I- A excessiva onerosidade da reconstituição verifica-se quando se possa concluir não ser necessária a restauração natural para que o património do lesado (entendido não em termos meramente quantitativos, mas antes em termos qualitativos ou funcionais) seja integralmente reconduzido ao estado anterior ao do evento lesivo com a entrega de quantia monetária suficiente para que o bem danificado seja substituído por outro com os mesmos préstimos e utilidades (estando aqui pressuposto, claro está, que tal quantia monetária a entregar seja manifestamente inferior ao custo da restauração). II- Não logrando o lesante provar os factos necessários para se concluir que com o recebimento de quantia correspondente ao valor venal do veículo acidentado o lesado poderia adquirir veículo idêntico, não se verificará a aludida excepção — tal poderia significar uma reposição patrimonial puramente venal, nunca uma reposição patrimonial na vertente funcional ou de uso. III- A simples privação do uso de veículo — mesmo que desacompanhada da prova de que tal privação ocasionou perdas patrimoniais ou determinou gastos monetários — é autonomamente ressarcível.
Apelação nº 905/08.0TBPFR.P1 Relator: João Ramos Lopes Adjuntos: Desembargadora Maria de Jesus Pereira Desembargador Marques de Castilho. * Acordam no Tribunal da Relação do Porto. RELATÓRIO*Recorrente: B……… (co-réu). Recorrido: C……… (autor). Co-réus: Fundo de Garantia Automóvel e D…….., Ldª. Tribunal Judicial de Paços de Ferreira – 3º Juízo.*C……… instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário demandando os réus Fundo de Garantia Automóvel, D…….., Ldª e B………, pedindo a sua condenação solidária (embora o réu F.G.A. com dedução da franquia legal prevista no art. 21º, nº 3 do DL 522/85, a ficar a cargo apenas dos restantes réus) no pagamento da quantia de 4.002,35€ a título de reparação do seu veículo e da quantia de 1.320,00€ a título de privação do uso do mesmo veículo (ou um valor a fixar com recurso à equidade relativamente a este dano), acrescidas de juros a contar da citação. Como fundamento do peticionado alega a ocorrência de um embate entre veículo de sua propriedade, por si conduzido, e um veículo conduzido pelo réu apelante, propriedade da ré D………, Ldª, que à data do evento não dispunha de seguro válido e eficaz. Após descrever a sua versão do embate, que imputa a conduta culposa do terceiro réu, agora apelante, alega o autor os danos sofridos, que se resumem aos estragos sofridos pelo seu veículo, em cuja reparação despendeu 4.002,35€ e ao dano resultante da sua privação, que se prolongou por 132 dias (e cujo dano computa à razão de 10,00€ diários). Apresentaram-se a contestar os réus F.G.A. e B…….. (agora apelante). No que importa à economia da decisão, o F.G.A. impugnou a matéria relativa aos invocados danos, alegando os factos que em seu entender demonstram a excessiva onerosidade da reparação do veículo do autor (atento o valor venal do veículo e o custo da sua reparação), concluindo pelo julgamento da causa em conformidade com a prova que fosse produzida. O réu apelante impugna também os alegados danos sofridos pelo autor, argumentando que nunca poderá ser responsabilizado pelos danos decorrentes da privação do veículo. Saneado o processo e organizada a base instrutória, foi realizado o julgamento, após o que foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente procedente, condenou solidariamente os réus a pagar ao autor a quantia global de 5.322,35€ (cinco mil trezentos e vinte e dois euros e trinta e cinco cêntimos) – sendo o réu F.G.A. responsabilizado apenas pelo montante de 5.023,07€ (cinco mil e vinte e três euros e sete cêntimos), face à dedução da franquia legal 299,28€, ficando os segundo e terceiro réus condenados solidariamente a pagar toda a aludida quantia e, como tal, a suportar em exclusivo a parte relativa à mencionada franquia –, montantes acrescidos (por referência à respectiva responsabilidade) de juros legais desde a citação e até integral pagamento. Inconformada com tal decisão dela apelou o réu B………., pugnando pela sua revogação e substituição por outra que reduza a sua condenação ao valor máximo de 1.477,00€. Nas suas alegações, formula a apelante as seguintes conclusões: ………… ………… ………… Contra-alegou o autor, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.*Colhidos os vistos, cumpre decidir.*Do objecto do recurso Sendo o objecto do recurso (thema decidendum) definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, identificam-se nos termos seguintes as duas questões suscitadas: - apurar, em primeiro lugar, se a reparação do dano sofrido pelo autor, traduzido nos estragos que, para o seu automóvel, advieram do acidente, deve operar-se através da entrega da quantia em dinheiro correspondente ao valor venal daquele, pelo facto da reconstituição natural se revelar excessivamente onerosa (designadamente em consideração à situação subjectiva do réu); - apurar se o autor tem direito a ser indemnizado pela privação do uso do seu veículo e, em caso afirmativo, se o montante encontrado na sentença para ressarcir o autor por tal dano peca por excessivo.*FUNDAMENTAÇÃO*Fundamentação de facto É a seguinte a matéria de facto julgada provada na decisão recorrida: a) No dia 11 de Dezembro de 2006, pelas 14h30m, no Cruzamento formado pela Rua Nuno Augusto Ferreira Mendes com a Rua de Santa Cruz, em Freamunde, Paços de Ferreira, ocorreu um embate entre os veículos com as matrículas ..-..-GD, ..-..-VD e ..-..-EU – A; b) O veículo ..-..-GD é um veículo ligeiro de passageiros, Mercedes Benz, modelo 190 E, e era conduzido pelo seu dono, o aqui autor, sendo que o veículo ..-..-VD, é um veículo ligeiro de mercadorias, propriedade da ré D………, Lda., e era conduzido por B……… – B e G; c) A sociedade D…….., Lda, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Guimarães sob o número 506088960, tem como objecto comercial o comércio a retalhos de móveis, artigos de iluminação e decoração – H; d) O embate aludido em a) ficou-se a dever ao facto de o condutor do VD não ter respeitado, por distracção ou falta de cuidado, um Sinal STOP e vir a embater no ..-..-GD – C; e) O veículo ..-..