I – A contestação, pelo requerido, do crédito do requerente da insolvência, ainda que também o conteste previamente ao início do processo de insolvência, em acção declarativa comum, não afecta a respectiva exigibilidade, nem obsta à legitimidade ad causam do último para apresentar o pedido de declaração de insolvência. II – Formulado este pedido e contestada a existência do crédito, o processo de insolvência tem que prosseguir, designadamente para que o requerente possa fazer prova da existência daquele seu direito.
Proc. nº 49/09.8TYVNG.P1 – 3ª Secção (apelação) Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia Relator: Filipe Caroço Adj. Desemb. Teresa Santos Adj. Desemb. Maria Amália Santos Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. B………., S.A.”, com sede na ………, n.º …., .°, salas .. e .., apartado …, ….-…, Bragança, requereu a declaração de insolvência da requerida C………., L.da, com sede na Rua ………., n.º …, ….-…, cidade do Porto, alegando essencialmente o seguinte: É credora da requerida pelo valor de um saldo de conta-corrente associada a um contrato de empreitada, por valor que ascende a € 290.383,90 e ao qual acrescem os respectivos juros de mora, vencidos desde 17 de Abril de 2006, que em 9.1.2009 atingem a quantia de € 85.294,03. Os fundamentos deste crédito constam melhor da petição inicial da acção declarativa de condenação que, sob a forma de processo ordinário e sob o n.º 1122/06.0TVPRT, corre termos pela l.ª Secção da l.ª Vara Cível do Porto. A requerente é ainda credora da requerida pelo valor de € 1.062.942,80 relativo a uma multa contratual aplicada, sendo os respectivos juros, vencidos desde o dia 27.4.2006, de € 305.212,81 à data de 9.1.2009. Assim e sem prejuízo dos juros vincendos, a requerida deve à requerente, em 9.1.2009, a quantia de € 1.743.833,54. Alega ainda que a requerida está manifestamente impossibilitada de fazer face às suas obrigações, sendo reiterado o seu incumprimento. O passivo total eleva-se a milhões de euros, sendo da ordem das dezenas de milhar de euros a dívida à Fazenda Nacional, de € 421.272,30 a dívida ao Banco Espírito Santo, S.A., num processo de execução, e de € 251.688,01 uma outra dívida ao mesmo banco, também sob execução. Desde há cerca de cinco anos que a requerida vem delapidando o seu património, vendendo todos os móveis e imóveis que o integravam, designadamente as fracções de que faz parte o prédio objecto do contrato de empreitada celebrado entre a requerente e a requerida, tendo apenas a titularidade de uma fracção autónoma correspondente a um lugar de estacionamento automóvel, de um prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos. Porém, impende sobre ela uma penhora a favor da Fazenda Nacional para pagamento de uma dívida no valor de € 41.375,31, e arresto a favor da requerente, processado por apenso à acção acima referida (n.º 1122/06.0TVPRT). A requerida, à presente data, não tem quaisquer outros imóveis, móveis ou direitos de crédito no seu activo e não dispõe de liquidez que lhe permita, sequer a médio prazo, liquidar as suas obrigações vencidas, tendo, há muito tempo, deixado de pagar a generalidade das mesmas. Conclui que ocorrem as situações a que aludem as al.s a), b), e) e g) do n.º 1 do artigo 20.° do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas[1], aprovado pelo Decreto-Lei n. 53/2004 de 18 de Março, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 200/2004 de 18 de Agosto, justificando-se a declaração da sua insolvência. Ultrapassadas algumas vicissitudes, a requerida foi citada e deduziu oposição que assim se sintetiza: - A requerente limita-se a invocar a impossibilidade de pagamento do crédito da requerente a que se refere a acção nº 1122/06.0TVPRT; - A requerida contestou aquela acção e até deduziu reconvenção, alegando factos que contrariam a versão da requerente, nega a existência do seu crédito, apenas admitindo, quanto muito, que está reduz a um valor residual, não superior a € 4.497,07; - Naquela acção ainda não foi proferida sentença, pelo que o crédito da requerente não existe ou, pelo menos, é de natureza incerta; - Com efeito, a presente acção carece de causa de pedir que acarreta também a ilegitimidade activa da requerente. Conclui pela sua absolvição do pedido de declaração de insolvência. Designada e aberta que foi a audiência de julgamento, requerente e requerida requereram ali a suspensão da instância com vista à obtenção de uma solução amigável para o litígio, o que, apesar do deferimento, não foi atingido. Sem mais, decorrido o prazo concedido, o tribunal ordenou o levantamento da suspensão da instância e proferiu sentença por entender que seria inútil a produção de prova, por ser litigioso e, como tal, incerto, ilíquido e inexigível, o alegado crédito da requerente. Como tal, considerando ainda não ser da competência daquele tribunal do comércio a apreciação e discussão do dito crédito, julgou manifestamente improcedente o pedido formulado, de declaração de insolvência. *II. Inconformada com a decisão, a requerente recorreu, formulando ali as seguintes conclusões: …………………………… …………………………… ……………………………*A apelada não respondeu ao recurso.*III. Excepção feita para as questões que sejam do conhecimento oficioso, a matéria a decidir está delimitada pelas conclusões da apelação da recorrente, acima transcritas (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil). Assim, importa apreciar e decidir: 1- Se a requerente tem legitimidade (activa) para pedir a declaração de insolvência da requerida; e 2- Se esta, na oposição ao requerimento, não aduzindo matéria susceptível de prova da sua solvência, deve ser declarada já a sua insolvência ou, de outro modo, se os autos devem prosseguir normalmente.*Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.*IV. 1- Da legitimidade activa O CIRE[2], no seu art.º 20º, nº 1, além do próprio devedor, atribui legitimidade a outras pessoas para apresentarem o pedido de declaração de insolvência, entre elas os credores, ainda que condicionais e qualquer que seja a natureza dos seus créditos. Afastando-se do antigo regime falimentar em que se visava, sobretudo, a recuperação económica do falido, o CIRE assume um regime normativo de garantia patrimonial dos credores, pela forma mais eficiente possível, como seu principal desiderato. Em termos jurídico-processuais este desígnio altera a natureza do processo do CIRE, o qual --- versus o que, pelo menos em parte, sucedia no CPEREF --- passou a ser perspectivado, essencialmente, e pelo menos quando a insolvência é impetrada por um credor --- que já não tanto quanto é impetrada pelo devedor e pelo menos até à sentença de declaração da insolvência --- como um processo de partes em que sobressai, naturalmente, o princípio do contraditório – cf. vg., os art.ºs 9° nº 2 como regra geral, 20°, nº l, no que respeita a alegação dos factos-índice pelo requerente e o art.º 30°, nºs 3 e 4, no que tange à prova da solvência pelo requerido[3]. Nos termos do preceituado no n.º 1 do art.º 23º, no requerimento de declaração de insolvência devem ser expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida. O preceito tem lugar paralelo na alínea d) do n.º 1 do artigo 467º do Código de Processo Civil, quanto aos requisitos da petição inicial do processo de declaração, que manda expor os factos que servem de fundamento à acção. Não basta uma indicação vaga e a remissão para as disposições legais abstractamente aplicáveis. Sobre a questão da legitimidade em geral, é conhecida a longa querela travada entre as divergentes posições dos Ilustres Professores Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, que a reforma processual civil de 1995 resolveu pelo acolhimento da essência da posição defendida pelo segundo daqueles Mestres, numa solução que a jurisprudência vinha já acolhendo, ao menos, maioritariamente. Passou então o art.