I- A atribuição de legitimidade para deduzir o pedido de insolvência apenas ao credor cujo crédito não tenha sido contestado, restringiria, grave e injustificadamente, o meio de tutela jurisdícional do direito crédito — seja do requerente da insolvência seja dos demais credores do requerido - representado pela insolvência. II- È ao autor ou requerente que compete assegurar o preenchimento dos pressupostos processuais, desde logo a legitimidade ad causam e para isso é indispensável que se lhe assegure a possibilidade de realização da prova, no processo de insolvência, dos factos correspondentes, se estes forem controvertidos.
Proc. nº 97/09.8TYVNG.P1 Acordam no Tribunal da Relação do Porto: Relatório. B………………. promoveu, no ….º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova da Gaia, contra C…………….., a declaração da insolvência da última. Fundamentou a sua pretensão no facto de ser credora da requerida, pela quantia de € 15 871.83, resultante da execução e da cessação do contrato de trabalho, celebrado entre ambas no dia 11 de Fevereiro de 2008, e de a requerida se encontrar completa e absolutamente impossibilitada de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. A requerida alegou, na oposição, que a requerente é detentora de um crédito, mas que não o reconhece nos termos em que aquela o invoca, dado que exige quantias a que manifestamente não tem direito, e que não se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas. Cessada a suspensão da instância, por acordo das partes, com vista à obtenção de decisão contratualizada do litígio, a Sra. Juíza de Direito, ponderando que não sendo certo que o crédito invocado pela requerente exista na sua titularidade, e que não sendo da competência deste tribunal a apreciação e discussão do mesmo, e que é manifesta improcedência do pedido formulado – declaração de insolvência – julgou improcedente o pedido. Apelou, naturalmente, a requerente, que pede, no recurso, a revogação da decisão impugnada e a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento do processo. Para mostrar o desacerto da decisão recorrida, a recorrente extraiu da sua alegação estas fartas conclusões. A. A questão decidendi não tem cabimento na fundamentação e respectiva decisão de improcedência do pedido de insolvência, já que o Tribunal “ad quo” confunde outras situações de facto com as aqui em juízo, pois julga liminarmente a questão sub judice, fundamentando a sua decisão de improcedência do pedido com os mesmos fundamentos de que se serviu anteriormente para julgar situações manifestamente diferentes, ou seja, pedidos de declaração de insolvência que tinham na sua génese créditos de facto litigiosos, o que não é o caso destes autos, até e também em face da oposição deduzida pela apelada. B. O Tribunal "ad quo" desconsidera em absoluto a natureza do crédito na génese do pedido de insolvência - credito laboral -, já que o mesmo é emergente da falta do pagamento pontual das retribuições do trabalhador - a apelante -, e da cessação unilateral, pela apelante, do contrato de trabalho, com fundamento em justa causa motivada pela falta de pagamento pontual das retribuições do trabalhador. C. Do lado da apelada existe uma obrigação há muito vencida: a obrigação de pagar pontualmente as retribuições dos seus trabalhadores, onde se inclui a apelante, obrigação essa que confessadamente a apelada não cumpriu. D. Na base de um crédito laboral estão obrigações vencidas, logo exigíveis por banda do trabalhador ao empregador, E. Além de que um crédito laboral tem do lado do devedor, por natureza, uma prestação que é líquida ou liquidável, na medida em que fixada determinada factualidade, nomeadamente o valor da retribuição, a liquidação dessa obrigação depende de simples cálculo aritmético. F. Acresce que o Tribunal “ad quo” desconsidera o instituto da confissão, uma vez que não atende ao alegado pela apelada, em sede de oposição, sob os números 5, 6, 7 e 10, onde esta admite, por confissão, que expressamente se aceita, que, em 11 de Fevereiro de 2008 a requerente celebrou com a apelada contrato de trabalho para exercer as funções inerentes à categoria profissional de gestora financeira (art.º 5° da PI), que o seu vencimento mensal foi ajustado no montante de € 1.850,00 (art.º 6° da PI), que a requerente não recebeu a sua retribuição referente ao mês de Outubro de 2008 (art.º 7° da PI) e nem nenhuma das demais que posteriormente se venceram (art.º 8° da PI), que a apelada nunca pagou à requerente os ordenados em falta (art.º 12° da PI), que a apelada fez cessar o seu contrato de trabalho, com efeitos imediatos, por resolução, nos termos do disposto no regime previsto nos artigos 308° e seguintes da Lei de Regulamentação do Código do Trabalho, que regulamenta a faculdade prevista no nº 2 do artigo 364º do Código do Trabalho (art.º 140 da PI) e que a apelante detém um crédito sobre a apelada. G. O tribunal "ad quo", ao não considerar assentes os supra mencionados factos, com base na confissão dos mesmos, viola o disposto no art.º 490º do CPC. H. Os supra mencionados factos devem ser considerados assentes à luz do disposto no art.º 490º do CPC e, em resultado, é forçoso concluir que não existe litigio quanto ao crédito na génese do pedido da declaração de insolvência, já que, fruto da confissão da factual idade supra mencionada, é inevitável o reconhecimento, pelo Tribunal, de que a apelada é devedora da apelante, no mínimo, pela quantia correspondente a cinco meses de retribuição em falta e pela quantia correspondente à indemnização mínima prevista no Código do Trabalho pela resolução do contrato de trabalho da apelante, que se calcula em três meses de retribuição. I. A apelada reconhece e aceita que deve à apelante as retribuições de Outubro de 2008 a Fevereiro de 2009, que o valor mensal da retribuição da apelante é de € 1.850,00 (apenas esclarecendo que esse valor de retribuição não é liquido da retenção na fonte e das contribuições obrigatórias para a segurança social, o que, para efeitos de liquidação da obrigação é irrelevante, até porque esse simples cálculo aritmético não afecta o conteúdo da obrigação), que a apelante fez cessar o seu contrato de trabalho, por resolução, com fundamento na falta de pagamento pontual das suas retribuições, e que é devedora, em consequência disso, da apelante, pelo que o Tribunal "ad quo" não tinha outra opção que não a de considerar como assente a existência de um crédito a favor da apelante, J. Credito esse que consiste no direito a receber cinco meses de retribuição em falta e no direito a receber três meses de retribuição a título de indemnização mínima pela resolução do contrato, indemnização essa que se defere da lei, ou seja, o Tribunal "ad quo" deveria ter dado como assente que a apelada é devedora da apelante pelo menos na medida de tais créditos e a obrigação da apelada deveria ter sido determinada, pelo menos quanto ao seu conteúdo, nessa medida, K. Sendo que a liquidação da obrigação da apelada, com tal conteúdo, depende de simples cálculo aritmético, atenta a confissão que a apelada faz relativamente ao valor da remuneração mensal da apelante. L. Resulta suficientemente demonstrado, dos autos, que o crédito que está génese do pedido, pelo menos no que se refere às retribuições em falta e à indemnização pela resolução do contrato de trabalho, é um crédito consolidado na esfera jurídica da apelante, não só porque aceite pela apelada, mas também porque corresponde a uma obrigação já vencida, na medida em que podia e devia ter sido cumprida pela apelada, caso esta tivesse possibilidade de o fazer. M. Acresce que a apelada, reconhecendo não ter cumprido essa obrigação, nada alega no sentido de justificar essa atitude, nomeadamente qualquer causa extintiva da obrigação ou impeditiva do seu cumprimento, pelo que deveria ainda o Tribunal "ad quo" considerar como assente que a apelada está, objectivamente, impossibilitada de cumprir a obrigação, o que constituí pressuposto objectivo do desenvolvimento do processo de insolvência. N. Uma obrigação vencida, no sentido de que podia e devia ter sido cumprida pelo devedor, toma-se por definição uma obrigação exigível, na medida em que confere ao credor o direito de exigir imediatamente a prestação, ou seja, confere ao credor a possibilidade de exercer judicialmente o seu direito contra o devedor, caso este não cumpra voluntariamente. O. O crédito da autora, pelo menos quanto às retribuições em atraso e à indemnização pela resolução é assim existente na ordem jurídica (pelo menos na medida em que é reconhecido pela apelada), está nessa medida fixado quanto ao seu conteúdo, está vencido, é exigível e é certo, na medida em que a correspondente obrigação é liquidável mediante simples cálculo aritmético, pelo que estão reunidos os pressupostos previstos no nº 1 do art.º 3 e no nº 1 do art.º 20, ambos do CIRE e a apelante tem legitimidade substantiva para requerer a declaração de insolvência da apelada. P. O crédito da apelante reúne, de forma garantida, demonstrada e confessada, os requisitos de existência e exigibilidade, pelo menos no que se refere às retribuições por pagar e à indemnização pela resolução do contrato de trabalho, acrescendo que a apelada confessa, relativamente a esses créditos, que não existe justificação para a falta de cumprimento dos mesmos, o que reconduz, inapelável mente, à conclusão de que o incumprimento de tais obrigações resulta exclusivamente de impossibilidade para prestar. Q. O Tribunal “ad quo" esteve mal ao decidir corno decidiu, pois estão reunidos todos os pressupostos que legitimam a apelante corno requerente da declaração de insolvência da apelada. R. Ao decidir como decidiu, o Tribunal “ad quo" violou o artigo 490º do Código do Processo Civil e os artigos 3°, nº 1 e 20º, nº 1, ambos do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas. S. Impõe-se por tudo a revogação da douta sentença em apreciação e, em consequência, deve ser ordenada a baixa do processado, seguindo-se os ulteriores termos até final. Não foi oferecida reposta. 2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos. 3.1. Delimitação objectiva do recurso. Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC). Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1]. A ratio decidendi da sentença recorrida, assenta, parece, na inexigibilidade do crédito alegado pela recorrente, resultante do seu carácter controvertido. E diz-se parece, já que a decisão recorrida também não deixou de invocar, en passant, a sua incompetência para a sua apreciação – embora tenha concluído por uma decisão de improcedência do pedido – portanto, uma decisão de mérito e não simplesmente por uma decisão de absolvição da instância, por falta de um pressuposto processual positivo – a competência material do tribunal – e, correspondentemente, pela verificação de uma excepção dilatória imprópria. Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão recorrida e das alegações da recorrente, o problema que o acórdão deve resolver é o de saber se a apelante é ou não dotada de legitimidade para promover a declaração de insolvência. O exame deste problema reclama que se toquem, ainda que só levemente, os pressupostos ou condições da acção de insolvência, designadamente, os relativos à obrigação susceptível de ser realizada coactivamente e, claro, os parâmetros de aferição da legitimidade para apresentar o pedido de insolvência. 3.2. Pressupostos objectivos da declaração de insolvência. O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal. Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 828 nº 5, 833 nº 1 e 832 nº 1 a) do CPC). Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE – aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março). Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE). Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC). No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente. O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores. Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE). Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC). No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente. O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores. Admite-se, por isso, a par das reclamações preferenciais, a reclamação dos créditos comuns. Abstraindo de soluções intermédias, a posição relativa recíproca dos credores em processos concursais, pode organizar-se de harmonia com dois sistemas: um deles fundamenta-se no princípio da prioridade e expressa-se na máxima prior tempore, prior iure, dado que atribui ao credor que primeiro obteve a penhora ou acto equivalente de bens do devedor uma preferência em relação aos demais credores que não sejam titulares de quaisquer garantias reais sobre esses mesmos bens; outro sistema possível é o da igualdade ou da par conditio (omnium) creditorum, que não concede ao exequente qualquer preferência resultante da penhora em relação aos demais credores comuns do executado[2]. Todavia, a diferença entre o sistema da par conditio creditorum e o sistema da prioridade não corresponde, verdadeiramente, a qualquer contraposição entre igualdade e a desigualdade dos credores. Qualquer dos sistemas baseia-se num pressuposto de igualdade entre os credores: o que é diferente è a igualdade que está subjacente a qualquer dos sistemas. No sistema da par conditio, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor impedir a satisfação integral dos créditos dos outros credores; no sistema da prioridade, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor conseguir a satisfação integral do seu crédito. Um sistema prejudica, de forma igual, todos os credores; o outro pode beneficiar, também de forma igual, qualquer credor[3]. Seja como for, à igualdade dos credores na admissão ao concurso não o corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e, designadamente, dos titulares de direitos preferenciais de pagamento. Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente; os créditos subordinados; e os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual (artº 47 nºs 1, 2 e 4 a) a c) do CIRE). A esta tríade de créditos sobre a insolvência corresponde, naturalmente, uma homótropa tríade de credores sobre a insolvência. Os créditos subordinados – categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE – recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de, independentemente da sua fonte, serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artº 48, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE). Outro ponto é que é visível o tratamento de desfavor dos créditos subordinados diz respeito ao direito de voto: os créditos subordinados não conferem direito de voto, excepto se a deliberação tiver por objecto a aprovação de um plano de insolvência (artº 77 nº 3 do CIRE). A solução compreende-se em vista do drástico efeito que, na ausência de estatuição expressa constante do plano de insolvência, decorre para os créditos subordinados da sua aprovação: o perdão total dos créditos dessa classe (artº 197 b) do CIRE). É a esta luz que deve ser lido o princípio da igualdade dos credores que o plano de insolvência deve acatar, princípio que a norma que proclama, de resto, logo admite a sua restrição, desde que a diferenciação se justifique por razões objectivas (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE). Os credores da insolvência são tratados de forma igual – mas segundo a qualidade dos seus créditos. Nestas condições, em vez de par conditio creditorium talvez de devesse falar, com maior propriedade, de par aut conditio creditorum. Para que possa iniciar-se a liquidação total do património do devedor é absolutamente indispensável que o tribunal emita uma sentença que o declare em estado de insolvência. Quer dizer: a sentença é o único título executivo susceptível de servir de base á execução universal e colectiva em que a insolvência se resolve. Proferida essa sentença, o sacrifício de todos os bens do insolvente que se segue, mais não é que a sua execução. No entanto, para que seja proferida a sentença de declaração de insolvência, exige a lei que o devedor se encontre em estado de insolvência. Portanto, o primeiro problema que aquela sentença deve resolver é se se verificam as condições e circunstâncias, que, no pensamento da lei, justificam a declaração daquela situação de insolvência. O tráfego jurídico exige a pontualidade de pagamentos porque cada operador económico, ao mesmo tempo que tem os seus devedores, tem por outro lado os seus credores, de modo que a impontualidade dos seus devedores pode obrigá-lo à impontualidade para com os seus credores, e este efeito reflecte-se na actividade económica, trazendo as mais graves e perversas consequências. A regularidade da vida económica e a salvaguarda das regras de concorrência inerentes e indispensáveis ao funcionamento de uma economia de mercado reclama que cada operador económico cumpra, com pontualidade, os seus compromissos; quando isso não suceda, ocorre uma lesão do tecido económico que ser reparada, extirpando-se dele, através da declaração de insolvência, o devedor comprovadamente relapso e promovendo-se liquidação total do seu património em benefício de todos os seus credores. O que, portanto, caracteriza, essencialmente, o estado de insolvência é a impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos (artº 3 nº 1 do CIRE). O estado de insolvência traduz-se, portanto, numa impotência económica – a impotência para fazer face às obrigações assumidas. Note-se que não é necessário que a impossibilidade do cumprimento diga respeito a todas as obrigações; basta, para que o devedor se considere em estado de insolvência, que a impossibilidade de pagamento se refira às obrigações que, pelo seu significado no conjunto do património do devedor, ou pelas circunstâncias específicas envolventes do não cumprimento, tornem patente, a impotência económica daquele para assegurar a satisfação da generalidade das suas obrigações. Essa impotência constitui, evidentemente, uma realidade diversa da simples superioridade do passivo relativamente ao activo. O devedor pode estar impossibilitado de pagar aos seus credores e, no entanto, ter um activo superior ao passivo. E o inverso também é verdadeiro: o devedor pode, em dado momento, ter um activo inferior ao passivo, mas dispor de crédito, i.e., da possibilidade de mobilizar, por recurso a terceiros, disponibilidades monetárias que lhe permitam os compromissos para com os seus credores, à medida que se vão tornado exigíveis[4]. Deficit patrimonial ou insuficiência do activo e impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas não são, portanto, situações absolutamente coincidentes. É claro que a insuficiência do activo para satisfação do passivo exterioriza, tipicamente, a insolvabilidade do devedor uma vez que a persistência desse deficit patrimonial o impossibilitará, mais tarde ou mais cedo, de satisfazer ou solver, com pontualidade, os seus compromissos. Apesar disso, a insuficiência do activo e a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, são critérios diferentes e autónomos de caracterização de uma mesma situação: o estado de insolvência do devedor. O devedor considera-se insolvente quando se mostrar impotente para cumprir as suas obrigações ou quando, tratando-se de pessoas colectivas ou de patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliado por recurso às normas contabilísticas aplicáveis (artºs 3 nº 1 e 2 do CIRE). O desequilíbrio económico grave do devedor, que tenha a natureza de pessoa meramente jurídica ou de património autónomo, patente na insuficiência, desde que manifesta, do activo para satisfação do passivo, aliada à inexistência de pessoa singular que responda ilimitada e pessoalmente pelas suas dívidas, constitui também fundamento de consideração do devedor no estado de insolvência. No tocante às pessoas colectivas, género que as sociedades comerciais constituem uma espécie, e aos patrimónios autónomos a impossibilidade de solver as suas obrigações liga-se normalmente à insuficiência do activo. Por isso que se consideram em estado de insolvência quando o activo for inferior ao passivo e não exista pessoa singular que responda, pessoal e ilimitadamente por ele. Mas esta constatação não autoriza a conclusão de que, por exemplo, as sociedades comerciais só podem ser declaradas insolventes quando o seu passivo seja superior ao activo. No tocante às sociedades comerciais, para manter o exemplo dado, a insuficiência do activo para solver o passivo, soma-se ao outro fundamento ou pressuposto objectivo de declaração da insolvência mencionado: é um fundamento específico, especial – recuperado pelo CIRE - que não exclui o outro fundamento geral, antes lhe acresce[5]. É um pressuposto objectivo de insolvência especial no sentido de que só respeita a espécie particular de devedores e não com o significado de que a estes não é também aplicável o fundamento ou causa geral de declaração daquele estado. 