houve impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto; em tais circunstâncias, é admissível a modificação da matéria de facto, ficando prejudicado o reenvio do processo para novo julgamento. A modificação em causa reporta-se aos artigos 2.º, 3.º e 4.º dos factos assentes e consubstancia-se na pormenorização das circunstâncias em que ocorreram os factos já aí mencionados, com relevância para a adequada decisão, conforme se deixou anteriormente referido. 8.2 - No artigo 2.º dos factos provados consta que, em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante o período em que o arguido esteve em Missão em Angola, desde 12 de Abril de 2007 até 10 de Outubro de 2007, no interior da residência do casal, o arguido disse à ofendida, pelo menos, por três vezes, que ela era “burra”. Conforme consta da sentença, ao sumariar o relato da queixosa, esta referiu que o arguido estava na sua segunda missão e que comunicavam entre si através de computador, sendo esclarecido pelo depoimento da testemunha P. nos termos também sumariados na sentença recorrida, o modo como habitualmente eram feitos os contactos. Em algumas dessas comunicações, a queixosa indagava o arguido sobre o modo como deveria proceder em algumas situações (nos termos que constam da sentença, perguntava-lhe “como é que se fazia isto e aquilo”). A queixosa relatou que, nessas comunicações, perguntou por vezes ao arguido como deveria proceder em relação a “assuntos que ficaram cá por minha conta” e dado que “ele é que tratava de tudo” (cf. transcrição feita pelo arguido, a fls. 6 da motivação de recurso). O próprio arguido afirmou em audiência que, em Setembro de 2007, no período em que esteve a trabalhar em Angola, a queixosa lhe telefonou cinco vezes porque não conseguia ligar o ar condicionado; afirmou ainda que, ao quinto telefonema lhe disse algo no sentido “Mas é assim tão difícil perceber que tem que carregar no botão?” e “É preciso tirar algum curso?”. A queixosa confirmou que, no âmbito de contactos assim estabelecidos e por comunicação escrita, dadas as dificuldades de comunicação verbal, o arguido lhe indagou se seria preciso tirar um curso, afirmando ainda duas, três vezes, se era “burra”. Os relatos em questão esclarecem as circunstâncias em que o arguido, dirigindo-se à queixosa, lhe chamou “burra”, bem como o modo como comunicavam entre si. É relevante a inclusão de tais elementos no artigo em apreciação. Assim, o artigo 2.º dos factos provados passa a ter a seguinte redacção: “2.º-A – O arguido esteve em missão em Angola, desde 12 de Abril de 2007 até 10 de Outubro de 2007, período durante o qual o arguido e a queixosa comunicavam entre si através de computador, encontrando-se a queixosa no interior da residência do casal. 2.º-B – Em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante esse período e numa dessas comunicações, o arguido, questionado pela queixosa em relação a dúvidas que esta tinha sobre o modo como deveria proceder, disse-lhe se seria preciso tirar um curso, afirmando, por três vezes, que ela era “burra”. 8.3 - No artigo 3.º dos factos provados consta que, no dia 2 de Dezembro de 2007, pelas 01h15, no interior da então residência do casal, sita na Rua…, no Entroncamento, área desta cidade e comarca, por motivos relacionados com a quebra de um computador portátil pela ofendida, o arguido desferiu uma bofetada no lado esquerdo da face da ofendida. A este propósito e como consta da sentença recorrida, a queixosa afirmou que vinha desconfiando que o marido mantinha uma relação extra-conjugal, do que se apercebeu desde a viagem do marido a Luanda; afirmou que desde então o marido passava os dias ao computador e ao telemóvel; que nesse dia, cerca da 1 hora da manhã veio à cozinha beber um copo de água, olhou para o computador e decidiu acabar com tudo, razão pela qual partiu o computador. O arguido veio ter com ela à cozinha e quando viu o computador partido deu-lhe uma bofetada na face esquerda. Logo de seguida, a queixosa foi pegar novamente no computador para o atirar pela janela e o arguido impediu-a. O relato do arguido não confirma a existência da aludida suspeita e afirma que a queixosa tinha crises psicológicas, o que então ocorria, pretendendo que lhe comprasse um carro, sendo esta – de acordo com o seu relato – a origem de discussão entre ambos; os relatos não são aqui concordantes; o arguido, apesar de refutar ter desferido qualquer bofetada, confirma no entanto as razões imediatas que o levaram a abordar a queixosa: esta pegou no computador que lhes pertencia e atirou-o ao chão, partindo-o; e porque a mesma queria voltar a pegar no computador para o atirar pela janela, agarrou-a pelo ombro para a impedir de voltar a pegar nele. Os elementos concordantes nos relatos do arguido e da queixosa evidenciam que o comportamento do arguido ocorreu na sequência da quebra do computador pela queixosa. Também aqui se mostra relevante a inclusão pormenorizada de tais elementos no artigo em apreciação. Assim, o artigo 3.