I - Nos termos do art. 2° n.º l m), da Lei n.º 5/2006, de 23/2, entende-se por “arma branca” todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões. II - Nos termos do art. 86° n.º l d), da referida Lei, estando em causa arma branca, apenas incorre no crime de detenção de arma proibida quem detiver, sem autorização ou fora das condições legais, “arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como instrumentos de agressão e o seu portador não justifique a sua posse". III - Não cabendo a arma dos autos nas categorias expressamente elencadas, mas tão-só “nas outras armas brancas”, a punição depende da alegação e prova que se trata de arma que: a) Não tenha aplicação definida; b) Possa ser usada como arma de agressão; c) O seu portador não justifique a posse
Processo n.º 1752/11.8TAVFR.P1 4ª Secção Relatora: Maria Deolinda Dionísio Adjunto: Moreira Ramos Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto I – RELATÓRIO Por sentença proferida no processo especial sumário n.º 1752/11.8TAVFR, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, foi o arguido B…, com os demais sinais dos autos, condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art. 86º n.º 1 d), por referência aos arts. 3º n.º 2 f) e 4º n.º 1, todos da Lei n.º 5/2006, de 23/2, na pena de 210 (duzentos e dez) dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros). Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso terminando a sua douta motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem: A. No que se refere à subsunção da conduta que se imputa ao Recorrente em sede de factualidade tida como provada, entende modestamente aquele que, ao contrário do decidido na douta Sentença sob recurso, não se poderia haver concluído por preenchidos os elementos constitutivos do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º l, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, pelo qual foi condenado. B. Na verdade, não se têm por verificados os elementos constitutivos do tipo, pois que, ao contrário do exigido por lei (Cfr. o aludido art. 86º, n.º l, al. d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro), não se verifica no caso presente que o ora Recorrente não haja justificado a posse da faca/arma apreendida nos autos, bastando, para tal, atentar nos factos que foram tido como provados pelo Digníssimo Tribunal "a quo" e, bem assim, no facto tido como não provado. C. O propalado preceito legal [art. 86º, n.º l, al. d)] exige, cumulativamente, para uma qualquer condenação, que o agente, sem se encontrar autorizado, detenha uma arma das ali melhor enunciadas, conforme, aliás, se verificava nos presentes autos, com o ora Recorrente, a qual não possua aplicação definida e possa ser utilizada como arma de agressão e que "o seu portador não justifique a sua posse". D. Ora, atendendo à factualidade tida como provada e não provada, no caso presente em momento algum se poderá concluir que o aqui Recorrente não justificou, ou não o conseguirá fazer, a posse daquela aludida arma (faca), tendo o Digníssimo Tribunal "a quo", ao concluir pela verificação de tal crime, extrapolado claramente para além da prova produzida. E. Pelo que, mesma que seja forçoso concluir-se, atenta a prova produzida, que o aqui Recorrente tinha na sua posse a referida faca/arma, a qual, conforme resulta, não teria aplicação definida e poderia ser utilizada como arma de agressão, a verdade é que, nos factos tido como provados, aliás assim como na douta Acusação, não se faz qualquer referência à não justificação da posse de tal faça/arma por parte do ora Recorrente. F. Isto, sem descurar do facto de, conforme se pode extrair das próprias declarações do Recorrente, e até sem uma qualquer necessidade legal de o fazer, atendendo à própria "lacuna" da Acusação nessa matéria/parte, ter o mesmo justificado ao Tribunal "a quo" a posse daquela aludida faca, esclarecendo que se tratava a mesma de um objecto de coleccionismo, devidamente numerada e parte de uma "edição limitada", e que lhe havia sido dada por um seu amigo, "Indiano", há mais de 19 (dezanove) anos atrás aquando da sua permanência em território americano, mais concretamente, na cidade de Miami. G. Declarações do ora Recorrente que tornam então evidente o "absurdo jurídico" e verdadeiro "atropelo da lei", presente na douta motivação do Digníssimo Tribunal "a quo", quando se procura justificar o facto de não ser sequer possível então aferir se a mencionada faca seria, ou não, parte de uma qualquer edição limitada, tendo então inscrita o competente número, com a "condicionante" de que da "foto" de tal faca presente nos autos essa aludida inscrição não resultava visível, H. Daí resultando, dessa sua não actuação, que ao contrário do que lhe era legalmente imposto sequer cuidou o Digníssimo Tribunal "a quo" de aferir da viabilidade/credibilidade do afirmado pelo ora Recorrente, bastando-se com uma qualquer "fotografia" da faca/arma apreendida, não se dando ao "incómodo" de a examinar devidamente, requisitando a sua presença em sede de audiência de julgamento. I. Sendo, aliás, patente que, ao contrário do vertido na douta sentença recorrida, nunca o ora Recorrente efectivou uma qualquer confissão integral e sem reservas - até porque, e ao arrepio da lei (cfr. n.