º 26º, nº 3, do Código de Processo Civil a estipular que, “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor”. É a tese da legitimidade adjectivo-formal, cuja falta acarreta a absolvição da instância e que se afere pela posição/titularidade da parte --- o autor titular do direito e o réu adstrito a uma obrigação --- em relação ao objecto do processo, à matéria que nesse processo se trata. Diferente desta legitimidade (processual) é a legitimidade substantiva. Prende-se com o mérito do requerimento e com o fundo da causa. Com efeito, não deve confundir-se a legitimidade para pedir ou requerer com a procedência ou mérito do pedido ou requerimento correspondente (art.º 26º, nºs l e 3, do Código de Processo Civil, ex vi art.º 17º do CIRE). Como se refere no acórdão desta Relação de 26.1.2010[4], sendo o objecto inicial do processo constituído pelo pedido e pela respectiva fundamentação, mas conferindo-se a esta, em sede de objecto do processo, apenas uma função individualizadora daquele, será aquele pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte. Assim, a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação. Entendimento diverso conduz a uma lastimável confusão entre legitimidade e procedência. A questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a legitimidade ad causam para deduzir o pedido de insolvência, que apenas respeita ao preenchimento de um pressuposto processual positivo e, portanto, a uma excepção dilatória imprópria. A questão da qualidade de credor que nos é colocada para efeitos de legitimidade do requerente é, essencialmente, de natureza processual, diz respeito aos pressupostos processuais que o requerente deve reunir para ser admitido a exercer o direito de acção contra o requerido, e deve ser separada das questões relativas ao mérito da causa. Situa-se a montante destas, como condição do direito de acção, pela configuração da relação processual determinante da viabilidade do debate da relação substancial. Nestas condições, é dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não necessariamente quem seja, na realidade, credor do demandado. Assim se afere da legitimidade no processo declarativo (art.º 26º do Código de Processo Civil) e até no processo executivo singular (art.º 56º, nº 1, daquele mesmo código). Na execução, a legitimidade é conferida aos sujeitos que constam ou figuram do título como credor e como devedor, ainda que o não sejam, efectivamente. O exequente e o executado podem ser partes legítimas, apesar de não serem credor nem devedor. Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (art.ºs 828º, nº 5, 833º, nº l e 832º, nº l, al. a), do Código de Processo Civil). O processo de insolvência é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (art.ºs 1º, 47º, nºs l a 3, 128º, nºs l e 3 e 149º, nºs l e 2). Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (art.º 3º, nº l), ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente. A sentença que venha declarar a insolvência do devedor é o único título executivo susceptível de servir de base à execução universal e colectiva em que a insolvência se resolve. Proferida essa sentença, o sacrifício de todos os bens do insolvente que se segue, mais não é que a sua execução[5]. Até à sentença que declare a insolvência estamos perante um processo de partes, com dispositivo e contraditório e ainda com a necessária avaliação dos pressupostos processuais, a que não escapa a legitimidade processual das partes. Não vislumbrando motivos para nos afastarmos da regras gerais, também não vemos por que razão o credor requerente tenha que demonstrar que é, efectivamente, credor logo na petição inicial, antes da própria oposição do devedor. Tornar certo que o requerente da insolvência é credor do requerido é questão que pertence ao mérito da acção e não à relação processual. Não é juridicamente aceitável a antecipação do conhecimento de uma questão que pertence ao mérito da causa para assegurar a constituição definitiva a relação processual. E também não há motivo para tamanha exigência no processo de insolvência, onde os credores concorrem mesmo sem título executivo. Por conseguinte, parte legítima no processo de insolvência, não é credor e o devedor, mas quem alega ter sido constituída a seu favor uma obrigação e a pessoa que, segundo o requerente, se obrigou. Um e outro são partes legítimas. Se todavia, vem a apurar-se mais tarde que o primeiro era credor aparente e o segundo devedor suposto, portanto, que na realidade nunca o primeiro fora titular do direito de crédito e nunca o segundo fora o devedor, a consequência, é, não a absolvição da instância, do demandado, por ilegitimidade ad causam do primeiro, mas a absolvição do segundo do pedido. A atribuição de legitimidade para deduzir o pedido de insolvência apenas ao credor cujo crédito não tenha sido contestado, restringiria, grave e injustificadamente, o meio de tutela jurisdicional do direito de crédito --- seja do requerente da insolvência seja dos demais credores do requerido --- representado pela insolvência: é que bastaria ao devedor, ainda que de forma patentemente infundada, contestar o crédito do requerente para se concluir pela ilegitimidade do requerente e, consequentemente, para se obstar à declaração de insolvência[6]. E não seria mesmo necessário que o devedor contestasse a totalidade do crédito, sendo suficiente que impugnasse apenas parte dele, por mais ínfima que seja, ou um seu acessório --- v.g. a obrigação de juros --- para que estivesse excluída a declaração de insolvência. Então o requerente não poderia já demonstrar no processo de insolvência que é realmente credor do insolvente ou credor da totalidade da dívida e, portanto, que dispõe de legitimidade para requerer a insolvência. Ficaria o credor impedido de, no processo de insolvência, fazer a prova da existência ou simplesmente da exacta dimensão do seu crédito. Essa prova teria de ser produzida noutro processo e noutro tribunal, determinado de harmonia com as regras gerais de competência, absoluta e relativa. Todavia, este entendimento esbarra com o princípio processual da auto-suficiência, quer este seja entendido no sentido de tutela provisória da aparência, de harmonia com a qual em matéria processual, vale como realidade para o efeito de se determinar se essa aparência corresponde ou não à realidade[7], quer com o significado de que o processo de insolvência é, em regra, o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária para a decisão a tomar --- a declaração de insolvência (art.º 96º, nº l, do Código de Processo Civil). Ao contrário do que o despacho recorrido deixa transparecer, na insolvência podem ser actuados quaisquer créditos, ainda que o tribunal da insolvência não seja materialmente competente para a sua apreciação. Há uma extensão da competência material do tribunal da insolvência. Esta extensão justifica a admissibilidade do pedido da insolvência por créditos diversos, o que, aliás, ocorre em todos os processos concursais, i.e., em todos os processos em que haja lugar ao concurso de credores, dado que é admissível a reclamação de créditos públicos e também por exemplo, de créditos laborais seja na execução singular pendente seja na insolvência em curso (art.º 864º, nº l, al. a), do Código de Processo Civil e art.