3.3. Valor dos factos-índices da insolvência. O estado de insolvência não é um dado patente ou imediatamente apreensível. Para o tornar evidente, a lei socorre-se de sinais exteriores que tipicamente o revelam: os chamados índices, factos-índices ou factos presuntivos da insolvência. Os factos-índices da insolvência eleitos pela lei são, entre outros: a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas; falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo valor ou pelas circunstâncias do incumprimento, revelem a impossibilidade de satisfação pontual da generalidade das duas obrigações; a insuficiência dos bens penhoráveis para pagamento do crédito verificada em processo executivo movido contra o devedor; incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas tributárias ou de contribuições para a segurança social, de dívidas emergentes do contrato de trabalho ou sua cessação e violação e, tratando-se de pessoa colectiva ou de património autónomo, manifesta superioridade do passivo sobre o activo, documentada no último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, desde que legalmente exigível (artº 20 nº 1, a), b) e), g), i), ii) e iii), e h) do CIRE). Esta técnica legislativa coloca, naturalmente, o problema do valor dos factos-índices, quer dizer, do efeito que produzem uma vez verificados. Trata-se de saber se actuam como causas iniludíveis de insolvência ou antes como simples presunções iuris tantum desse estado. Em face do CIRE a resposta exacta é esta: os factos-índices operam como simples presunções susceptíveis de ser elididas por prova em contrário e não como causas necessariamente determinantes da declaração de insolvência. Desde que se admite o devedor a produzir prova para demonstrar não só que o facto-índice invocado como fundamento da declaração da insolvência não existia, ou não existia com os caracteres exigidos na lei, mas também, em qualquer caso, que não existe o estado de insolvência, é claro que a verificação do facto-índice não determina necessariamente a declaração da insolvência, podendo ser elidida pela prova de que o devedor não caiu nessa situação (artº 30 nºs 3 e 4 do CIRE). De resto, o legislador prevenindo a dúvida – que se colocou na vigência do CPEREF – teve o cuidado de salientar, no preâmbulo do diploma que aprovou aquele Código (nº 19, in fine) o carácter elidível das presunções consubstanciadas nos factos indiciários. O estado de insolvência não se revela necessária e iniludivelmente através dos factos índices e, portanto, apesar da sua verificação, não se segue, como corolário lógico, que não pode ser afastado, a declaração de insolvência. É, porém, sobre o devedor que a lei, terminantemente, faz recair o encargo da prova quer da inexistência do facto índice quer da inexistência da situação de insolvência (artº 30 nº 3 do CIRE e 342 nº 2 do Código Civil). E esta solução vale igualmente para o caso de a causa da insolvência invocada consistir na insuficiência do activo. Desde que a lei trata este fundamento de decretamento da insolvência também como facto-índice desse estado, é ao devedor que cabe a demonstração, por exemplo, através da oposição de embargos, de que o activo é superior ao passivo (artºs 3 nºs 2 e 3 e 20 nº 1 h) do CIRE)[6]. Isto explica que, no caso de o devedor, quando a sua audiência não tiver sido dispensada, não deduzir oposição, seja logo declarada a sua insolvência, desde que os factos alegados na petição inicial integrem um qualquer dos factos-índices apontados na lei (artº 30 nº 5 do CIRE). 3.4. Requisitos da obrigação susceptível de ser realizada coactivamente através do processo de insolvência. O processo de insolvência é ainda, de certo modo, um processo executivo, residindo a sua especificidade no carácter colectivo ou universal da execução. Interessa, por isso, saber que características o direito de crédito do requerente deve reunir para que, para a sua satisfação, se possa promover a declaração de insolvência do devedor. Esse crédito, ou melhor, a obrigação correspondente deve ser exigível, certa e líquida. A exigibilidade da obrigação tem aqui um sentido específico, algo distinto do que tem no plano substantivo. Obrigação exigível é a que está vencida ou que se vence com a citação do requerido e em relação à qual o credor não se encontre em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação. Maneira que o vencimento da obrigação é sempre indispensável à sua exigibilidade – mas esta pode requerer algo mais do que esse vencimento. No tocante às obrigações a prazo certo, a falta do decurso deste, quando tenha sido ou se presuma ter sido fixado em benefício do prazo, impede o vencimento da obrigação, pelo que o devedor não se encontra em mora antes do terminus ad quem desse prazo (artºs 779 e 804 nº 1 a) do Código Civil). Note-se, porém, que o devedor perde o benefício do prazo e, portanto, o credor pode exigir o imediato cumprimento da obrigação, se o devedor se tornar insolvente ou se, por causa que lhe seja imputável, diminuírem as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas (artº 780 nº 1 do Código Civil). Se pela natureza da prestação se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, a obrigação não é exigível antes da sua determinação pelas partes ou pelo tribunal (artºs 777 nºs 2 e 3 do Código Civil e 1456 e 1457 do CPC). Se a obrigação for pura, o credor tem o direito de exigir o cumprimento a todo o tempo, mas a obrigação só se considera vencida com a interpelação do devedor (artº 777 nº 1 do Código Civil). A citação do requerido vale para o processo de insolvência, naturalmente como interpelação do devedor (artº 804 nº 3 do Código Civil). O mesmo sucede se o credor estiver em mora por não ter praticado os actos necessários para o cumprimento: a citação do requerido vale igualmente como interpelação para o cumprimento (artºs 813, 772 nº 1 e 805 nº 3 do Código Civil). É também no plano da exigibilidade da obrigação que se coloca o problema das obrigações condicionais, mas apenas no que toca às obrigações sujeitas a condição suspensiva, dado que no tocante aos créditos submetidos a uma condição resolutiva, a lei é terminante em declarar que são tratados como incondicionais até ao momento da verificação da condição, sem prejuízo de, preenchida a condição haver lugar à restituição dos pagamentos recebidos (artº 94 do CIRE). As obrigações sujeitas a condição suspensiva só são exigíveis depois a prova da verificação da condição (artº 270 do Código Civil). No processo de insolvência o carácter condicional da obrigação não afecta a sua exigibilidade, dado que se admite, expressamente, sem restrição, a promoção do processo relativamente a créditos condicionais, mesmo que a condição seja suspensiva (artº 20 nº 1, 1º parte, e 50 nº 1 do CIRE). O carácter condicional da obrigação suspensiva apenas se reflecte na atendibilidade nos rateios, maxime no rateio final (artº 181 nºs 1 e 2 do CIRE). A obrigação é certa quando a respectiva prestação se encontra determinada ou individualizada. A impossibilidade de determinar o conteúdo da prestação impede, evidentemente, a sua realização coactiva. A obrigação é ilíquida se a sua quantidade não está determinada. A iliquidez recai normalmente sobre obrigações pecuniárias, mas nada impede que possam referir-se a prestações de dare. As obrigações ilíquidas também não podem ser realizadas coactivamente, pela razão evidente de que não se pode executar o património do devedor antes de determinar, por exemplo, a quantia devida. A lei trata os requisitos do crédito cuja satisfação coactiva é susceptível de ser realizada no processo de insolvência a propósito da legitimidade para apresentar o pedido de insolvência (artºs 19 e 20 CIRE). Essa legitimidade radica, entre outros, no credor, seja qual for a natureza do crédito e ainda que este seja condicional (artº 20 nº 1, 1ª parte, do CIRE). O pedido de insolvência não está, quanto à natureza do crédito, sujeito a qualquer restrição quanto à competência do tribunal, i.e., na insolvência podem ser actuados quaisquer créditos, ainda que o tribunal da insolvência não seja materialmente competente para a sua apreciação. Verifica-se, por isso, uma extensão da competência material do tribunal da insolvência. Esta extensão justifica a admissibilidade do pedido da insolvência por créditos públicos, como é o caso dos créditos fiscais, ou de créditos laborais. De resto, essa extensão de competência ocorre em todos os processos concursais, i.e., em todos os processos em que haja lugar ao concurso de credores, dado que é admissível a reclamação de créditos públicos e também por exemplo, de créditos laborais seja na execução singular pendente seja na insolvência em curso (artº 864 nº 1 a) do CPC e 128 nº 1 do CIRE). O problema da legitimidade do credor para deduzir o pedido de insolvência tem dado lugar a uma jurisprudência desencontrada das Relações, sustentado uns que só é dotado de legitimidade para promover o procedimento de insolvência o credor cujo crédito não é controvertido ou litigioso[7] e advogando outros que mesmo ao credor de crédito litigioso dispõe daquela legitimidade[8]. A razão está, porém, do lado de quem entende que o carácter litigioso do crédito não tolhe a legitimidade do credor para requerer a declaração de insolvência. É para o detalhe desta proposta de solução – e para o cumprimento do ónus de argumentação correspondente – que se dirigem as considerações subsequentes. 3.5. Legitimidade ad causam do credor. A legitimidade a que lei se refere é, nitidamente, não a legitimidade substantiva – mas a legitimidade processual, ad causam[9]. Portanto, essa legitimidade é aferida nos termos gerais (artº 17 do CIRE). Assim, nos termos gerais, é de toda a conveniência não confundir legitimidade para pedir ou requerer – com procedência ou mérito do pedido ou requerimento correspondente (artº 26 nºs 1 e 3 do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE)[10]. Sendo o objecto inicial do processo constituído pelo pedido e pela respectiva fundamentação, mas conferindo-se a esta, em sede de objecto do processo, apenas uma função individualizadora daquele, será aquele pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte. Assim, a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação. Entendimento diverso conduz a uma lastimável confusão entre legitimidade e procedência. Nestas condições, é dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado. A questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da legitimidade ad causam para deduzir o pedido de insolvência, que apenas respeita ao preenchimento de um pressuposto processual positivo e, portanto, a uma excepção dilatória imprópria. Se bem se reparar é exactamente o que ocorre também com a acção executiva singular. Essa legitimidade é conferida aos sujeitos que constam ou figuram do título como credor e como devedor (artº 55 nº 1 do CPC). A lei não diz que é parte legítima como exequente o credor e como executado o devedor; não diz e não devia dizer, sob pena de confundir a questão da legitimidade com a de procedência: é que o exequente e o executado podem ser partes legítimas, apesar de não serem credor nem devedor. Do mesmo modo, parte legítima no processo de insolvência, não é credor e o devedor, mas quem alega ter sido constituída a seu favor uma obrigação e a pessoa que, segundo o requerente, se obrigou. Um e outro são partes legítimas. Se todavia, vem a apurar-se mais tarde que o primeiro era credor aparente e o segundo devedor suposto, portanto, que na realidade nunca o primeiro fora titular do direito de crédito e nunca o segundo fora o devedor, a consequência, é, não absolvição da instância, do demandado, por ilegitimidade ad causam do primeiro – mas a absolvição do segundo do pedido. A crédito litigioso pode dar-se, neste contexto, o significado que lhe é impresso pelo Código Civil: crédito que tiver sido contestado em juízo contencioso (artº 579 nº 4 do Código Civil). Portanto, crédito litigioso é, no processo de insolvência, aquele que tiver sido contestado pelo devedor. A atribuição de legitimidade para deduzir o pedido de insolvência apenas ao credor cujo crédito não tenha sido contestado, restringiria, grave e injustificadamente, o meio