I - Qualquer credor tem legitimidade para requerer a insolvência do devedor, não importando que o crédito esteja vencido ou não, declarado ou não, mesmo sendo o crédito condicional e qualquer que seja a sua natureza. II - Só assim pode prevenir o incumprimento ou agravamento do dito crédito.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto B………. intentou, em 26-3-09, no Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, acção especial na qual requereu a declaração de insolvência de C………., S.A.. Alega que, por contrato celebrado em 23-10-07, prometeu comprar, conjuntamente com D………., Lda, à requerida oito fracções autónomas, sitas num prédio a construir em Vila Nova de Gaia, que aquela prometeu vender, obrigando-se a iniciar a sua construção até final de Junho de 2008; a título de sinal, cada um dos promitentes-compradores entregou à requerida a quantia de € 60.000,00; não tendo a requerida dado início às obras na data acordada, foi celebrado, em 1-9-08, entre as partes o acordo denominado “Declaração de Reconhecimento de Dívida de Pagamento e Rescisão Contratual”, através do qual a requerida se confessou devedora à requerente da quantia de € 83.000,00 (60.000,00+23.000,00), a pagar em prestações; estabelecendo-se um agravamento daquele pagamento, em caso de incumprimento, sendo que, caso o atraso no pagamento de alguma prestação fosse superior a 90 dias, a requerente ficava com a faculdade de resolver tal acordo, assumindo, então, a requerida a obrigação de a indemnizar pelo valor correspondente ao total ainda em dívida, acrescida da totalidade das penalizações devidas; a requerida não pagou as duas primeiras prestações, pelo que a requerente, por carta de 29-3-09, declarou resolvido o referido acordo; tendo direito, assim, a que a requerida lhe pague a quantia global de € 190.000,00; aquela, todavia, não lhe paga, nem tem meios financeiros para tal, não lhe sendo conhecido sequer, actualmente, o exercício de qualquer actividade. Na oposição que deduziu a requerida alega, além do mais, que não se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas; ter pago, por interposta sociedade, as prestações vencidas em 30-10-08 e 30-1-09; de qualquer modo, o eventual crédito da requente seria, não o indicado, mas no montante de € 54.000,00 (30.000,00+24.000,00). Realizada uma tentativa de conciliação, foi proferida sentença que julgou improcedente o pedido de insolvência. Inconformado, o requerente interpôs recurso. Conclui assim: - salvo o sempre devido respeito, que é muito, o Recorrente não se pode conformar com a douta sentença aqui sob censura; - desde logo, porque a Meritíssima Juíza determinou a desnecessidade da realização da audiência de discussão e julgamento, estribando a sua decisão na inutilidade de produção de prova; - ora, o Recorrente não pode aceitar a posição assumida pela Meritíssima Juíza na sentença proferida; - na verdade, bastaria a existência de oposição ao pedido de insolvência para que a referida audiência de julgamento se realizasse (artigo 35º, nº1, CIRE); - de outro modo, as partes ficavam cerceadas de poderem provar os factos que alegaram em sede de articulados; - sustenta-se também na douta sentença a legitimidade do aqui Recorrente para pedir a declaração de insolvência da Recorrida, pelo facto do crédito que invocou ser litigioso; - mas, acontece que, o crédito só é litigioso pela oposição, apresentada pela Recorrida; - contudo, esta limitou-se a alegar factos e a tecer considerações, sem produzir qualquer prova do que afirmara, porquanto a audiência de julgamento não se realizou; - por conseguinte, o ora Recorrente viu-se inibido de fazer prova do seu crédito, bem como de contraditar os factos alegados pela Recorrida; - sendo que, não foram tidos em consideração os documentos juntos pelo Recorrente; - ademais, foram alegados pelo Recorrente factos índices, constantes do artigo 20º do CIRE, cuja veracidade importava apurar; - até porque o artigo 11º do CIRE, consagra expressamente o princípio do inquisitório; - porém, mesmo que existissem dúvidas acerca do montante do crédito invocado pelo Recorrente, ainda assim, a sua legitimidade para requerer a insolvência não poderia ser posta em causa (artigo 25º, nº1, do CIRE); - a este respeito Luís Menezes Leitão é lapidar ao afirmar: "A lei atribui legitimidade para requerer a declaração de insolvência a qualquer que seja a natureza do crédito. É, assim, necessário, para se poder requerer a declaração de insolvência apenas a existência do crédito, não se exigindo que o mesmo esteja vencido, e muito menos que o credor possua título executivo, devendo o credor justificar