Processo:
Relator: Tribunal:
Decisão: Meio processual:

Profissão: Data de nascimento: Invalid Date
Tipo de evento:
Descricao acidente:

Importancias a pagar seguradora:

Relator
MANUEL BARGADO
Descritores
PROVAS ILÍCITAS SEGURO DE VIDA PROTEÇÃO DE DADOS RELATIVOS À SAÚDE JUNÇÃO DE DOCUMENTOS EM FASE DE RECURSO
No do documento
RG
Data do Acordão
04/24/2014
Votação
UNANIMIDADE
Texto integral
S
Meio processual
APELAÇÃO
Decisão
IMPROCEDENTE
Sumário
I – A junção de documento apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. II – Os dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de proteção legal e constitucional do direito à reserva da intimidade da vida privada. III – Essa proteção estende-se para além da morte do titular. IV – A junção de um documento ao processo pela seguradora em que o médico atesta a existência de eventuais patologias de que sofria o segurado sem que estas tenham alguma vez sido tornadas públicas pelo mesmo ou pelos seus herdeiros, constitui prova ilícita por violadora do sigilo profissional. V – Devem ser excluídas do contrato de seguro as cláusulas das Condições Gerais e Particulares do contrato de seguro cujo conteúdo não tenham sido comunicadas ao segurado ou cuja cópia não lhe tenha sido entregues, por violação dos deveres de deveres de comunicação e de informação a que aluem os artigos 5º e 6º do DL 446/85, de 25.10.
Decisão integral
Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO 
M… , H… , S… e T… instauraram a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra O…, S.A, pedindo que:
a) seja considerado válido e eficaz o contrato de seguro do ramo vida que identificam;
b) sejam excluídas do contrato as cláusulas de exclusão de responsabilidade da ré, por não terem sido comunicadas nem informadas à primeira ré e seu falecido marido e por violação do dever de explicar e esclarecer as mesmas; 
c) seja a ré condenada a substituir-se aos autores no cumprimento do contrato de mútuo celebrado, assumindo a responsabilidade pelo pagamento da dívida remanescente acrescida de juros; 
d) seja a ré condenada a pagar-lhes as prestações e prémios de seguros mensais pagos desde a data da morte do marido da autora até Maio de 2011, no montante de € 3.865,16, bem como das que se vencerem desde essa data até ao termo do processo; 
e) seja a ré condenada a pagar aos autores os juros de mora à taxa legal sobre as quantias acabadas de mencionar, desde as datas em que estes pagaram ao banco após a morte do marido e pai dos autores, até ao efectivo reembolso; 
f) seja a ré condenada a pagar aos autores, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 10.000, sendo € 2.500 para cada um, acrescida de juros à taxa de 4% desde a citação até integral pagamento. 
Para o efeito alegaram, em síntese, que M… faleceu em 29.09.2010, no estado de casado com a primeira autora, a qual conjuntamente com os demais são os seus únicos e universais herdeiros. Em 05.03.2009, por escritura pública, aquela autora e o seu falecido marido celebraram um contrato de mútuo com hipoteca, constituindo-se devedores ao “Banco…, S.A.” da quantia de € 63.000, pelo prazo de 180 meses, constituindo hipoteca sobre um prédio misto como garantia do pagamento daquela dívida e, para salvaguarda daquele contrato e por sugestão dos funcionários daquele Banco, celebraram com a ré um contrato de seguro do ramo vida, com as coberturas de morte, invalidez total ou permanente por doença e invalidez total ou permanente por acidente, sendo simultaneamente o “Banco…, S.A.” o beneficiário em caso de morte e invalidez total ou permanente. O seguro teve início em 15.01.2009, sendo anualmente renovável, e na data da sua celebração o falecido M… não tinha conhecimento de qualquer problema de saúde. 
Mais alegam terem participado à ré o falecimento do dito M…, no sentido de esta assumir o pagamento do valor do mútuo ainda em dívida, pretensão esta que a ré recusou alegando que, aquando do preenchimento do questionário médico, não foi mencionada a patologia pré-existente, conforme atestado médico emitido pela Dra. E…, o que, se tivesse ocorrido, teria condicionado a aceitação do risco. Porém, nem ao falecido marido da autora, nem a esta foram comunicadas e informadas as cláusulas contratuais que regem o contrato de seguro em causa, mormente as de exclusão de responsabilidade, nunca lhes tendo sido explicados todos os detalhes do contrato de seguro em causa. 
Afirmam, por último, que desde a data da morte do marido e pai dos autores, estes pagaram as prestações e prémios de seguro ao “Banco…, S.A.”, ascendendo o respectivo montante em Maio de 2011 a € 3.865,16, e sofreram grande desgosto, transtorno e incómodos com o comportamento da ré. 
A ré contestou, contrapondo que foram entregues à autora e ao seu falecido marido as condições gerais e especiais do contrato, bem como explicado o seu conteúdo e prestados todos os esclarecimentos sobre coberturas, garantias e exclusões, conforme declarado na proposta de adesão. 
Acresce que de acordo com informação médica, o falecido marido da autora sofria de hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade, diagnosticados em 2002, com início de terapêutica nesse mesmo ano e com evolução clínica desfavorável, estando aquelas patologias, por serem factores de risco de risco cardiovascular, nos termos do art. 6º, nº 1, al. a), das Condições Gerais do seguro, excluídas da cobertura do seguro, sendo que se o quadro clínico pré-existente do falecido marido da autora tivesse sido declarado, como devia, a ré não teria aceite a assunção do risco. 
Conclui pela improcedência da acção, com a sua consequente absolvição dos pedidos. 
Houve réplica, opondo-se os autores à procedência das excepções invocadas pela ré, defendendo, nomeadamente, que a informação médica aludida pela ré na sua contestação a propósito do estado de saúde do falecido marido da autora foi-o com violação do segredo médico profissional, pelo que não pode aqui ser considerada para efeitos de decisão, e concluíram como na petição inicial. 
Realizou-se audiência preliminar, sendo proferido despacho saneador e organizada a matéria de facto assente e a base instrutória, sem reclamação.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, após o que foi proferida sentença – com fixação dos factos provados e não provados – onde na parcial procedência da acção se decidiu:
«- declarar válido e eficaz o contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice nº 00061190, com exclusão das cláusulas gerais e especiais atinentes à exclusão da responsabilidade da ré, insertas no art. 6º das Condições Gerais e no art. 3º das condições especiais; 
- condenar a ré “O…, Sa” a pagar ao “Banco…, Sa” a quantia em dívida inerente ao mútuo com hipoteca identificado em 1) dos factos provados; 
- condenar a ré “O…, Sa” a pagar aos autores as quantias que estes entregaram ao “Banco…, Sa” por conta do indicado mútuo com hipoteca, desde 29.09.2010 e até 06.02.2011. 
- condenar a ré “O…, Sa” a pagar aos autores as quantias que estes tenham entregue ao “Banco…, Sa” por conta do indicado mútuo com hipoteca, desde 06.02.2011 até ao trânsito em julgado da presente, acrescidas de juros, à taxa de 4%, contados do pagamento de cada prestação e até efectivo reembolso; 
- absolver a ré do demais peticionado.»