º dos factos provados passa a ter a seguinte redacção: “3.º-A – No dia 2 de Dezembro de 2007, pelas 01h15, no interior da então residência do casal, sita na Rua …, no Entroncamento, área desta cidade e comarca, a queixosa veio à cozinha, verificando que aí se encontrava o computador portátil usado pelo arguido. 3.º-B – Porque vinha desconfiando que o arguido mantinha relação extra-conjugal desde a viagem a Luanda, para cujo contacto usava o computador, pegou no mesmo e atirou-o ao chão, assim o partindo. 3.º-C – Apercebendo-se do barulho, o arguido veio ter à cozinha e, vendo o computador partido, desferiu uma bofetada na face esquerda da queixosa. 3.º-D – Posteriormente, segurou-a para a impedir de atirar o computador pela janela de casa”. 8.4 No artigo 4.º dos factos provados consta que, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da ofendida, sem que se mostrem esclarecidas as razões de tal procedimento. O relato da queixosa esclarece que esta, depois do episódio antecedente, com o computador, pegou na placa 3G do mesmo e queria parti-la, tendo o arguido agarrado nos seus pulsos e tirado a placa das suas mãos. O arguido, divergindo no objecto em questão (afirma que o objecto que a queixosa pegou foi um telemóvel) e no facto de a ter agarrado pelos pulsos, afirma que a agarrou pelas mãos, durante breves segundos, para lhe tirar o telemóvel, a fim de tentar evitar que ela o partisse. Assim fica esclarecida a razão pela qual o arguido agarrou a queixosa, sendo a mesma relevante para a decisão. Pelas razões enunciadas em sede de sentença quanto à credibilidade do relato da queixosa, relativamente às quais não se vê fundamento para divergir, acolhe-se aqui o mesmo. Assim, o artigo 4.º dos factos provados passa a ter a seguinte redacção: “4.º Ainda nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da ofendida, para a impedir de partir uma placa 3G do computador, vindo a tirá-la das suas mãos”. 9. A alegada violação dos artigos 152.º do Código Penal e 13.º, n.º 2 e 18.º, n.º 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa. 9.1 - O recorrente pretende que, ao interpretar o artigo 152.º no sentido em que o fez, a sentença recorrida violou o artigo 18.º da Constituição: ao admitirmos ter o referido artigo 152.º como ratio a protecção de homens/mulheres que eventualmente possam vir a ser vítimas de maus tratos, admite a norma constitucional a restrição do direito fundamental “liberdade” em benefício da salvaguarda do direito fundamental “integridade física e psicológica” em que esta é atacada de forma gratuita e com vista a maltratar alguém que se encontra numa situação fragilizada. Sucede que no caso concreto não existe qualquer situação de fragilidade da vítima, nem sequer podemos admitir existir aqui violência gratuita. O artigo 13.º da Constituição, consagrando o princípio da igualdade, estabelece que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei [n.º 1] e que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual [n.º 2]. O artigo 18.º estabelece que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas [n.º 1]; a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos [n.º 2]; as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais [n.º 3]. Relativamente ao crime de maus-tratos e na parte que aqui interessa, o artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção que vigorou até 14 de Setembro de 2007, introduzida pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio e anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, sancionava com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não fosse punível pelo artigo 144.º, quem infligisse ao cônjuge, ou a quem com ele convivesse em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos. Eram várias as condutas a que se reportava a norma, incluindo os maus-tratos físicos, como as ofensas corporais, maus-tratos psíquicos, como humilhações e provocações, passando por um amplo leque de situações susceptíveis de integrar os maus-tratos. Na vigência desta norma era discutido o respectivo alcance, remontando esta controvérsia à redacção inicial do Código Penal aprovado pelo Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, especificamente, ao seu artigo 153.º, com a epígrafe “maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges”. Alguns autores defendiam que a autonomização deste crime pressupunha uma prática reiterada das condutas que o consubstanciavam, não se bastando com a prática de actos pontuais. Também a existência de um tempo longo entre os dois ou mais dos referidos actos afastava o elemento reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, volume I, página 334, em anotação ao artigo 152.