º 128º, nº l, do CIRE). Por outra via, não se estabelece qualquer restrição nesta matéria no que respeita aos credores reclamantes. Nada restringe quer quanto à natureza do crédito e aos seus fundamentos quer quanto à sua pacificidade, admitindo, sem qualquer limitação, a reclamação, por exemplo, de créditos públicos e de créditos laborais ainda por mais controvertidos ou contestados que estes se mostrem (art.ºs 128º, nº l, 131º, 134º, 135º, 136º, 139º e 140º, nºs l e 2). Daí que, acaso a requerente, em lugar de requer a declaração de insolvência, viesse reclamar o seu crédito em processo com insolvência já declarada, nem a natureza do seu crédito, nem o seu carácter controvertido, obstariam à admissibilidade da reclamação e à respectiva verificação. Tal discriminação do crédito do requerente redundaria numa injustificada diferenciação jurídica, sem fundamento material bastante ou razoável, segundo um critério objectivo. A este nível não teria justificação aceitável a diferença de tratamento, mais exigente, do crédito do requerente relativamente aos créditos reclamados, por via de pressupostos que não se exigem aos segundos. Ora, o processo de insolvência destina-se, entre outras hipóteses, a dirimir o litígio, quando ele é suscitado pelo requerido como forma de se defender do pedido de insolvência. Por isso se considerou no acórdão da Relação de Coimbra de 24.11.2009[8] que “é de concluir que dispõe de legitimidade activa para requerer a declaração de insolvência qualquer terceiro/credor que arrogue ser titular de crédito sobre o requerido/devedor, ainda que esse crédito seja litigioso” e que “pese embora o CIRE exija que o crédito do requerente esteja vencido, não exige que o mesmo esteja reconhecido por decisão judicial ou por reconhecimento do devedor, o que quer dizer que o crédito invocado pelo requerente até pode ser litigioso, discutindo-se a sua existência no processo de insolvência. Daí que nada obste a que um crédito litigioso, por incumprimento de um contrato-promessa, possa ser invocado pelo requerente da insolvência, discutindo-se a existência do mesmo no âmbito do processo de insolvência do devedor, como aliás acontece com os créditos reclamados pelos restantes credores, nos termos do processo de verificação de créditos”. No caso sub judice, o crédito invocado pela requerente é objecto de outra acção (Proc. nº 1112/06.0TVPRT), na qual se discute a sua existência, devido ao facto da, aí ré e aqui requerida insolvente, negar a existência de parte desse crédito. Como se referiu já, tal como os credores reclamantes em fase própria, pode o credor requerente da declaração da insolvência invocar o seu crédito sem qualquer título executivo, sujeitando-se à contestação do requerido na insolvência. Sendo a situação dos autos algo diferente devido à existência de prévia contestação do crédito (em acção declarativa comum) relativamente ao requerimento da declaração de insolvência, nem por isso estamos perante uma situação de prejudicialidade. A decisão a proferir neste processo não depende da decisão a proferir no processo n.º 1112/06.0TVPRT. A questão da inexistência parcial da dívida suscitada no processo de insolvência pode ser resolvida neste processo. A questão que se poderá colocar é a de poderem ser tomadas decisões contraditórias em ambos os processos. Pode, por exemplo, decidir-se no presente processo, para efeitos de legitimidade do requerente como credor, que a dívida existe por determinado valor e no referido processo que a dívida tem um valor diferente. Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 24.11.2009[9], “esta possibilidade de contradição acaba por não ter relevância jurídica prática para efeitos de legitimidade do credor requerente do pedido de insolvência, pois enquanto uma decisão respeita à legitimidade para pedir a insolvência, a outra respeita ao mérito da própria relação jurídica, sendo certo que a sentença que reconheça, em outro processo, o crédito ao requerente da insolvência, não implica o reconhecimento de tal crédito no confronto com os restantes credores do insolvente (esta conclusão retira-se, por exemplo, do disposto no n.º 3 do artigo 128° do CIRE onde se dispõe que a verificação dos créditos «tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento», incluindo, portanto, aqueles que já constam de sentença transitada). Feitas estas reflexões, não se encontra razão para distinguir os casos em que o devedor contesta a dívida em acção diversa da de insolvência, como é o caso dos autos, daqueles casos em que o devedor impugna a dívida alegada pelo requerente da insolvência, quando contesta o respectivo pedido.” Por outro lado ainda, no processo de insolvência, o carácter condicional da obrigação não afecta a sua exigibilidade, dado que se admite, expressamente, sem restrição, a promoção do processo relativamente a créditos condicionais, mesmo que a condição seja suspensiva (art.ºs 20º, nº l, 1° parte, e 50º, nº l). O carácter condicional da obrigação suspensiva apenas se reflecte na atendibilidade nos rateios, maxime no rateio final (art.º 181º, nºs l e 2). As obrigações sujeitas a condição suspensiva só são exigíveis depois a prova da verificação da condição (art.º 270º do Código Civil). As razões que se podem alegar para admitir o credor condicional a requerer a insolvência, valem também para o credor de crédito litigioso[10]. Se este fosse obrigado a esperar que o seu crédito fosse declarado por sentença transitada, poderia dar-se o caso de, na data do trânsito, o património do devedor já não existir. De resto, embora na contestação da acção a requerida (ali ré) chegue a negar a totalidade do crédito, a sua existência, ainda ali, por via de pedido reconvencional subsidiário, e também na oposição que faz neste processo de insolvência, acaba por admitir a possibilidade do crédito existir, embora reduzido ao valor de € 4.497,07. Não existe uma equivalência conceptual entre crédito exigível e crédito contestado ou litigioso. A obrigação exigível é a que está vencida ou que se vence com a citação do requerido e em relação à qual o credor não se encontre em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação. Portanto, o crédito pode ser exigível e, não obstante, ser litigioso, como pode ser não controvertido e, apesar disso, não ser exigível. Mesmo recusando a sua adstrição total a qualquer dever de prestação, nem por isso, se deveria concluir pela inexigibilidade do crédito da apelante e, portanto, pela sua ilegitimidade ad causam para, por ele, apresentar o pedido de insolvência. A contestação, pela requerida, do crédito da requerente da insolvência, não afecta a exigibilidade daquele crédito, nem tolhe a legitimidade ad causam da última para apresentar o pedido de insolvência. Não colhem, pois, os argumentos da corrente jurisprudencial que defende a ilegitimidade do credor requerente da insolvência que não demonstre que o seu crédito não é controvertido ou litigioso[11]. Em conclusão, seguindo a corrente jurisprudencial que acima vimos citando, é nosso entendimento que o carácter litigioso do crédito não tolhe a legitimidade do credor para requerer a declaração de insolvência. Nesta decorrência, é de reconhecer à requerente legitimidade para promover o processo de insolvência. *2- Da não alegação pela R. de matéria susceptível de prova da sua solvência Requerente e requerida são pessoas colectivas, sociedades comerciais. É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (art.º 3º, nº 1). As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis (nº 2 do referido art.