na petição inicial, a natureza, origem e montante do crédito (art. 25º, nº1), tendo que fazer prova do mesmo (art. 25º, nº2). A prova do crédito pode ser realizada por qualquer meio, designadamente por testemunhas, apresentação do contrato que o gerou, ou documentação da conta-corrente" (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, pág. 128); - acresce que, de acordo com o estipulado no artigo 20º, nº1, do CIRE, a legitimidade para requerer a insolvência é uma faculdade atribuída mesmo ao credor condicional; - por fim, diz-se também na douta sentença em apreço que o Recorrente deveria ter, previamente ao pedido de insolvência, recorrido à acção executiva; - porém, um dos fundamentos do pedido de insolvência foi o facto da Recorrida não ter procedido, como era aliás seu dever, ao depósito das contas na Conservatória do Registo Comercial, mais de nove meses após o termo do prazo legal para o fazer; - e, de facto, o desconhecimento das contas tem implicações práticas relevantes no exercício da acção executiva, porquanto, tal omissão impedia - e impede - o Requerente de proceder à penhora de créditos eventualmente detidos pela Requerida, por desconhecimento dos seus documentos contabilísticos, mormente dos mapas recapitulativos; - nesta conformidade, parece, salvo o sempre devido respeito, excessivo afirmar-se que o Requerente deveria ter recorrido à instauração de uma acção executiva, sabendo-se que este, pelo sobredito, não poderia exercer, na sua plenitude, os seus direitos processuais, por facto unicamente imputável à Requerida; - diga-se ainda que o facto do montante do crédito poder não estar totalmente apurado é, salvo melhor aviso, irrelevante em sede de declaração de insolvência; - com efeito, se existissem dúvidas acerca do valor do crédito do Requerente, isso seria matéria para ser apurada em sede de reclamação de créditos, que se destina a verificar o passivo da Requerida e corre por apenso ao processo de insolvência, mas sempre após ser proferida a sentença de declaração de insolvência; - por fim, assinale-se que, a douta sentença violou o estatuído nos artigos 11º, 20º, 25º, nº1, 35º, 128º, nº1, todos do CIRE, bem como o disposto nos artigos. 3º e 510º, nº1, alínea b), ambos do CPC. Não houve contra-alegações.* *Os factos a considerar já resultam do relatório.* *Questão a decidir: -qualidade de credor do requerente.* *Na fundamentação da decisão recorrida considerou-se o seguinte: “voltando ao caso concreto temos que o crédito na génese do pedido é controvertido no que tange à existência o que terá de ser dirimido em acção própria. Nem o processo de insolvência, aliás, pode ser encarado como um "atalho” para obter um resultado favorável ou mais rápido”. E, mais à frente: “destarte, a aceitar-se divergente entendimento, toda e qualquer questão controvertida de índole civil seria dirimida neste areópago, com a adveniente vantagem (cumulativa "ab initio") de se poder impetrar a declaração de insolvência, situação esta que penso que não esteve presente na "mens legislatoris" (art.9º, nº1 do CCivil) aquando da elaboração do CIRE. Assim sendo, cumpre ao requerente, antes de mais, sedimentar o Direito que exercita no foro próprio, não discuti-lo neste Tribunal (que de Lei tem competência residual e claramente delimitada – art.89º da LOTJ). Em suma, não é apanágio deste Tribunal discutir, em primeira linha, se o Direito invocado existe e qual a sua extensão (tarefa esta a ser sindicada noutras instâncias), outrossim - "et tout court" - aferir se no caso submetido se verificam (ou não) os pressupostos de uma eventual insolvência. Aliás, a própria estrutura simplificada do art.35º do CIRE (vd. que não há lugar a resposta/réplica, e a fase processual da instauração está muito espartilhada, na prática não sendo possível configurar a produção de prova pericial), parece-me militar decisivamente no supra publicado sentido, i.e, que a aferição - e reconhecimento - de um qualquer direito de natureza patrimonial (quando controvertido e não estribado em qualquer título executivo indiscutido) deve ser aquilatado na sede a tal desiderato orientada, deixando (residualmente) a este tribunal a aferição dos índices da situação de insolvência, nada mais. Ora, no nosso caso, é de concluir quanto ao requerente e ao crédito por este exercitado, que é manifesta a improcedência do pedido formulado - declaração de insolvência, por relação à natureza litigiosa do crédito que estriba o pedido, sendo certo que a requerente sempre tem meios cautelares cíveis aos seu dispor para prevenir a satisfação do seu eventual "Jus", caso entenda que existe perigo de