º, subscrita por Américo Taipa de Carvalho). Outros autores salientavam que a qualificação de um comportamento como mau trato ou tratamento cruel “deverá depender mais de uma certa medida de “gravidade traduzida por crueldade, insensibilidade e até vingança” da conduta, do que da reiteração dos comportamentos havidos, que poderá inclusivamente não estar presente. (…) Um dos critérios de valoração global da acção que poderá ser útil para decidir da coincidência entre a conduta e o sentido do tipo legal de crime é a adequação social”, pretendendo-se com isto dizer que “onde o sentido social da conduta formalmente abrangida pelo tipo não é aquele a que o legislador se quis referir, o tipo não está materialmente preenchido”, o que “sucederá frequentemente no caso de condutas bagatelares (…), mas também, e uma vez que a adequação social não está dependente ou vinculada a um critério de dimensão da lesão mas de uma valoração geral da conduta, no caso de lesões de certa intensidade, sempre que elas pela sua natureza, pela razão que as justificou (…), pelos motivos do agente e até pelas relações existentes entre as pessoas, não possam ser qualificadas como crime” (“Acerca da fronteira entre o castigo legítimo de um menor e o crime de maus tratos do artigo 152.º do Código Penal”, Maria Paula Ribeiro de Faria, “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 16, n.º 2, Abril/Junho de 2006, páginas 330 e 332). Esta diversidade de entendimentos reflectia-se na jurisprudência. Em acórdão proferido em 26 de Outubro de 2004, no processo 3988/2004-5, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, disponível em www.dgsi.pt, entendeu-se que “o âmbito de punição do crime de maus tratos a cônjuge implica que se verifiquem, de forma reiterada, comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge ou da pessoa a este equiparada, comportamentos esses que podem ser de várias espécies desde maus tratos físicos a maus tratos psíquicos tais como humilhações, provocações e ameaças mesmo que não configuradoras do crime de ameaças. Protege-se o bem jurídico saúde como bem complexo que abrange a saúde física e psíquica. Agressão física, ameaça de morte e proibição de acesso à garagem, à caixa de correio e de utilização do veículo automóvel são comportamento que, actuando o agente com dolo, preenchem o tipo de crime de maus-tratos a cônjuge”. Mas, em 29 de Janeiro de 2003, afirmava-se em acórdão proferido pela Relação de Coimbra, no processo 3827/2002 e disponível na mesma base de dados, que não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge; o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade da vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal. A matéria referente a esta incriminação foi entretanto objecto de alteração pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro; este diploma legal alterou a redacção do artigo 152.º – que, conforme se deixou antes enunciado, sob a epígrafe “violência doméstica”, sanciona agora com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade ou ofensas sexuais, ao cônjuge ou ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, a progenitor de descendente comum em 1.º grau ou a pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ela coabite, sendo o limite mínimo da pena agravado para dois anos se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima. Em termos subjectivos e em qualquer dos casos, a incriminação pressupõe a existência de uma actuação dolosa do agente, segundo o disposto nos artigos 13.º e 14.º do Código Penal. A prática do crime exige sempre uma conduta anti-jurídica, através da ofensa de um interesse penalmente tutelado, bem como a responsabilização do seu autor. A ilicitude do facto pressupõe um juízo de reprovação da ordem jurídica relativamente a este, incidindo a culpabilidade sobre o agente que praticou o facto ilícito objectivamente considerado e traduzindo-se num juízo de reprovação, de censura. A responsabilização penal do agente não se basta então com a atribuição a este do facto ilícito, através de um nexo de causalidade, sendo ainda necessário fixar as relações entre a vontade do agente e o facto, como pressuposto da imputação psíquica e pressuposto indispensável de responsabilidade penal. Salienta-se que a norma em questão, na sua actual redacção e ultrapassando a polémica antes referida, vem explicitamente afirmar que a incriminação se verifica quando os factos caracterizadores ocorram de modo reiterado ou não. Contudo, se bem se interpreta a lei e na parte que aqui interessa, não se pretendeu, com a alteração efectuada ao artigo 152.º pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, subsumir a esta norma todo e qualquer acto de agressão entre cônjuges ou ex-cônjuges, de modo a que deixe de ser configurável, entre tais intervenientes, a incriminação do artigo 143.