º 3º). O que caracteriza, essencialmente, o estado de insolvência é a impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos. O estado de insolvência traduz-se, portanto, numa impotência económica --- a impotência para fazer face às obrigações assumidas. Não é necessário que a impossibilidade do cumprimento diga respeito a todas as obrigações; basta, para que o devedor se considere em estado de insolvência, que a impossibilidade de pagamento se refira às obrigações que, pelo seu significado no conjunto do património do devedor, ou pelas circunstâncias específicas envolventes do não cumprimento, tornem patente, a impotência económica daquele para assegurar a satisfação da generalidade das suas obrigações ou quando, tratando-se de pessoas colectivas ou de patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliado por recurso às normas contabilísticas aplicáveis. Nestes casos, de pessoas colectivas e patrimónios autónomos, a impossibilidade de solver as suas obrigações liga-se normalmente à insuficiência do activo. Por isso é que se consideram em estado de insolvência quando o activo for inferior ao passivo e não exista pessoa singular que responda, pessoal e ilimitadamente por ele. A dita impotência constitui, evidentemente, uma realidade diversa da simples superioridade do passivo relativamente ao activo. Apesar disso, a insuficiência do activo e a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, são critérios diferentes e autónomos de caracterização de uma mesma situação: o estado de insolvência do devedor. O CIRE, sob o nº 1 do art.º 20º, prevê os chamados factos-índice ou factos presuntivos da insolvência que são, entre outros, a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas; falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo valor ou pelas circunstâncias do incumprimento, revelem a impossibilidade de satisfação pontual da generalidade das duas obrigações; a insuficiência dos bens penhoráveis para pagamento do crédito verificada em processo executivo movido contra o devedor; incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas tributárias ou de contribuições para a segurança social, de dívidas emergentes do contrato de trabalho ou sua cessação e violação e, tratando-se de pessoa colectiva ou de património autónomo, manifesta superioridade do passivo sobre o activo, documentada no último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, desde que legalmente exigível (art.º 20º nº l, a), b) e), g), i), ii) e iii), e h)). Operando como simples presunções juris tantum, os factos-índice podem ser elididos por prova em contrário, cabendo ao devedor o respectivo onus probandi. Querendo elidir a presunção, o requerido deve alegar na oposição (art.º 30º, nº 3 e 4, do CIRE) que facto-índice invocado como fundamento da declaração da insolvência não existia, ou não existia com os caracteres exigidos na lei, mas também, em qualquer caso, que não existe o estado de insolvência (art.º 30º, nº 3, do CIRE e art.º 342º, nº 2, do Código Civil). A verificação do facto-índice não determina necessariamente a declaração da insolvência, podendo ser elidida pela prova de que o devedor não caiu nessa situação. Portanto, apesar da sua verificação, não se segue que não pode ser afastada a declaração de insolvência. Não percamos de vista que a lei pretende e permite que a peticionária situação de insolvência seja devidamente investigada e escalpelizada, independentemente dos factos alegados pelo requerente, para o que o juiz tem um verdadeiro poder inquisitório. A decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes (art.º 11°). Esta atribuição não tinha paralelo directo no direito anterior (CPEREF). O poder de fundar a decisão em factos não alegados contém implícita a faculdade de o juiz, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem como recolher as provas e informações que entender convenientes. Como parece defenderem Carvalho Fernandes e João Labareda[12], quando haja oposição, o juiz não está, por regra, dispensado de proceder à produção da prova que tenha sido apresentada, naturalmente, nos limites da lei (cf. art.ºs 35.°, n.ºs 4 e 5, 41.°, n.ºs 3 e 4, e 132.° e seg.s, estes últimos por remissão do art.°188.°, n.º 7). Desta feita, nos casos em que a lei prevê efeitos cominatórios imperativos o princípio do inquisitório vê restringida a sua aplicação. O inquisitório opera quando o juiz seja chamado a decidir questão controvertida entre as partes e cumpra os prazos que lhe são impostos. No requerimento para declaração de insolvência, a requerente invoca situações enquadráveis nos factos-índice a que se referem as al.s a), b), e) e g) do nº 1 do art.º 20º, ainda que nalguma dessas situações o teor factual do requerimento merecesse aperfeiçoamento. A requerida deduziu oposição nos termos do art.º 30º, onde, além do mais, se refere que a requerente não terá ponderado devidamente os fundamentos alegados no requerimento e omitiu factos relevantes, pondo em causa o valor do seu crédito que considera não ser superior a € 4.497,07, podendo mesmo ser inexistente; um crédito litigioso, como vimos atrás, alegado pela requerente, mas que poderá existir efectivamente, estando dependente de prova a produzir. Por outro lado, a requerida impugna ainda a matéria do artigo 14º da petição inicial, negando que vem delapidando o seu património, vendendo os móveis e os imóveis que o integravam, designadamente as fracções parte do prédio objecto do contrato de empreitada celebrado entre a requerente e a requerida. Pese embora a requerida não se oponha ao pedido de declaração de insolvência, nem alegue factos pelos quais, uma vez provados, se possa concluir pela sua solvência, o pedido formulado apoia-se, além do mais, na existência de um crédito a favor da requerente, sem o qual lhe falta legitimidade substantiva e o pedido de declaração de insolvência não pode deixar de ser improcedente, com a absolvição da requerida do pedido da acção. A prova da efectiva existência do crédito --- que a requerida nega em primeira linha --- compete à requerente, que o invoca como um direito próprio contra o património da requerida, não podendo o tribunal cercear a possibilidade da mesma parte a produzir neste processo, onde, como vimos, é parte legítima activa (legitimidade processual), sem prejuízo do tribunal usar do poder inquisitório com vista ao apuramento da verdade e boa decisão da causa. Destarte, deve ser revogada a decisão recorrida, com normal prossecução do processo. SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil): I- A contestação, pelo requerido, do crédito do requerente da insolvência, ainda que também o conteste previamente ao início do processo de insolvência, em acção declarativa comum, não afecta a respectiva exigibilidade, nem obsta à legitimidade ad causam do último para apresentar o pedido de declaração de insolvência. II- Formulado este pedido e contestada a existência do crédito, o processo de insolvência tem que prosseguir, designadamente para que o requerente possa fazer prova da existência daquele seu direito.*IV. Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o normal prosseguimento dos autos.*Custas pela apelada.* Porto, 3 de Novembro de 2010 Filipe Manuel Nunes Caroço Teresa Santos Maria Amália Pereira dos Santos Rocha ___________________ [1] Adiante designado por CIRE. [2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem pertencem. [3] Neste sentido, acórdão desta Relação de 17.7.2009, www.dgsi.pt. [4] In www.dgsi.pt. [5] Cf. citado acórdão desta Relação do Porto de 26.1.2010. [6] Cf. citado acórdão desta Relação de 26.1.2010. [7] Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lex, Lisboa, 2000, pág. 51, citado no dito acórdão de 26.1.2010. [8] In www.dgsi.pt, citando um acórdão da Relação de Évora de 10.5.2007, publicado na mesma base de dados e outro aresto da Relação de Coimbra de 26 de Maio de 2009. [9] In www.dgsi.pt e citado nas alegações da recorrente. [10] Cf. acórdão da Relação de Coimbra de 26.5.2009, in www.dgsi.pt. [11] Cf., entre outros, os acórdãos desta Relação de 17.7.2009 e de 3.12.2009, in www.dgsi.pt. [12] CIRE Anotado, Quid Juris, 2009, pág. 104.