º l do art. 344º do C.P.Penal), tão pouco foi o mesmo "confrontado" com essa sua alegada confissão, para a poder então confirmar, esclarecendo então se o fazia de forma livre e sem quaisquer reservas -, tendo, ao invés, o ora Recorrente tentado "esclarecer" o Tribunal "a quo" do porquê de ter então na sua posse afaça apreendida. J. Sem descurar, sempre se diga que, de toda e qualquer prova produzida, resulta clara a inexistência de uma qualquer referência à ausência de justificação da posse daquela faca por parte do ora Recorrente, sendo, por isso, e nessa sequência, manifestamente insuficientes os factos tido como provados, na douta Sentença recorrida, para que se concluam por verificados os elementos constitutivos do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º l, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, pelo qual foi condenado o ora Recorrente. K. No sentido do supra expendido, de que a factualidade tida como provada não se revela como bastante para sustentar a condenação ao ora Recorrente pela prática do aludido crime de detenção de arma proibida, porquanto, os supra referenciados 3 (três) requisitos necessários para essa mesma condenação - ausência de aplicação definida, capacidade para o uso como arma de agressão e falta de justificação para a posse - são cumulativos entre si, apraz referir o vertido no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30-06-2010 e no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 04-03-2008 (proferidos, respectivamente, no âmbito do Proc. 1229/08.9GBAGD.Cl e Proc. 169/08-1, e disponíveis in www.dgsi.pt). L. Destacando-se, do primeiro desses doutos Arestos, o seguinte trecho: «... é também inquestionado e inquestionável que a acusação omitiu a referência explícita à posse injustificada do punhal, isto é sem fazer referência ao facto de «o seu portador não justifique a sua posse». Ora, este requisito legal, para uma arma como aquela transportada pelo arguido, não é um mero elemento retórico, assim não disponível como uma mera fórmula mais ou menos utilizável de acordo com uma geometria variável, ou que se possa inferir de outros factos que não aludam à utilização efectiva ou potencial da arma ou instrumento. Das duas uma: ou a posse de tal arma tem uma aplicação e justificação concreta, e então não há crime, ou o seu portador não consegue justificar a posse, e assim há crime.» (negrito e sublinhado nossos). M. Isto, tendo por assente que, apesar de tal Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra "visar" essencialmente a omissão em sede de douta Acusação à não justificação da posse de uma arma similar (pelo menos em termos de enquadramento legal) à detida pelo ora Recorrente, o mesmo tem aplicação plena ao caso sub judice, porquanto, sendo deficiente, em termos legais, uma qualquer Acusação em que "falhe" o aludido elemento constitutivo de não justificação da posse, também o será, por maioria de razão, uma qualquer sentença condenatória, relativamente a esse tipo de crime, que decida pela condenação sem sequer referenciar a não justificação da posse da arma detida por um qualquer arguido/condenado. N. Já do segundo desses doutos Arestos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, sempre resulta que «para que a detenção ou porte de "outras armas brancas" a que alude a alin. d) do n.º l do art. 86º constitua crime, impõe o legislador que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos: 1) Ausência de aplicação definida; 2) Capacidade para o uso como arma de agressão; 3) Falta de justificação para a posse. A expressão "sem aplicação definida", usada na alin. d) do n.º l do citado art. 86º, não se restringe, com o devido respeito, aos "instrumentos", abrangendo, por conseguinte, outras armas brancas (ali não elencadas) e os engenhos.» (negrito e sublinhado nossos), O. Concluindo, aquele Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que, «para que a detenção, uso e porte de outras armas brancas, para além das especificadas na alin. d) do n.º l do citado art. 86º constitua crime, impõe-se concomitantemente, o preenchimento, entre outros, dos referidos três requisitos. Não apenas um, ou dois, mas os três.» (negrito e sublinhado nossos). P. Donde, atento tudo o exposto, entende modestamente o ora Recorrente ser forçoso concluir-se que, atentos os factos por si dados como provados, e por estar em causa apenas factualidade atinente à posse (que se desconhece justificada, ou não) de uma arma branca sem aplicação definida e passível de ser utilizada como arma de agressão, não poderia o Digníssimo Tribunal "a quo" ter concluído pela subsunção da conduta do Recorrente à prática de um qualquer crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º l, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, impondo-se a sua absolvição. Q - A douta Sentença sob recurso violou o art. 86º, n.º l, ai. d) da lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro e, bem assim, os arts. 340º e 344º do C.P.Penal. Termina pedindo a revogação e nulidade da decisão e a sua absolvição.***Houve resposta do Ministério Público que, sem sumariar conclusões, sustenta a improcedência do recurso e manutenção do decidido.***O recurso foi admitido por despacho de fls. 99 e nesta instância a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto. Efectuado exame preliminar e não havendo questões a decidir, foram colhidos os vistos, prosseguindo os autos para conferência que decorreu com observância das formalidades legais.