º do Código Penal (ofensa à integridade física simples). Já em 14 de Novembro de 1997, o Supremo Tribunal de Justiça afirmava que só as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja, traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente é que cabem na previsão do artigo 152.º do Código Penal (Colectânea de Jurisprudência – STJ, tomo 3/1997, página 235). Este acórdão, proferido antes da actual redacção da norma, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, é duplamente relevante: por um lado, quando esclarece a divergência antes mencionada e afirma que “o artigo 152.º do Código Penal, no seu número 2, pune a actuação de quem infligir ao cônjuge maus tratos físicos ou morais, e a sua redacção teve como propósito a eliminação de algumas dúvidas que doutrinariamente tinham surgido na interpretação do artigo 153.º do Código Penal de 1982, e que conduziram a ter-se discutido se, no crime de maus tratos a cônjuge, fazia ou não parte do tipo uma certa habitualidade ou repetição de condutas ofensivas da integridade física ou moral do consorte ofendido, embora, a final, se tivesse fixado a jurisprudência no sentido de que, mesmo com a redacção de 1982, a referida figura criminal se poderia verificar com uma única conduta agressiva, desde que a sua gravidade intrínseca a pudesse fazer qualificar como tal. A actual redacção (leia-se, a redacção vigente em 1997), por consequência, mais não significa, no caso concreto, do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos”; por outro lado, quando salienta que “não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152.º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente”. As alterações introduzidas no artigo 152.º pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, vieram consolidar este entendimento. A consulta das actas da Unidade de Missão para a Reforma Penal, disponíveis em http://www.mj.gov.pt/sections/newhome/actas-da-unidade-de, não é particularmente esclarecedora. Evidencia-se no entanto, das actas 12 e 14, que se pretendeu, essencialmente, distinguir as diferentes incriminações que, integrando antes uma única norma, o artigo 152.º, passaram a constituir os artigos 152.º (violência doméstica), 152.º-A (maus tratos) e 152.º-B (violação de regras de segurança). Entretanto, em comunicação proferida nas Comemorações do dia da Mulher, promovidas pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas e disponível em http://www.apmj.pt/blog/?page_id=229, o Prof. Rui Pereira, coordenador da aludida Unidade de Missão para a Reforma Penal, esclareceu que “os maus-tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus-tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa”. Em nota de rodapé salienta-se que “hoje, não há jurisprudência uniforme quanto a este ponto. O melhor entendimento indica que o crime pode ser cometido numa só ocasião, se, por exemplo, o agente der “uma tareia” à vítima. Cf., já neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Outubro de 1996, CJ, Acs. STJ, IV, t. 3, p. 170”. Na mesma comunicação esclarece-se que, “no crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges. A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, desde que não lhes caiba pena mais grave. Introduz-se ainda uma agravação do limite mínimo da pena (de um para dois anos de prisão), no caso de o facto ser praticado contra menores, na presença de menores ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente”. Analisados os termos da lei e ponderados os elementos que se deixam expostos, reitera-se que a actual configuração do crime de violência doméstica, não exigindo comportamentos reiterados, pressupõe comportamento que se possa qualificar como maus tratos, o que não ocorre com qualquer agressão; sem se pretender branquear os comportamentos de violência doméstica e a gravidade dos mesmos na vida em sociedade e desvalorizar ou esvaziar de conteúdo útil a disposição do artigo 152.º, mas também sem reconduzir à mesma todo e qualquer acto de agressão entre cônjuges ou ex-cônjuges, entende-se que a configuração do crime pressupõe a existência de maus tratos físicos e psíquicos, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, actos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação. Em recente acórdão, proferido em 28 de Janeiro de 2010, no âmbito do processo n.º 61/07.0GCPBL.C1, disponível em www.dgsi.pt, também o Tribunal da Relação de Coimbra concluiu que não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal; não comete o crime previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1,alínea a), mas o previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, ambos do Código Penal, quando apenas resulta provado que num determinado dia o arguido colocou com força a mão na zona do pescoço da assistente e que, por essa forma lhe causou lesões. 