Inconformada com o assim decidido, apelou a ré, sustentando a revogação da sentença com base em sessenta e oito extensas conclusões, que motivaram o despacho do relator de fls. 378 a convidar a mesma a apresentar novas conclusões (sintéticas), sob pena de não conhecimento do recurso.
Veio então a ré apresentar novas conclusões do seguinte teor:
(…)
Termina pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por Acórdão em que se julgue o pedido deduzido pelos autores totalmente improcedente com a consequente absolvição da ré do pedido.
Os autores contra-alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões[1]:
(…)
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), consubstancia-se em saber:
a) se é admissível a junção do documento apresentado com as alegações de recurso;
b) se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, dando-se como provada a factualidade constantes das alíneas A), B), C) e D) dos factos “não provados”;
c) se é nulo o contrato de seguro.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos[2]:
1. No dia 5 de Março de 2009, entre M… , M… e “Banco…, S.A.”, foi celebrado o acordo denominado “Mútuo com hipoteca”, que se encontra junto aos autos a fls. 25 a 36 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 
2. Entre o “Banco…, S.A.”, na qualidade de tomador do seguro e a Ré “O…, S.A.”, na qualidade de seguradora, foi celebrado um acordo denominado “Seguro de Vida – Grupo”, nos termos e sujeito às condições constantes dos documentos de fls. 74 a 84 regulado pela apólice n.º 00061190. 
3. M… e a autora M… aderiram, em 15/01/2009, ao acordo referido em 2), pela proposta de adesão de fls. 67 a 71, que subscreveram e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, acordando assim, o “Banco…, S.A.”, a Ré “O… , S.A.”, M… e a Autora M… nos termos constantes do documento junto a fls. 72 e 73, denominado “Certificado individual de seguro n.º 71321627”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 
4. M… e a autora M… contraíram casamento, sem convenção antenupcial, no dia 3/4/1982. 
5. Constam como sendo filhos de M… e M… , H…, S… e T… . 
6. M… faleceu no dia 29/09/2010, deixando, como únicos herdeiros, M… , H… , S… e T…. B). A autora e o seu marido, M…, em 15.01.2009, já sabiam que havia sido diagnosticado a M… hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade.  
7. Os Autores comunicaram à Ré o falecimento de M… para que esta pagasse ao “Banco…, S.A.” a parte do capital mutuado em dívida. 
8. A Ré recusou a pagar o valor do mútuo em dívida, invocando que “ (...) aquando do preenchimento da referida Proposta de Adesão e respectivo Questionário Médico, (...) não foi mencionada a patologia pré-existente, conforme atestado médico emitido pela Sr.ª Dr.ª E…, do Centro de Saúde de Celorico de Basto. Nestas condições verificamos que existia um quadro clínico pré-existente que, se tivesse sido declarado, teria condicionado a aceitação do risco (...)”. 
9. Até Maio de 2011, os autores entregaram ao “Banco…” a quantia de € 3.865,16, a título de prestação mensal devida pelo contrato de mútuo referido em 1) dos factos provados. 
10. Como consequência directa do referido em 8), os autores sofreram incómodos. 

E foram dados como não provados os seguinte factos:
a) Em 2002 foi diagnosticado a M… hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade, altura a partir da qual realizou terapêutica no âmbito desse quadro clínico, apresentando, desde essa data, evolução clínica desfavorável. 
b) A autora e o seu marido, M…, em 15.01.2009, já sabiam que havia sido diagnosticado a M… hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade. 
c) M… faleceu em consequência da hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade diagnosticadas em 2002. 
d) A ré comunicou à autora M… e seu marido M… o conteúdo das cláusulas do acordo referido em 2) dos factos provados e explicou-lhes o seu teor. 
e) Em 15.01.2009, a ré entregou à autora M… e ao seu marido M… cópia do acordo referido em 2) dos factos provados. 
f) Caso a ré tivesse tido conhecimento do referido em A) dos factos não provados não teria aceite a proposta subscrita pela autora e pelo seu marido nos termos em que foi aceite em 3) dos factos provados. 
g) Após a comunicação referida em 7), a ré, através do Banco…, continuou a cobrar e, consequentemente, os autores a pagarem o prémio de seguro relativo à apólice aqui em causa, com o número 00061190, nos termos, datas e prémios indicados no documento de fls. 72 e 73, denominado “Certificado Individual de Seguro nº 71321627”. 
h) Como consequência directa e necessária do referido em 8) dos factos provados, os autores sofreram desgosto, transtornos e arrelias. 

B) O DIREITO
Da admissibilidade da junção do documento de fls. 346.
Com as respectivas alegações de recurso requereu a ré ora recorrente, a junção do documento que faz fls. 346 dos autos, correspondente ao “certificado de óbito” de M…, marido da 1ª autora e pai dos restantes autores, invocando fazê-lo ao abrigo do disposto no art. 651º, nº 1, do CPC e «atendendo a que o Tribunal “a quo” desvalorizou o “atestado” de fls. 85, a resposta positiva ao facto não provado que consta da alínea C) poderá depender, caso venha a ser confirmada a argumentação, (…), do conteúdo do certificado de óbito.».
Os autores ora recorridos opuseram-se à requerida junção  
Vejamos.
Nos termos do artigo 651º, n.º 1, do novo CPC[3], «as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º[4] ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância».
Este novo preceito, relativamente ao diploma imediatamente precedente, veio abolir a possibilidade de livre junção de documentos em alguns casos de recursos intercalares e veio clarificar a possibilidade de junção de pareceres, concretizando o momento até ao qual esta faculdade pode ser exercida[5], mas tais alterações irrelevam à nossa apreciação.
Antes, como agora, a junção de documentos deve ocorrer na 1.ª instância e só pode acontecer em sede de recurso se não foi possível fazê-la em momento anterior ou quando «a junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável», mas não contemplando – tal como a jurisprudência anterior afirmava – a possibilidade da junção se justificar em relação a «factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova»[6].
Assim, a regra geral quanto à oportunidade da junção de documentos posteriores ao encerramento da discussão, em 1ª instância, deve ser encontrada, através da interpretação conjugada dos citados artigos 423º e 425º.
Efectivamente, as partes podem juntar documentos às alegações, nos casos excepcionais a que se refere o artigo 423º, ou, na hipótese de a sua junção apenas se tornar necessária, em virtude do julgamento proferido na 1ª instância, como decorre ainda do disposto pelo artigo 706º, nºs 1 e 2.
Sendo princípio fundamental que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com os articulados em que se aleguem os factos correspondentes, ou, na impossibilidade, até 20 dias antes da data em que realize a audiência final, como decorre do disposto no artigo 423º, nºs 1 e 2, a lei admite, igualmente, por força do estipulado pelo artigo 425º, citado, que, depois deste último momento [20 dias antes da data da realização da audiência final], os documentos supervenientes possam, também, ser juntos com as alegações de recurso, mas, ainda assim, apenas, nos casos excepcionais em que a sua apresentação não tenha sido possível, até 20 dias antes do julgamento, quando a junção se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior, ou quando a sua junção apenas se tenha tornado necessária, em virtude do julgamento proferido em 1ª instância.
Assim sendo, são três os fundamentos excepcionais justificativos da apresentação de documentos supervenientes com as alegações de recurso, ou seja, quando os documentos se destinem a provar factos posteriores aos articulados, quando a sua junção se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior e, finalmente, no caso de a sua apresentação apenas se revelar necessária, devido ao julgamento proferido em 1ª instância.