***II- Fundamentação 1. Consoante decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica (cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 24/3/1999, CJ-STJ, Ano VII, Tomo I, pág. 247 e segs. – especialmente fls. 248, último parágrafo - e de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt), as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso. In casu e de harmonia com as conclusões apresentadas, são as seguintes as questões suscitadas: a) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) Erro notório na apreciação da prova c) Errada subsunção jurídica.***2. Na fundamentação de facto da decisão considerou o tribunal a quo, além do mais e em síntese, o seguinte: A) Factos Provados > No dia 9 de Novembro de 2011, cerca das 16h30m, no estabelecimento comercial sua pertença – Restaurante Snack – Bar “C…” – sito na Rua …, n.º …, em …, Santa Maria da Feira, o arguido ocultava numa prateleira do armazém uma faca de mato, com uma lâmina de cerca de 20 cms, com entalhes em forma de dentes de serrilha, de ambos os lados, sem aplicação definida; > O arguido adquiriu a arma branca descrita na participação e descrita no auto de apreensão em circunstâncias não apuradas e manteve-a na sua posse até ser surpreendido pelos agentes da ASAE os quais a localizaram; > O arguido tinha o punhal ao seu alcance, guardando-o em compartimento que utilizava como armazém e servia de ligação entre a sala de café e a sala de restaurante detendo-o consigo; > Sabia o arguido que a arma detida é insusceptível de manifesto e de registo, sendo absolutamente proibida, mas, não obstante, não se coibiu de a manter na sua posse nas circunstâncias descritas no auto; > Sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, agindo de forma livre, consciente e deliberada; > Confessou integralmente e sem reservas os factos imputados. *B) Factos não provados - O arguido detinha o objecto em causa com o único propósito de o usar como arma de agressão.*C) Motivação Confissão do arguido. ***3. Na fundamentação jurídica o tribunal a quo considerou verificado o crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos arts. 3º n.º 2 f), 4º n.º 1 e 86º, n.º 1 d), da Lei n.º 5/2006, referindo que o arguido detinha um punhal com lâmina de cerca de 20 cm, constituindo arma proibida porque insusceptível de registo e manifesto, não tendo aplicação definida nem se tendo demonstrado que estivesse relacionada com “coleccionismo” e que o eventual valor artístico-histórico não fora objecto de manifesto/licenciamento, concluindo que, assim, não fora trazida aos autos qualquer explicação para a sua detenção.*4. Apreciando 4.1 Vícios da decisão Sem nunca nomear especificamente o vício respectivo, invocou o recorrente que a sentença proferida pelo tribunal a quo não contém a factualidade necessária e suficiente à subsunção jurídica realizada, porquanto não ficou provada a falta de justificação da posse da arma apreendida, e que se mostra inquinada pelo facto de considerar verificada uma confissão integral e sem reservas inexistente. Vejamos.*4.1.1 Dos vícios de conhecimento oficioso É consabido que uma das vertentes do recurso em matéria de facto se reporta aos vícios da própria decisão que devem detectar-se do respectivo texto, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem esforço de análise ou apelo a elementos que lhe sejam estranhos,[1] designadamente declarações ou depoimentos, ainda que produzidos no julgamento, como decorre do estatuído no art. 410º n.º 2, do Cód. Proc. Penal. Tal circunstância justifica o seu conhecimento oficioso devendo, pois, ser declarados independentemente de requerimento nesse sentido ou mesmo que a impugnação se limite a matéria de direito. É o que se convencionou chamar de recurso de “revista ampliada” querendo isto significar que o tribunal superior mantém intactos os poderes de cognição dos vícios documentados no texto da decisão proferida pelo tribunal a quo, que contendam com a apreciação do facto, ainda que não tenham sido directamente invocados pelo recorrente ou o tenham sido de forma parcial e deficitária. O elenco legal destes vícios abrange nas alíneas: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (reportada, essencialmente, a hiatos factuais que podiam e deviam ter sido averiguados e se mostram necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição);[2] b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (desdobrável em três hipóteses - contradição insanável de fundamentação, contradição entre os fundamentos e a decisão e contradição entre os factos);[3] e c) O erro notório na apreciação da prova (em regra associado desconformidades de tal modo evidentes que não passam despercebidas a qualquer pessoa minimamente atenta, ou seja é um erro patente que não escapa ao homem comum).[4]*In casu, pese embora o recorrente não invoque expressa e directamente qualquer dos aludidos vícios, é inegável que a matéria sumariada aponta para o primeiro e terceiro deles. Porém, desde já adiantaremos que a decisão impugnada evidencia desarmonias tão extensas e profundas que nem sequer permitem concluir se a conduta do arguido é punível, impondo-se, pois, o seu conhecimento oficioso em conformidade com a citada estatuição legal.