de tutela jurisdicional do direito crédito – seja do requerente da insolvência seja dos demais credores do requerido - representado pela insolvência: é que bastaria ao devedor, ainda que de forma patentemente infundada, contestar o crédito do requerente para se concluir pela ilegitimidade do requerente e, consequentemente, para se obviar à declaração de insolvência. E, como decorre da sentença apelada, não seria mesmo necessário que o devedor contestasse a totalidade do crédito, sendo suficiente que impugnasse apenas parte dele, por mais ínfima que seja, ou um seu acessório – v.g. a obrigação de juros - para que estivesse excluída a declaração de insolvência. E, como decorre também linearmente da decisão recorrida, seria mesmo suficiente a simples contestação, total ou meramente parcial do crédito, para afastar a declaração de insolvência, não sendo o credor sequer admitido a provar, no processo de insolvência, que é realmente credor do insolvente ou credor da totalidade da dívida e, portanto, que dispõe de legitimidade para requerer a insolvência. Essa prova teria de ser feito noutro processo e noutro tribunal, determinado de harmonia com as regras gerais de competência, absoluta e relativa. Na espécie do recurso, segundo a sentença apelada, para que se admitisse a apelante a requerer a insolvência, esta teria primeiro de convencer a requerida, no Tribunal do Trabalho, de que também é credora da última relativamente à parte do seu crédito que contestou ou controverteu. Todavia, o tal entendimento do problema contrasta vivamente com um princípio estruturante do processo civil, i.e. de um princípio, que lhe é indispensável, e de que o processo de insolvência, naturalmente, também partilha: o da auto-suficiência - quer este seja entendido no sentido de tutela provisória da aparência, de harmonia com a qual em matéria processual, vale como realidade para o efeito de se determinar se essa aparência corresponde ou não à realidade,[11] quer com o significado de que o processo de insolvência é, em regra, o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária para a decisão a tomar - a declaração de insolvência (artº 96 nº 1 do CPC). De resto, é ao autor ou requerente que compete assegurar o preenchimento dos pressupostos processuais, desde logo daqueles que lhe digam directamente respeito – como, v.g. a legitimidade ad causam – e, portanto, é aquele que deve provar que o pressuposto está satisfeito – e não ao réu ou requerido que tem de provar que o pressuposto está preenchido (artº 342 nº 1 do Código Civil). Mas para isso é indispensável que se assegure ao requerente a possibilidade da realização da prova, no processo de insolvência, dos factos correspondentes, se estes forem controvertidos. De outro aspecto, a exigência de que o crédito não tenha sido contestado para que se reconheça legitimidade ao credor para requerer a insolvência conduz a incoerências valorativas materialmente injustificadas. Já está adquirido à certeza que o carácter condicional do crédito – seja a condição suspensiva ou resolutivo – não tolhe a legitimidade do requerente da insolvência. Portanto, admite-se a requerer a insolvência ao credor cujo crédito ainda nem sequer se mostra constituído – dado que essa constituição depende da verificação de um facto futuro e incerto, mas a ser exacto o entendimento de que se discorda, fechava-se a porta do processo de insolvência ao credor cujo crédito, ainda que só em parte, é contestado pelo devedor, não se admitindo sequer o credor a fazer a prova da existência ou simplesmente da exacta dimensão do seu crédito. Depois, a lei não estabelece, no tocante aos credores reclamantes, qualquer restrição quer quanto à natureza do crédito e aos seus fundamentos quer quanto à sua pacificidade, admitindo, sem qualquer limitação, a reclamação, por exemplo, de créditos públicos e de créditos laborais ainda por mais controvertidos ou contestados que estes se mostrem (artºs artºs 128 nº 1, 131, 134, 135, 136, 139 e 140 nºs 1 e 2 do CIRE). Portanto, se a apelante, em vez de requerer a declaração de insolvência tivesse reclamado o seu crédito na insolvência já declarada, é indiscutível que tanto a natureza do seu crédito quer o seu carácter controvertido nenhum obstáculo colocariam à admissibilidade da reclamação e da verificação dele. Então, que razão material bastante justifica ou sequer explica a diferença de tratamento do mesmo crédito, com as mesmas características, num caso e noutro? Bem: nenhuma. Por último, o entendimento de que se discorda, que é o da sentença recorrido, é abertamente desconforme com o princípio – também ele estruturante - da igualdade das partes, de harmonia com o qual as partes, todas, devem situar-se num plano de igualdade entre si e ambas devem ser iguais perante o tribunal (artº 3-A do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE, e 194 nºs 1 e 2 deste último diploma legal). Na realidade, daquele entendimento do problema resulta um tratamento jurídico diferenciado, sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes, entre o credor requerente da insolvência e credor reclamante, exigindo, para o primeiro, o preenchimento de pressupostos que não pede aos segundos. De resto, ao contrário do que inculca a sentença impugnada, não existe uma equivalência conceptual entre crédito exigível e crédito contestado ou litigioso. Como se notou já, obrigação exigível é a que está vencida ou que se vence com a citação do requerido e em relação à qual o credor não se encontre em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação. Portanto, o crédito pode ser exigível e, não obstante, ser litigioso, como pode ser não controvertido e, apesar disso, não ser exigível. Na espécie do recurso, a requerida não discute o dever de prestar – mas apenas o quantum da prestação devida. Mas mesmo que recusasse a sua adstrição, por inteiro, a qualquer dever de prestação, nem por isso, se deveria concluir pela inexigibilidade do crédito da apelante e, portanto, pela sua ilegitimidade ad causam para, por ele, apresentar o pedido de insolvência. Tudo vincula, pois, à conclusão de que a decisão recorrida é juridicamente desconforme, devendo reconhecer-se à requerente legitimidade para promover o processo de insolvência[12]. Nestas condições, é meramente consequencial a procedência da impugnação e, consequentemente, revogação da decisão apelada, que deve ser substituída por outra que ordene os ulteriores e regulares termos do processo. Duas palavras mais para dar cumprimento ao ingrato e insólito dever de sumariar o acórdão que a lei impõe ao juiz relator (artº 713 nº 7 do CPC)[13]. A retórica argumentativa do acórdão, de que se extrai a solução de improcedência do recurso, assenta nesta proposição conclusiva: a contestação, pelo requerido, do crédito do requerente da insolvência, não afecta a exigibilidade daquele crédito, nem tolhe a legitimidade ad causam do último para apresentar o pedido de insolvência. A apelada não deu causa à decisão recorrida nem a acompanhou e, por isso, beneficia de uma isenção subjectiva de custas (artº 2 nº 1 g) do CC Judiciais); o recorrente obteve vencimento. O recurso não está, por isso, sujeito a custas. 3. Decisão. Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão impugnada e ordena-se a substituição por outra que ordene o prosseguimento dos ulteriores e regulares termos do processo de insolvência. Não são devidas custas. Porto, 10.01.26 Henrique Ataíde Rosa Antunes Ana Lucinda Mendes Cabral Maria do Carmo Domingues _____________ [1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.3.96, CJ, 96, II, pág. 24. [2] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, págs. 150 e ss. [3] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, págs. 40 e 41. [4] Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em Especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra 1998, pág. 110. [5] O critério da insuficiência do activo não é, na verdade, desconhecido no nosso direito, remontando ao Código das Falências de 1935, aprovado pelo Dec. 25 981, de 26 de Outubro, no qual já era admitido, complementarmente, a par do critério fundamental básico, como causa especial de falência, mas apenas no tocante às sociedades de responsabilidade limitada (artº 1774 nº 2 do CPC, revogado pelo artº 9 do DL nº 132/93, de 23 de Abril, que aprovou o CPEREF). Comentando o preceito correspondente do CPC de 1939 – o artº 1136 § 1º - Alberto dos Reis, depois de citar o Relatório do Código de Falências 1935, Código que entretanto havia sido integrado no Código de Processo Civil, fazia notar que a existência daquele critério não deveria levar à conclusão de que a falência das sociedades daquela espécie só poderia ser decretada quando se desse o caso de o activo ser superior ao passivo e que a doutrina exacta era, antes, a de que se tratava de um fundamento especial, que se somava às outras causas de falência indicadas na lei. Cfr. Processos Especiais, vol. II, Coimbra, 1982, págs. 318. No mesmo sentido se pronunciavam Pedro de Sousa Macedo – Manual de Direito das Falências, vol I., Almedina, Coimbra, 1964, pág. 288 e – de forma crítica - Sá Carneiro – Notas ao Código de Falências, Revista dos Tribunais, Ano 51, pág. 292 e Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em Especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra 1998, pág. 111 - que sublinhava que, não funcionando nas sociedades de responsabilidade limitada, o elemento pessoal, a falência devia fundar-se também na insuficiência do activo. [6] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado (Reimpressão), vol. I, Quid Iuris, Lisboa, 2006, págs. 74 e 75. [7] Acs. da RP de 20.04.99, da RL de 95.06.08 e da RC de 25.05.09 e 03.12.09, www.dgsi.pt. [8] Acs. da RE de 10.05.07 e da RC de 26.05.09, www.dgsi.pt. [9] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, O problema da natureza do Processo de liquidação aplicável à insolvência no Direito Português, Coimbra, 2009, págs. 263 e 264. [10] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, BMJ nº 292, pág. 102. [11] Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lex, Lisboa, 2000, pág. 51. [12] No sentido que o trabalhador, mesmo que o seu crédito não esteja reconhecido por sentença do Tribunal de Trabalho, tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência, cfr. o Ac. da RG de 18.12.06. [13] Cfr., para uma apreciação crítica – fundada – desta solução da lei, Lopes do Rego, A Reforma dos Recursos em Processo Civil, in As Exigências do Processo Civil, Associação Jurídica do Porto, pág. 248 e António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 300 e 301. De resto, esta exigência pode revelar-se uma fonte de embaraços, como sucederá, por exemplo, no caso de haver contradição entre o sumário e o conteúdo do acórdão. Regra geral, a solução do problema não oferece dificuldades, mas poderá mostrar-se espinhosa, tratando-se de acórdão de uniformização de jurisprudência, tirado no recurso ordinário ampliado de revista ou no recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, dado o seu carácter de recurso uniformizador (artºs 732-A, 732-B nº 5 e 770 nº 1 do CPC). Problema de solução difícil é também o saber se o relator se encontra adstrito ao dever se sumariar no caso de julgar sumariamente o recurso e no julgamento da reclamação contra o despacho de indeferimento do requerimento de interposição do recurso.