dissipação de bens (vd. ainda na esteira do entendimento sufragado, o recente Ac. do TRP, de 11.12.2008-recurso nº 6644/08-3- Exmos. Srs. Desembargadores Dr. Cruz Pereira, Dr. António Barateiro e Dr. Luís Espírito Santo). Assim, e, concluindo, não sendo certo que o crédito invocado pelo requerente exista na sua titularidade, pelo menos na sua totalidade, é manifesta a improcedência do pedido formulado - declaração de insolvência - tendo em conta os factos alegados”. No mesmo sentido tem sido proferida alguma jurisprudência recente – cfr ac.s desta Relação de 15-9-09, nº convencional JTRP00042909; de 28-4-09, nº convencional JTRP00042512; e de 20-4-09, nº convencional JTRP00042493, todos in www.dgsi.pt.. Vejamos melhor. Dispõe o art.1º do CIRE que: “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”. Parece, assim, estarmos perante uma acção executiva, uma vez que visa a reparação efectiva de direitos de crédito; mas com características especiais, já que se trata de uma execução colectiva, genérica ou total, e que segue um processo especial que, além do mais, contém elementos declarativos – cfr. MENEZES LEITÃO in Direito da Insolvência, 18. No sentido de que o processo de insolvência não se resume a uma espécie do processo de execução, antes, consistindo num processo autónomo, cfr. CATARINA SERRA in A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, 227 e ss.. Tal processo inicia-se com um pedido de declaração de insolvência – art.s 18º e ss. do CIRE. Que cabe, em primeira linha, ao devedor. Mas que pode ser requerida por outras pessoas para tal também legitimadas: por quem for responsável pelas suas dívidas; por qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do seu crédito; e pelo MP, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados – art.20º, nº1, do CIRE. Na respectiva petição inicial devem ser expostos os factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência – art.23º, nº1, do CIRE. E “quando o pedido não provenha do próprio devedor, o requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito, ou a sua responsabilidade pelos créditos sobre a insolvência, consoante o caso, e oferecer com ela os elementos que possua relativamente ao activo e passivo do devedor” – art.25º, nº1, do CIRE. Aqui chegados, coloca-se a seguinte questão: sendo o pedido de declaração da insolvência formulado por um credor, como é o caso em apreço, deve o respectivo crédito estar já declarado, na sequência de uma acção declarativa, ou já definido por qualquer outro modo? Ou seja, deve o credor dispor já de um título executivo, de modo que o seu crédito não esteja em discussão nos autos? Na sentença recorrida, consoante resulta do excerto que transcrevemos, entendeu-se que assim devia ser: ao tribunal de comércio devia caber, residualmente, “a aferição dos índices da situação de insolvência, nada mais”. Parece, todavia, não ser o que resulta da lei. Assim, destes preceitos legais resulta, desde logo, que sendo o pedido de insolvência requerido por qualquer legitimado que não o devedor – os responsáveis legais das dívidas do devedor, os credores ou o MP – deve ser alegada, e provada, a sua condição de interessados na declaração de insolvência, por um lado, e a verificação de algum dos factos-índice referidos no art.20º do CIRE, por outro lado. Pelo que a questão que aqui se coloca é, antes de mais, uma questão de legitimidade processual: saber quem pode requerer a insolvência do devedor. A lei, como já vimos, confere tal legitimidade, entre outros, aos credores do requerido. Pelo que, verdadeiramente, o que importa saber é se o requerente é credor do requerido. E, concluindo-se que é, tem, então, legitimidade para intentar a acção, desde que, também como em qualquer outra acção, tenha interesse em agir. Através da qual se vai averiguar se o requerido está em situação de insolvência, ou seja, “impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” – art.3º, nº1, do CIRE. Ora, se assim é, não está em causa saber se o direito de crédito do requerente esta vencido ou não, nem se está já declarado ou não. Importa, apenas, saber se existe na esfera jurídica do requerente. Porque só assim – sendo credor - tem legitimidade para intentar a acção. Este era já o entendimento seguido, à luz do regime previsto no CPC, por PEDRO DE SOUSA MACEDO, in Manuel de Direito das Falências, I, 383: “não se exige título executivo por o crédito ser posteriormente verificado, bastando um juízo sumário para se determinar a legitimidade do credor”. É o entendimento de MENEZES LEITÃO, ob. cit., 128: “A lei atribui legitimidade para requerer a declaração de insolvência a qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do crédito. É, assim, necessário, para se poder requerer a declaração de insolvência apenas a existência do crédito, não se exigindo que o mesmo esteja vencido, e muito menos que o credor possua título executivo, devendo o credor justificar na petição inicial, a natureza origem e montante do crédito (art. 25º, nº1), tendo que fazer prova do mesmo (art. 25º, nº2). A prova do crédito pode ser realizada por qualquer meio, designadamente por testemunhas, apresentação do contrato que o gerou, ou documentação da conta-corrente”. E é o entendimento seguido por CATARINA SERRA, ob. cit., pág.227 e ss.. Assim, escreve aquela autora: “quanto ao primeiro poder (poder de propor a abertura do processo / requerer a declaração de insolvência), deve observar-se que ele é independente da natureza ou da qualidade do crédito. Isto significa que qualquer credor, comercial ou civil, comum ou preferente, pode exercê-lo, devendo entender-se ainda, embora a norma não o refira expressamente, que tão-pouco são relevantes o objecto (prestação de coisa ou prestação de facto) e o montante do crédito” – pág.254. E, a seguir: “é verdade que, quando se trata de um credor, ele deve proceder à justificação do crédito, através da menção da origem, da natureza e do montante do seu crédito (cfr. art. 25º, nº1, do CIRE), que este acto representa já uma espécie de insinuação do crédito no processo, que, de certa forma, introduz já a sua pretensão. Mas seria incorrecto reconduzi-lo ao poder executivo; o que se trata, simplesmente, é de o credor requerente justificar a sua legitimidade processual, de demonstrar a qualidade de credor, que é requisito do seu direito de acção judicial (cfr. art. 20º, nº1, do CIRE)” – pág.264. Em suma, com o processo de insolvência pretende-se, essencialmente, evitar que a crise do devedor cause danos graves: prevenir o incumprimento e, se já houve incumprimento, para além de compensar os lesados, prevenir danos maiores. Por isso, o credor pode requerer o início do processo de insolvência independentemente do incumprimento, da mora ou mesmo do vencimento do respectivo crédito – CATARINA SERRA, ob, cit.264. Ora, se é assim, é manifesto que o direito de crédito do requerente não necessita de estar já declarado, quando requer a insolvência do devedor. Doutro modo, não podia, perante uma crise do devedor, prevenir o incumprimento, ou o seu agravamento. O que ele pretende é a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência, desencadeando, desse modo, os mecanismos jurídicos adequados. Aliás, atente-se que nem na fase posterior de reclamação de créditos é necessário que os mesmos estejam já declarados: nos termos do disposto no art.128º do CIRE, tanto podem reclamar o seu crédito os credores munidos de título executivo, como os que não o estão – cfr. CATARINA SERRA, ob. cit., 269. Neste sentido, ainda, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in Acção Executiva Singular, 11, e REMÉDIO MARQUES in Curso de Processo executivo à face do Código Revisto, 353. Pelo que, se assim é, nada justificava que o credor, logo ao requerer a insolvência, o estivesse. Por outro lado, cabendo ao requerente alegar e provar, em primeira linha, a sua qualidade de interessado - e, depois, algum dos factos índice referidos no art.20º do CIRE - é evidente que cabe ao tribunal recorrido, diferentemente do que se entendeu na sentença, conhecer de tal questão: apurar da qualidade de credor do requerente, a fim de concluir pela sua legitimidade. E, depois, apurar da verificação dos alegados factos-índice da situação de insolvência. Voltando ao caso em apreço, a requerente alegou ser credora da requerida. Pelo que, tendo havido impugnação por parte daquela, haveria que apurar tal matéria. Sendo certo que, mesmo a ficar provado que já pagou ao requerente a quantia de € 30.000,00, tendo este entregado, a título de sinal, a quantia de € 60.000,00, ainda é credor do remanescente. Em conclusão, e ao contrário do entendimento seguido na sentença recorrida, o facto de ser controvertido o crédito da requerente não conduz à sua ilegitimidade e, muito menos, à improcedência da acção. Pelo que o recurso merece provimento, devendo os autos prosseguir os seus termos para apuramento da factualidade relevante alegada, a fim de se extrair, depois, as consequências jurídicas devidas.* *Acorda-se, em face do exposto, em julgar a apelação procedente, pelo que se revoga a sentença proferida, em consequência do que devem os autos prosseguir os seus termos. Custas, a final, pela requerente ou pela massa insolvente, consoante o decaímento, tendo aplicação a secção B da tabela I anexa ao RCP. Porto, 16-12-09 Abílio Sá Gonçalves Costa Anabela Figueiredo Luna de Carvalho Rui António Correia Moura