*§ 1º A caracterização da arma branca apreendida Como decorre da fundamentação da decisão recorrida, única que aqui cumpre ponderar, está em causa um crime de detenção de arma proibida assente na posse de uma arma branca. Nos termos do art. 2º n.º 1 m), da Lei n.º 5/2006, de 23/2, entende-se por “arma branca” todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões. E, de harmonia com o estatuído no art. 3º n.º 2 f), do mesmo diploma, as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção, são classificadas, segundo o seu grau de perigosidade, na classe A. Ora, nos termos do art. 86º n.º 1 d), da referida Lei, estando em causa arma branca, apenas incorre no crime de detenção de arma proibida quem detiver, sem autorização ou fora das condições legais, “arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como instrumentos de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”. Nesta conformidade, facilmente se compreende que a imputação do crime depende da caracterização da arma branca em causa. E, não cabendo nas categorias expressamente elencadas mas tão-só “nas outras armas brancas”, a punição depende da alegação e prova que se trata de arma que: a) Não tenha aplicação definida; b) Possa ser usada como arma de agressão; c) O seu portador não justifique a posse. Ora, cotejando os factos provados, facilmente se conclui que o tribunal a quo alude a três objectos distintos - faca de mato, arma branca e punhal – como se de um único se tratasse. A classificação como arma branca não está em causa – visto que composta por lâmina com o comprimento de cerca de 20 cm – mas é insuficiente para o efeito pretendido. Já a referência à espécie concreta de tal arma branca é, in casu, intrinsecamente contraditória. Com efeito, o tribunal a quo começa por considerar provado que o arguido detinha uma faca de mato sem aplicação definida, o que por si só é um perfeito contra-senso, uma vez que esse tipo de instrumento é consabidamente utilizado em actividades venatórias e florestais, designadamente por caçadores e escuteiros. Assim sendo, nem sequer há posse de arma proibida visto tratar-se de arma branca com aplicação definida. Todavia e logo de seguida, refere-se um “punhal”, concluindo-se que o arguido sabia que tal arma é insusceptível de registo e manifesto, sendo absolutamente proibida. A questão do registo e manifesto é perfeitamente espúria já que tais actos são unicamente obrigatórios quanto às armas de fogo, como decorre do disposto no art. 86º n.º 2, da lei n.º 5/2006, que preceitua que a detenção de arma não registada ou manifestada, quando obrigatório, constitui detenção de arma fora das condições legais. Por seu turno, ainda que se trate de um punhal, resultando da própria caracterização a falta de aplicação definida – a não ser como arma de agressão -terá que demonstrar-se a falta de justificação da posse, inexistindo factualidade provada nesse sentido, assistindo, então, razão ao arguido quanto à existência de hiato factual que obsta à aplicação do direito ao caso concreto. Isto porque o tribunal deu como não provado o único facto do qual se poderia extrair, ainda que de forma indirecta, a falta de justificação da posse, ou seja considerou não provado que o arguido destinasse a arma unicamente ao uso como meio de agressão. Nesta perspectiva, evidencia-se, pois, uma falha na matéria fáctica apurada que podia e devia ter sido colmatada visto que essencial à definição e inserção da arma possuída em determinada categoria legal e, consequentemente, à imputação do crime.*§2º Contradição insanável de fundamentação No entanto, associada a esta questão da indefinição da arma em causa e da insuficiência factual aparece uma outra bem mais grave como decorre da matéria já aflorada: a da contradição insanável da fundamentação, evidenciada, além do mais, nos seguintes segmentos: Factos provados i) Faca de mato sem aplicação definida; ii) Faca de mato/Punhal; iii) O auto de apreensão junto aos autos não contém qualquer descrição estando manifestamente incompleto; iv) Associação do elemento subjectivo da infracção à circunstância do arguido saber que a arma era insusceptível de registo e manifesto. Factos provados/Factos não provados v) Confissão integral e sem reservas dando-se, porém, como não provado que o arguido detinha a arma com o único propósito de fazer uso dela como arma de agressão.[5] Factos provados/Motivação vi) Considerando-se que o arguido confessou os factos incriminadores ressalta da motivação que este invocou que a arma era um objecto de coleccionismo, fazendo parte de uma edição limitada e numerada, considerando o tribunal a quo que tal circunstância não encontrava correspondência nos elementos constantes dos autos e era inócua, visto a arma ser insusceptível de registo ou manifesto e não estar o seu valor histórico/artístico licenciado. Como é óbvio, tal alegação é tudo menos inócua já que sempre afastaria uma qualquer assumpção da intencionalidade criminosa, como concluiria qualquer cidadão médio minimamente cuidadoso e informado. Acresce ainda evidenciar-se claramente que o tribunal a quo ignorou o dever de procura da verdade material e decidiu com base numa simples fotografia junta ao processo, sem sequer cuidar de ver e ordenar o exame directo à arma, como se impunha, mais que não fosse face às dúvidas que a alegação do arguido necessariamente suscitava e que o julgador não tinha conhecimentos específicos para resolver.