Proc. nº 97/09.8TYVNG.P1 Acordam no Tribunal da Relação do Porto: Relatório. B………………. promoveu, no ….º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova da Gaia, contra C…………….., a declaração da insolvência da última. Fundamentou a sua pretensão no facto de ser credora da requerida, pela quantia de € 15 871.83, resultante da execução e da cessação do contrato de trabalho, celebrado entre ambas no dia 11 de Fevereiro de 2008, e de a requerida se encontrar completa e absolutamente impossibilitada de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. A requerida alegou, na oposição, que a requerente é detentora de um crédito, mas que não o reconhece nos termos em que aquela o invoca, dado que exige quantias a que manifestamente não tem direito, e que não se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas. Cessada a suspensão da instância, por acordo das partes, com vista à obtenção de decisão contratualizada do litígio, a Sra. Juíza de Direito, ponderando que não sendo certo que o crédito invocado pela requerente exista na sua titularidade, e que não sendo da competência deste tribunal a apreciação e discussão do mesmo, e que é manifesta improcedência do pedido formulado – declaração de insolvência – julgou improcedente o pedido. Apelou, naturalmente, a requerente, que pede, no recurso, a revogação da decisão impugnada e a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento do processo. Para mostrar o desacerto da decisão recorrida, a recorrente extraiu da sua alegação estas fartas conclusões. A. A questão decidendi não tem cabimento na fundamentação e respectiva decisão de improcedência do pedido de insolvência, já que o Tribunal “ad quo” confunde outras situações de facto com as aqui em juízo, pois julga liminarmente a questão sub judice, fundamentando a sua decisão de improcedência do pedido com os mesmos fundamentos de que se serviu anteriormente para julgar situações manifestamente diferentes, ou seja, pedidos de declaração de insolvência que tinham na sua génese créditos de facto litigiosos, o que não é o caso destes autos, até e também em face da oposição deduzida pela apelada. B. O Tribunal "ad quo" desconsidera em absoluto a natureza do crédito na génese do pedido de insolvência - credito laboral -, já que o mesmo é emergente da falta do pagamento pontual das retribuições do trabalhador - a apelante -, e da cessação unilateral, pela apelante, do contrato de trabalho, com fundamento em justa causa motivada pela falta de pagamento pontual das retribuições do trabalhador. C. Do lado da apelada existe uma obrigação há muito vencida: a obrigação de pagar pontualmente as retribuições dos seus trabalhadores, onde se inclui a apelante, obrigação essa que confessadamente a apelada não cumpriu. D. Na base de um crédito laboral estão obrigações vencidas, logo exigíveis por banda do trabalhador ao empregador, E. Além de que um crédito laboral tem do lado do devedor, por natureza, uma prestação que é líquida ou liquidável, na medida em que fixada determinada factualidade, nomeadamente o valor da retribuição, a liquidação dessa obrigação depende de simples cálculo aritmético. F. Acresce que o Tribunal “ad quo” desconsidera o instituto da confissão, uma vez que não atende ao alegado pela apelada, em sede de oposição, sob os números 5, 6, 7 e 10, onde esta admite, por confissão, que expressamente se aceita, que, em 11 de Fevereiro de 2008 a requerente celebrou com a apelada contrato de trabalho para exercer as funções inerentes à categoria profissional de gestora financeira (art.º 5° da PI), que o seu vencimento mensal foi ajustado no montante de € 1.850,00 (art.º 6° da PI), que a requerente não recebeu a sua retribuição referente ao mês de Outubro de 2008 (art.º 7° da PI) e nem nenhuma das demais que posteriormente se venceram (art.º 8° da PI), que a apelada nunca pagou à requerente os ordenados em falta (art.º 12° da PI), que a apelada fez cessar o seu contrato de trabalho, com efeitos imediatos, por resolução, nos termos do disposto no regime previsto nos artigos 308° e seguintes da Lei de Regulamentação do Código do Trabalho, que regulamenta a faculdade prevista no nº 2 do artigo 364º do Código do Trabalho (art.º 140 da PI) e que a apelante detém um crédito sobre a apelada. G. O tribunal "ad quo", ao não considerar assentes os supra mencionados factos, com base na confissão dos mesmos, viola o disposto no art.º 490º do CPC. H. Os supra mencionados factos devem ser considerados assentes à luz do disposto no art.º 490º do CPC e, em resultado, é forçoso concluir que não existe litigio quanto ao crédito na génese do pedido da declaração de insolvência, já que, fruto da confissão da factual idade supra mencionada, é inevitável o reconhecimento, pelo Tribunal, de que a apelada é devedora da apelante, no mínimo, pela quantia correspondente a cinco meses de retribuição em falta e pela quantia correspondente à indemnização mínima prevista no Código do Trabalho pela resolução do contrato de trabalho da apelante, que se calcula em três meses de retribuição. I. A apelada reconhece e aceita que deve à apelante as retribuições de Outubro de 2008 a Fevereiro de 2009, que o valor mensal da retribuição da apelante é de € 1.850,00 (apenas esclarecendo que esse valor de retribuição não é liquido da retenção na fonte e das contribuições obrigatórias para a segurança social, o que, para efeitos de liquidação da obrigação é irrelevante, até porque esse simples cálculo aritmético não afecta o conteúdo da obrigação), que a apelante fez cessar o seu contrato de trabalho, por resolução, com fundamento na falta de pagamento pontual das suas retribuições, e que é devedora, em consequência disso, da apelante, pelo que o Tribunal "ad quo" não tinha outra opção que não a de considerar como assente a existência de um crédito a favor da apelante, J. Credito esse que consiste no direito a receber cinco meses de retribuição em falta e no direito a receber três meses de retribuição a título de indemnização mínima pela resolução do contrato, indemnização essa que se defere da lei, ou seja, o Tribunal "ad quo" deveria ter dado como assente que a apelada é devedora da apelante pelo menos na medida de tais créditos e a obrigação da apelada deveria ter sido determinada, pelo menos quanto ao seu conteúdo, nessa medida, K. Sendo que a liquidação da obrigação da apelada, com tal conteúdo, depende de simples cálculo aritmético, atenta a confissão que a apelada faz relativamente ao valor da remuneração mensal da apelante. L. Resulta suficientemente demonstrado, dos autos, que o crédito que está génese do pedido, pelo menos no que se refere às retribuições em falta e à indemnização pela resolução do contrato de trabalho, é um crédito consolidado na esfera jurídica da apelante, não só porque aceite pela apelada, mas também porque corresponde a uma obrigação já vencida, na medida em que podia e devia ter sido cumprida pela apelada, caso esta tivesse possibilidade de o fazer. M. Acresce que a apelada, reconhecendo não ter cumprido essa obrigação, nada alega no sentido de justificar essa atitude, nomeadamente qualquer causa extintiva da obrigação ou impeditiva do seu cumprimento, pelo que deveria ainda o Tribunal "ad quo" considerar como assente que a apelada está, objectivamente, impossibilitada de cumprir a obrigação, o que constituí pressuposto objectivo do desenvolvimento do processo de insolvência. N. Uma obrigação vencida, no sentido de que podia e devia ter sido cumprida pelo devedor, toma-se por definição uma obrigação exigível, na medida em que confere ao credor o direito de exigir imediatamente a prestação, ou seja, confere ao credor a possibilidade de exercer judicialmente o seu direito contra o devedor, caso este não cumpra voluntariamente. O. O crédito da autora, pelo menos quanto às retribuições em atraso e à indemnização pela resolução é assim existente na ordem jurídica (pelo menos na medida em que é reconhecido pela apelada), está nessa medida fixado quanto ao seu conteúdo, está vencido, é exigível e é certo, na medida em que a correspondente obrigação é liquidável mediante simples cálculo aritmético, pelo que estão reunidos os pressupostos previstos no nº 1 do art.º 3 e no nº 1 do art.º 20, ambos do CIRE e a apelante tem legitimidade substantiva para requerer a declaração de insolvência da apelada. P. O crédito da apelante reúne, de forma garantida, demonstrada e confessada, os requisitos de existência e exigibilidade, pelo menos no que se refere às retribuições por pagar e à indemnização pela resolução do contrato de trabalho, acrescendo que a apelada confessa, relativamente a esses créditos, que não existe justificação para a falta de cumprimento dos mesmos, o que reconduz, inapelável mente, à conclusão de que o incumprimento de tais obrigações resulta exclusivamente de impossibilidade para prestar. Q. O Tribunal “ad quo" esteve mal ao decidir corno decidiu, pois estão reunidos todos os pressupostos que legitimam a apelante corno requerente da declaração de insolvência da apelada. R. Ao decidir como decidiu, o Tribunal “ad quo" violou o artigo 490º do Código do Processo Civil e os artigos 3°, nº 1 e 20º, nº 1, ambos do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas. S. Impõe-se por tudo a revogação da douta sentença em apreciação e, em consequência, deve ser ordenada a baixa do processado, seguindo-se os ulteriores termos até final. Não foi oferecida reposta. 2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos. 3.1. Delimitação objectiva do recurso. Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC). Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1]. A ratio decidendi da sentença recorrida, assenta, parece, na inexigibilidade do crédito alegado pela recorrente, resultante do seu carácter controvertido. E diz-se parece, já que a decisão recorrida também não deixou de invocar, en passant, a sua incompetência para a sua apreciação – embora tenha concluído por uma decisão de improcedência do pedido – portanto, uma decisão de mérito e não simplesmente por uma decisão de absolvição da instância, por falta de um pressuposto processual positivo – a competência material do tribunal – e, correspondentemente, pela verificação de uma excepção dilatória imprópria. Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão recorrida e das alegações da recorrente, o problema que o acórdão deve resolver é o de saber se a apelante é ou não dotada de legitimidade para promover a declaração de insolvência. O exame deste problema reclama que se toquem, ainda que só levemente, os pressupostos ou condições da acção de insolvência, designadamente, os relativos à obrigação susceptível de ser realizada coactivamente e, claro, os parâmetros de aferição da legitimidade para apresentar o pedido de insolvência. 