Acordam no Tribunal da Relação do Porto B………. intentou, em 26-3-09, no Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, acção especial na qual requereu a declaração de insolvência de C………., S.A.. Alega que, por contrato celebrado em 23-10-07, prometeu comprar, conjuntamente com D………., Lda, à requerida oito fracções autónomas, sitas num prédio a construir em Vila Nova de Gaia, que aquela prometeu vender, obrigando-se a iniciar a sua construção até final de Junho de 2008; a título de sinal, cada um dos promitentes-compradores entregou à requerida a quantia de € 60.000,00; não tendo a requerida dado início às obras na data acordada, foi celebrado, em 1-9-08, entre as partes o acordo denominado “Declaração de Reconhecimento de Dívida de Pagamento e Rescisão Contratual”, através do qual a requerida se confessou devedora à requerente da quantia de € 83.000,00 (60.000,00+23.000,00), a pagar em prestações; estabelecendo-se um agravamento daquele pagamento, em caso de incumprimento, sendo que, caso o atraso no pagamento de alguma prestação fosse superior a 90 dias, a requerente ficava com a faculdade de resolver tal acordo, assumindo, então, a requerida a obrigação de a indemnizar pelo valor correspondente ao total ainda em dívida, acrescida da totalidade das penalizações devidas; a requerida não pagou as duas primeiras prestações, pelo que a requerente, por carta de 29-3-09, declarou resolvido o referido acordo; tendo direito, assim, a que a requerida lhe pague a quantia global de € 190.000,00; aquela, todavia, não lhe paga, nem tem meios financeiros para tal, não lhe sendo conhecido sequer, actualmente, o exercício de qualquer actividade. Na oposição que deduziu a requerida alega, além do mais, que não se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas; ter pago, por interposta sociedade, as prestações vencidas em 30-10-08 e 30-1-09; de qualquer modo, o eventual crédito da requente seria, não o indicado, mas no montante de € 54.000,00 (30.000,00+24.000,00). Realizada uma tentativa de conciliação, foi proferida sentença que julgou improcedente o pedido de insolvência. Inconformado, o requerente interpôs recurso. Conclui assim: - salvo o sempre devido respeito, que é muito, o Recorrente não se pode conformar com a douta sentença aqui sob censura; - desde logo, porque a Meritíssima Juíza determinou a desnecessidade da realização da audiência de discussão e julgamento, estribando a sua decisão na inutilidade de produção de prova; - ora, o Recorrente não pode aceitar a posição assumida pela Meritíssima Juíza na sentença proferida; - na verdade, bastaria a existência de oposição ao pedido de insolvência para que a referida audiência de julgamento se realizasse (artigo 35º, nº1, CIRE); - de outro modo, as partes ficavam cerceadas de poderem provar os factos que alegaram em sede de articulados; - sustenta-se também na douta sentença a legitimidade do aqui Recorrente para pedir a declaração de insolvência da Recorrida, pelo facto do crédito que invocou ser litigioso; - mas, acontece que, o crédito só é litigioso pela oposição, apresentada pela Recorrida; - contudo, esta limitou-se a alegar factos e a tecer considerações, sem produzir qualquer prova do que afirmara, porquanto a audiência de julgamento não se realizou; - por conseguinte, o ora Recorrente viu-se inibido de fazer prova do seu crédito, bem como de contraditar os factos alegados pela Recorrida; - sendo que, não foram tidos em consideração os documentos juntos pelo Recorrente; - ademais, foram alegados pelo Recorrente factos índices, constantes do artigo 20º do CIRE, cuja veracidade importava apurar; - até porque o artigo 11º do CIRE, consagra expressamente o princípio do inquisitório; - porém, mesmo que existissem dúvidas acerca do montante do crédito invocado pelo Recorrente, ainda assim, a sua legitimidade para requerer a insolvência não poderia ser posta em causa (artigo 25º, nº1, do CIRE); - a este respeito Luís Menezes Leitão é lapidar ao afirmar: "A lei atribui legitimidade para requerer a declaração de insolvência a qualquer que seja a natureza do crédito. É, assim, necessário, para se poder requerer a declaração de insolvência apenas a existência do crédito, não se exigindo que o mesmo esteja vencido, e muito menos que o credor possua título executivo, devendo o credor justificar na petição inicial, a natureza, origem e montante do crédito (art. 25º, nº1), tendo que fazer prova do mesmo (art. 25º, nº2). A prova do crédito pode ser