*c) Síntese Nesta conformidade, considerando o supra exposto é inegável que a decisão recorrida se mostra indelevelmente inquinada por insuficiências e incongruências, vícios que pela sua extensão e natureza são insusceptíveis de suprimento neste Tribunal, até pela falta de exame directo à arma apreendida que pudesse esclarecer devidamente as suas características e natureza. Tal circunstância devia determinar o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do seu objecto, de harmonia com o disposto nos arts. 426º n.º 1 e 426º-A, do Cód. Proc. Penal. Porém, estando em causa processo especial sujeito a regras muito estritas de tramitação e constatando-se que as contradições factuais evolam da própria acusação deduzida, o que devia ter determinado o indeferimento do proposto julgamento em processo sumário por impossibilidade legal de estabelecer o objecto do processo e determinar se os factos constituíam crime punível com pena de prisão até 5 anos, entende-se que os autos deverão, neste contexto e preciso caso, seguir para o Ministério Público, nos termos do art. 390º b), do mesmo diploma, para tramitação sob outra forma processual, por não estar determinada a natureza ilícita dos factos e se afigurar imprescindível à boa decisão da causa e correcto esclarecimento da questão da arma ser ou não proibida, a realização de diligências probatórias – v.g. exame directo - que ditam a impossibilidade de observância dos prazos que regulam o julgamento em processo sumário [v. art. 387º n.º 2 b)].***III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal desta Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto, anulando o julgamento realizado em processo sumário do arguido B… e os actos subsequentes dele dependentes, designadamente a sentença recorrida, devendo os autos seguir para o Ministério Público, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 390º n.ºs 1 a) e b) e 387º n.ºs 1 e 2 b), do Cód. Proc. Penal, para tramitação sob outra forma processual, por impossibilidade de observância dos prazos que regulam o julgamento em processo sumário. Sem tributação – art. 513º n.º 1, a contrario, do Cód. Proc. Penal.*(Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, nº 2 do Cód. Proc. Penal) Porto, 4 de Julho de 2012 Maria Deolinda Gaudêncio Gomes Dionísio António José Moreira Ramos _________________ [1] Cfr., Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pág. 339. E Ac. STJ de 11/7/2007 - Proc. 07P1416/relator Armindo Monteiro -, in dgsi.pt. [2] Cf. Ac. do STJ de 5/12/2007, Processo n.º 07P3406, disponível in dgsi.pt. [3] V., a este propósito, Ac. do STJ de 26/11/2008, Processo n.º 08P3372/relator Santos Cabral, disponível em dgsi.pt.jstj, Simas Santos/Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª Ed., págs. 75/76, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 340. [4] Cfr. Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º. [5] Aliás, na acta de audiência não existe rasto de tal tipo de confissão nem do cumprimento do disposto no art. 344º n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
Processo n.º 1752/11.8TAVFR.P1 4ª Secção Relatora: Maria Deolinda Dionísio Adjunto: Moreira Ramos Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto I – RELATÓRIO Por sentença proferida no processo especial sumário n.º 1752/11.8TAVFR, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, foi o arguido B…, com os demais sinais dos autos, condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art. 86º n.º 1 d), por referência aos arts. 3º n.º 2 f) e 4º n.º 1, todos da Lei n.º 5/2006, de 23/2, na pena de 210 (duzentos e dez) dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros). Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso terminando a sua douta motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem: A. No que se refere à subsunção da conduta que se imputa ao Recorrente em sede de factualidade tida como provada, entende modestamente aquele que, ao contrário do decidido na douta Sentença sob recurso, não se poderia haver concluído por preenchidos os elementos constitutivos do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º l, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, pelo qual foi condenado. B. Na verdade, não se têm por verificados os elementos constitutivos do tipo, pois que, ao contrário do exigido por lei (Cfr. o aludido art. 86º, n.º l, al. d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro), não se verifica no caso presente que o ora Recorrente não haja justificado a posse da faca/arma apreendida nos autos, bastando, para tal, atentar nos factos que foram tido como provados pelo Digníssimo Tribunal "a quo" e, bem assim, no facto tido como não provado. C. O propalado preceito legal [art. 86º, n.