9.2 Confrontando o que se deixa exposto com a matéria de facto dos presentes autos, logo avulta que é incorrecta a qualificação feita na sentença recorrida, ao considerar que o comportamento do arguido configura a prática de um crime de violência doméstica. No essencial, estão em causa os factos ocorridos em 2 de Dezembro de 2007, especificamente, o facto de, nesse dia, o arguido ter desferido uma bofetada na cara da queixosa e ter-lhe agarrado os pulsos. É certo que tais factos se verificaram e que ocorreram no interior da casa onde então viviam o arguido e a queixosa, casados desde 9 de Agosto de 1986. Contudo, a correcta qualificação dos factos exige que se considere o respectivo enquadramento, as concretas circunstâncias em que o arguido agiu. E a esse propósito, sabe-se que nesse dia, pela 1 hora e 15 minutos, no interior da então residência do casal, a queixosa veio à cozinha, verificando que aí se encontrava o computador portátil usado pelo arguido; porque vinha desconfiando que o arguido mantinha relação extra-conjugal desde a viagem a Luanda, para cujo contacto usava o computador, pegou no mesmo e atirou-o ao chão, assim o partindo; apercebendo-se do barulho, o arguido veio ter à cozinha e, vendo o computador partido, desferiu uma bofetada na face esquerda da queixosa; posteriormente, segurou-a para a impedir de atirar o computador pela janela de casa. Ainda nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da ofendida, para a impedir de partir uma placa 3G do computador, vindo a tirá-la das suas mãos. Importa começar por salientar que, relativamente a este último facto – o arguido agarrou os pulsos da queixosa – não se vê que configurem, com inteira propriedade, um acto de agressão, tendo em conta as concretas razões que determinaram o arguido a tal procedimento e o facto de não se evidenciar que daí tenha resultado efectiva lesão para a queixosa. Esta conclusão é extensível ao facto do arguido ter, posteriormente, segurado a queixosa para a impedir de atirar o computador pela janela de casa. A conclusão não é a mesma no que concerne à bofetada desferida pelo arguido: é certo que estamos perante agressão física que as circunstâncias do caso não justificam e que se traduz na prática de acto ilícito. Contudo, não pode extrair-se daqui que estejamos perante comportamento que configure maus-tratos por parte do arguido sobre a respectiva cônjuge. Na verdade, sem se justificar tal procedimento, as concretas circunstâncias em que o arguido agiu não evidenciam um comportamento cruel ou insensível ou uma intenção perversa por parte do arguido, apresentando-se antes como uma resposta – censurável, é certo – ao procedimento da queixosa. Esta conclusão não é contrariada pelo facto de se demonstrar que, nos períodos de tempo que antecederam os factos, o arguido e a queixosa vinham tendo um mau relacionamento entre si, desentendendo-se frequentemente. Por um lado, não se evidencia daqui que sejam de imputar ao arguido (ou apenas ao arguido) os desentendimentos verificados; por outro lado, desconhecem-se os concretos termos em que se traduziam tais desentendimentos, nomeadamente, que se traduzissem em actos de agressão física ou psicológica por parte do arguido em relação à queixosa. Também aqui não releva o facto do arguido, em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante o período em que esteve em missão em Angola, desde 12 de Abril de 2007 até 10 de Outubro de 2007 e em que comunicava com a queixosa através de computador, questionado pela queixosa em relação a dúvidas que esta tinha sobre o modo como deveria proceder, lhe tenha dito se seria preciso tirar um curso, afirmando, por três vezes, que ela era “burra”. Sem prejuízo de se poder qualificar esta afirmação como injuriosa e sem se pretender vulgarizar a mesma, sob o pretexto de que resulta das regras do senso comum que, “na grande maioria das casas de família portuguesas, marido e mulher chamam “burro(a)” um ao outro em diversas ocasiões da vida conjugal sem que com isto se pretendam ofender a honra ou dignidade do outro, não passando a maioria das vezes de meros desabafos”, não se vê que tenha a gravidade necessária para a caracterização de uma situação de maus tratos psíquicos. Conclui-se então que o comportamento do arguido configura a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º do Código Penal – e não de um crime de violência doméstica, com referência ao artigo 152.º do mesmo diploma legal e pelo qual vinha pronunciado – incorrendo, pela prática do mesmo, em pena de prisão de um mês até três anos ou pena de multa de dez a 360 dias (artigos 143.º, 41.º e 47.º do Código Penal). Confrontando o que se deixa exposto com os princípios constitucionais dos artigos 13.