-VD não dispunha, à data do embate, de seguro válido, sendo que por virtude desse facto, o Fundo de Garantia Automóvel procedeu a instrução do processo de averiguações, tendo concluído pela verificação do facto aludido em d) e, nessa sequência, comunicou ao autor que os serviços técnicos e da qualidade consideraram o veículo de matrícula GD como uma perda total em 15 de Janeiro de 2007, em virtude do custo estimado para a reparação - 6.331,46€ (IVA incluído) - exceder 70 % do valor venal, disponibilizando-se a entregar ao autor a quantia indemnizatória de 1.251,57€, proposta esta que o autor declinou – D e E; f) O autor procedeu à reparação do GD, na qual foram utilizadas peças de custo inferior às do concessionário da marca, no que despendeu a quantia de 4.002,35€ – 1º; g) O autor adquiriu o veículo GD em 10 de Janeiro de 2005 pela quantia de 3.700,00€ – 4º; h) À data aludida em a), o GD estava em bom estado e não apresentava problemas de funcionamento – 5º; i) O veículo GD é um veículo com caixa automática, sendo que o autor, devido a deficiência física, só pode conduzir veículos com caixa automática – I e 2º; j) Por virtude do embate aludido em a), desde essa data até à data em que a primeira ré se disponibilizou a indemnizar o aqui autor nos termos referidos em e), o veículo GD esteve imobilizado durante um período de 35 dias – F; l) Por virtude do embate aludido em a), o autor esteve desde essa data 132 dias sem poder utilizar o veículo GD, por o veículo apenas lhe ter sido entregue reparado em 23/04/2007, por força do que deixou de fazer deslocações – 6º, 7º e 8º; m) O valor venal do veículo GD atribuído pela primeira ré nunca daria para o autor adquirir veículo idêntico – 10º; n) A reparação do GD com peças do concessionário da marca orçaria em 6.224,26€, com um acréscimo no valor calculado em percentagem concretamente não apurada, devido à desmontagem que seria necessária – 11º e 12º; o) De acordo com a avaliação a que procederam os técnicos da ré, o GD valia cerca de 1.477,00€ – 13º; p) Dada a idade do GD – cerca de 25 anos – a viatura já não é cotada por qualquer ferramenta informática disponível na Internet ou qualquer revista da especialidade – 15º; q) O valor dos salvados do GD, excluindo a caixa automática, não ultrapassava os 221,55€ – 16º. *Fundamentação de direito Não se discute no âmbito da presente apelação que o autor não tenha direito ao ressarcimento dos danos por si sofridos em consequência do acidente. Está tão só em causa apurar do montante desse ressarcimento – quer no que respeita à reparação dos danos sofridos pelo veículo, quer no que concerne ao dano decorrente da sua privação no período que decorreu entre a data do embate e a data em que o veículo foi entregue ao autor após a reparação a que foi submetido. Apreciando do primeiro aspecto – a primeira questão suscitada pela apelação, qual seja a de apurar se a reparação dos estragos sofridos pelo automóvel do autor em directa decorrência do embate deve operar-se, como decidido na sentença, pela entrega do montante despendido pelo autor na sua efectiva reparação ou antes, como pretende o apelante, através da entrega da quantia em dinheiro correspondente ao valor venal daquele, pelo facto da reconstituição natural se revelar excessivamente onerosa (designadamente em consideração à situação subjectiva do réu). Em matéria de obrigação de indemnização, o art. 566º, nº 1 do C.C., consagra como regra o princípio geral da restauração ou reposição natural. O ‘fim precípuo da lei nesta matéria é, por conseguinte, o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes’[1]. Casos há, porém, em que a reconstituição natural não permite resolver satisfatoriamente a questão da reparação do dano sofrido pelo lesante, seja porque não é possível, seja porque não é meio bastante para alcançar o fim da reparação (ou seja, é insuficiente, não cobre todos os danos ou não abrange todos os aspectos em que se desdobra o dano ou porque os danos, pela sua natureza, não são susceptíveis de reparação natural como acontece com os danos não patrimoniais), seja porque não é meio adequado ou próprio para tal, como ocorre quando é excessivamente onerosa para o devedor[2]. Nestes casos, a lei, para suprir a falta ou insuficiência da reparação in natura, prescreve a indemnização em dinheiro (art. 566º, nº 1 do C.C.). À economia da decisão importa apenas apurar da excessiva onerosidade da reconstituição natural – esse é o fundamento aduzido pelo apelante. A indemnização pecuniária constitui um sucedâneo a que se recorre apenas quando a reparação em forma específica se mostra materialmente impraticável, não cobre todos os prejuízos ou é demasiado gravosa para o devedor, verificando-se esta última situação sempre que exista flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural para o responsável, devendo tal onerosidade apreciar-se em termos amplos, considerando-se, inclusive, legítimos interesses de ordem moral ou sentimental do lesado[3]. Realce-se que o princípio geral da restauração natural não é postergado pela simples onerosidade da reconstituição in natura, pois que a lei exige para tanto que esta se mostre excessivamente onerosa para o devedor, que signifique para este um encargo desmedido e inadequado, devendo ser ponderados factores subjectivos, respeitantes não só (embora primacialmente) à pessoa do devedor e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, mas também atinentes às condições do lesado e ao seu justificado interesse específico na reparação do bem danificado, antes que no percebimento do seu valor em dinheiro[4]. Em situações como a dos autos, a ponderação não pode esgotar-se no simples confronto do custo da reparação com o valor venal ou comercial do veículo danificado, pois tal representaria desprezar o valor de uso que ele representa para o seu proprietário. Efectivamente, por reduzido que seja o valor comercial do automóvel, sempre ele suprirá (com maiores ou menores comodidades) as necessidades do seu utilizador, necessidades essas que não serão satisfeitas com a inclusão no património do lesado de montante monetário equivalente ao valor venal daquele – ‘uma coisa é ter o valor, outra coisa é ter a coisa’[5]. Tal impõe se considere que se um dos pólos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação, o outro não é o valor venal do veículo mas sim o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do acervo patrimonial do lesado[6] - para o dono do veículo sinistrado, o valor deste não se afere apenas pelo seu valor venal ou valor comercial, sendo significativo o valor de uso, traduzido pela utilidade que o veículo proporciona[7]. A excessiva onerosidade da restauração natural demanda assim a demonstração de que o custo que ela representa (custo da reparação) se apresenta como flagrantemente desproporcionado em relação ao interesse do lesado (a reparação do veículo). Pode assim dizer-se que a excessiva onerosidade da reconstituição se verificará quando se possa concluir não ser necessária a restauração natural para que o património do lesado (entendido não em termos meramente quantitativos, mas antes em termos qualitativos ou funcionais) seja integralmente reconduzido ao estado anterior ao do evento lesivo com a entrega de quantia monetária suficiente para que o bem danificado seja substituído por outro com os mesmos préstimos e utilidades (estando aqui pressuposto, claro está, que tal quantia monetária a entregar seja manifestamente inferior ao custo da restauração). Em tais casos, mas só em tais casos, poderá o legítimo e específico interesse do lesado na restauração do veículo danificado ser afastado, pois que o seu património ficará integralmente reparado e reconstituído com a aquisição de veículo idêntico que lhe proporcione a satisfação das necessidades e utilidades que aquele veículo danificado satisfazia. Nessas situações, a indemnização pecuniária, sucedâneo da restauração natural, repõe, na íntegra, o património do lesado – quer na vertente puramente venal, quer na vertente de uso; fica reposto não só o valor de troca como ainda o valor de gozo e fruição. No caso dos autos, não lograram os réus demandados provar os factos integradores da invocada excepção (sendo indubitável que a prova dos factos necessários à demonstração da excessiva onerosidade da reconstituição natural lhes incumbia, pois que constituem matéria de excepção - art. 342º, nº 2 do C.P.C.)[8]. De realçar, neste particular, dois aspectos factuais determinantes: - o veículo do autor tem caixa automática, sendo que o autor, devido a deficiência física, só pode conduzir veículos com caixa automática; - o valor venal atribuído pela primeira ré ao veículo do autor (1.477,00€) não permitiria ao autor adquirir um veículo idêntico. Mais do que não terem os demandados logrado provar que com o montante equivalente ao valor venal do veículo o autor conseguiria adquirir um veículo idêntico (repondo dessa forma a situação patrimonial anterior ao evento lesivo), resultou até provado (e tal nem sequer seria necessário, face às regras da repartição do ónus da prova) que com tal quantia não seria possível adquirir veículo idêntico. Considerando esta matéria, impõe-se concluir não terem os demandados (e, por isso, também o apelante) logrado provar os factos necessários para poderem esgrimir validamente com a excepção da excessiva onerosidade da reparação, uma vez que o património do lesado nunca ficaria integralmente reposto no estado em que se encontrava antes do acidente com o recebimento de quantia correspondente ao valor venal do veículo (e concedendo que o valor venal do veículo encontrado pelos peritos do réu F.G.A. corresponde ao seu efectivo e real valor de mercado) – tal poderia significar uma reposição patrimonial puramente venal, nunca uma reposição patrimonial na vertente funcional ou de uso (ficaria o lesado com o dinheiro equivalente ao valor da coisa, mas não com a coisa apta a satisfazer-lhe as necessidades que certamente haviam determinado a sua aquisição e sem possibilidade de, com aquele dinheiro, adquirir coisa equivalente). Não pode, pois, considerar-se, mesmo valorizando o facto de o apelante ser uma pessoa humana, e não já uma entidade seguradora ou sequer um fundo destinado a responder nos casos em que não existe contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, que o custo da restauração natural seja desmedido e inadequado – isto é, que a reconstituição natural seja excessivamente onerosa. Improcede, pois, o primeiro argumento do recurso. A segunda questão suscitada pela apelação reconduz-se a apurar da ressarcibilidade autónoma do dano decorrente da privação do uso do veículo em virtude dos danos sofridos em acidente de viação – e, no caso de se entender que se justifica tal ressarcibilidade, apreciar do montante a esse propósito fixado na decisão recorrida. O obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º do C.C.). Tal reconstituição deve, em princípio e como já acima se disse, ser feita mediante reconstituição natural (art. 566º, nº 1 do C.C.). No caso de acidente de viação o responsável é obrigado a reparar o veículo danificado (o dano emergente – prejuízo causado), a não ser que tal reparação seja impossível ou se apure ser excessivamente onerosa (art. 566º, nº 1 do C.C.). Todavia, tal reconstituição natural (sendo possível e não excessivamente onerosa) poderá não se mostrar suficiente para reparar integralmente os danos sofridos pelo lesante – sejam danos emergentes, sejam lucros cessantes (art. 564º, nº 1 do C.C.). Na verdade, no período em que o veículo está imobilizado até à integral reparação dos estragos sofridos (quer ao nível mecânico, quer ao nível da carroçaria), o lesado ficará privado de usar, fruir e gozar coisa de sua propriedade. Ínsita a esta privação do uso do veículo está uma lesão directa do direito de propriedade do lesado. Vendo-se o lesado impossibilitado de fruir e gozar bem de sua propriedade, de retirar dele as utilidades que presidiram à sua aquisição, tem de afirmar-se a existência de uma lesão num direito absoluto (a primeira modalidade de ilicitude a que alude o art. 483º do C.C.), lesão essa cuja causa adequada é ainda o evento gerador da obrigação de indemnizar (o acidente de viação). Para lá da obrigação de reparar os estragos do veículo, o princípio inerente à restauração natural (reposição da situação hipotética em que estaria o lesado se não se tivesse verificado o evento lesivo) impõe se reponha essa possibilidade de usar e fruir de um bem, que, em si mesma considerada, se insere na esfera patrimonial do lesado. Insofismável (basta para tanto invocar as regras da experiência) é que a privação do uso de um bem que não tenha sido prontamente substituído por outro com utilidades semelhantes ou que não tenha sido colmatada com a atribuição imediata de um quantitativo destinado a suprir a sua falta determina na esfera do lesado uma lacuna que jamais poderá ser «naturalmente» reconstituída em espécie, nos termos e para os efeitos do art. 566º, nº 1 do C.C.[9]. Tal obrigação de reconstituição cabe ao lesante – sem prejuízo de casos existirem em que, de acordo com as regras da boa fé, se deve exigir ao lesado que faça cessar esse dano (ou o seu avolumar)[10]. A reconstituição da situação hipotética a que o lesado tem direito abrange assim a reposição da sua possibilidade de fruir e usar um veículo – e tal tanto pode ser obtido facultando-se-lhe um outro veículo (veículo de substituição) como atribuindo-se-lhe quantia suficiente para que contrate o aluguer de veículo com as mesmas características. Se o lesante (o obrigado à indemnização) não satisfizer a sua obrigação e o lesado proceder ao aluguer de um veículo, dúvidas não existem que terá direito a haver do responsável os montantes que despenda nesse aluguer (trata-se de um prejuízo – dano emergente – ligado ao evento lesivo por nexo de causalidade adequada). Atribuindo o ordenamento jurídico ao lesado o direito à reconstituição natural da situação, o simples facto de o lesado não ter obtido do lesante um veículo de substituição ou montante suficiente para proceder ao aluguer de um veículo, ‘não