O caso vertente não envolve a impossibilidade ou a necessidade a que o art. 423º, nº 3, se reporta[7], e também é claro que tal junção nada tem a ver com a situação prevista na segunda parte do nº 1 do artigo 651º - junção de documento apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância.
Em anotação de Antunes Varela à previsão da norma correspondente do CPC revogado, pode ler-se, na RLJ, ano 115, nº 3696, a págs. 95 e 96:
“A junção de documentos com as alegações da apelação, afora os casos de impossibilidade de junção anterior ou de prova de factos posteriores ao encerramento da discussão de 1ª instância, é possível quando o documento só se tenha tornado necessário em virtude do julgamento proferido na 1ª instância. E o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou a dedução da defesa), quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado.
(…)
A decisão da 1ª instância pode, por isso, criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. Só nessas circunstâncias a junção do documento às alegações da apelação se pode legitimar à luz do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 706º do Código de Processo Civil”. 
E nessa linha se tem orientado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[8], defendendo-se no Acórdão de 28.2.2002 que a junção de documentos, com base em tal previsão, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam.
Esta última situação não ocorre no caso em apreço, visto a decisão da 1ª instância se ter baseado unicamente nas provas oferecidas pelas partes e em normas jurídicas cuja aplicação as partes sempre teriam de contar.
Impõe-se, assim, ordenar o desentranhamento de tal documento, o que será feito a final.
Da alteração da matéria de facto.
Como resulta do art. 662º, nº 1, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – documentos, declarações de parte das legais representantes da ré e depoimentos testemunhais, registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal a quo.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo art. 640º, nºs 1 e 2, já que:
- indicou os concretos pontos da materialidade fáctica que considera incorrectamente julgados, com referência ao que foi decidido na sentença recorrida (que fixou também a matéria de facto provada e não provada);
- referiu os concretos meios de prova que, na sua óptica, impunham decisão diversa, in casu o documento de fls. 85, os depoimentos das testemunhas que depuseram sobre a matéria, e o documento junto com as alegações que, como se viu, não pode aqui ser considerado, por não ser admissível a sua junção nesta fase;
- indicou as passagens da gravação relativamente aos depoimentos prestados nos quais funda a sua discordância com a decisão sobre a matéria de facto, os quais transcreve em parte.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorrecta avaliação da prova testemunhal cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto[9].
Presente deve ter-se, outrossim, que o sistema legal, tal como está consagrado, com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa, sofrendo a apreciação da matéria de facto pela Relação, naturalmente, a limitação que a inexistência da imediação de forma necessária acarreta.
Feitas estas breves considerações, vejamos então se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, como defende a recorrente, o que equivaleria a dar-se como provada a factualidade constante das alíneas a), b), c) e f) dos factos não provados.
É a seguinte a factualidade em causa:
 a) Em 2002 foi diagnosticado a M… hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade, altura a partir da qual realizou terapêutica no âmbito desse quadro clínico, apresentando, desde essa data, evolução clínica desfavorável. 
b) A autora e o seu marido, M…, em 15.01.2009, já sabiam que havia sido diagnosticado a M… hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade. 
c) M… faleceu em consequência da hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade diagnosticadas em 2002. 
f) Caso a ré tivesse tido conhecimento do referido em A) dos factos não provados não teria aceite a proposta subscrita pela autora e pelo seu marido nos termos em que foi aceite em 3) dos factos provados. 
Vimos já que a recorrente sustenta a prova dos factos acabados de descrever no documento de fls. 85 e nos depoimentos das testemunhas M… (gestora de sinistros da ré), A… (médico da ré), A… (funcionário bancário) e E… .
Comecemos pelo documento de fls. 85.
Decorrente do princípio geral contido no art. 2º[10] da Lei da Protecção de Dados Pessoais – D.L. nº 67/98, de 26 de Outubro -, estatui o art. 7º, nºs 1 e 2, daquele diploma que é proibido o tratamento de dados pessoais relativos, além do mais, à saúde de uma pessoa, a menos que haja consentimento expresso para o efeito, consentimento este que deve ser obtido de forma inequívoca (art. 6º, nº1). 
Fora destes casos, o tratamento dos dados pessoais de saúde pode ser permitido nas situações previstas no art. 7º, nº3, do mesmo diploma, de entre as quais consta o facto de dizer respeito a dados manifestamente tornados públicos pelo seu titular, desde que se possa legitimamente deduzir das suas declarações o consentimento para o tratamento dos mesmos, ou então, ser necessário à declaração, exercício ou defesa de um direito em processo judicial e for efectuado exclusivamente com essa finalidade. 
Está fora de dúvida que os dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de protecção legal (artigo 80º do Código Civil) e constitucional (artigo 26º da Constituição) do direito à reserva da intimidade da vida privada[11]; e igualmente que tal protecção se estende mesmo depois da morte do titular[12].
Ora, é facto incontroverso que os autores não publicitaram a causa da morte do seu parente, tendo até alegado na petição inicial (art. 11º) que o falecido “não tinha conhecimento de qualquer problema de saúde relacionado ou conexionado com o que originou a sua morte”, e também em nenhum momento processual consentiram de modo expresso e inequívoco na divulgação da existência de qualquer patologia ou sequer do diagnóstico da causa da morte do seu parente.
Significa isto, como bem se diz na sentença recorrida, que «as eventuais patologias de que poderia sofrer o falecido não foram tornadas públicas pelo mesmo ou seus herdeiros, do que resulta desde logo a posição que assumiram em sede de réplica, e a declaração emitida medicamente com aquele conteúdo não o foi no âmbito de um processo judicial, mas antes e apenas a pedido de uma entidade privada e fora do contexto de qualquer processo judicial em curso. 
Desconhecendo o tribunal a forma como a ré obteve o certificado de óbito com o respectivo diagnóstico, cuja junção sem consentimento da contraparte também seria questionável, a verdade é que, fora do contexto judicial, lhe estava vedada a possibilidade de aceder a dados pessoais que, como vimos, encontram regulação legal muito restritiva e que deveria ter sido observada, desde logo pela médica assistente do falecido, nos termos do art. 5º, nº3, do D.L. nº 67/98, de 26 de Outubro.»
Na hipótese – que não se concede – do tribunal julgar válido, para efeitos probatórios, o aludido documento de fls. 85, a verdade é que o seu conteúdo não foi confirmado em julgamento, sendo certo que era sobre a ré que impediam o respectivo ónus, face à impugnação pelos autores na réplica (art. 374º, nº 2 do CC).
Na verdade, no decurso da audiência de julgamento, os autores juntaram ao processo a declaração de fls. 251, subscrita pela mesma médica que havia subscrito o “atestado” de fls. 85, na qual a mesma declara que “nos registos informáticos que constam ter tido as consultas em 03 de Janeiro de 2009, 02 de Agosto de 2010 e 01 de Setembro de 2010, não constando exames complementares de diagnóstico”.
Face à junção de tal documento, e porque o mesmo “parece pretender por em causa o que a mesma signatária atestou sob compromisso de honra a fls. 85”, o Mm.º Juiz requisitou ao Centro de Saúde de Celorico de Basto a remessa de cópia de todos os registos clínicos do falecido M… e determinou a inquirição como testemunha da médica subscritora dos referidos documentos.