º e 18.º da Constituição, não se vê que ocorra violação dos princípios da igualdade ou da proporcionalidade. É certo que se altera aqui a qualificação dada aos factos pelo tribunal recorrido, por se considerar ter existido erro de qualificação; mas em tais circunstâncias, perante a qualificação que se julga correcta, mostram-se prejudicadas outras considerações quanto à alegada inconstitucionalidade. 10. Alegada violação de normas jurídicas. O recorrente pretende que a sentença violou os artigos 14.º, 31.º e 34.º do Código Penal e 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. A primeira das referidas normas – que anteriormente se deixou transcrita – define as diferentes modalidades de dolo, integrando-se os artigos 31.º e 34.º no capítulo das causas que excluem a ilicitude e a culpa. Especificamente, o artigo 31.º do Código Penal determina que o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, não sendo, nomeadamente, ilícito o facto praticado em legítima defesa, no exercício de um direito, no cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade ou com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado. O artigo 34.º, sob a epígrafe “direito de necessidade”, estabelece que não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificar, cumulativamente, não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro, haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado e ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado. Confrontando as referidas normas com os factos que em sede própria ficaram consignados logo avulta a inexistência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, relativamente ao comportamento do arguido; na verdade e conforme antes se deixou enunciado, não se evidenciam, em relação à bofetada desferida pelo arguido, circunstâncias que o justifiquem, pese embora o facto de não ser conforme ao seu comportamento habitual, caracterizado como pessoa calma, cordata e paciente, sem que se tenha demonstrado uma falta de consciência que justificasse falta de capacidade de percepção, por parte do arguido, dos actos praticados, do seu alcance e das suas implicações. Assim, não há violação dos artigos 14.º, 31.º e 34.º do Código Penal. Esta conclusão é extensível à alegada violação das disposições dos artigos 127.º e 374.º do Código de Processo Penal, pelas razões anteriormente enunciadas, ao apreciar a impugnação feita pelo arguido, relativamente à matéria de facto. 11. Concluiu-se nos termos que anteriormente se deixaram enunciados que o comportamento do arguido configura a prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal. Esta diferente qualificação jurídica e o facto de se tratar de crime semi-público não prejudica a subsistência do procedimento criminal, face à queixa que no próprio dia foi formulada pela queixosa – artigos 143.º, n.º 2, e 113.º e seguintes do Código Penal. Importa então proceder à reapreciação da pena a aplicar ao arguido. Na determinação da medida da pena dentro dos limites referidos e relativamente ao crime praticado pelo arguido e antes caracterizado, importa atender ao critério estabelecido pelos artigos 70.º e 71.º do Código Penal. Nos termos deste normativo, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção; na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. Relativamente aos critérios de escolha da pena, o artigo 70.º do Código Penal estabelece que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. No caso dos autos, regista-se que o arguido não tem antecedentes criminais, não se afigurando existirem prementes necessidades de prevenção especial, face às concretas circunstâncias e motivações que rodearam o seu acto e que em sede própria se deixaram transcritas, que surge como acto isolado, sem que haja referência a comportamentos idênticos em outras ocasiões. O arguido e a queixosa estão separados desde a data em que ocorreram os factos, sem que se evidencie risco de se repetir a situação de conflito que aos mesmos deu origem, sendo o arguido caracterizado como pessoa habitualmente calma, afável e ponderada. Nestas condições, afigura-se adequada a aplicação ao arguido de pena não privativa de liberdade, especificamente e ao abrigo do disposto no artigo 70.