Proc. nº 49/09.8TYVNG.P1 – 3ª Secção (apelação) Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia Relator: Filipe Caroço Adj. Desemb. Teresa Santos Adj. Desemb. Maria Amália Santos Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. B………., S.A.”, com sede na ………, n.º …., .°, salas .. e .., apartado …, ….-…, Bragança, requereu a declaração de insolvência da requerida C………., L.da, com sede na Rua ………., n.º …, ….-…, cidade do Porto, alegando essencialmente o seguinte: É credora da requerida pelo valor de um saldo de conta-corrente associada a um contrato de empreitada, por valor que ascende a € 290.383,90 e ao qual acrescem os respectivos juros de mora, vencidos desde 17 de Abril de 2006, que em 9.1.2009 atingem a quantia de € 85.294,03. Os fundamentos deste crédito constam melhor da petição inicial da acção declarativa de condenação que, sob a forma de processo ordinário e sob o n.º 1122/06.0TVPRT, corre termos pela l.ª Secção da l.ª Vara Cível do Porto. A requerente é ainda credora da requerida pelo valor de € 1.062.942,80 relativo a uma multa contratual aplicada, sendo os respectivos juros, vencidos desde o dia 27.4.2006, de € 305.212,81 à data de 9.1.2009. Assim e sem prejuízo dos juros vincendos, a requerida deve à requerente, em 9.1.2009, a quantia de € 1.743.833,54. Alega ainda que a requerida está manifestamente impossibilitada de fazer face às suas obrigações, sendo reiterado o seu incumprimento. O passivo total eleva-se a milhões de euros, sendo da ordem das dezenas de milhar de euros a dívida à Fazenda Nacional, de € 421.272,30 a dívida ao Banco Espírito Santo, S.A., num processo de execução, e de € 251.688,01 uma outra dívida ao mesmo banco, também sob execução. Desde há cerca de cinco anos que a requerida vem delapidando o seu património, vendendo todos os móveis e imóveis que o integravam, designadamente as fracções de que faz parte o prédio objecto do contrato de empreitada celebrado entre a requerente e a requerida, tendo apenas a titularidade de uma fracção autónoma correspondente a um lugar de estacionamento automóvel, de um prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos. Porém, impende sobre ela uma penhora a favor da Fazenda Nacional para pagamento de uma dívida no valor de € 41.375,31, e arresto a favor da requerente, processado por apenso à acção acima referida (n.º 1122/06.0TVPRT). A requerida, à presente data, não tem quaisquer outros imóveis, móveis ou direitos de crédito no seu activo e não dispõe de liquidez que lhe permita, sequer a médio prazo, liquidar as suas obrigações vencidas, tendo, há muito tempo, deixado de pagar a generalidade das mesmas. Conclui que ocorrem as situações a que aludem as al.s a), b), e) e g) do n.º 1 do artigo 20.° do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas[1], aprovado pelo Decreto-Lei n. 53/2004 de 18 de Março, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 200/2004 de 18 de Agosto, justificando-se a declaração da sua insolvência. Ultrapassadas algumas vicissitudes, a requerida foi citada e deduziu oposição que assim se sintetiza: - A requerente limita-se a invocar a impossibilidade de pagamento do crédito da requerente a que se refere a acção nº 1122/06.0TVPRT; - A requerida contestou aquela acção e até deduziu reconvenção, alegando factos que contrariam a versão da requerente, nega a existência do seu crédito, apenas admitindo, quanto muito, que está reduz a um valor residual, não superior a € 4.497,07; - Naquela acção ainda não foi proferida sentença, pelo que o crédito da requerente não existe ou, pelo menos, é de natureza incerta; - Com efeito, a presente acção carece de causa de pedir que acarreta também a ilegitimidade activa da requerente. Conclui pela sua absolvição do pedido de declaração de insolvência. Designada e aberta que foi a audiência de julgamento, requerente e requerida requereram ali a suspensão da instância com vista à obtenção de uma solução amigável para o litígio, o que, apesar do deferimento, não foi atingido. Sem mais, decorrido o prazo concedido, o tribunal ordenou o levantamento da suspensão da instância e proferiu sentença por entender que seria inútil a produção de prova, por ser litigioso e, como tal, incerto, ilíquido e inexigível, o alegado crédito da requerente. Como tal, considerando ainda não ser da competência daquele tribunal do comércio a apreciação e discussão do dito crédito, julgou manifestamente improcedente o pedido formulado, de declaração de insolvência. *II. Inconformada com a decisão, a requerente recorreu, formulando ali as seguintes conclusões: …………………………… …………………………… ……………………………*A apelada não respondeu ao recurso.*III. Excepção feita para as questões que sejam do conhecimento oficioso, a matéria a decidir está delimitada pelas conclusões da apelação da recorrente, acima transcritas (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil). Assim, importa apreciar e decidir: 1- Se a requerente tem legitimidade (activa) para pedir a declaração de insolvência da requerida; e 2- Se esta, na oposição ao requerimento, não aduzindo matéria susceptível de prova da sua solvência, deve ser declarada já a sua insolvência ou, de outro modo, se os autos devem prosseguir normalmente.*Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.*IV. 1- Da legitimidade activa O CIRE[2], no seu art.º 20º, nº 1, além do próprio devedor, atribui legitimidade a outras pessoas para apresentarem o pedido de declaração de insolvência, entre elas os credores, ainda que condicionais e qualquer que seja a natureza dos seus créditos. Afastando-se do antigo regime falimentar em que se visava, sobretudo, a recuperação económica do falido, o CIRE assume um regime normativo de garantia patrimonial dos credores, pela forma mais eficiente possível, como seu principal desiderato. Em termos jurídico-processuais este desígnio altera a natureza do processo do CIRE, o qual --- versus o que, pelo menos em parte, sucedia no CPEREF --- passou a ser perspectivado, essencialmente, e pelo menos quando a insolvência é impetrada por um credor --- que já não tanto quanto é impetrada pelo devedor e pelo menos até à sentença de declaração da insolvência --- como um processo de partes em que sobressai, naturalmente, o princípio do contraditório – cf. vg., os art.ºs 9° nº 2 como regra geral, 20°, nº l, no que respeita a alegação dos factos-índice pelo requerente e o art.º 30°, nºs 3 e 4, no que tange à prova da solvência pelo requerido[3]. Nos termos do preceituado no n.º 1 do art.º 23º, no requerimento de declaração de insolvência devem ser expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida. O preceito tem lugar paralelo na alínea d) do n.º 1 do artigo 467º do Código de Processo Civil, quanto aos requisitos da petição inicial do processo de declaração, que manda expor os factos que servem de fundamento à acção. Não basta uma indicação vaga e a remissão para as disposições legais abstractamente aplicáveis. Sobre a questão da legitimidade em geral, é conhecida a longa querela travada entre as divergentes posições dos Ilustres Professores Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, que a reforma processual civil de 1995 resolveu pelo acolhimento da essência da posição defendida pelo segundo daqueles Mestres, numa solução que a jurisprudência vinha já acolhendo, ao menos, maioritariamente. Passou então o art.