Dos registos clínicos enviados e constantes a fls. 260 a 265 não resulta qualquer dado que tenha sido registado anteriormente à celebração do contrato de seguro, que pudesse de alguma forma comprovar o que é atestado no documento de fls. 85.
Ademais, depois de ouvirmos o depoimento prestado pela médica que subscreveu os documentos de fls. 85 e 251, esta confirmou que o pedido de requisição dos registos clínicos foi integralmente cumprido, tendo sido enviada a totalidade dos documentos existentes no Centro de Saúde.
Significativo é também o facto – que não passou despercebido ao Mm.º Juiz a quo – da referida médica, quando confrontada com o atestado de fls. 85, se ter refugiado em lapsos na data, acabando por justificar a sua emissão com o resultado do episódio de urgência noticiado a fls. 262, pois que saiba o falecido não fez análises e sem análises não seria possível obter um diagnóstico como o que anteriormente atestou, ou seja, o que consta do documento de fls. 85.
O menor cuidado naquilo que foi atestado a fls. 85 sai ainda reforçado com o facto de ser impossível à sua subscritora atestar algo quando o segurado e falecido M… não havia sequer feito análises clínicas que comprovassem a veracidade do que se atestou em tal documento.
Isto tudo, naturalmente, se tal documento pudesse servir como prova – que não pode pelas razões acima expostas - do facto que pretendia provar, ou seja, que em 2002 havia sido diagnosticado ao falecido M… as mencionadas patologias.
Também os depoimentos das testemunhas arroladas pela recorrente, todas funcionárias da ré e que ouvimos na íntegra, não autorizam uma alteração da matéria de facto no sentido proposto pela recorrente.
(…)
Resulta assim do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correcta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Da validade do contrato de seguro.
Segundo a recorrente, o quadro clínico decorrente de hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade, se tivesse sido declarado, teria condicionado a aceitação do risco, pelo que ao omitirem a informação correcta, solicitada pela ré na proposta de adesão, a autora e o falecido marido violaram o princípio da boa fé, podendo assim concluir-se pela verificação de uma doença pré-existente à data da contratação do seguro, não declarada e cuja evolução levou ao enfarte do miocárdio, que era do tal conhecimento da autora e do falecido marido e do total desconhecimento da ré.
Assim, conclui a recorrente, não estavam reunidas as condições de subscrição do seguro de vida constante do contrato de crédito, pelo que o mesmo é nulo e, em qualquer caso, sempre estaria excluída do seguro a cobertura de invalidez que seja consequência de doença pré-existente.
Esta argumentação da recorrente tinha como pano de fundo, como é bom de ver, a alteração da matéria de facto, a qual não foi acolhida por este Tribunal ad quem, o que tornaria desnecessárias outras considerações sobre a questão.
No entanto, sempre se dirá que mesmo que a recorrente tivesse logrado provar as patologias pré-existentes e declarações inexactas à data da contratação do seguro, como bem se diz na sentença recorrida, «não poderiam ser opostas aos autores as cláusulas de exclusão de responsabilidade definidas nas condições gerias e especiais, por falta de comunicação e informação.»
Isto porque, não sofrendo contestação a aplicação ao contrato de seguro em causa autos do regime das cláusulas contratuais gerais (DL 446/85, de 25/10)[13], prescreve o art. 5º deste diploma legal que tais cláusulas devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las (nº 1), devendo essa comunicação ser feita de modo adequado e com a antecedência necessária ao seu conhecimento completo e efectivo (nº 2), sendo que o ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem tais cláusulas (nº 3).
A par de um dever de comunicação, existe um específico dever de informação, consagrado no art. 6º do mesmo diploma legal.
Ora, a ré não logrou provar que tenha comunicado à 1ª autora e seu falecido marido o conteúdo das cláusulas das Condições Gerais e Particulares do contrato de seguro, nem que lhes tenha entregue cópias das referidas condições (cfr. als. d) e e) dos factos não provados), pelo que não deu cumprimento aos deveres de comunicação e de informação a que aluem os citados arts. 5º e 6º do DL 446/85.
Por isso nenhuma dúvida pode subsistir sobre a exclusão do contrato de seguro das cláusulas contratuais invocadas pela recorrente, como bem se decidiu na sentença recorrida.
Improcedem assim todas as conclusões do recurso, o que implica o total inêxito do mesmo e a manutenção da decisão recorrida.

Sumário:
I – A junção de documento apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam.
II – Os dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de protecção legal e constitucional do direito à reserva da intimidade da vida privada.
III – Essa protecção estende-se para além da morte do titular.
IV – A junção de um documento ao processo pela seguradora em que o médico atesta a existência de eventuais patologias de que sofria o segurado sem que estas tenham alguma vez sido tornadas públicas pelo mesmo ou pelos seus herdeiros, constitui prova ilícita por violadora do sigilo profissional.
V – Devem ser excluídas do contrato de seguro as cláusulas das Condições Gerais e Particulares do contrato de seguro cujo conteúdo não tenham sido comunicadas ao segurado ou cuja cópia não lhe tenha sido entregues, por violação dos deveres de deveres de comunicação e de informação a que aluem os artigos 5º e 6º do DL 446/85, de 25.10.


IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em:
a) ordenar o desentranhamento do documento de fls. 346;
b) julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.*Custas pela recorrente.
Guimarães, 24 de Abril de 2014
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
________________________________
[1] Trata-se das conclusões apresentadas com as contra-alegações de resposta às primitivas conclusões da ré, pois os autores não apresentaram resposta às novas conclusões da ré.
[2] Mantém-se a sequência de factos constante da sentença.
[3] São deste diploma os artigos adiante citados sem menção de origem.
[4] Nos termos daquele preceito, "Depois do encerramento da discussão, só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento". Com efeito, como decorre do disposto no novo artigo 423º do CPC, "Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se alegam os factos correspondentes" (n.º 1) e, "Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pode oferecer com o articulado" (n. º2). É que, "Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior" (n.º 3). 
[5] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 184
[6] Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 184-185.
[7] Basta ver, para tanto, por um lado, que o documento foi emitido em 29.09.2010, ou seja na data do óbito do marido da 1ª autora e pai dos restantes autores, ou seja, quase um ano antes da propositura da acção e, por outro lado, tal como se pode ler na fundamentação da decisão de facto expressa na sentença, aquando da apreciação do documento de fls. 85, que a testemunha António Pinto Freitas, médico da ré, «esclareceu que o seu conhecimento deveu-se ao certificado de óbito» que agora a recorrente pretende juntar.
[8] Vejam-se, por exemplo, os Acórdãos de 03.03.1989, BMJ, 385º-545, de 12.01.1994, BMJ, 433º-467, de 28.02.2002, na Revista nº 296/02-6ª, Sumários, 2/2002, de 14.05.2002, na Revista nº 420/02-1ª, Sumários, 5/2002, de 30.09.2004, disponível em www.dgsi.pt, doc. nº SJ200409300028947, e de 24.02.2010, disponível em www.dgsi.pt, Proc. 709/03.7 TTBRG.P1.S1.   