realizada por qualquer meio, designadamente por testemunhas, apresentação do contrato que o gerou, ou documentação da conta-corrente" (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, pág. 128); - acresce que, de acordo com o estipulado no artigo 20º, nº1, do CIRE, a legitimidade para requerer a insolvência é uma faculdade atribuída mesmo ao credor condicional; - por fim, diz-se também na douta sentença em apreço que o Recorrente deveria ter, previamente ao pedido de insolvência, recorrido à acção executiva; - porém, um dos fundamentos do pedido de insolvência foi o facto da Recorrida não ter procedido, como era aliás seu dever, ao depósito das contas na Conservatória do Registo Comercial, mais de nove meses após o termo do prazo legal para o fazer; - e, de facto, o desconhecimento das contas tem implicações práticas relevantes no exercício da acção executiva, porquanto, tal omissão impedia - e impede - o Requerente de proceder à penhora de créditos eventualmente detidos pela Requerida, por desconhecimento dos seus documentos contabilísticos, mormente dos mapas recapitulativos; - nesta conformidade, parece, salvo o sempre devido respeito, excessivo afirmar-se que o Requerente deveria ter recorrido à instauração de uma acção executiva, sabendo-se que este, pelo sobredito, não poderia exercer, na sua plenitude, os seus direitos processuais, por facto unicamente imputável à Requerida; - diga-se ainda que o facto do montante do crédito poder não estar totalmente apurado é, salvo melhor aviso, irrelevante em sede de declaração de insolvência; - com efeito, se existissem dúvidas acerca do valor do crédito do Requerente, isso seria matéria para ser apurada em sede de reclamação de créditos, que se destina a verificar o passivo da Requerida e corre por apenso ao processo de insolvência, mas sempre após ser proferida a sentença de declaração de insolvência; - por fim, assinale-se que, a douta sentença violou o estatuído nos artigos 11º, 20º, 25º, nº1, 35º, 128º, nº1, todos do CIRE, bem como o disposto nos artigos. 3º e 510º, nº1, alínea b), ambos do CPC. Não houve contra-alegações.* *Os factos a considerar já resultam do relatório.* *Questão a decidir: -qualidade de credor do requerente.* *Na fundamentação da decisão recorrida considerou-se o seguinte: “voltando ao caso concreto temos que o crédito na génese do pedido é controvertido no que tange à existência o que terá de ser dirimido em acção própria. Nem o processo de insolvência, aliás, pode ser encarado como um "atalho” para obter um resultado favorável ou mais rápido”. E, mais à frente: “destarte, a aceitar-se divergente entendimento, toda e qualquer questão controvertida de índole civil seria dirimida neste areópago, com a adveniente vantagem (cumulativa "ab initio") de se poder impetrar a declaração de insolvência, situação esta que penso que não esteve presente na "mens legislatoris" (art.9º, nº1 do CCivil) aquando da elaboração do CIRE. Assim sendo, cumpre ao requerente, antes de mais, sedimentar o Direito que exercita no foro próprio, não discuti-lo neste Tribunal (que de Lei tem competência residual e claramente delimitada – art.89º da LOTJ). Em suma, não é apanágio deste Tribunal discutir, em primeira linha, se o Direito invocado existe e qual a sua extensão (tarefa esta a ser sindicada noutras instâncias), outrossim - "et tout court" - aferir se no caso submetido se verificam (ou não) os pressupostos de uma eventual insolvência. Aliás, a própria estrutura simplificada do art.35º do CIRE (vd. que não há lugar a resposta/réplica, e a fase processual da instauração está muito espartilhada, na prática não sendo possível configurar a produção de prova pericial), parece-me militar decisivamente no supra publicado sentido, i.e, que a aferição - e reconhecimento - de um qualquer direito de natureza patrimonial (quando controvertido e não estribado em qualquer título executivo indiscutido) deve ser aquilatado na sede a tal desiderato orientada, deixando (residualmente) a este tribunal a aferição dos índices da situação de insolvência, nada mais. Ora, no nosso caso, é de concluir quanto ao requerente e ao crédito por este exercitado, que é manifesta a improcedência do pedido formulado - declaração de insolvência, por relação à natureza litigiosa do crédito que estriba o pedido, sendo certo que a requerente sempre tem meios cautelares cíveis aos seu dispor para prevenir a satisfação do seu eventual "Jus", caso entenda que existe perigo de dissipação de bens (vd. ainda na esteira do entendimento sufragado, o recente Ac. do TRP, de 11.12.2008-recurso nº 6644/08-3- Exmos. Srs. Desembargadores Dr. Cruz