º 26º, nº 3, do Código de Processo Civil a estipular que, “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor”. É a tese da legitimidade adjectivo-formal, cuja falta acarreta a absolvição da instância e que se afere pela posição/titularidade da parte --- o autor titular do direito e o réu adstrito a uma obrigação --- em relação ao objecto do processo, à matéria que nesse processo se trata. Diferente desta legitimidade (processual) é a legitimidade substantiva. Prende-se com o mérito do requerimento e com o fundo da causa. Com efeito, não deve confundir-se a legitimidade para pedir ou requerer com a procedência ou mérito do pedido ou requerimento correspondente (art.º 26º, nºs l e 3, do Código de Processo Civil, ex vi art.º 17º do CIRE). Como se refere no acórdão desta Relação de 26.1.2010[4], sendo o objecto inicial do processo constituído pelo pedido e pela respectiva fundamentação, mas conferindo-se a esta, em sede de objecto do processo, apenas uma função individualizadora daquele, será aquele pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte. Assim, a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação. Entendimento diverso conduz a uma lastimável confusão entre legitimidade e procedência. A questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a legitimidade ad causam para deduzir o pedido de insolvência, que apenas respeita ao preenchimento de um pressuposto processual positivo e, portanto, a uma excepção dilatória imprópria. A questão da qualidade de credor que nos é colocada para efeitos de legitimidade do requerente é, essencialmente, de natureza processual, diz respeito aos pressupostos processuais que o requerente deve reunir para ser admitido a exercer o direito de acção contra o requerido, e deve ser separada das questões relativas ao mérito da causa. Situa-se a montante destas, como condição do direito de acção, pela configuração da relação processual determinante da viabilidade do debate da relação substancial. Nestas condições, é dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não necessariamente quem seja, na realidade, credor do demandado. Assim se afere da legitimidade no processo declarativo (art.º 26º do Código de Processo Civil) e até no processo executivo singular (art.º 56º, nº 1, daquele mesmo código). Na execução, a legitimidade é conferida aos sujeitos que constam ou figuram do título como credor e como devedor, ainda que o não sejam, efectivamente. O exequente e o executado podem ser partes legítimas, apesar de não serem credor nem devedor. Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (art.ºs 828º, nº 5, 833º, nº l e 832º, nº l, al. a), do Código de Processo Civil). O processo de insolvência é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (art.ºs 1º, 47º, nºs l a 3, 128º, nºs l e 3 e 149º, nºs l e 2). Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (art.º 3º, nº l), ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente. A sentença que venha declarar a insolvência do devedor é o único título executivo susceptível de servir de base à execução universal e colectiva em que a insolvência se resolve. Proferida essa sentença, o sacrifício de todos os bens do insolvente que se segue, mais não é que a sua execução[5]. Até à sentença que declare a insolvência estamos perante um processo de partes, com dispositivo e contraditório e ainda com a necessária avaliação dos pressupostos processuais, a que não escapa a legitimidade processual das partes. Não vislumbrando motivos para nos afastarmos da regras gerais, também não vemos por que razão o credor requerente tenha que demonstrar que é, efectivamente, credor logo na petição inicial, antes da própria oposição do devedor. Tornar certo que o requerente da insolvência é credor do requerido é questão que pertence ao mérito da acção e não à relação processual. Não é juridicamente aceitável a antecipação do conhecimento de uma questão que pertence ao mérito da causa para assegurar a constituição definitiva a relação processual. E também não há motivo para tamanha exigência no processo de insolvência, onde os credores concorrem mesmo sem título executivo. Por conseguinte, parte legítima no processo de insolvência, não é credor e o devedor, mas quem alega ter sido constituída a seu favor uma obrigação e a pessoa que, segundo o requerente, se obrigou. Um e outro são partes legítimas. Se todavia, vem a apurar-se mais tarde que o primeiro era credor aparente e o segundo devedor suposto, portanto, que na realidade nunca o primeiro fora titular do direito de crédito e nunca o segundo fora o devedor, a consequência, é, não a absolvição da instância, do demandado, por ilegitimidade ad causam do primeiro, mas a absolvição do segundo do pedido. A atribuição de legitimidade para deduzir o pedido de insolvência apenas ao credor cujo crédito não tenha sido contestado, restringiria, grave e injustificadamente, o meio de tutela jurisdicional do direito de crédito --- seja do requerente da insolvência seja dos demais credores do requerido --- representado pela insolvência: é que bastaria ao devedor, ainda que de forma patentemente infundada, contestar o crédito do requerente para se concluir pela ilegitimidade do requerente e, consequentemente, para se obstar à declaração de insolvência[6]. E não seria mesmo necessário que o devedor contestasse a totalidade do crédito, sendo suficiente que impugnasse apenas parte dele, por mais ínfima que seja, ou um seu acessório --- v.g. a obrigação de juros --- para que estivesse excluída a declaração de insolvência. Então o requerente não poderia já demonstrar no processo de insolvência que é realmente credor do insolvente ou credor da totalidade da dívida e, portanto, que dispõe de legitimidade para requerer a insolvência. Ficaria o credor impedido de, no processo de insolvência, fazer a prova da existência ou simplesmente da exacta dimensão do seu crédito. Essa prova teria de ser produzida noutro processo e noutro tribunal, determinado de harmonia com as regras gerais de competência, absoluta e relativa. Todavia, este entendimento esbarra com o princípio processual da auto-suficiência, quer este seja entendido no sentido de tutela provisória da aparência, de harmonia com a qual em matéria processual, vale como realidade para o efeito de se determinar se essa aparência corresponde ou não à realidade[7], quer com o significado de que o processo de insolvência é, em regra, o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária para a decisão a tomar --- a declaração de insolvência (art.º 96º, nº l, do Código de Processo Civil). Ao contrário do que o despacho recorrido deixa transparecer, na insolvência podem ser actuados quaisquer créditos, ainda que o tribunal da insolvência não seja materialmente competente para a sua apreciação. Há uma extensão da competência material do tribunal da insolvência. Esta extensão justifica a admissibilidade do pedido da insolvência por créditos diversos, o que, aliás, ocorre em todos os processos concursais, i.e., em todos os processos em que haja lugar ao concurso de credores, dado que é admissível a reclamação de créditos públicos e também por exemplo, de créditos laborais seja na execução singular pendente seja na insolvência em curso (art.º 864º, nº l, al. a), do Código de Processo Civil e art.º 128º, nº l, do CIRE). Por outra via, não se estabelece qualquer restrição nesta matéria no que respeita aos credores reclamantes. Nada restringe quer quanto à natureza do crédito e aos seus fundamentos quer quanto à sua pacificidade, admitindo, sem qualquer limitação, a reclamação, por exemplo, de créditos públicos e de créditos laborais ainda por mais controvertidos ou contestados que estes se mostrem (art.