[9] A jurisprudência evoluiu no sentido de se firmar um entendimento mais abrangente no que se refere aos poderes de  alteração da matéria de facto pela Relação, considerando-os com a mesma amplitude que a dos tribunais de 1ª instância. Nessa medida, e no que se refere à questão da convicção, já não estará em causa cingir apenas a sua actividade de apreciação ao apuramento da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, mas antes formar a sua própria convicção nos elementos probatórios disponíveis nos autos (cfr., inter alia, o recente Acórdão do STJ de 24.09.2013, proc. 1965/04.9TBSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt).
[10] Que dispõe assim: «O tratamento de dados pessoais deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais.»
[11] Assim, acórdãos nºs 355/97, relativo ao registo de dados oncológicos, ou 368/02 do Tribunal Constitucional, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt. 
[12] Cfr. artigo 71º do Código Civil e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, anotação ao artigo 26º, p. 284.
 [13] Que já sofreu as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei nºs 220/95, de 31.01, 249/99, de 07.07 e 323/2001, de 17.12.

Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I - RELATÓRIO M… , H… , S… e T… instauraram a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra O…, S.A, pedindo que: a) seja considerado válido e eficaz o contrato de seguro do ramo vida que identificam; b) sejam excluídas do contrato as cláusulas de exclusão de responsabilidade da ré, por não terem sido comunicadas nem informadas à primeira ré e seu falecido marido e por violação do dever de explicar e esclarecer as mesmas; c) seja a ré condenada a substituir-se aos autores no cumprimento do contrato de mútuo celebrado, assumindo a responsabilidade pelo pagamento da dívida remanescente acrescida de juros; d) seja a ré condenada a pagar-lhes as prestações e prémios de seguros mensais pagos desde a data da morte do marido da autora até Maio de 2011, no montante de € 3.865,16, bem como das que se vencerem desde essa data até ao termo do processo; e) seja a ré condenada a pagar aos autores os juros de mora à taxa legal sobre as quantias acabadas de mencionar, desde as datas em que estes pagaram ao banco após a morte do marido e pai dos autores, até ao efectivo reembolso; f) seja a ré condenada a pagar aos autores, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 10.000, sendo € 2.500 para cada um, acrescida de juros à taxa de 4% desde a citação até integral pagamento. Para o efeito alegaram, em síntese, que M… faleceu em 29.09.2010, no estado de casado com a primeira autora, a qual conjuntamente com os demais são os seus únicos e universais herdeiros. Em 05.03.2009, por escritura pública, aquela autora e o seu falecido marido celebraram um contrato de mútuo com hipoteca, constituindo-se devedores ao “Banco…, S.A.” da quantia de € 63.000, pelo prazo de 180 meses, constituindo hipoteca sobre um prédio misto como garantia do pagamento daquela dívida e, para salvaguarda daquele contrato e por sugestão dos funcionários daquele Banco, celebraram com a ré um contrato de seguro do ramo vida, com as coberturas de morte, invalidez total ou permanente por doença e invalidez total ou permanente por acidente, sendo simultaneamente o “Banco…, S.A.” o beneficiário em caso de morte e invalidez total ou permanente. O seguro teve início em 15.01.2009, sendo anualmente renovável, e na data da sua celebração o falecido M… não tinha conhecimento de qualquer problema de saúde. Mais alegam terem participado à ré o falecimento do dito M…, no sentido de esta assumir o pagamento do valor do mútuo ainda em dívida, pretensão esta que a ré recusou alegando que, aquando do preenchimento do questionário médico, não foi mencionada a patologia pré-existente, conforme atestado médico emitido pela Dra. E…, o que, se tivesse ocorrido, teria condicionado a aceitação do risco. Porém, nem ao falecido marido da autora, nem a esta foram comunicadas e informadas as cláusulas contratuais que regem o contrato de seguro em causa, mormente as de exclusão de responsabilidade, nunca lhes tendo sido explicados todos os detalhes do contrato de seguro em causa. Afirmam, por último, que desde a data da morte do marido e pai dos autores, estes pagaram as prestações e prémios de seguro ao “Banco…, S.A.”, ascendendo o respectivo montante em Maio de 2011 a € 3.865,16, e sofreram grande desgosto, transtorno e incómodos com o comportamento da ré. A ré contestou, contrapondo que foram entregues à autora e ao seu falecido marido as condições gerais e especiais do contrato, bem como explicado o seu conteúdo e prestados todos os esclarecimentos sobre coberturas, garantias e exclusões, conforme declarado na proposta de adesão. Acresce que de acordo com informação médica, o falecido marido da autora sofria de hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade, diagnosticados em 2002, com início de terapêutica nesse mesmo ano e com evolução clínica desfavorável, estando aquelas patologias, por serem factores de risco de risco cardiovascular, nos termos do art. 6º, nº 1, al. a), das Condições Gerais do seguro, excluídas da cobertura do seguro, sendo que se o quadro clínico pré-existente do falecido marido da autora tivesse sido declarado, como devia, a ré não teria aceite a assunção do risco. Conclui pela improcedência da acção, com a sua consequente absolvição dos pedidos. Houve réplica, opondo-se os autores à procedência das excepções invocadas pela ré, defendendo, nomeadamente, que a informação médica aludida pela ré na sua contestação a propósito do estado de saúde do falecido marido da autora foi-o com violação do segredo médico profissional, pelo que não pode aqui ser considerada para efeitos de decisão, e concluíram como na petição inicial. Realizou-se audiência preliminar, sendo proferido despacho saneador e organizada a matéria de facto assente e a base instrutória, sem reclamação. Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, após o que foi proferida sentença – com fixação dos factos provados e não provados – onde na parcial procedência da acção se decidiu: «- declarar válido e eficaz o contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice nº 00061190, com exclusão das cláusulas gerais e especiais atinentes à exclusão da responsabilidade da ré, insertas no art. 6º das Condições Gerais e no art. 3º das condições especiais; - condenar a ré “O…, Sa” a pagar ao “Banco…, Sa” a quantia em dívida inerente ao mútuo com hipoteca identificado em 1) dos factos provados; - condenar a ré “O…, Sa” a pagar aos autores as quantias que estes entregaram ao “Banco…, Sa” por conta do indicado mútuo com hipoteca, desde 29.09.2010 e até 06.02.2011. - condenar a ré “O…, Sa” a pagar aos autores as quantias que estes tenham entregue ao “Banco…, Sa” por conta do indicado mútuo com hipoteca, desde 06.02.2011 até ao trânsito em julgado da presente, acrescidas de juros, à taxa de 4%, contados do pagamento de cada prestação e até efectivo reembolso; - absolver a ré do demais peticionado.» Inconformada com o assim decidido, apelou a ré, sustentando a revogação da sentença com base em sessenta e oito extensas conclusões, que motivaram o despacho do relator de fls. 378 a convidar a mesma a apresentar novas conclusões (sintéticas), sob pena de não conhecimento do recurso. Veio então a ré apresentar novas conclusões do seguinte teor: (…) Termina pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por Acórdão em que se julgue o pedido deduzido pelos autores totalmente improcedente com a consequente absolvição da ré do pedido. Os autores contra-alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões[1]: (…) Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II - ÂMBITO DO RECURSO O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), consubstancia-se em saber: a) se é admissível a junção do documento apresentado com as alegações de recurso; b) se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, dando-se como provada a factualidade constantes das alíneas A), B), C) e D) dos factos “não provados”; c) se é nulo o contrato de seguro. III – FUNDAMENTAÇÃO A) OS FACTOS Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos[2]: 1. No dia 5 de Março de 2009, entre M… , M… e “Banco…, S.A.”, foi celebrado o acordo denominado “Mútuo com hipoteca”, que se encontra junto aos autos a fls. 25 a 36 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 2. Entre o “Banco…, S.A.”, na qualidade de tomador do seguro e a Ré “O…, S.A.”, na qualidade de seguradora, foi celebrado um acordo denominado “Seguro de Vida – Grupo”, nos termos e sujeito às condições constantes dos documentos de fls. 74 a 84 regulado pela apólice n.