pode desembocar, sem mais, na total liberação do responsável’, pois a ‘recomposição da situação danosa reclama que, pela única via então possível, ou seja, pela atribuição de um equivalente pecuniário, o lesado consiga ser reintegrado’[11]. De acordo com juízos de normalidade e verosimilhança, a aquisição de um veículo automóvel é determinada ou justificada pelo facto de com tal bem o seu adquirente ter em vista a obtenção de determinadas utilidades ou a satisfação de necessidades que ele é susceptível de proporcionar, designadamente a possibilidade de se deslocar de um local para outro sempre que entender, seja em actividades puramente lúdicas, seja em actividades profissionais ou com estas relacionadas (deslocações da residência para o local de trabalho e vice versa). A privação do uso de veículo ‘reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma «fatia» dos poderes inerentes ao proprietário’, representando causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património, pois é incontornável que ‘entre a situação que existiria se não houvesse o sinistro e aquela que se verifica na pendência da privação existe um desequilíbrio que, na falta de outra alternativa, deve ser compensado através da única forma possível, mediante a atribuição de uma quantia adequada’[12]. Entender de outro modo representaria admitir a possibilidade de o lesado ver um terceiro interferir na sua autonomia privada e no seu poder de livre autodeterminação – não veria tutelada a ilegítima interferência de terceiro nos seus direitos de proprietário (erga omnes), ficando impedido de fruir e usar os seus bens, dentro dos limites do direito de propriedade, e de se ver ressarcido por tal violação. Assim, constatada que seja a privação do uso determinativa da perda das faculdades inerentes ao direito de propriedade, a negação da verificação do dano que tal privação representa pressupõe a contraprova de factos atinentes ao inerente prejuízo[13] – e o ónus de prova de tais factos incumbe ao lesante, enquanto factos exceptivos do invocado direito à indemnização (art. 342º, nº 2 do C.C.), prova essa que no caso não foi feita. Conclui-se assim pela ressarcibilidade autónoma do dano decorrente da privação do uso do veículo[14]. Do mesmo modo concluiu a douta sentença recorrida, ao aduzir que a ‘simples perda da possibilidade de utilização do veículo quando e como o seu proprietário entender tem, por si só, expressão económica, constituindo assim, um dano indemnizável de natureza patrimonial, não sendo necessário para a sua ressarcibilidade a prova da existência de outros prejuízos de ordem patrimonial decorrentes da não utilização do bem’. O montante fixado na decisão recorrida a propósito deste dano mostra-se inteiramente conforme ao disposto no art. 566º, nº 3 do C.C. Porque não foram provados factos que permitam concluir pelo valor exacto do dano, impõe-se o recurso ao disposto no art. 566º, nº 3 do C.C., fixando-se a indemnização de acordo com a equidade, segundo juízos de verosimilhança e probabilidade, em atenção ao curso normal das coisas e de harmonia com as circunstâncias do caso concreto. Equidade não significa arbitrariedade, devendo em tal juízo considerar-se a particular situação do caso concreto e do dano que importa reparar – a impossibilidade advinda para o lesado de utilizar veículo de sua propriedade. Recorrendo à equidade, partindo da situação concreta (a equidade mais não é do que a justiça do caso concreto) e das suas especificidades próprias e seguindo depois trilhos de normalidade (o apelo a critérios de equidade tem em vista encontrar no caso concreto a solução mais justa – aquela é sempre uma forma de justiça), temos por adequado, proporcionado e justo o montante indemnizatório encontrado na decisão recorrida (a quantia de 10,00€ diários, correspondente ao valor global de 1.320,00€, uma vez que a privação se prolongou por 132 dias). Tal montante mostra-se proporcionado atendendo, como valor referencial, ao valor locativo de um veículo (o dano a indemnizar consiste na privação do gozo e fruição de um veículo automóvel, pelo que o preço do aluguer permite aferir do valor de mercado do gozo e fruição de um veículo) – e de um veículo com caixa automática, pois que o autor, devido a circunstâncias pessoais, só pode conduzir veículos que disponham desse específico mecanismo. Atento tudo o exposto, improcede a apelação, com a consequente confirmação da douta sentença. Sumariando o acórdão, nos termos do art. 713º, nº 7 do C.P.C.: I- A excessiva onerosidade da reconstituição verifica-se quando se possa concluir não ser necessária a restauração natural para que o património do lesado (entendido não em termos meramente quantitativos, mas antes em termos qualitativos ou funcionais) seja integralmente reconduzido ao estado anterior ao do evento lesivo com a entrega de quantia monetária suficiente para que o bem danificado seja substituído por outro com os mesmos préstimos e utilidades (estando aqui pressuposto, claro está, que tal quantia monetária a entregar seja manifestamente inferior ao custo da restauração). II- Não logrando o lesante provar os factos necessários para se concluir que com o recebimento de quantia correspondente ao valor venal do veículo acidentado o lesado poderia adquirir veículo idêntico, não se verificará a aludida excepção – tal poderia significar uma reposição patrimonial puramente venal, nunca uma reposição patrimonial na vertente funcional ou de uso. III- A simples privação do uso de veículo – mesmo que desacompanhada da prova de que tal privação ocasionou perdas patrimoniais ou determinou gastos monetários – é autonomamente ressarcível.*DECISÃO*Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar a sentença recorrida. Custas pelo apelante.*Porto, 7/09/2010 João Manuel Araújo Ramos Lopes Maria de Jesus Pereira Augusto José B. Marques de Castilho ----------------------- [1] A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5ª edição, p. 862. [2] Autor e obra citados, pp. 863/864. [3] Ac. S.T.J. de 5/06/2008 (relatado pelo Exmº Sr. Conselheiro Santos Bernardino) e Ac. R. Porto, de 16/12/2009 (relatado pelo Exmº Sr. Desembargador José Ferraz), ambos no sítio www.dgsi.pt/, citando, ambas as decisões, a propósito, o Prof. Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 3ª edição, p. 526 e ainda o, a última, Pessoa Jorge, Lições de Direito das Obrigações, 1975/1976, AAFDL, 605. [4] Cfr., v. g., Ac. S.T.J. de 4/12/2007 (relatado pelo Exmº Sr. Conselheiro Pires da Rosa) e Ac. R. Porto de 6/10/2009 (relatado pelo Exmº Sr. Desembargador Rodrigues Pires), ambos no sítio www.dgsi.pt. [5] Como judiciosa e impressivamente se refere no citado Ac. S.T.J. de 4/12/2007. [6] Cfr., uma vez mais, o citado Ac. S.T.J. de 4/12/2007. [7] Cfr. o citado Ac. S.T.J. de 5/06/2008. [8] Cfr., v. g., os já citados Ac. S.T.J. de 4/12/2007 e Ac. R. Porto de 6/10/2009. [9] Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, pp. 9 e 31. [10] Vaz Serra, RLJ, Ano 105, pp. 168 a 171. [11] Abrantes Geraldes, obra citada, p. 33. [12] Abrantes Geraldes, obra citada, p. 39. [13] Abrantes Geraldes, obra citada, p. 41. [14] Neste sentido, entre muitos outros, Ac. R. Porto de 13/10/2009, de 25/06/2009 e de 19/03/2009 e Ac. R. Lisboa de 23/10/2007 (relatado pelo Sr. Desembargador Abrantes Geraldes), no sítio www.dgsi.pt.