Pereira, Dr. António Barateiro e Dr. Luís Espírito Santo). Assim, e, concluindo, não sendo certo que o crédito invocado pelo requerente exista na sua titularidade, pelo menos na sua totalidade, é manifesta a improcedência do pedido formulado - declaração de insolvência - tendo em conta os factos alegados”. No mesmo sentido tem sido proferida alguma jurisprudência recente – cfr ac.s desta Relação de 15-9-09, nº convencional JTRP00042909; de 28-4-09, nº convencional JTRP00042512; e de 20-4-09, nº convencional JTRP00042493, todos in www.dgsi.pt.. Vejamos melhor. Dispõe o art.1º do CIRE que: “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”. Parece, assim, estarmos perante uma acção executiva, uma vez que visa a reparação efectiva de direitos de crédito; mas com características especiais, já que se trata de uma execução colectiva, genérica ou total, e que segue um processo especial que, além do mais, contém elementos declarativos – cfr. MENEZES LEITÃO in Direito da Insolvência, 18. No sentido de que o processo de insolvência não se resume a uma espécie do processo de execução, antes, consistindo num processo autónomo, cfr. CATARINA SERRA in A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, 227 e ss.. Tal processo inicia-se com um pedido de declaração de insolvência – art.s 18º e ss. do CIRE. Que cabe, em primeira linha, ao devedor. Mas que pode ser requerida por outras pessoas para tal também legitimadas: por quem for responsável pelas suas dívidas; por qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do seu crédito; e pelo MP, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados – art.20º, nº1, do CIRE. Na respectiva petição inicial devem ser expostos os factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência – art.23º, nº1, do CIRE. E “quando o pedido não provenha do próprio devedor, o requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito, ou a sua responsabilidade pelos créditos sobre a insolvência, consoante o caso, e oferecer com ela os elementos que possua relativamente ao activo e passivo do devedor” – art.25º, nº1, do CIRE. Aqui chegados, coloca-se a seguinte questão: sendo o pedido de declaração da insolvência formulado por um credor, como é o caso em apreço, deve o respectivo crédito estar já declarado, na sequência de uma acção declarativa, ou já definido por qualquer outro modo? Ou seja, deve o credor dispor já de um título executivo, de modo que o seu crédito não esteja em discussão nos autos? Na sentença recorrida, consoante resulta do excerto que transcrevemos, entendeu-se que assim devia ser: ao tribunal de comércio devia caber, residualmente, “a aferição dos índices da situação de insolvência, nada mais”. Parece, todavia, não ser o que resulta da lei. Assim, destes preceitos legais resulta, desde logo, que sendo o pedido de insolvência requerido por qualquer legitimado que não o devedor – os responsáveis legais das dívidas do devedor, os credores ou o MP – deve ser alegada, e provada, a sua condição de interessados na declaração de insolvência, por um lado, e a verificação de algum dos factos-índice referidos no art.20º do CIRE, por outro lado. Pelo que a questão que aqui se coloca é, antes de mais, uma questão de legitimidade processual: saber quem pode requerer a insolvência do devedor. A lei, como já vimos, confere tal legitimidade, entre outros, aos credores do requerido. Pelo que, verdadeiramente, o que importa saber é se o requerente é credor do requerido. E, concluindo-se que é, tem, então, legitimidade para intentar a acção, desde que, também como em qualquer outra acção, tenha interesse em agir. Através da qual se vai averiguar se o requerido está em situação de insolvência, ou seja, “impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” – art.3º, nº1, do CIRE. Ora, se assim é, não está em causa saber se o direito de crédito do requerente esta vencido ou não, nem se está já declarado ou não. Importa, apenas, saber se existe na esfera jurídica do requerente. Porque só assim – sendo credor - tem legitimidade para intentar a acção. Este era já o entendimento seguido, à luz do regime previsto no CPC, por PEDRO DE SOUSA MACEDO, in Manuel de Direito das Falências, I, 383: “não se exige título executivo por o crédito ser posteriormente verificado, bastando um juízo sumário para se determinar a legitimidade do credor”. É o entendimento de MENEZES LEITÃO, ob. cit., 128: “A lei atribui legitimidade para requerer a declaração de insolvência a qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do crédito. É, assim, necessário, para se poder requerer a declaração de insolvência apenas a