º 00061190. 3. M… e a autora M… aderiram, em 15/01/2009, ao acordo referido em 2), pela proposta de adesão de fls. 67 a 71, que subscreveram e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, acordando assim, o “Banco…, S.A.”, a Ré “O… , S.A.”, M… e a Autora M… nos termos constantes do documento junto a fls. 72 e 73, denominado “Certificado individual de seguro n.º 71321627”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 4. M… e a autora M… contraíram casamento, sem convenção antenupcial, no dia 3/4/1982. 5. Constam como sendo filhos de M… e M… , H…, S… e T… . 6. M… faleceu no dia 29/09/2010, deixando, como únicos herdeiros, M… , H… , S… e T…. B). A autora e o seu marido, M…, em 15.01.2009, já sabiam que havia sido diagnosticado a M… hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade. 7. Os Autores comunicaram à Ré o falecimento de M… para que esta pagasse ao “Banco…, S.A.” a parte do capital mutuado em dívida. 8. A Ré recusou a pagar o valor do mútuo em dívida, invocando que “ (...) aquando do preenchimento da referida Proposta de Adesão e respectivo Questionário Médico, (...) não foi mencionada a patologia pré-existente, conforme atestado médico emitido pela Sr.ª Dr.ª E…, do Centro de Saúde de Celorico de Basto. Nestas condições verificamos que existia um quadro clínico pré-existente que, se tivesse sido declarado, teria condicionado a aceitação do risco (...)”. 9. Até Maio de 2011, os autores entregaram ao “Banco…” a quantia de € 3.865,16, a título de prestação mensal devida pelo contrato de mútuo referido em 1) dos factos provados. 10. Como consequência directa do referido em 8), os autores sofreram incómodos. E foram dados como não provados os seguinte factos: a) Em 2002 foi diagnosticado a M… hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade, altura a partir da qual realizou terapêutica no âmbito desse quadro clínico, apresentando, desde essa data, evolução clínica desfavorável. b) A autora e o seu marido, M…, em 15.01.2009, já sabiam que havia sido diagnosticado a M… hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade. c) M… faleceu em consequência da hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade diagnosticadas em 2002. d) A ré comunicou à autora M… e seu marido M… o conteúdo das cláusulas do acordo referido em 2) dos factos provados e explicou-lhes o seu teor. e) Em 15.01.2009, a ré entregou à autora M… e ao seu marido M… cópia do acordo referido em 2) dos factos provados. f) Caso a ré tivesse tido conhecimento do referido em A) dos factos não provados não teria aceite a proposta subscrita pela autora e pelo seu marido nos termos em que foi aceite em 3) dos factos provados. g) Após a comunicação referida em 7), a ré, através do Banco…, continuou a cobrar e, consequentemente, os autores a pagarem o prémio de seguro relativo à apólice aqui em causa, com o número 00061190, nos termos, datas e prémios indicados no documento de fls. 72 e 73, denominado “Certificado Individual de Seguro nº 71321627”. h) Como consequência directa e necessária do referido em 8) dos factos provados, os autores sofreram desgosto, transtornos e arrelias. B) O DIREITO Da admissibilidade da junção do documento de fls. 346. Com as respectivas alegações de recurso requereu a ré ora recorrente, a junção do documento que faz fls. 346 dos autos, correspondente ao “certificado de óbito” de M…, marido da 1ª autora e pai dos restantes autores, invocando fazê-lo ao abrigo do disposto no art. 651º, nº 1, do CPC e «atendendo a que o Tribunal “a quo” desvalorizou o “atestado” de fls. 85, a resposta positiva ao facto não provado que consta da alínea C) poderá depender, caso venha a ser confirmada a argumentação, (…), do conteúdo do certificado de óbito.». Os autores ora recorridos opuseram-se à requerida junção Vejamos. Nos termos do artigo 651º, n.º 1, do novo CPC[3], «as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º[4] ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância». Este novo preceito, relativamente ao diploma imediatamente precedente, veio abolir a possibilidade de livre junção de documentos em alguns casos de recursos intercalares e veio clarificar a possibilidade de junção de pareceres, concretizando o momento até ao qual esta faculdade pode ser exercida[5], mas tais alterações irrelevam à nossa apreciação. Antes, como agora, a junção de documentos deve ocorrer na 1.ª instância e só pode acontecer em sede de recurso se não foi possível fazê-la em momento anterior ou quando «a junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável», mas não contemplando – tal como a jurisprudência anterior afirmava – a possibilidade da junção se justificar em relação a «factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova»[6]. Assim, a regra geral quanto à oportunidade da junção de documentos posteriores ao encerramento da discussão, em 1ª instância, deve ser encontrada, através da interpretação conjugada dos citados artigos 423º e 425º. Efectivamente, as partes podem juntar documentos às alegações, nos casos excepcionais a que se refere o artigo 423º, ou, na hipótese de a sua junção apenas se tornar necessária, em virtude do julgamento proferido na 1ª instância, como decorre ainda do disposto pelo artigo 706º, nºs 1 e 2. Sendo princípio fundamental que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com os articulados em que se aleguem os factos correspondentes, ou, na impossibilidade, até 20 dias antes da data em que realize a audiência final, como decorre do disposto no artigo 423º, nºs 1 e 2, a lei admite, igualmente, por força do estipulado pelo artigo 425º, citado, que, depois deste último momento [20 dias antes da data da realização da audiência final], os documentos supervenientes possam, também, ser juntos com as alegações de recurso, mas, ainda assim, apenas, nos casos excepcionais em que a sua apresentação não tenha sido possível, até 20 dias antes do julgamento, quando a junção se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior, ou quando a sua junção apenas se tenha tornado necessária, em virtude do julgamento proferido em 1ª instância. Assim sendo, são três os fundamentos excepcionais justificativos da apresentação de documentos supervenientes com as alegações de recurso, ou seja, quando os documentos se destinem a provar factos posteriores aos articulados, quando a sua junção se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior e, finalmente, no caso de a sua apresentação apenas se revelar necessária, devido ao julgamento proferido em 1ª instância. O caso vertente não envolve a impossibilidade ou a necessidade a que o art. 423º, nº 3, se reporta[7], e também é claro que tal junção nada tem a ver com a situação prevista na segunda parte do nº 1 do artigo 651º - junção de documento apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância. Em anotação de Antunes Varela à previsão da norma correspondente do CPC revogado, pode ler-se, na RLJ, ano 115, nº 3696, a págs. 95 e 96: “A junção de documentos com as alegações da apelação, afora os casos de impossibilidade de junção anterior ou de prova de factos posteriores ao encerramento da discussão de 1ª instância, é possível quando o documento só se tenha tornado necessário em virtude do julgamento proferido na 1ª instância. E o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou a dedução da defesa), quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado. (…) A decisão da 1ª instância pode, por isso, criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. Só nessas circunstâncias a junção do documento às alegações da apelação se pode legitimar à luz do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 706º do Código de Processo Civil”. E nessa linha se tem orientado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[8], defendendo-se no Acórdão de 28.2.2002 que a junção de documentos, com base em tal previsão, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. Esta última situação não ocorre no caso em apreço, visto a decisão da 1ª instância se ter baseado unicamente nas provas oferecidas pelas partes e em normas jurídicas cuja aplicação as partes sempre teriam de contar. Impõe-se, assim, ordenar o desentranhamento de tal documento, o que será feito a final. Da alteração da matéria de facto. Como resulta do art. 662º, nº 1, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa. Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – documentos, declarações de parte das legais representantes da ré e depoimentos testemunhais, registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal a quo. Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo art. 640º, nºs 1 e 2, já que: - indicou os concretos pontos da materialidade fáctica que considera incorrectamente julgados, com referência ao que foi decidido na sentença recorrida (que fixou também a matéria de facto provada e não provada); - referiu os concretos meios de prova que, na sua óptica, impunham decisão diversa, in casu o documento de fls. 85, os depoimentos das testemunhas que depuseram sobre a matéria, e o documento junto com as alegações que, como se viu, não pode aqui ser considerado, por não ser admissível a sua junção nesta fase; - indicou as passagens da gravação relativamente aos depoimentos prestados nos quais funda a sua discordância com a decisão sobre a matéria de facto, os quais transcreve em parte. No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorrecta avaliação da prova testemunhal cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto[9]. Presente deve ter-se, outrossim, que o sistema legal, tal como está consagrado, com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa, sofrendo a apreciação da matéria de facto pela Relação, naturalmente, a limitação que a inexistência da imediação de forma necessária acarreta. Feitas estas breves considerações, vejamos então se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, como defende a recorrente, o que equivaleria a dar-se como provada a factualidade constante das alíneas a), b), c) e f) dos factos não provados. É a seguinte a factualidade em causa: a) Em 2002 foi diagnosticado a M… hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade, altura a partir da qual realizou terapêutica no âmbito desse quadro clínico, apresentando, desde essa data, evolução clínica desfavorável. b) A autora e o seu marido, M…, em 15.01.2009, já sabiam que havia sido diagnosticado a M… hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade. c) M… faleceu em consequência da hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade diagnosticadas em 2002. f) Caso a ré tivesse tido conhecimento do referido em A) dos factos não provados não teria aceite a proposta subscrita pela autora e pelo seu marido nos termos em que foi aceite em 3) dos factos provados. Vimos já que a recorrente sustenta a prova dos factos acabados de descrever no documento de fls. 85 e nos depoimentos das testemunhas M… (gestora de sinistros da ré), A… (médico da ré), A… (funcionário bancário) e E… . Comecemos pelo documento de fls. 85. Decorrente do princípio geral contido no art. 2º[10] da Lei da Protecção de Dados Pessoais – D.L. nº 67/98, de 26 de Outubro -, estatui o art. 7º, nºs 1 e 2, daquele diploma que é proibido o tratamento de dados pessoais relativos, além do mais, à saúde de uma pessoa, a menos que haja consentimento expresso para o efeito, consentimento este que deve ser obtido de forma inequívoca (art. 6º, nº1). Fora destes casos, o tratamento dos dados pessoais de saúde pode ser permitido nas situações previstas no art. 7º, nº3, do mesmo diploma, de entre as quais consta o facto de dizer respeito a dados manifestamente tornados públicos pelo seu titular, desde que se possa legitimamente deduzir das suas declarações o consentimento para o tratamento dos mesmos, ou então, ser necessário à declaração, exercício ou defesa de um direito em processo judicial e for efectuado exclusivamente com essa finalidade. Está fora de dúvida que os dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de protecção legal (artigo 80º do Código Civil) e constitucional (artigo 26º da Constituição) do direito à reserva da intimidade da vida privada[11]; e igualmente que tal protecção se estende mesmo depois da morte do titular[12]. Ora, é facto incontroverso que os autores não publicitaram a causa da morte do seu parente, tendo até alegado na petição inicial (art. 11º) que o falecido “não tinha conhecimento de qualquer problema de saúde relacionado ou conexionado com o que originou a sua morte”, e também em nenhum momento processual consentiram de modo expresso e inequívoco na divulgação da existência de qualquer patologia ou sequer do diagnóstico da causa da morte do seu parente. Significa isto, como bem se diz na sentença recorrida, que «as eventuais patologias de que poderia sofrer o falecido não foram tornadas públicas pelo mesmo ou seus herdeiros, do que resulta desde logo a posição que assumiram em sede de réplica, e a declaração emitida medicamente com aquele conteúdo não o foi no âmbito de um processo judicial, mas antes e apenas a pedido de uma entidade privada e fora do contexto de qualquer processo judicial em curso. Desconhecendo o tribunal a forma como a ré obteve o certificado de óbito com o respectivo diagnóstico, cuja junção sem consentimento da contraparte também seria questionável, a verdade é que, fora do contexto judicial, lhe estava vedada a possibilidade de aceder a dados pessoais que, como vimos, encontram regulação legal muito restritiva e que deveria ter sido observada, desde logo pela médica assistente do falecido, nos termos do art. 5º, nº3, do D.L. nº 67/98, de 26 de Outubro.» Na hipótese – que não se concede – do tribunal julgar válido, para efeitos probatórios, o aludido documento de fls. 85, a verdade é que o seu conteúdo não foi confirmado em julgamento, sendo certo que era sobre a ré que impediam o respectivo ónus, face à impugnação pelos autores na réplica (art. 374º, nº 2 do CC). Na verdade, no decurso da audiência de julgamento, os autores juntaram ao processo a declaração de fls. 251, subscrita pela mesma médica que havia subscrito o “atestado” de fls. 85, na qual a mesma declara que “nos registos informáticos que constam ter tido as consultas em 03 de Janeiro de 2009, 02 de Agosto de 2010 e 01 de Setembro de 2010, não constando exames complementares de diagnóstico”. Face à junção de tal documento, e porque o mesmo “parece pretender por em causa o que a mesma signatária atestou sob compromisso de honra a fls. 85”, o Mm.º Juiz requisitou ao Centro de Saúde de Celorico de Basto a remessa de cópia de todos os registos clínicos do falecido M… e determinou a inquirição como testemunha da médica subscritora dos referidos documentos. Dos registos clínicos enviados e constantes a fls. 260 a 265 não resulta qualquer dado que tenha sido registado anteriormente à celebração do contrato de seguro, que pudesse de alguma forma comprovar o que é atestado no documento de fls. 85. Ademais, depois de ouvirmos o depoimento prestado pela médica que subscreveu os documentos de fls. 85 e 251, esta confirmou que o pedido de requisição dos registos clínicos foi integralmente cumprido, tendo sido enviada a totalidade dos documentos existentes no Centro de Saúde. Significativo é também o facto – que não passou despercebido ao Mm.