º do Código Penal, pela aplicação de pena de multa. Na determinação da medida da pena considera-se que o arguido agiu com dolo directo, não ultrapassando a ilicitude o grau médio de previsão da norma incriminadora, face às circunstâncias em que o arguido agiu e à ausência de sequelas por parte da ofendida. Nos termos afirmados na sentença recorrida, releva a favor do arguido o contexto em que deu a bofetada à ofendida, com desentendimento do casal e a constatação do facto de a ofendida ter acabado de partir o computador. Não tem antecedentes criminais, revelando-se os factos aqui em apreciação como episódio isolado da sua vida. Ponderam-se prementes necessidades de prevenção geral, face à facilidade com que, em situações de conflito, se recorre à agressão física… Considera-se que o arguido é Subcomissário da PSP, exercendo funções na Escola Prática da PSP, em Torres Novas, actividade pela qual aufere mensalmente a quantia de € 1.500,00. Não são referenciadas despesas regulares de valor expressivo. Ponderando as circunstâncias em que ocorreram os factos e os elementos mencionados, julga-se ajustada a pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 8,00 (oito euros). 12.1 Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, os tribunais que condenem em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença a sua não transcrição nos certificados a que se referem os artigos 11.º e 12.º da mesma lei (certificados requeridos para fins de emprego ou para outros fins). Tal poderá ser feito desde que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo da prática de novos crimes. Atendendo à ausência de antecedentes criminais por parte do arguido bem como às concretas circunstâncias em que ocorreram os factos, não se depreende dos autos que haja perigo da prática de novos crimes por parte do arguido. Face ao exposto, ao abrigo do artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, será determinada a não transcrição da sentença dos autos nos certificados a que aludem os artigos 11.º e 12.º da mesma Lei. 12.2 O decaimento parcial do arguido responsabiliza-o relativamente ao pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar, face ao disposto nos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, na redacção anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, aqui aplicável, e 87.º do Código das Custas Judiciais. III) Decisão: Pelo exposto, acordam os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em dar parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em conformidade, decidem: 1. Alterar a sentença recorrida no que concerne à matéria de facto e, assim: 1.1 - O ponto 2 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção: 2.º-A – O arguido esteve em missão em Angola, desde 12 de Abril de 2007 até 10 de Outubro de 2007, período durante o qual o arguido e a queixosa comunicavam entre si através de computador, encontrando-se a queixosa no interior da residência do casal. 2.º-B – Em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante esse período e numa dessas comunicações, o arguido, questionado pela queixosa em relação a dúvidas que esta tinha sobre o modo como deveria proceder, disse-lhe se seria preciso tirar um curso, afirmando, por três vezes, que ela era “burra”. 1.2 - O ponto 3 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção: 3.º-A – No dia 2 de Dezembro de 2007, pelas 01h15, no interior da então residência do casal, sita na Rua …, no Entroncamento, área desta cidade e comarca, a queixosa veio à cozinha, verificando que aí se encontrava o computador portátil usado pelo arguido. 3.º-B – Porque vinha desconfiando que o arguido mantinha relação extra-conjugal desde a viagem a Luanda, para cujo contacto usava o computador, pegou no mesmo e atirou-o ao chão, assim o partindo. 3.º-C – Apercebendo-se do barulho, o arguido veio ter à cozinha e, vendo o computador partido, desferiu uma bofetada na face esquerda da queixosa. 3.º-D – Posteriormente, segurou-a para a impedir de atirar o computador pela janela de casa. 1.3 - O ponto 4 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção: 4.º – Ainda nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido agarrou os pulsos da ofendida, para a impedir de partir uma placa 3G do computador, vindo a tirá-la das suas mãos. 2. Absolver o arguido, em conformidade com o que em sede própria se deixou exposto, relativamente à prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, com a consequente revogação da sentença recorrida na parte em que, pela prática do aludido crime, decidiu condenar o arguido na pena de dois anos e um mês de prisão e suspender a execução da pena de prisão por igual período, ou seja, por dois anos e um mês. 3.1 - Declarar o arguido autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal. 3.2 - Condenar o arguido, N., pela prática do aludido crime, na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 8,00 (oito euros). 4. Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, determinar a não transcrição da condenação a que se reportam os autos nos certificados a que aludem os artigos 11.º e 12.º da mesma Lei. 5. O recorrente pagará as custas pelo decaimento parcial, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça a seu cargo. Évora, 25 de Março de 2010. (Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto) (João Luís Nunes)