º l, al. d)] exige, cumulativamente, para uma qualquer condenação, que o agente, sem se encontrar autorizado, detenha uma arma das ali melhor enunciadas, conforme, aliás, se verificava nos presentes autos, com o ora Recorrente, a qual não possua aplicação definida e possa ser utilizada como arma de agressão e que "o seu portador não justifique a sua posse". D. Ora, atendendo à factualidade tida como provada e não provada, no caso presente em momento algum se poderá concluir que o aqui Recorrente não justificou, ou não o conseguirá fazer, a posse daquela aludida arma (faca), tendo o Digníssimo Tribunal "a quo", ao concluir pela verificação de tal crime, extrapolado claramente para além da prova produzida. E. Pelo que, mesma que seja forçoso concluir-se, atenta a prova produzida, que o aqui Recorrente tinha na sua posse a referida faca/arma, a qual, conforme resulta, não teria aplicação definida e poderia ser utilizada como arma de agressão, a verdade é que, nos factos tido como provados, aliás assim como na douta Acusação, não se faz qualquer referência à não justificação da posse de tal faça/arma por parte do ora Recorrente. F. Isto, sem descurar do facto de, conforme se pode extrair das próprias declarações do Recorrente, e até sem uma qualquer necessidade legal de o fazer, atendendo à própria "lacuna" da Acusação nessa matéria/parte, ter o mesmo justificado ao Tribunal "a quo" a posse daquela aludida faca, esclarecendo que se tratava a mesma de um objecto de coleccionismo, devidamente numerada e parte de uma "edição limitada", e que lhe havia sido dada por um seu amigo, "Indiano", há mais de 19 (dezanove) anos atrás aquando da sua permanência em território americano, mais concretamente, na cidade de Miami. G. Declarações do ora Recorrente que tornam então evidente o "absurdo jurídico" e verdadeiro "atropelo da lei", presente na douta motivação do Digníssimo Tribunal "a quo", quando se procura justificar o facto de não ser sequer possível então aferir se a mencionada faca seria, ou não, parte de uma qualquer edição limitada, tendo então inscrita o competente número, com a "condicionante" de que da "foto" de tal faca presente nos autos essa aludida inscrição não resultava visível, H. Daí resultando, dessa sua não actuação, que ao contrário do que lhe era legalmente imposto sequer cuidou o Digníssimo Tribunal "a quo" de aferir da viabilidade/credibilidade do afirmado pelo ora Recorrente, bastando-se com uma qualquer "fotografia" da faca/arma apreendida, não se dando ao "incómodo" de a examinar devidamente, requisitando a sua presença em sede de audiência de julgamento. I. Sendo, aliás, patente que, ao contrário do vertido na douta sentença recorrida, nunca o ora Recorrente efectivou uma qualquer confissão integral e sem reservas - até porque, e ao arrepio da lei (cfr. n.º l do art. 344º do C.P.Penal), tão pouco foi o mesmo "confrontado" com essa sua alegada confissão, para a poder então confirmar, esclarecendo então se o fazia de forma livre e sem quaisquer reservas -, tendo, ao invés, o ora Recorrente tentado "esclarecer" o Tribunal "a quo" do porquê de ter então na sua posse afaça apreendida. J. Sem descurar, sempre se diga que, de toda e qualquer prova produzida, resulta clara a inexistência de uma qualquer referência à ausência de justificação da posse daquela faca por parte do ora Recorrente, sendo, por isso, e nessa sequência, manifestamente insuficientes os factos tido como provados, na douta Sentença recorrida, para que se concluam por verificados os elementos constitutivos do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º l, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, pelo qual foi condenado o ora Recorrente. K. No sentido do supra expendido, de que a factualidade tida como provada não se revela como bastante para sustentar a condenação ao ora Recorrente pela prática do aludido crime de detenção de arma proibida, porquanto, os supra referenciados 3 (três) requisitos necessários para essa mesma condenação - ausência de aplicação definida, capacidade para o uso como arma de agressão e falta de justificação para a posse - são cumulativos entre si, apraz referir o vertido no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30-06-2010 e no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 04-03-2008 (proferidos, respectivamente, no âmbito do Proc. 1229/08.9GBAGD.Cl e Proc. 169/08-1, e disponíveis in www.dgsi.pt). L. Destacando-se, do primeiro desses doutos Arestos, o seguinte trecho: «... é também inquestionado e inquestionável que a acusação omitiu a referência explícita à posse injustificada do punhal, isto é sem fazer referência ao facto de «o seu portador não justifique a sua posse». Ora, este requisito legal, para uma arma como aquela transportada pelo arguido, não é um mero elemento retórico, assim não disponível como uma mera fórmula mais ou menos utilizável de acordo com uma geometria variável, ou que se possa inferir de outros factos que não aludam à utilização efectiva ou potencial da arma ou instrumento. Das duas uma: ou a posse de tal arma tem uma aplicação e justificação concreta, e então não há crime, ou o seu portador não consegue justificar a posse, e assim há crime.» (negrito e sublinhado nossos). M. Isto, tendo por assente que, apesar de tal Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra "visar" essencialmente a omissão em sede de douta Acusação à não justificação da posse de uma arma similar (pelo menos em termos de enquadramento legal) à detida pelo ora Recorrente, o mesmo tem aplicação plena ao caso sub judice, porquanto, sendo deficiente, em termos legais, uma qualquer Acusação em que "falhe" o aludido elemento constitutivo de não justificação da posse, também o será, por maioria de razão, uma qualquer sentença condenatória, relativamente a esse tipo de crime, que decida pela condenação sem sequer referenciar a não justificação da posse da arma detida por um qualquer arguido/condenado. N. Já do segundo desses doutos Arestos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, sempre resulta que «para que a detenção ou porte de "outras armas brancas" a que alude a alin. d) do n.