º Juiz a quo – da referida médica, quando confrontada com o atestado de fls. 85, se ter refugiado em lapsos na data, acabando por justificar a sua emissão com o resultado do episódio de urgência noticiado a fls. 262, pois que saiba o falecido não fez análises e sem análises não seria possível obter um diagnóstico como o que anteriormente atestou, ou seja, o que consta do documento de fls. 85. O menor cuidado naquilo que foi atestado a fls. 85 sai ainda reforçado com o facto de ser impossível à sua subscritora atestar algo quando o segurado e falecido M… não havia sequer feito análises clínicas que comprovassem a veracidade do que se atestou em tal documento. Isto tudo, naturalmente, se tal documento pudesse servir como prova – que não pode pelas razões acima expostas - do facto que pretendia provar, ou seja, que em 2002 havia sido diagnosticado ao falecido M… as mencionadas patologias. Também os depoimentos das testemunhas arroladas pela recorrente, todas funcionárias da ré e que ouvimos na íntegra, não autorizam uma alteração da matéria de facto no sentido proposto pela recorrente. (…) Resulta assim do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correcta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto. Da validade do contrato de seguro. Segundo a recorrente, o quadro clínico decorrente de hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade, se tivesse sido declarado, teria condicionado a aceitação do risco, pelo que ao omitirem a informação correcta, solicitada pela ré na proposta de adesão, a autora e o falecido marido violaram o princípio da boa fé, podendo assim concluir-se pela verificação de uma doença pré-existente à data da contratação do seguro, não declarada e cuja evolução levou ao enfarte do miocárdio, que era do tal conhecimento da autora e do falecido marido e do total desconhecimento da ré. Assim, conclui a recorrente, não estavam reunidas as condições de subscrição do seguro de vida constante do contrato de crédito, pelo que o mesmo é nulo e, em qualquer caso, sempre estaria excluída do seguro a cobertura de invalidez que seja consequência de doença pré-existente. Esta argumentação da recorrente tinha como pano de fundo, como é bom de ver, a alteração da matéria de facto, a qual não foi acolhida por este Tribunal ad quem, o que tornaria desnecessárias outras considerações sobre a questão. No entanto, sempre se dirá que mesmo que a recorrente tivesse logrado provar as patologias pré-existentes e declarações inexactas à data da contratação do seguro, como bem se diz na sentença recorrida, «não poderiam ser opostas aos autores as cláusulas de exclusão de responsabilidade definidas nas condições gerias e especiais, por falta de comunicação e informação.» Isto porque, não sofrendo contestação a aplicação ao contrato de seguro em causa autos do regime das cláusulas contratuais gerais (DL 446/85, de 25/10)[13], prescreve o art. 5º deste diploma legal que tais cláusulas devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las (nº 1), devendo essa comunicação ser feita de modo adequado e com a antecedência necessária ao seu conhecimento completo e efectivo (nº 2), sendo que o ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem tais cláusulas (nº 3). A par de um dever de comunicação, existe um específico dever de informação, consagrado no art. 6º do mesmo diploma legal. Ora, a ré não logrou provar que tenha comunicado à 1ª autora e seu falecido marido o conteúdo das cláusulas das Condições Gerais e Particulares do contrato de seguro, nem que lhes tenha entregue cópias das referidas condições (cfr. als. d) e e) dos factos não provados), pelo que não deu cumprimento aos deveres de comunicação e de informação a que aluem os citados arts. 5º e 6º do DL 446/85. Por isso nenhuma dúvida pode subsistir sobre a exclusão do contrato de seguro das cláusulas contratuais invocadas pela recorrente, como bem se decidiu na sentença recorrida. Improcedem assim todas as conclusões do recurso, o que implica o total inêxito do mesmo e a manutenção da decisão recorrida. Sumário: I – A junção de documento apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. II – Os dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de protecção legal e constitucional do direito à reserva da intimidade da vida privada. III – Essa protecção estende-se para além da morte do titular. IV – A junção de um documento ao processo pela seguradora em que o médico atesta a existência de eventuais patologias de que sofria o segurado sem que estas tenham alguma vez sido tornadas públicas pelo mesmo ou pelos seus herdeiros, constitui prova ilícita por violadora do sigilo profissional. V – Devem ser excluídas do contrato de seguro as cláusulas das Condições Gerais e Particulares do contrato de seguro cujo conteúdo não tenham sido comunicadas ao segurado ou cuja cópia não lhe tenha sido entregues, por violação dos deveres de deveres de comunicação e de informação a que aluem os artigos 5º e 6º do DL 446/85, de 25.10. IV – DECISÃO Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em: a) ordenar o desentranhamento do documento de fls. 346; b) julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.*Custas pela recorrente. Guimarães, 24 de Abril de 2014 Manuel Bargado Helena Gomes de Melo Heitor Gonçalves ________________________________ [1] Trata-se das conclusões apresentadas com as contra-alegações de resposta às primitivas conclusões da ré, pois os autores não apresentaram resposta às novas conclusões da ré. [2] Mantém-se a sequência de factos constante da sentença. [3] São deste diploma os artigos adiante citados sem menção de origem. [4] Nos termos daquele preceito, "Depois do encerramento da discussão, só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento". Com efeito, como decorre do disposto no novo artigo 423º do CPC, "Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se alegam os factos correspondentes" (n.º 1) e, "Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pode oferecer com o articulado" (n. º2). É que, "Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior" (n.º 3). [5] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 184 [6] Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 184-185. [7] Basta ver, para tanto, por um lado, que o documento foi emitido em 29.09.2010, ou seja na data do óbito do marido da 1ª autora e pai dos restantes autores, ou seja, quase um ano antes da propositura da acção e, por outro lado, tal como se pode ler na fundamentação da decisão de facto expressa na sentença, aquando da apreciação do documento de fls. 85, que a testemunha António Pinto Freitas, médico da ré, «esclareceu que o seu conhecimento deveu-se ao certificado de óbito» que agora a recorrente pretende juntar. [8] Vejam-se, por exemplo, os Acórdãos de 03.03.1989, BMJ, 385º-545, de 12.01.1994, BMJ, 433º-467, de 28.02.2002, na Revista nº 296/02-6ª, Sumários, 2/2002, de 14.05.2002, na Revista nº 420/02-1ª, Sumários, 5/2002, de 30.09.2004, disponível em www.dgsi.pt, doc. nº SJ200409300028947, e de 24.02.2010, disponível em www.dgsi.pt, Proc. 709/03.7 TTBRG.P1.S1. [9] A jurisprudência evoluiu no sentido de se firmar um entendimento mais abrangente no que se refere aos poderes de alteração da matéria de facto pela Relação, considerando-os com a mesma amplitude que a dos tribunais de 1ª instância. Nessa medida, e no que se refere à questão da convicção, já não estará em causa cingir apenas a sua actividade de apreciação ao apuramento da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, mas antes formar a sua própria convicção nos elementos probatórios disponíveis nos autos (cfr., inter alia, o recente Acórdão do STJ de 24.09.2013, proc. 1965/04.9TBSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt). [10] Que dispõe assim: «O tratamento de dados pessoais deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais.» [11] Assim, acórdãos nºs 355/97, relativo ao registo de dados oncológicos, ou 368/02 do Tribunal Constitucional, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt. [12] Cfr. artigo 71º do Código Civil e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, anotação ao artigo 26º, p. 284. [13] Que já sofreu as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei nºs 220/95, de 31.01, 249/99, de 07.07 e 323/2001, de 17.12.