Apelação nº 905/08.0TBPFR.P1 Relator: João Ramos Lopes Adjuntos: Desembargadora Maria de Jesus Pereira Desembargador Marques de Castilho. * Acordam no Tribunal da Relação do Porto. RELATÓRIO*Recorrente: B……… (co-réu). Recorrido: C……… (autor). Co-réus: Fundo de Garantia Automóvel e D…….., Ldª. Tribunal Judicial de Paços de Ferreira – 3º Juízo.*C……… instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário demandando os réus Fundo de Garantia Automóvel, D…….., Ldª e B………, pedindo a sua condenação solidária (embora o réu F.G.A. com dedução da franquia legal prevista no art. 21º, nº 3 do DL 522/85, a ficar a cargo apenas dos restantes réus) no pagamento da quantia de 4.002,35€ a título de reparação do seu veículo e da quantia de 1.320,00€ a título de privação do uso do mesmo veículo (ou um valor a fixar com recurso à equidade relativamente a este dano), acrescidas de juros a contar da citação. Como fundamento do peticionado alega a ocorrência de um embate entre veículo de sua propriedade, por si conduzido, e um veículo conduzido pelo réu apelante, propriedade da ré D………, Ldª, que à data do evento não dispunha de seguro válido e eficaz. Após descrever a sua versão do embate, que imputa a conduta culposa do terceiro réu, agora apelante, alega o autor os danos sofridos, que se resumem aos estragos sofridos pelo seu veículo, em cuja reparação despendeu 4.002,35€ e ao dano resultante da sua privação, que se prolongou por 132 dias (e cujo dano computa à razão de 10,00€ diários). Apresentaram-se a contestar os réus F.G.A. e B…….. (agora apelante). No que importa à economia da decisão, o F.G.A. impugnou a matéria relativa aos invocados danos, alegando os factos que em seu entender demonstram a excessiva onerosidade da reparação do veículo do autor (atento o valor venal do veículo e o custo da sua reparação), concluindo pelo julgamento da causa em conformidade com a prova que fosse produzida. O réu apelante impugna também os alegados danos sofridos pelo autor, argumentando que nunca poderá ser responsabilizado pelos danos decorrentes da privação do veículo. Saneado o processo e organizada a base instrutória, foi realizado o julgamento, após o que foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente procedente, condenou solidariamente os réus a pagar ao autor a quantia global de 5.322,35€ (cinco mil trezentos e vinte e dois euros e trinta e cinco cêntimos) – sendo o réu F.G.A. responsabilizado apenas pelo montante de 5.023,07€ (cinco mil e vinte e três euros e sete cêntimos), face à dedução da franquia legal 299,28€, ficando os segundo e terceiro réus condenados solidariamente a pagar toda a aludida quantia e, como tal, a suportar em exclusivo a parte relativa à mencionada franquia –, montantes acrescidos (por referência à respectiva responsabilidade) de juros legais desde a citação e até integral pagamento. Inconformada com tal decisão dela apelou o réu B………., pugnando pela sua revogação e substituição por outra que reduza a sua condenação ao valor máximo de 1.477,00€. Nas suas alegações, formula a apelante as seguintes conclusões: ………… ………… ………… Contra-alegou o autor, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.*Colhidos os vistos, cumpre decidir.*Do objecto do recurso Sendo o objecto do recurso (thema decidendum) definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, identificam-se nos termos seguintes as duas questões suscitadas: - apurar, em primeiro lugar, se a reparação do dano sofrido pelo autor, traduzido nos estragos que, para o seu automóvel, advieram do acidente, deve operar-se através da entrega da quantia em dinheiro correspondente ao valor venal daquele, pelo facto da reconstituição natural se revelar excessivamente onerosa (designadamente em consideração à situação subjectiva do réu); - apurar se o autor tem direito a ser indemnizado pela privação do uso do seu veículo e, em caso afirmativo, se o montante encontrado na sentença para ressarcir o autor por tal dano peca por excessivo.*FUNDAMENTAÇÃO*Fundamentação de facto É a seguinte a matéria de facto julgada provada na decisão recorrida: a) No dia 11 de Dezembro de 2006, pelas 14h30m, no Cruzamento formado pela Rua Nuno Augusto Ferreira Mendes com a Rua de Santa Cruz, em Freamunde, Paços de Ferreira, ocorreu um embate entre os veículos com as matrículas ..-..-GD, ..-..-VD e ..-..-EU – A; b) O veículo ..-..-GD é um veículo ligeiro de passageiros, Mercedes Benz, modelo 190 E, e era conduzido pelo seu dono, o aqui autor, sendo que o veículo ..-..-VD, é um veículo ligeiro de mercadorias, propriedade da ré D………, Lda., e era conduzido por B……… – B e G; c) A sociedade D…….., Lda, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Guimarães sob o número 506088960, tem como objecto comercial o comércio a retalhos de móveis, artigos de iluminação e decoração – H; d) O embate aludido em a) ficou-se a dever ao facto de o condutor do VD não ter respeitado, por distracção ou falta de cuidado, um Sinal STOP e vir a embater no ..-..-GD – C; e) O veículo ..-..-VD não dispunha, à data do embate, de seguro válido, sendo que por virtude desse facto, o Fundo de Garantia Automóvel procedeu a instrução do processo de averiguações, tendo concluído pela verificação do facto aludido em d) e, nessa sequência, comunicou ao autor que os serviços técnicos e da qualidade consideraram o veículo de matrícula GD como uma perda total em 15 de Janeiro de 2007, em virtude do custo estimado para a reparação - 6.331,46€ (IVA incluído) - exceder 70 % do valor venal, disponibilizando-se a entregar ao autor a quantia indemnizatória de 1.251,57€, proposta esta que o autor declinou – D e E; f) O autor procedeu à reparação do GD, na qual foram utilizadas peças de custo inferior às do concessionário da marca, no que despendeu a quantia de 4.002,35€ – 1º; g) O autor adquiriu o veículo GD em 10 de Janeiro de 2005 pela quantia de 3.700,00€ – 4º; h) À data aludida em a), o GD estava em bom estado e não apresentava problemas de funcionamento – 5º; i) O veículo GD é um veículo com caixa automática, sendo que o autor, devido a deficiência física, só pode conduzir veículos com caixa automática – I e 2º; j) Por virtude do embate aludido em a), desde