º l do art. 86º constitua crime, impõe o legislador que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos: 1) Ausência de aplicação definida; 2) Capacidade para o uso como arma de agressão; 3) Falta de justificação para a posse. A expressão "sem aplicação definida", usada na alin. d) do n.º l do citado art. 86º, não se restringe, com o devido respeito, aos "instrumentos", abrangendo, por conseguinte, outras armas brancas (ali não elencadas) e os engenhos.» (negrito e sublinhado nossos), O. Concluindo, aquele Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que, «para que a detenção, uso e porte de outras armas brancas, para além das especificadas na alin. d) do n.º l do citado art. 86º constitua crime, impõe-se concomitantemente, o preenchimento, entre outros, dos referidos três requisitos. Não apenas um, ou dois, mas os três.» (negrito e sublinhado nossos). P. Donde, atento tudo o exposto, entende modestamente o ora Recorrente ser forçoso concluir-se que, atentos os factos por si dados como provados, e por estar em causa apenas factualidade atinente à posse (que se desconhece justificada, ou não) de uma arma branca sem aplicação definida e passível de ser utilizada como arma de agressão, não poderia o Digníssimo Tribunal "a quo" ter concluído pela subsunção da conduta do Recorrente à prática de um qualquer crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º l, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, impondo-se a sua absolvição. Q - A douta Sentença sob recurso violou o art. 86º, n.º l, ai. d) da lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro e, bem assim, os arts. 340º e 344º do C.P.Penal. Termina pedindo a revogação e nulidade da decisão e a sua absolvição.***Houve resposta do Ministério Público que, sem sumariar conclusões, sustenta a improcedência do recurso e manutenção do decidido.***O recurso foi admitido por despacho de fls. 99 e nesta instância a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto. Efectuado exame preliminar e não havendo questões a decidir, foram colhidos os vistos, prosseguindo os autos para conferência que decorreu com observância das formalidades legais.***II- Fundamentação 1. Consoante decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica (cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 24/3/1999, CJ-STJ, Ano VII, Tomo I, pág. 247 e segs. – especialmente fls. 248, último parágrafo - e de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt), as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso. In casu e de harmonia com as conclusões apresentadas, são as seguintes as questões suscitadas: a) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) Erro notório na apreciação da prova c) Errada subsunção jurídica.***2. Na fundamentação de facto da decisão considerou o tribunal a quo, além do mais e em síntese, o seguinte: A) Factos Provados > No dia 9 de Novembro de 2011, cerca das 16h30m, no estabelecimento comercial sua pertença – Restaurante Snack – Bar “C…” – sito na Rua …, n.º …, em …, Santa Maria da Feira, o arguido ocultava numa prateleira do armazém uma faca de mato, com uma lâmina de cerca de 20 cms, com entalhes em forma de dentes de serrilha, de ambos os lados, sem aplicação definida; > O arguido adquiriu a arma branca descrita na participação e descrita no auto de apreensão em circunstâncias não apuradas e manteve-a na sua posse até ser surpreendido pelos agentes da ASAE os quais a localizaram; > O arguido tinha o punhal ao seu alcance, guardando-o em compartimento que utilizava como armazém e servia de ligação entre a sala de café e a sala de restaurante detendo-o consigo; > Sabia o arguido que a arma detida é insusceptível de manifesto e de registo, sendo absolutamente proibida, mas, não obstante, não se coibiu de a manter na sua posse nas circunstâncias descritas no auto; > Sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, agindo de forma livre, consciente e deliberada; > Confessou integralmente e sem reservas os factos imputados. *B) Factos não provados - O arguido detinha o objecto em causa com o único propósito de o usar como arma de agressão.*C) Motivação Confissão do arguido. ***3. Na fundamentação jurídica o tribunal a quo considerou verificado o crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos arts. 3º n.º 2 f), 4º n.º 1 e 86º, n.º 1 d), da Lei n.º 5/2006, referindo que o arguido detinha um punhal com lâmina de cerca de 20 cm, constituindo arma proibida porque insusceptível de registo e manifesto, não tendo aplicação definida nem se tendo demonstrado que estivesse relacionada com “coleccionismo” e que o eventual valor artístico-histórico não fora objecto de manifesto/licenciamento, concluindo que, assim, não fora trazida aos autos qualquer explicação para a sua detenção.