3.2. Pressupostos objectivos da declaração de insolvência. O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal. Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 828 nº 5, 833 nº 1 e 832 nº 1 a) do CPC). Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE – aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março). Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE). Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC). No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente. O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores. Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE). Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC). No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente. O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores. Admite-se, por isso, a par das reclamações preferenciais, a reclamação dos créditos comuns. Abstraindo de soluções intermédias, a posição relativa recíproca dos credores em processos concursais, pode organizar-se de harmonia com dois sistemas: um deles fundamenta-se no princípio da prioridade e expressa-se na máxima prior tempore, prior iure, dado que atribui ao credor que primeiro obteve a penhora ou acto equivalente de bens do devedor uma preferência em relação aos demais credores que não sejam titulares de quaisquer garantias reais sobre esses mesmos bens; outro sistema possível é o da igualdade ou da par conditio (omnium) creditorum, que não concede ao exequente qualquer preferência resultante da penhora em relação aos demais credores comuns do executado[2]. Todavia, a diferença entre o sistema da par conditio creditorum e o sistema da prioridade não corresponde, verdadeiramente, a qualquer contraposição entre igualdade e a desigualdade dos credores. Qualquer dos sistemas baseia-se num pressuposto de igualdade entre os credores: o que é diferente è a igualdade que está subjacente a qualquer dos sistemas. No sistema da par conditio, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor impedir a satisfação integral dos créditos dos outros credores; no sistema da prioridade, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor conseguir a satisfação integral do seu crédito. Um sistema prejudica, de forma igual, todos os credores; o outro pode beneficiar, também de forma igual, qualquer credor[3]. Seja como for, à igualdade dos credores na admissão ao concurso não o corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e, designadamente, dos titulares de direitos preferenciais de pagamento. Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente; os créditos subordinados; e os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual (artº 47 nºs 1, 2 e 4 a) a c) do CIRE). A esta tríade de créditos sobre a insolvência corresponde, naturalmente, uma homótropa tríade de credores sobre a insolvência. Os créditos subordinados – categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE – recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de, independentemente da sua fonte, serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artº 48, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE). Outro ponto é que é visível o tratamento de desfavor dos créditos subordinados diz respeito ao direito de voto: os créditos subordinados não conferem direito de voto, excepto se a deliberação tiver por objecto a aprovação de um plano de insolvência (artº 77 nº 3 do CIRE). A solução compreende-se em vista do drástico efeito que, na ausência de estatuição expressa constante do plano de insolvência, decorre para os créditos subordinados da sua aprovação: o perdão total dos créditos dessa classe (artº 197 b) do CIRE). É a esta luz que deve ser lido o princípio da igualdade dos credores que o plano de insolvência deve acatar, princípio que a norma que proclama, de resto, logo admite a sua restrição, desde que a diferenciação se justifique por razões objectivas (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE). Os credores da insolvência são tratados de forma igual – mas segundo a qualidade dos seus créditos. Nestas condições, em vez de par conditio creditorium talvez de devesse falar, com maior propriedade, de par aut conditio creditorum. Para que possa iniciar-se a liquidação total do património do devedor é absolutamente indispensável que o tribunal emita uma sentença que o declare em estado de insolvência. Quer dizer: a sentença é o único título executivo susceptível de servir de base á execução universal e colectiva em que a insolvência se resolve. Proferida essa sentença, o sacrifício de todos os bens do insolvente que se segue, mais não é que a sua execução. No entanto, para que seja proferida a sentença de declaração de insolvência, exige a lei que o devedor se encontre em estado de insolvência. Portanto, o primeiro problema que aquela sentença deve resolver é se se verificam as condições e circunstâncias, que, no pensamento da lei, justificam a declaração daquela situação de insolvência. O tráfego jurídico exige a pontualidade de pagamentos porque cada operador económico, ao mesmo tempo que tem os seus devedores, tem por outro lado os seus credores, de modo que a impontualidade dos seus devedores pode obrigá-lo à impontualidade para com os seus credores, e este efeito reflecte-se na actividade económica, trazendo as mais graves e perversas consequências. A regularidade da vida económica e a salvaguarda das regras de concorrência inerentes e indispensáveis ao funcionamento de uma economia de mercado reclama que cada operador económico cumpra, com pontualidade, os seus compromissos; quando isso não suceda, ocorre uma lesão do tecido económico que ser reparada, extirpando-se dele, através da declaração de insolvência, o devedor comprovadamente relapso e promovendo-se liquidação total do seu património em benefício de todos os seus credores. O que, portanto, caracteriza, essencialmente, o estado de insolvência é a impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos (artº 3 nº 1 do CIRE). O estado de insolvência traduz-se, portanto, numa impotência económica – a impotência para fazer face às obrigações assumidas. Note-se que não é necessário que a impossibilidade do cumprimento diga respeito a todas as obrigações; basta, para que o devedor se considere em estado de insolvência, que a impossibilidade de pagamento se refira às obrigações que, pelo seu significado no conjunto do património do devedor, ou pelas circunstâncias específicas envolventes do não cumprimento, tornem patente, a impotência económica daquele para assegurar a satisfação da generalidade das suas obrigações. Essa impotência constitui, evidentemente, uma realidade diversa da simples superioridade do passivo relativamente ao activo. O devedor pode estar impossibilitado de pagar aos seus credores e, no entanto, ter um activo superior ao passivo. E o inverso também é verdadeiro: o devedor pode, em dado momento, ter um activo inferior ao passivo, mas dispor de crédito, i.e., da possibilidade de mobilizar, por recurso a terceiros, disponibilidades monetárias que lhe permitam os compromissos para com os seus credores, à medida que se vão tornado exigíveis[4]. Deficit patrimonial ou insuficiência do activo e impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas não são, portanto, situações absolutamente coincidentes. É claro que a insuficiência do activo para satisfação do passivo exterioriza, tipicamente, a insolvabilidade do devedor uma vez que a persistência desse deficit patrimonial o impossibilitará, mais tarde ou mais cedo, de satisfazer ou solver, com pontualidade, os seus compromissos. Apesar disso, a insuficiência do activo e a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, são critérios diferentes e autónomos de caracterização de uma mesma situação: o estado de insolvência do devedor. O devedor considera-se insolvente quando se mostrar impotente para cumprir as suas obrigações ou quando, tratando-se de pessoas colectivas ou de patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliado por recurso às normas contabilísticas aplicáveis (artºs 3 nº 1 e 2 do CIRE). O desequilíbrio económico grave do devedor, que tenha a natureza de pessoa meramente jurídica ou de património autónomo, patente na insuficiência, desde que manifesta, do activo para satisfação do passivo, aliada à inexistência de pessoa singular que responda ilimitada e pessoalmente pelas suas dívidas, constitui também fundamento de consideração do devedor no estado de insolvência. No tocante às pessoas colectivas, género que as sociedades comerciais constituem uma espécie, e aos patrimónios autónomos a impossibilidade de solver as suas obrigações liga-se normalmente à insuficiência do activo. Por isso que se consideram em estado de insolvência quando o activo for inferior ao passivo e não exista pessoa singular que responda, pessoal e ilimitadamente por ele. Mas esta constatação não autoriza a conclusão de que, por exemplo, as sociedades comerciais só podem ser declaradas insolventes quando o seu passivo seja superior ao activo. No tocante às sociedades comerciais, para manter o exemplo dado, a insuficiência do activo para solver o passivo, soma-se ao outro fundamento ou pressuposto objectivo de declaração da insolvência mencionado: é um fundamento específico, especial – recuperado pelo CIRE - que não exclui o outro fundamento geral, antes lhe acresce[5]. É um pressuposto objectivo de insolvência especial no sentido de que só respeita a espécie particular de devedores e não com o significado de que a estes não é também aplicável o fundamento ou causa geral de declaração daquele estado. 