ºs 128º, nº l, 131º, 134º, 135º, 136º, 139º e 140º, nºs l e 2). Daí que, acaso a requerente, em lugar de requer a declaração de insolvência, viesse reclamar o seu crédito em processo com insolvência já declarada, nem a natureza do seu crédito, nem o seu carácter controvertido, obstariam à admissibilidade da reclamação e à respectiva verificação. Tal discriminação do crédito do requerente redundaria numa injustificada diferenciação jurídica, sem fundamento material bastante ou razoável, segundo um critério objectivo. A este nível não teria justificação aceitável a diferença de tratamento, mais exigente, do crédito do requerente relativamente aos créditos reclamados, por via de pressupostos que não se exigem aos segundos. Ora, o processo de insolvência destina-se, entre outras hipóteses, a dirimir o litígio, quando ele é suscitado pelo requerido como forma de se defender do pedido de insolvência. Por isso se considerou no acórdão da Relação de Coimbra de 24.11.2009[8] que “é de concluir que dispõe de legitimidade activa para requerer a declaração de insolvência qualquer terceiro/credor que arrogue ser titular de crédito sobre o requerido/devedor, ainda que esse crédito seja litigioso” e que “pese embora o CIRE exija que o crédito do requerente esteja vencido, não exige que o mesmo esteja reconhecido por decisão judicial ou por reconhecimento do devedor, o que quer dizer que o crédito invocado pelo requerente até pode ser litigioso, discutindo-se a sua existência no processo de insolvência. Daí que nada obste a que um crédito litigioso, por incumprimento de um contrato-promessa, possa ser invocado pelo requerente da insolvência, discutindo-se a existência do mesmo no âmbito do processo de insolvência do devedor, como aliás acontece com os créditos reclamados pelos restantes credores, nos termos do processo de verificação de créditos”. No caso sub judice, o crédito invocado pela requerente é objecto de outra acção (Proc. nº 1112/06.0TVPRT), na qual se discute a sua existência, devido ao facto da, aí ré e aqui requerida insolvente, negar a existência de parte desse crédito. Como se referiu já, tal como os credores reclamantes em fase própria, pode o credor requerente da declaração da insolvência invocar o seu crédito sem qualquer título executivo, sujeitando-se à contestação do requerido na insolvência. Sendo a situação dos autos algo diferente devido à existência de prévia contestação do crédito (em acção declarativa comum) relativamente ao requerimento da declaração de insolvência, nem por isso estamos perante uma situação de prejudicialidade. A decisão a proferir neste processo não depende da decisão a proferir no processo n.º 1112/06.0TVPRT. A questão da inexistência parcial da dívida suscitada no processo de insolvência pode ser resolvida neste processo. A questão que se poderá colocar é a de poderem ser tomadas decisões contraditórias em ambos os processos. Pode, por exemplo, decidir-se no presente processo, para efeitos de legitimidade do requerente como credor, que a dívida existe por determinado valor e no referido processo que a dívida tem um valor diferente. Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 24.11.2009[9], “esta possibilidade de contradição acaba por não ter relevância jurídica prática para efeitos de legitimidade do credor requerente do pedido de insolvência, pois enquanto uma decisão respeita à legitimidade para pedir a insolvência, a outra respeita ao mérito da própria relação jurídica, sendo certo que a sentença que reconheça, em outro processo, o crédito ao requerente da insolvência, não implica o reconhecimento de tal crédito no confronto com os restantes credores do insolvente (esta conclusão retira-se, por exemplo, do disposto no n.º 3 do artigo 128° do CIRE onde se dispõe que a verificação dos créditos «tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento», incluindo, portanto, aqueles que já constam de sentença transitada). Feitas estas reflexões, não se encontra razão para distinguir os casos em que o devedor contesta a dívida em acção diversa da de insolvência, como é o caso dos autos, daqueles casos em que o devedor impugna a dívida alegada pelo requerente da insolvência, quando contesta o respectivo pedido.” Por outro lado ainda, no processo de insolvência, o carácter condicional da obrigação não afecta a sua exigibilidade, dado que se admite, expressamente, sem restrição, a promoção do processo relativamente a créditos condicionais, mesmo que a condição seja suspensiva (art.ºs 20º, nº l, 1° parte, e 50º, nº l). O carácter condicional da obrigação suspensiva apenas se reflecte na atendibilidade nos rateios, maxime no rateio final (art.º 181º, nºs l e 2). As obrigações sujeitas a condição suspensiva só são exigíveis depois a prova da verificação da condição (art.º 270º do Código Civil). As razões que se podem alegar para admitir o credor condicional a requerer a insolvência, valem também para o credor de crédito litigioso[10]. Se este fosse obrigado a esperar que o seu crédito fosse declarado por sentença transitada, poderia dar-se o caso de, na data do trânsito, o património do devedor já não existir. De resto, embora na contestação da acção a requerida (ali ré) chegue a negar a totalidade do crédito, a sua existência, ainda ali, por via de pedido reconvencional subsidiário, e também na oposição que faz neste processo de insolvência, acaba por admitir a possibilidade do crédito existir, embora reduzido ao valor de € 4.497,07. Não existe uma equivalência conceptual entre crédito exigível e crédito contestado ou litigioso. A obrigação exigível é a que está vencida ou que se vence com a citação do requerido e em relação à qual o credor não se encontre em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação. Portanto, o crédito pode ser exigível e, não obstante, ser litigioso, como pode ser não controvertido e, apesar disso, não ser exigível. Mesmo recusando a sua adstrição total a qualquer dever de prestação, nem por isso, se deveria concluir pela inexigibilidade do crédito da apelante e, portanto, pela sua ilegitimidade ad causam para, por ele, apresentar o pedido de insolvência. A contestação, pela requerida, do crédito da requerente da insolvência, não afecta a exigibilidade daquele crédito, nem tolhe a legitimidade ad causam da última para apresentar o pedido de insolvência. Não colhem, pois, os argumentos da corrente jurisprudencial que defende a ilegitimidade do credor requerente da insolvência que não demonstre que o seu crédito não é controvertido ou litigioso[11]. Em conclusão, seguindo a corrente jurisprudencial que acima vimos citando, é nosso entendimento que o carácter litigioso do crédito não tolhe a legitimidade do credor para requerer a declaração de insolvência. Nesta decorrência, é de reconhecer à requerente legitimidade para promover o processo de insolvência. *2- Da não alegação pela R. de matéria susceptível de prova da sua solvência Requerente e requerida são pessoas colectivas, sociedades comerciais. É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (art.º 3º, nº 1). As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis (nº 2 do referido art.