essa data até à data em que a primeira ré se disponibilizou a indemnizar o aqui autor nos termos referidos em e), o veículo GD esteve imobilizado durante um período de 35 dias – F; l) Por virtude do embate aludido em a), o autor esteve desde essa data 132 dias sem poder utilizar o veículo GD, por o veículo apenas lhe ter sido entregue reparado em 23/04/2007, por força do que deixou de fazer deslocações – 6º, 7º e 8º; m) O valor venal do veículo GD atribuído pela primeira ré nunca daria para o autor adquirir veículo idêntico – 10º; n) A reparação do GD com peças do concessionário da marca orçaria em 6.224,26€, com um acréscimo no valor calculado em percentagem concretamente não apurada, devido à desmontagem que seria necessária – 11º e 12º; o) De acordo com a avaliação a que procederam os técnicos da ré, o GD valia cerca de 1.477,00€ – 13º; p) Dada a idade do GD – cerca de 25 anos – a viatura já não é cotada por qualquer ferramenta informática disponível na Internet ou qualquer revista da especialidade – 15º; q) O valor dos salvados do GD, excluindo a caixa automática, não ultrapassava os 221,55€ – 16º. *Fundamentação de direito Não se discute no âmbito da presente apelação que o autor não tenha direito ao ressarcimento dos danos por si sofridos em consequência do acidente. Está tão só em causa apurar do montante desse ressarcimento – quer no que respeita à reparação dos danos sofridos pelo veículo, quer no que concerne ao dano decorrente da sua privação no período que decorreu entre a data do embate e a data em que o veículo foi entregue ao autor após a reparação a que foi submetido. Apreciando do primeiro aspecto – a primeira questão suscitada pela apelação, qual seja a de apurar se a reparação dos estragos sofridos pelo automóvel do autor em directa decorrência do embate deve operar-se, como decidido na sentença, pela entrega do montante despendido pelo autor na sua efectiva reparação ou antes, como pretende o apelante, através da entrega da quantia em dinheiro correspondente ao valor venal daquele, pelo facto da reconstituição natural se revelar excessivamente onerosa (designadamente em consideração à situação subjectiva do réu). Em matéria de obrigação de indemnização, o art. 566º, nº 1 do C.C., consagra como regra o princípio geral da restauração ou reposição natural. O ‘fim precípuo da lei nesta matéria é, por conseguinte, o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes’[1]. Casos há, porém, em que a reconstituição natural não permite resolver satisfatoriamente a questão da reparação do dano sofrido pelo lesante, seja porque não é possível, seja porque não é meio bastante para alcançar o fim da reparação (ou seja, é insuficiente, não cobre todos os danos ou não abrange todos os aspectos em que se desdobra o dano ou porque os danos, pela sua natureza, não são susceptíveis de reparação natural como acontece com os danos não patrimoniais), seja porque não é meio adequado ou próprio para tal, como ocorre quando é excessivamente onerosa para o devedor[2]. Nestes casos, a lei, para suprir a falta ou insuficiência da reparação in natura, prescreve a indemnização em dinheiro (art. 566º, nº 1 do C.C.). À economia da decisão importa apenas apurar da excessiva onerosidade da reconstituição natural – esse é o fundamento aduzido pelo apelante. A indemnização pecuniária constitui um sucedâneo a que se recorre apenas quando a reparação em forma específica se mostra materialmente impraticável, não cobre todos os prejuízos ou é demasiado gravosa para o devedor, verificando-se esta última situação sempre que exista flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural para o responsável, devendo tal onerosidade apreciar-se em termos amplos, considerando-se, inclusive, legítimos interesses de ordem moral ou sentimental do lesado[3]. Realce-se que o princípio geral da restauração natural não é postergado pela simples onerosidade da reconstituição in natura, pois que a lei exige para tanto que esta se mostre excessivamente onerosa para o devedor, que signifique para este um encargo desmedido e inadequado, devendo ser ponderados factores subjectivos, respeitantes não só (embora primacialmente) à pessoa do devedor e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, mas também atinentes às condições do lesado e ao seu justificado interesse específico na reparação do bem danificado, antes que no percebimento do seu valor em dinheiro[4]. Em situações como a dos autos, a ponderação não pode esgotar-se no simples confronto do custo da reparação com o valor venal ou comercial do veículo danificado, pois tal representaria desprezar o valor de uso que ele representa para o seu proprietário. Efectivamente, por reduzido que seja o valor comercial do automóvel, sempre ele suprirá (com maiores ou menores comodidades) as necessidades do seu utilizador, necessidades essas que não serão satisfeitas com a inclusão no património do lesado de montante monetário equivalente ao valor venal daquele – ‘uma coisa é ter o valor, outra coisa é ter a coisa’[5]. Tal impõe se considere que se um dos pólos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação, o outro não é o valor venal do veículo mas sim o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do acervo patrimonial do lesado[6] - para o dono do veículo sinistrado, o valor deste não se afere apenas pelo seu valor venal ou valor comercial, sendo significativo o valor de uso, traduzido pela utilidade que o veículo proporciona[7]. A excessiva onerosidade da restauração natural demanda assim a demonstração de que o custo que ela representa (custo da reparação) se apresenta como flagrantemente desproporcionado em relação ao interesse do lesado (a reparação do veículo). Pode assim dizer-se que a excessiva onerosidade da reconstituição se verificará quando se possa concluir não ser necessária a restauração natural para que o património do lesado (entendido não em termos meramente quantitativos, mas antes em termos qualitativos ou funcionais) seja integralmente reconduzido ao estado anterior ao do evento lesivo com a entrega de quantia monetária suficiente para que o bem danificado seja substituído por outro com os mesmos préstimos e utilidades (estando aqui pressuposto, claro está, que tal quantia monetária a entregar seja manifestamente inferior ao custo da restauração). Em tais casos, mas só em tais casos, poderá o legítimo e específico interesse do lesado na restauração do veículo danificado ser afastado, pois que o seu património ficará integralmente reparado e reconstituído com a aquisição de veículo idêntico que lhe proporcione a satisfação das necessidades e utilidades que aquele veículo danificado satisfazia. Nessas situações, a indemnização pecuniária, sucedâneo da restauração natural, repõe, na íntegra, o património do lesado – quer na vertente puramente venal, quer na vertente de uso; fica reposto não só o valor de troca como ainda o valor de gozo e fruição. No caso dos autos, não lograram os réus demandados provar os factos integradores da invocada excepção (sendo indubitável que a prova dos factos necessários à demonstração da excessiva onerosidade da reconstituição natural lhes incumbia, pois que constituem matéria de excepção - art. 342º, nº 2 do C.P.C.)