existência do crédito, não se exigindo que o mesmo esteja vencido, e muito menos que o credor possua título executivo, devendo o credor justificar na petição inicial, a natureza origem e montante do crédito (art. 25º, nº1), tendo que fazer prova do mesmo (art. 25º, nº2). A prova do crédito pode ser realizada por qualquer meio, designadamente por testemunhas, apresentação do contrato que o gerou, ou documentação da conta-corrente”. E é o entendimento seguido por CATARINA SERRA, ob. cit., pág.227 e ss.. Assim, escreve aquela autora: “quanto ao primeiro poder (poder de propor a abertura do processo / requerer a declaração de insolvência), deve observar-se que ele é independente da natureza ou da qualidade do crédito. Isto significa que qualquer credor, comercial ou civil, comum ou preferente, pode exercê-lo, devendo entender-se ainda, embora a norma não o refira expressamente, que tão-pouco são relevantes o objecto (prestação de coisa ou prestação de facto) e o montante do crédito” – pág.254. E, a seguir: “é verdade que, quando se trata de um credor, ele deve proceder à justificação do crédito, através da menção da origem, da natureza e do montante do seu crédito (cfr. art. 25º, nº1, do CIRE), que este acto representa já uma espécie de insinuação do crédito no processo, que, de certa forma, introduz já a sua pretensão. Mas seria incorrecto reconduzi-lo ao poder executivo; o que se trata, simplesmente, é de o credor requerente justificar a sua legitimidade processual, de demonstrar a qualidade de credor, que é requisito do seu direito de acção judicial (cfr. art. 20º, nº1, do CIRE)” – pág.264. Em suma, com o processo de insolvência pretende-se, essencialmente, evitar que a crise do devedor cause danos graves: prevenir o incumprimento e, se já houve incumprimento, para além de compensar os lesados, prevenir danos maiores. Por isso, o credor pode requerer o início do processo de insolvência independentemente do incumprimento, da mora ou mesmo do vencimento do respectivo crédito – CATARINA SERRA, ob, cit.264. Ora, se é assim, é manifesto que o direito de crédito do requerente não necessita de estar já declarado, quando requer a insolvência do devedor. Doutro modo, não podia, perante uma crise do devedor, prevenir o incumprimento, ou o seu agravamento. O que ele pretende é a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência, desencadeando, desse modo, os mecanismos jurídicos adequados. Aliás, atente-se que nem na fase posterior de reclamação de créditos é necessário que os mesmos estejam já declarados: nos termos do disposto no art.128º do CIRE, tanto podem reclamar o seu crédito os credores munidos de título executivo, como os que não o estão – cfr. CATARINA SERRA, ob. cit., 269. Neste sentido, ainda, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in Acção Executiva Singular, 11, e REMÉDIO MARQUES in Curso de Processo executivo à face do Código Revisto, 353. Pelo que, se assim é, nada justificava que o credor, logo ao requerer a insolvência, o estivesse. Por outro lado, cabendo ao requerente alegar e provar, em primeira linha, a sua qualidade de interessado - e, depois, algum dos factos índice referidos no art.20º do CIRE - é evidente que cabe ao tribunal recorrido, diferentemente do que se entendeu na sentença, conhecer de tal questão: apurar da qualidade de credor do requerente, a fim de concluir pela sua legitimidade. E, depois, apurar da verificação dos alegados factos-índice da situação de insolvência. Voltando ao caso em apreço, a requerente alegou ser credora da requerida. Pelo que, tendo havido impugnação por parte daquela, haveria que apurar tal matéria. Sendo certo que, mesmo a ficar provado que já pagou ao requerente a quantia de € 30.000,00, tendo este entregado, a título de sinal, a quantia de € 60.000,00, ainda é credor do remanescente. Em conclusão, e ao contrário do entendimento seguido na sentença recorrida, o facto de ser controvertido o crédito da requerente não conduz à sua ilegitimidade e, muito menos, à improcedência da acção. Pelo que o recurso merece provimento, devendo os autos prosseguir os seus termos para apuramento da factualidade relevante alegada, a fim de se extrair, depois, as consequências jurídicas devidas.* *Acorda-se, em face do exposto, em julgar a apelação procedente, pelo que se revoga a sentença proferida, em consequência do que devem os autos prosseguir os seus termos. Custas, a final, pela requerente ou pela massa insolvente, consoante o decaímento, tendo aplicação a secção B da tabela I anexa ao RCP. Porto, 16-12-09 Abílio Sá Gonçalves Costa Anabela Figueiredo Luna de Carvalho Rui António Correia Moura