º 3º). O que caracteriza, essencialmente, o estado de insolvência é a impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos. O estado de insolvência traduz-se, portanto, numa impotência económica --- a impotência para fazer face às obrigações assumidas. Não é necessário que a impossibilidade do cumprimento diga respeito a todas as obrigações; basta, para que o devedor se considere em estado de insolvência, que a impossibilidade de pagamento se refira às obrigações que, pelo seu significado no conjunto do património do devedor, ou pelas circunstâncias específicas envolventes do não cumprimento, tornem patente, a impotência económica daquele para assegurar a satisfação da generalidade das suas obrigações ou quando, tratando-se de pessoas colectivas ou de patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliado por recurso às normas contabilísticas aplicáveis. Nestes casos, de pessoas colectivas e patrimónios autónomos, a impossibilidade de solver as suas obrigações liga-se normalmente à insuficiência do activo. Por isso é que se consideram em estado de insolvência quando o activo for inferior ao passivo e não exista pessoa singular que responda, pessoal e ilimitadamente por ele. A dita impotência constitui, evidentemente, uma realidade diversa da simples superioridade do passivo relativamente ao activo. Apesar disso, a insuficiência do activo e a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, são critérios diferentes e autónomos de caracterização de uma mesma situação: o estado de insolvência do devedor. O CIRE, sob o nº 1 do art.º 20º, prevê os chamados factos-índice ou factos presuntivos da insolvência que são, entre outros, a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas; falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo valor ou pelas circunstâncias do incumprimento, revelem a impossibilidade de satisfação pontual da generalidade das duas obrigações; a insuficiência dos bens penhoráveis para pagamento do crédito verificada em processo executivo movido contra o devedor; incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas tributárias ou de contribuições para a segurança social, de dívidas emergentes do contrato de trabalho ou sua cessação e violação e, tratando-se de pessoa colectiva ou de património autónomo, manifesta superioridade do passivo sobre o activo, documentada no último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, desde que legalmente exigível (art.º 20º nº l, a), b) e), g), i), ii) e iii), e h)). Operando como simples presunções juris tantum, os factos-índice podem ser elididos por prova em contrário, cabendo ao devedor o respectivo onus probandi. Querendo elidir a presunção, o requerido deve alegar na oposição (art.º 30º, nº 3 e 4, do CIRE) que facto-índice invocado como fundamento da declaração da insolvência não existia, ou não existia com os caracteres exigidos na lei, mas também, em qualquer caso, que não existe o estado de insolvência (art.º 30º, nº 3, do CIRE e art.º 342º, nº 2, do Código Civil). A verificação do facto-índice não determina necessariamente a declaração da insolvência, podendo ser elidida pela prova de que o devedor não caiu nessa situação. Portanto, apesar da sua verificação, não se segue que não pode ser afastada a declaração de insolvência. Não percamos de vista que a lei pretende e permite que a peticionária situação de insolvência seja devidamente investigada e escalpelizada, independentemente dos factos alegados pelo requerente, para o que o juiz tem um verdadeiro poder inquisitório. A decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes (art.º 11°). Esta atribuição não tinha paralelo directo no direito anterior (CPEREF). O poder de fundar a decisão em factos não alegados contém implícita a faculdade de o juiz, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem como recolher as provas e informações que entender convenientes. Como parece defenderem Carvalho Fernandes e João Labareda[12], quando haja oposição, o juiz não está, por regra, dispensado de proceder à produção da prova que tenha sido apresentada, naturalmente, nos limites da lei (cf. art.ºs 35.°, n.ºs 4 e 5, 41.°, n.ºs 3 e 4, e 132.° e seg.s, estes últimos por remissão do art.°188.°, n.º 7). Desta feita, nos casos em que a lei prevê efeitos cominatórios imperativos o princípio do inquisitório vê restringida a sua aplicação. O inquisitório opera quando o juiz seja chamado a decidir questão controvertida entre as partes e cumpra os prazos que lhe são impostos. No requerimento para declaração de insolvência, a requerente invoca situações enquadráveis nos factos-índice a que se referem as al.s a), b), e) e g) do nº 1 do art.º 20º, ainda que nalguma dessas situações o teor factual do requerimento merecesse aperfeiçoamento. A requerida deduziu oposição nos termos do art.º 30º, onde, além do mais, se refere que a requerente não terá ponderado devidamente os fundamentos alegados no requerimento e omitiu factos relevantes, pondo em causa o valor do seu crédito que considera não ser superior a € 4.497,07, podendo mesmo ser inexistente; um crédito litigioso, como vimos atrás, alegado pela requerente, mas que poderá existir efectivamente, estando dependente de prova a produzir. Por outro lado, a requerida impugna ainda a matéria do artigo 14º da petição inicial, negando que vem delapidando o seu património, vendendo os móveis e os imóveis que o integravam, designadamente as fracções parte do prédio objecto do contrato de empreitada celebrado entre a requerente e a requerida. Pese embora a requerida não se oponha ao pedido de declaração de insolvência, nem alegue factos pelos quais, uma vez provados, se possa concluir pela sua solvência, o pedido formulado apoia-se, além do mais, na existência de um crédito a favor da requerente, sem o qual lhe falta legitimidade substantiva e o pedido de declaração de insolvência não pode deixar de ser improcedente, com a absolvição da requerida do pedido da acção. A prova da efectiva existência do crédito --- que a requerida nega em primeira linha --- compete à requerente, que o invoca como um direito próprio contra o património da requerida, não podendo o tribunal cercear a possibilidade da mesma parte a produzir neste processo, onde, como vimos, é parte legítima activa (legitimidade processual), sem prejuízo do tribunal usar do poder inquisitório com vista ao apuramento da verdade e boa decisão da causa. Destarte, deve ser revogada a decisão recorrida, com normal prossecução do processo. SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil): I- A contestação, pelo requerido, do crédito do requerente da insolvência, ainda que também o conteste previamente ao início do processo de insolvência, em acção declarativa comum, não afecta a respectiva exigibilidade, nem obsta à legitimidade ad causam do último para apresentar o pedido de declaração de insolvência. II- Formulado este pedido e contestada a existência do crédito, o processo de insolvência tem que prosseguir, designadamente para que o requerente possa fazer prova da existência daquele seu direito.*IV. Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o normal prosseguimento dos autos.*Custas pela apelada.* Porto, 3 de Novembro de 2010 Filipe Manuel Nunes Caroço Teresa Santos Maria Amália Pereira dos Santos Rocha ___________________ [1] Adiante designado por CIRE. [2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem pertencem. [3] Neste sentido, acórdão desta Relação de 17.7.2009, www.dgsi.pt. [4] In www.dgsi.pt. [5] Cf. citado acórdão desta Relação do Porto de 26.1.2010. [6] Cf. citado acórdão desta Relação de 26.1.2010. [7] Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lex, Lisboa, 2000, pág. 51, citado no dito acórdão de 26.1.2010. [8] In www.dgsi.pt, citando um acórdão da Relação de Évora de 10.5.2007, publicado na mesma base de dados e outro aresto da Relação de Coimbra de 26 de Maio de 2009. [9] In www.dgsi.pt e citado nas alegações da recorrente. [10] Cf. acórdão da Relação de Coimbra de 26.5.2009, in www.dgsi.pt. [11] Cf., entre outros, os acórdãos desta Relação de 17.7.2009 e de 3.12.2009, in www.dgsi.pt. [12] CIRE Anotado, Quid Juris, 2009, pág. 104.