[8]. De realçar, neste particular, dois aspectos factuais determinantes: - o veículo do autor tem caixa automática, sendo que o autor, devido a deficiência física, só pode conduzir veículos com caixa automática; - o valor venal atribuído pela primeira ré ao veículo do autor (1.477,00€) não permitiria ao autor adquirir um veículo idêntico. Mais do que não terem os demandados logrado provar que com o montante equivalente ao valor venal do veículo o autor conseguiria adquirir um veículo idêntico (repondo dessa forma a situação patrimonial anterior ao evento lesivo), resultou até provado (e tal nem sequer seria necessário, face às regras da repartição do ónus da prova) que com tal quantia não seria possível adquirir veículo idêntico. Considerando esta matéria, impõe-se concluir não terem os demandados (e, por isso, também o apelante) logrado provar os factos necessários para poderem esgrimir validamente com a excepção da excessiva onerosidade da reparação, uma vez que o património do lesado nunca ficaria integralmente reposto no estado em que se encontrava antes do acidente com o recebimento de quantia correspondente ao valor venal do veículo (e concedendo que o valor venal do veículo encontrado pelos peritos do réu F.G.A. corresponde ao seu efectivo e real valor de mercado) – tal poderia significar uma reposição patrimonial puramente venal, nunca uma reposição patrimonial na vertente funcional ou de uso (ficaria o lesado com o dinheiro equivalente ao valor da coisa, mas não com a coisa apta a satisfazer-lhe as necessidades que certamente haviam determinado a sua aquisição e sem possibilidade de, com aquele dinheiro, adquirir coisa equivalente). Não pode, pois, considerar-se, mesmo valorizando o facto de o apelante ser uma pessoa humana, e não já uma entidade seguradora ou sequer um fundo destinado a responder nos casos em que não existe contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, que o custo da restauração natural seja desmedido e inadequado – isto é, que a reconstituição natural seja excessivamente onerosa. Improcede, pois, o primeiro argumento do recurso. A segunda questão suscitada pela apelação reconduz-se a apurar da ressarcibilidade autónoma do dano decorrente da privação do uso do veículo em virtude dos danos sofridos em acidente de viação – e, no caso de se entender que se justifica tal ressarcibilidade, apreciar do montante a esse propósito fixado na decisão recorrida. O obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º do C.C.). Tal reconstituição deve, em princípio e como já acima se disse, ser feita mediante reconstituição natural (art. 566º, nº 1 do C.C.). No caso de acidente de viação o responsável é obrigado a reparar o veículo danificado (o dano emergente – prejuízo causado), a não ser que tal reparação seja impossível ou se apure ser excessivamente onerosa (art. 566º, nº 1 do C.C.). Todavia, tal reconstituição natural (sendo possível e não excessivamente onerosa) poderá não se mostrar suficiente para reparar integralmente os danos sofridos pelo lesante – sejam danos emergentes, sejam lucros cessantes (art. 564º, nº 1 do C.C.). Na verdade, no período em que o veículo está imobilizado até à integral reparação dos estragos sofridos (quer ao nível mecânico, quer ao nível da carroçaria), o lesado ficará privado de usar, fruir e gozar coisa de sua propriedade. Ínsita a esta privação do uso do veículo está uma lesão directa do direito de propriedade do lesado. Vendo-se o lesado impossibilitado de fruir e gozar bem de sua propriedade, de retirar dele as utilidades que presidiram à sua aquisição, tem de afirmar-se a existência de uma lesão num direito absoluto (a primeira modalidade de ilicitude a que alude o art. 483º do C.C.), lesão essa cuja causa adequada é ainda o evento gerador da obrigação de indemnizar (o acidente de viação). Para lá da obrigação de reparar os estragos do veículo, o princípio inerente à restauração natural (reposição da situação hipotética em que estaria o lesado se não se tivesse verificado o evento lesivo) impõe se reponha essa possibilidade de usar e fruir de um bem, que, em si mesma considerada, se insere na esfera patrimonial do lesado. Insofismável (basta para tanto invocar as regras da experiência) é que a privação do uso de um bem que não tenha sido prontamente substituído por outro com utilidades semelhantes ou que não tenha sido colmatada com a atribuição imediata de um quantitativo destinado a suprir a sua falta determina na esfera do lesado uma lacuna que jamais poderá ser «naturalmente» reconstituída em espécie, nos termos e para os efeitos do art. 566º, nº 1 do C.C.[9]. Tal obrigação de reconstituição cabe ao lesante – sem prejuízo de casos existirem em que, de acordo com as regras da boa fé, se deve exigir ao lesado que faça cessar esse dano (ou o seu avolumar)[10]. A reconstituição da situação hipotética a que o lesado tem direito abrange assim a reposição da sua possibilidade de fruir e usar um veículo – e tal tanto pode ser obtido facultando-se-lhe um outro veículo (veículo de substituição) como atribuindo-se-lhe quantia suficiente para que contrate o aluguer de veículo com as mesmas características. Se o lesante (o obrigado à indemnização) não satisfizer a sua obrigação e o lesado proceder ao aluguer de um veículo, dúvidas não existem que terá direito a haver do responsável os montantes que despenda nesse aluguer (trata-se de um prejuízo – dano emergente – ligado ao evento lesivo por nexo de causalidade adequada). Atribuindo o ordenamento jurídico ao lesado o direito à reconstituição natural da situação, o simples facto de o lesado não ter obtido do lesante um veículo de substituição ou montante suficiente para proceder ao aluguer de um veículo, ‘não pode desembocar, sem mais, na total liberação do responsável’, pois a ‘recomposição da situação danosa reclama que, pela única via então possível, ou seja, pela atribuição de um equivalente pecuniário, o lesado consiga ser reintegrado’[11]. De acordo com juízos de normalidade e verosimilhança, a aquisição de um veículo automóvel é determinada ou justificada pelo facto de com tal bem o seu adquirente ter em vista a obtenção de determinadas utilidades ou a satisfação de necessidades que ele é susceptível de proporcionar, designadamente a possibilidade de se deslocar