3.3. Valor dos factos-índices da insolvência. O estado de insolvência não é um dado patente ou imediatamente apreensível. Para o tornar evidente, a lei socorre-se de sinais exteriores que tipicamente o revelam: os chamados índices, factos-índices ou factos presuntivos da insolvência. Os factos-índices da insolvência eleitos pela lei são, entre outros: a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas; falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo valor ou pelas circunstâncias do incumprimento, revelem a impossibilidade de satisfação pontual da generalidade das duas obrigações; a insuficiência dos bens penhoráveis para pagamento do crédito verificada em processo executivo movido contra o devedor; incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas tributárias ou de contribuições para a segurança social, de dívidas emergentes do contrato de trabalho ou sua cessação e violação e, tratando-se de pessoa colectiva ou de património autónomo, manifesta superioridade do passivo sobre o activo, documentada no último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, desde que legalmente exigível (artº 20 nº 1, a), b) e), g), i), ii) e iii), e h) do CIRE). Esta técnica legislativa coloca, naturalmente, o problema do valor dos factos-índices, quer dizer, do efeito que produzem uma vez verificados. Trata-se de saber se actuam como causas iniludíveis de insolvência ou antes como simples presunções iuris tantum desse estado. Em face do CIRE a resposta exacta é esta: os factos-índices operam como simples presunções susceptíveis de ser elididas por prova em contrário e não como causas necessariamente determinantes da declaração de insolvência. Desde que se admite o devedor a produzir prova para demonstrar não só que o facto-índice invocado como fundamento da declaração da insolvência não existia, ou não existia com os caracteres exigidos na lei, mas também, em qualquer caso, que não existe o estado de insolvência, é claro que a verificação do facto-índice não determina necessariamente a declaração da insolvência, podendo ser elidida pela prova de que o devedor não caiu nessa situação (artº 30 nºs 3 e 4 do CIRE). De resto, o legislador prevenindo a dúvida – que se colocou na vigência do CPEREF – teve o cuidado de salientar, no preâmbulo do diploma que aprovou aquele Código (nº 19, in fine) o carácter elidível das presunções consubstanciadas nos factos indiciários. O estado de insolvência não se revela necessária e iniludivelmente através dos factos índices e, portanto, apesar da sua verificação, não se segue, como corolário lógico, que não pode ser afastado, a declaração de insolvência. É, porém, sobre o devedor que a lei, terminantemente, faz recair o encargo da prova quer da inexistência do facto índice quer da inexistência da situação de insolvência (artº 30 nº 3 do CIRE e 342 nº 2 do Código Civil). E esta solução vale igualmente para o caso de a causa da insolvência invocada consistir na insuficiência do activo. Desde que a lei trata este fundamento de decretamento da insolvência também como facto-índice desse estado, é ao devedor que cabe a demonstração, por exemplo, através da oposição de embargos, de que o activo é superior ao passivo (artºs 3 nºs 2 e 3 e 20 nº 1 h) do CIRE)[6]. Isto explica que, no caso de o devedor, quando a sua audiência não tiver sido dispensada, não deduzir oposição, seja logo declarada a sua insolvência, desde que os factos alegados na petição inicial integrem um qualquer dos factos-índices apontados na lei (artº 30 nº 5 do CIRE). 3.4. Requisitos da obrigação susceptível de ser realizada coactivamente através do processo de insolvência. O processo de insolvência é ainda, de certo modo, um processo executivo, residindo a sua especificidade no carácter colectivo ou universal da execução. Interessa, por isso, saber que características o direito de crédito do requerente deve reunir para que, para a sua satisfação, se possa promover a declaração de insolvência do devedor. Esse crédito, ou melhor, a obrigação correspondente deve ser exigível, certa e líquida. A exigibilidade da obrigação tem aqui um sentido específico, algo distinto do que tem no plano substantivo. Obrigação exigível é a que está vencida ou que se vence com a citação do requerido e em relação à qual o credor não se encontre em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação. Maneira que o vencimento da obrigação é sempre indispensável à sua exigibilidade – mas esta pode requerer algo mais do que esse vencimento. No tocante às obrigações a prazo certo, a falta do decurso deste, quando tenha sido ou se presuma ter sido fixado em benefício do prazo, impede o vencimento da obrigação, pelo que o devedor não se encontra em mora antes do terminus ad quem desse prazo (artºs 779 e 804 nº 1 a) do Código Civil). Note-se, porém, que o devedor perde o benefício do prazo e, portanto, o credor pode exigir o imediato cumprimento da obrigação, se o devedor se tornar insolvente ou se, por causa que lhe seja imputável, diminuírem as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas (artº 780 nº 1 do Código Civil). Se pela natureza da prestação se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, a obrigação não é exigível antes da sua determinação pelas partes ou pelo tribunal (artºs 777 nºs 2 e 3 do Código Civil e 1456 e 1457 do CPC). Se a obrigação for pura, o credor tem o direito de exigir o cumprimento a todo o tempo, mas a obrigação só se considera vencida com a interpelação do devedor (artº 777 nº 1 do Código Civil). A citação do requerido vale para o processo de insolvência, naturalmente como interpelação do devedor (artº 804 nº 3 do Código Civil). O mesmo sucede se o credor estiver em mora por não ter praticado os actos necessários para o cumprimento: a citação do requerido vale igualmente como interpelação para o cumprimento (artºs 813, 772 nº 1 e 805 nº 3 do Código Civil). É também no plano da exigibilidade da obrigação que se coloca o problema das obrigações condicionais, mas apenas no que toca às obrigações sujeitas a condição suspensiva, dado que no tocante aos créditos submetidos a uma condição resolutiva, a lei é terminante em declarar que são tratados como incondicionais até ao momento da verificação da condição, sem prejuízo de, preenchida a condição haver lugar à restituição dos pagamentos recebidos (artº 94 do CIRE). As obrigações sujeitas a condição suspensiva só são exigíveis depois a prova da verificação da condição (artº 270 do Código Civil). No processo de insolvência o carácter condicional da obrigação não afecta a sua exigibilidade, dado que se admite, expressamente, sem restrição, a promoção do processo relativamente a créditos condicionais, mesmo que a condição seja suspensiva (artº 20 nº 1, 1º parte, e 50 nº 1 do CIRE). O carácter condicional da obrigação suspensiva apenas se reflecte na atendibilidade nos rateios, maxime no rateio final (artº 181 nºs 1 e 2 do CIRE). A obrigação é certa quando a respectiva prestação se encontra determinada ou individualizada. A impossibilidade de determinar o conteúdo da prestação impede, evidentemente, a sua realização coactiva. A obrigação é ilíquida se a sua quantidade não está determinada. A iliquidez recai normalmente sobre obrigações pecuniárias, mas nada impede que possam referir-se a prestações de dare. As obrigações ilíquidas também não podem ser realizadas coactivamente, pela razão evidente de que não se pode executar o património do devedor antes de determinar, por exemplo, a quantia devida. A lei trata os requisitos do crédito cuja satisfação coactiva é susceptível de ser realizada no processo de insolvência a propósito da legitimidade para apresentar o pedido de insolvência (artºs 19 e 20 CIRE). Essa legitimidade radica, entre outros, no credor, seja qual for a natureza do crédito e ainda que este seja condicional (artº 20 nº 1, 1ª parte, do CIRE). O pedido de insolvência não está, quanto à natureza do crédito, sujeito a qualquer restrição quanto à competência do tribunal, i.e., na insolvência podem ser actuados quaisquer créditos, ainda que o tribunal da insolvência não seja materialmente competente para a sua apreciação. Verifica-se, por isso, uma extensão da competência material do tribunal da insolvência. Esta extensão justifica a admissibilidade do pedido da insolvência por créditos públicos, como é o caso dos créditos fiscais, ou de créditos laborais. De resto, essa extensão de competência ocorre em todos os processos concursais, i.e., em todos os processos em que haja lugar ao concurso de credores, dado que é admissível a reclamação de créditos públicos e também por exemplo, de créditos laborais seja na execução singular pendente seja na insolvência em curso (artº 864 nº 1 a) do CPC e 128 nº 1 do CIRE). O problema da legitimidade do credor para deduzir o pedido de insolvência tem dado lugar a uma jurisprudência desencontrada das Relações, sustentado uns que só é dotado de legitimidade para promover o procedimento de insolvência o credor cujo crédito não é controvertido ou litigioso[7] e advogando outros que mesmo ao credor de crédito litigioso dispõe daquela legitimidade[8]. A razão está, porém, do lado de quem entende que o carácter litigioso do crédito não tolhe a legitimidade do credor para requerer a declaração de insolvência. É para o detalhe desta proposta de solução – e para o cumprimento do ónus de argumentação correspondente – que se dirigem as considerações subsequentes. 3.5. Legitimidade ad causam do credor. A legitimidade a que lei se refere é, nitidamente, não a legitimidade substantiva – mas a legitimidade processual, ad causam[9]. Portanto, essa legitimidade é aferida nos termos gerais (artº 17 do CIRE). Assim, nos termos gerais, é de toda a conveniência não confundir legitimidade para pedir ou requerer – com procedência ou mérito do pedido ou requerimento correspondente (artº 26 nºs 1 e 3 do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE)[10]. Sendo o objecto inicial do processo constituído pelo pedido e pela respectiva fundamentação, mas conferindo-se a esta, em sede de objecto do processo, apenas uma função individualizadora daquele, será aquele pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte. Assim, a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação. Entendimento diverso conduz a uma lastimável confusão entre legitimidade e procedência. Nestas condições, é dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado. A questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da legitimidade ad causam para deduzir o pedido de insolvência, que apenas respeita ao preenchimento de um pressuposto processual positivo e, portanto, a uma excepção dilatória imprópria. Se bem se reparar é exactamente o que ocorre também com a acção executiva singular. Essa legitimidade é conferida aos sujeitos que constam ou figuram do título como credor e como devedor (artº 55 nº 1 do CPC). A lei não diz que é parte legítima como exequente o credor e como executado o devedor; não diz e não devia dizer, sob pena de confundir a questão da legitimidade com a de procedência: é que o exequente e o executado podem ser partes legítimas, apesar de não serem credor nem devedor. Do mesmo modo, parte legítima no processo de insolvência, não é credor e o devedor, mas quem alega ter sido constituída a seu favor uma obrigação e a pessoa que, segundo o requerente, se obrigou. Um e outro são partes legítimas. Se todavia, vem a apurar-se mais tarde que o primeiro era credor aparente e o segundo devedor suposto, portanto, que na realidade nunca o primeiro fora titular do direito de crédito e nunca o segundo fora o devedor, a consequência, é, não absolvição da instância, do demandado, por ilegitimidade ad causam do primeiro – mas a absolvição do segundo do pedido. A crédito litigioso pode dar-se, neste contexto, o significado que lhe é impresso pelo Código Civil: crédito que tiver sido contestado em juízo contencioso (artº 579 nº 4 do Código Civil). Portanto, crédito litigioso é, no processo de insolvência, aquele que tiver sido contestado pelo devedor. A atribuição de legitimidade para deduzir o pedido de insolvência apenas ao credor cujo crédito não tenha sido contestado, restringiria, grave e injustificadamente, o meio de tutela jurisdicional do direito crédito – seja do requerente da insolvência seja dos demais credores do requerido - representado pela insolvência: é que bastaria ao devedor, ainda que de forma patentemente infundada, contestar o crédito do requerente para se concluir pela ilegitimidade do requerente