de um local para outro sempre que entender, seja em actividades puramente lúdicas, seja em actividades profissionais ou com estas relacionadas (deslocações da residência para o local de trabalho e vice versa). A privação do uso de veículo ‘reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma «fatia» dos poderes inerentes ao proprietário’, representando causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património, pois é incontornável que ‘entre a situação que existiria se não houvesse o sinistro e aquela que se verifica na pendência da privação existe um desequilíbrio que, na falta de outra alternativa, deve ser compensado através da única forma possível, mediante a atribuição de uma quantia adequada’[12]. Entender de outro modo representaria admitir a possibilidade de o lesado ver um terceiro interferir na sua autonomia privada e no seu poder de livre autodeterminação – não veria tutelada a ilegítima interferência de terceiro nos seus direitos de proprietário (erga omnes), ficando impedido de fruir e usar os seus bens, dentro dos limites do direito de propriedade, e de se ver ressarcido por tal violação. Assim, constatada que seja a privação do uso determinativa da perda das faculdades inerentes ao direito de propriedade, a negação da verificação do dano que tal privação representa pressupõe a contraprova de factos atinentes ao inerente prejuízo[13] – e o ónus de prova de tais factos incumbe ao lesante, enquanto factos exceptivos do invocado direito à indemnização (art. 342º, nº 2 do C.C.), prova essa que no caso não foi feita. Conclui-se assim pela ressarcibilidade autónoma do dano decorrente da privação do uso do veículo[14]. Do mesmo modo concluiu a douta sentença recorrida, ao aduzir que a ‘simples perda da possibilidade de utilização do veículo quando e como o seu proprietário entender tem, por si só, expressão económica, constituindo assim, um dano indemnizável de natureza patrimonial, não sendo necessário para a sua ressarcibilidade a prova da existência de outros prejuízos de ordem patrimonial decorrentes da não utilização do bem’. O montante fixado na decisão recorrida a propósito deste dano mostra-se inteiramente conforme ao disposto no art. 566º, nº 3 do C.C. Porque não foram provados factos que permitam concluir pelo valor exacto do dano, impõe-se o recurso ao disposto no art. 566º, nº 3 do C.C., fixando-se a indemnização de acordo com a equidade, segundo juízos de verosimilhança e probabilidade, em atenção ao curso normal das coisas e de harmonia com as circunstâncias do caso concreto. Equidade não significa arbitrariedade, devendo em tal juízo considerar-se a particular situação do caso concreto e do dano que importa reparar – a impossibilidade advinda para o lesado de utilizar veículo de sua propriedade. Recorrendo à equidade, partindo da situação concreta (a equidade mais não é do que a justiça do caso concreto) e das suas especificidades próprias e seguindo depois trilhos de normalidade (o apelo a critérios de equidade tem em vista encontrar no caso concreto a solução mais justa – aquela é sempre uma forma de justiça), temos por adequado, proporcionado e justo o montante indemnizatório encontrado na decisão recorrida (a quantia de 10,00€ diários, correspondente ao valor global de 1.320,00€, uma vez que a privação se prolongou por 132 dias). Tal montante mostra-se proporcionado atendendo, como valor referencial, ao valor locativo de um veículo (o dano a indemnizar consiste na privação do gozo e fruição de um veículo automóvel, pelo que o preço do aluguer permite aferir do valor de mercado do gozo e fruição de um veículo) – e de um veículo com caixa automática, pois que o autor, devido a circunstâncias pessoais, só pode conduzir veículos que disponham desse específico mecanismo. Atento tudo o exposto, improcede a apelação, com a consequente confirmação da douta sentença. Sumariando o acórdão, nos termos do art. 713º, nº 7 do C.P.C.: I- A excessiva onerosidade da reconstituição verifica-se quando se possa concluir não ser necessária a restauração natural para que o património do lesado (entendido não em termos meramente quantitativos, mas antes em termos qualitativos ou funcionais) seja integralmente reconduzido ao estado anterior ao do evento lesivo com a entrega de quantia monetária suficiente para que o bem danificado seja substituído por outro com os mesmos préstimos e utilidades (estando aqui pressuposto, claro está, que tal quantia monetária a entregar seja manifestamente inferior ao custo da restauração). II- Não logrando o lesante provar os factos necessários para se concluir que com o recebimento de quantia correspondente ao valor venal do veículo acidentado o lesado poderia adquirir veículo idêntico, não se verificará a aludida excepção – tal poderia significar uma reposição patrimonial puramente venal, nunca uma reposição patrimonial na vertente funcional ou de uso. III- A simples privação do uso de veículo – mesmo que desacompanhada da prova de que tal privação ocasionou perdas patrimoniais ou determinou gastos monetários – é autonomamente ressarcível.*DECISÃO*Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar a sentença recorrida. Custas pelo apelante.*Porto, 7/09/2010 João Manuel Araújo Ramos Lopes Maria de Jesus Pereira Augusto José B. Marques de Castilho ----------------------- [1] A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5ª edição, p. 862. [2] Autor e obra citados, pp. 863/864. [3] Ac. S.T.J. de 5/06/2008 (relatado pelo Exmº Sr. Conselheiro Santos Bernardino) e Ac. R. Porto, de 16/12/2009 (relatado pelo Exmº Sr. Desembargador José Ferraz), ambos no sítio www.dgsi.pt/, citando, ambas as decisões, a propósito, o Prof. Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 3ª edição, p. 526 e ainda o, a última, Pessoa Jorge, Lições de Direito das Obrigações, 1975/1976, AAFDL, 605. [4] Cfr., v. g., Ac. S.T.J. de 4/12/2007 (relatado pelo Exmº Sr. Conselheiro Pires da Rosa) e Ac. R. Porto de 6/10/2009 (relatado pelo Exmº Sr. Desembargador Rodrigues Pires), ambos no sítio www.dgsi.pt. [5] Como judiciosa e impressivamente se refere no citado Ac. S.T.J. de 4/12/2007. [6] Cfr., uma vez mais, o citado Ac. S.T.J. de 4/12/2007. [7] Cfr. o citado Ac. S.T.J. de 5/06/2008. [8] Cfr., v. g., os já citados Ac. S.T.J. de 4/12/2007 e Ac. R. Porto de 6/10/2009. [9] Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, pp. 9 e 31. [10] Vaz Serra, RLJ, Ano 105, pp. 168 a 171. [11] Abrantes Geraldes, obra citada, p. 33. [12] Abrantes Geraldes, obra citada, p. 39. [13] Abrantes Geraldes, obra citada, p. 41. [14] Neste sentido, entre muitos outros, Ac. R. Porto de 13/10/2009, de 25/06/2009 e de 19/03/2009 e Ac. R. Lisboa de 23/10/2007 (relatado pelo Sr. Desembargador Abrantes Geraldes), no sítio www.dgsi.pt.