e, consequentemente, para se obviar à declaração de insolvência. E, como decorre da sentença apelada, não seria mesmo necessário que o devedor contestasse a totalidade do crédito, sendo suficiente que impugnasse apenas parte dele, por mais ínfima que seja, ou um seu acessório – v.g. a obrigação de juros - para que estivesse excluída a declaração de insolvência. E, como decorre também linearmente da decisão recorrida, seria mesmo suficiente a simples contestação, total ou meramente parcial do crédito, para afastar a declaração de insolvência, não sendo o credor sequer admitido a provar, no processo de insolvência, que é realmente credor do insolvente ou credor da totalidade da dívida e, portanto, que dispõe de legitimidade para requerer a insolvência. Essa prova teria de ser feito noutro processo e noutro tribunal, determinado de harmonia com as regras gerais de competência, absoluta e relativa. Na espécie do recurso, segundo a sentença apelada, para que se admitisse a apelante a requerer a insolvência, esta teria primeiro de convencer a requerida, no Tribunal do Trabalho, de que também é credora da última relativamente à parte do seu crédito que contestou ou controverteu. Todavia, o tal entendimento do problema contrasta vivamente com um princípio estruturante do processo civil, i.e. de um princípio, que lhe é indispensável, e de que o processo de insolvência, naturalmente, também partilha: o da auto-suficiência - quer este seja entendido no sentido de tutela provisória da aparência, de harmonia com a qual em matéria processual, vale como realidade para o efeito de se determinar se essa aparência corresponde ou não à realidade,[11] quer com o significado de que o processo de insolvência é, em regra, o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária para a decisão a tomar - a declaração de insolvência (artº 96 nº 1 do CPC). De resto, é ao autor ou requerente que compete assegurar o preenchimento dos pressupostos processuais, desde logo daqueles que lhe digam directamente respeito – como, v.g. a legitimidade ad causam – e, portanto, é aquele que deve provar que o pressuposto está satisfeito – e não ao réu ou requerido que tem de provar que o pressuposto está preenchido (artº 342 nº 1 do Código Civil). Mas para isso é indispensável que se assegure ao requerente a possibilidade da realização da prova, no processo de insolvência, dos factos correspondentes, se estes forem controvertidos. De outro aspecto, a exigência de que o crédito não tenha sido contestado para que se reconheça legitimidade ao credor para requerer a insolvência conduz a incoerências valorativas materialmente injustificadas. Já está adquirido à certeza que o carácter condicional do crédito – seja a condição suspensiva ou resolutivo – não tolhe a legitimidade do requerente da insolvência. Portanto, admite-se a requerer a insolvência ao credor cujo crédito ainda nem sequer se mostra constituído – dado que essa constituição depende da verificação de um facto futuro e incerto, mas a ser exacto o entendimento de que se discorda, fechava-se a porta do processo de insolvência ao credor cujo crédito, ainda que só em parte, é contestado pelo devedor, não se admitindo sequer o credor a fazer a prova da existência ou simplesmente da exacta dimensão do seu crédito. Depois, a lei não estabelece, no tocante aos credores reclamantes, qualquer restrição quer quanto à natureza do crédito e aos seus fundamentos quer quanto à sua pacificidade, admitindo, sem qualquer limitação, a reclamação, por exemplo, de créditos públicos e de créditos laborais ainda por mais controvertidos ou contestados que estes se mostrem (artºs artºs 128 nº 1, 131, 134, 135, 136, 139 e 140 nºs 1 e 2 do CIRE). Portanto, se a apelante, em vez de requerer a declaração de insolvência tivesse reclamado o seu crédito na insolvência já declarada, é indiscutível que tanto a natureza do seu crédito quer o seu carácter controvertido nenhum obstáculo colocariam à admissibilidade da reclamação e da verificação dele. Então, que razão material bastante justifica ou sequer explica a diferença de tratamento do mesmo crédito, com as mesmas características, num caso e noutro? Bem: nenhuma. Por último, o entendimento de que se discorda, que é o da sentença recorrido, é abertamente desconforme com o princípio – também ele estruturante - da igualdade das partes, de harmonia com o qual as partes, todas, devem situar-se num plano de igualdade entre si e ambas devem ser iguais perante o tribunal (artº 3-A do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE, e 194 nºs 1 e 2 deste último diploma legal). Na realidade, daquele entendimento do problema resulta um tratamento jurídico diferenciado, sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes, entre o credor requerente da insolvência e credor reclamante, exigindo, para o primeiro, o preenchimento de pressupostos que não pede aos segundos. De resto, ao contrário do que inculca a sentença impugnada, não existe uma equivalência conceptual entre crédito exigível e crédito contestado ou litigioso. Como se notou já, obrigação exigível é a que está vencida ou que se vence com a citação do requerido e em relação à qual o credor não se encontre em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação. Portanto, o crédito pode ser exigível e, não obstante, ser litigioso, como pode ser não controvertido e, apesar disso, não ser exigível. Na espécie do recurso, a requerida não discute o dever de prestar – mas apenas o quantum da prestação devida. Mas mesmo que recusasse a sua adstrição, por inteiro, a qualquer dever de prestação, nem por isso, se deveria concluir pela inexigibilidade do crédito da apelante e, portanto, pela sua ilegitimidade ad causam para, por ele, apresentar o pedido de insolvência. Tudo vincula, pois, à conclusão de que a decisão recorrida é juridicamente desconforme, devendo reconhecer-se à requerente legitimidade para promover o processo de insolvência[12]. Nestas condições, é meramente consequencial a procedência da impugnação e, consequentemente, revogação da decisão apelada, que deve ser substituída por outra que ordene os ulteriores e regulares termos do processo. Duas palavras mais para dar cumprimento ao ingrato e insólito dever de sumariar o acórdão que a lei impõe ao juiz relator (artº 713 nº 7 do CPC)[13]. A retórica argumentativa do acórdão, de que se extrai a solução de improcedência do recurso, assenta nesta proposição conclusiva: a contestação, pelo requerido, do crédito do requerente da insolvência, não afecta a exigibilidade daquele crédito, nem tolhe a legitimidade ad causam do último para apresentar o pedido de insolvência. A apelada não deu causa à decisão recorrida nem a acompanhou e, por isso, beneficia de uma isenção subjectiva de custas (artº 2 nº 1 g) do CC Judiciais); o recorrente obteve vencimento. O recurso não está, por isso, sujeito a custas. 3. Decisão. Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão impugnada e ordena-se a substituição por outra que ordene o prosseguimento dos ulteriores e regulares termos do processo de insolvência. Não são devidas custas. Porto, 10.01.26 Henrique Ataíde Rosa Antunes Ana Lucinda Mendes Cabral Maria do Carmo Domingues _____________ [1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.3.96, CJ, 96, II, pág. 24. [2] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, págs. 150 e ss. [3] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, págs. 40 e 41. [4] Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em Especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra 1998, pág. 110. [5] O critério da insuficiência do activo não é, na verdade, desconhecido no nosso direito, remontando ao Código das Falências de 1935, aprovado pelo Dec. 25 981, de 26 de Outubro, no qual já era admitido, complementarmente, a par do critério fundamental básico, como causa especial de falência, mas apenas no tocante às sociedades de responsabilidade limitada (artº 1774 nº 2 do CPC, revogado pelo artº 9 do DL nº 132/93, de 23 de Abril, que aprovou o CPEREF). Comentando o preceito correspondente do CPC de 1939 – o artº 1136 § 1º - Alberto dos Reis, depois de citar o Relatório do Código de Falências 1935, Código que entretanto havia sido integrado no Código de Processo Civil, fazia notar que a existência daquele critério não deveria levar à conclusão de que a falência das sociedades daquela espécie só poderia ser decretada quando se desse o caso de o activo ser superior ao passivo e que a doutrina exacta era, antes, a de que se tratava de um fundamento especial, que se somava às outras causas de falência indicadas na lei. Cfr. Processos Especiais, vol. II, Coimbra, 1982, págs. 318. No mesmo sentido se pronunciavam Pedro de Sousa Macedo – Manual de Direito das Falências, vol I., Almedina, Coimbra, 1964, pág. 288 e – de forma crítica - Sá Carneiro – Notas ao Código de Falências, Revista dos Tribunais, Ano 51, pág. 292 e Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em Especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra 1998, pág. 111 - que sublinhava que, não funcionando nas sociedades de responsabilidade limitada, o elemento pessoal, a falência devia fundar-se também na insuficiência do activo. [6] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado (Reimpressão), vol. I, Quid Iuris, Lisboa, 2006, págs. 74 e 75. [7] Acs. da RP de 20.04.99, da RL de 95.06.08 e da RC de 25.05.09 e 03.12.09, www.dgsi.pt. [8] Acs. da RE de 10.05.07 e da RC de 26.05.09, www.dgsi.pt. [9] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, O problema da natureza do Processo de liquidação aplicável à insolvência no Direito Português, Coimbra, 2009, págs. 263 e 264. [10] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, BMJ nº 292, pág. 102. [11] Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lex, Lisboa, 2000, pág. 51. [12] No sentido que o trabalhador, mesmo que o seu crédito não esteja reconhecido por sentença do Tribunal de Trabalho, tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência, cfr. o Ac. da RG de 18.12.06. [13] Cfr., para uma apreciação crítica – fundada – desta solução da lei, Lopes do Rego, A Reforma dos Recursos em Processo Civil, in As Exigências do Processo Civil, Associação Jurídica do Porto, pág. 248 e António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 300 e 301. De resto, esta exigência pode revelar-se uma fonte de embaraços, como sucederá, por exemplo, no caso de haver contradição entre o sumário e o conteúdo do acórdão. Regra geral, a solução do problema não oferece dificuldades, mas poderá mostrar-se espinhosa, tratando-se de acórdão de uniformização de jurisprudência, tirado no recurso ordinário ampliado de revista ou no recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, dado o seu carácter de recurso uniformizador (artºs 732-A, 732-B nº 5 e 770 nº 1 do CPC). Problema de solução difícil é também o saber se o relator se encontra adstrito ao dever se sumariar no caso de julgar sumariamente o recurso e no julgamento da reclamação contra o despacho de indeferimento do requerimento de interposição do recurso.