*4. Apreciando 4.1 Vícios da decisão Sem nunca nomear especificamente o vício respectivo, invocou o recorrente que a sentença proferida pelo tribunal a quo não contém a factualidade necessária e suficiente à subsunção jurídica realizada, porquanto não ficou provada a falta de justificação da posse da arma apreendida, e que se mostra inquinada pelo facto de considerar verificada uma confissão integral e sem reservas inexistente. Vejamos.*4.1.1 Dos vícios de conhecimento oficioso É consabido que uma das vertentes do recurso em matéria de facto se reporta aos vícios da própria decisão que devem detectar-se do respectivo texto, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem esforço de análise ou apelo a elementos que lhe sejam estranhos,[1] designadamente declarações ou depoimentos, ainda que produzidos no julgamento, como decorre do estatuído no art. 410º n.º 2, do Cód. Proc. Penal. Tal circunstância justifica o seu conhecimento oficioso devendo, pois, ser declarados independentemente de requerimento nesse sentido ou mesmo que a impugnação se limite a matéria de direito. É o que se convencionou chamar de recurso de “revista ampliada” querendo isto significar que o tribunal superior mantém intactos os poderes de cognição dos vícios documentados no texto da decisão proferida pelo tribunal a quo, que contendam com a apreciação do facto, ainda que não tenham sido directamente invocados pelo recorrente ou o tenham sido de forma parcial e deficitária. O elenco legal destes vícios abrange nas alíneas: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (reportada, essencialmente, a hiatos factuais que podiam e deviam ter sido averiguados e se mostram necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição);[2] b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (desdobrável em três hipóteses - contradição insanável de fundamentação, contradição entre os fundamentos e a decisão e contradição entre os factos);[3] e c) O erro notório na apreciação da prova (em regra associado desconformidades de tal modo evidentes que não passam despercebidas a qualquer pessoa minimamente atenta, ou seja é um erro patente que não escapa ao homem comum).[4]*In casu, pese embora o recorrente não invoque expressa e directamente qualquer dos aludidos vícios, é inegável que a matéria sumariada aponta para o primeiro e terceiro deles. Porém, desde já adiantaremos que a decisão impugnada evidencia desarmonias tão extensas e profundas que nem sequer permitem concluir se a conduta do arguido é punível, impondo-se, pois, o seu conhecimento oficioso em conformidade com a citada estatuição legal.*§ 1º A caracterização da arma branca apreendida Como decorre da fundamentação da decisão recorrida, única que aqui cumpre ponderar, está em causa um crime de detenção de arma proibida assente na posse de uma arma branca. Nos termos do art. 2º n.º 1 m), da Lei n.º 5/2006, de 23/2, entende-se por “arma branca” todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões. E, de harmonia com o estatuído no art. 3º n.º 2 f), do mesmo diploma, as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção, são classificadas, segundo o seu grau de perigosidade, na classe A. Ora, nos termos do art. 86º n.º 1 d), da referida Lei, estando em causa arma branca, apenas incorre no crime de detenção de arma proibida quem detiver, sem autorização ou fora das condições legais, “arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como instrumentos de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”. Nesta conformidade, facilmente se compreende que a imputação do crime depende da caracterização da arma branca em causa. E, não cabendo nas categorias expressamente elencadas mas tão-só “nas outras armas brancas”, a punição depende da alegação e prova que se trata de arma que: a) Não tenha aplicação definida; b) Possa ser usada como arma de agressão; c) O seu portador não justifique a posse. Ora, cotejando os factos provados, facilmente se conclui que o tribunal a quo alude a três objectos distintos - faca de mato, arma branca e punhal – como se de um único se tratasse. A classificação como arma branca não está em causa – visto que composta por lâmina com o comprimento de cerca de 20 cm – mas é insuficiente para o efeito pretendido. Já a referência à espécie concreta de tal arma branca é, in casu, intrinsecamente contraditória. Com efeito, o tribunal a quo começa por considerar provado que o arguido detinha uma faca de mato sem aplicação definida, o que por si só é um perfeito contra-senso, uma vez que esse tipo de instrumento é consabidamente utilizado em actividades venatórias e florestais, designadamente por caçadores e escuteiros. Assim sendo, nem sequer há posse de arma proibida visto tratar-se de arma branca com aplicação definida. Todavia e logo de seguida, refere-se um “punhal”, concluindo-se que o arguido sabia que tal arma é insusceptível de registo e manifesto, sendo absolutamente proibida. A questão do registo e manifesto é perfeitamente espúria já que tais actos são unicamente obrigatórios quanto às armas de fogo, como decorre do disposto no art. 86º n.º 2, da lei n.º 5/2006, que preceitua que a detenção de arma não registada ou manifestada, quando obrigatório, constitui detenção de arma fora das condições legais. Por seu turno, ainda que se trate de um punhal, resultando da própria caracterização a falta de aplicação definida – a não ser como arma de agressão -terá que demonstrar-se a falta de justificação da posse, inexistindo factualidade provada nesse sentido, assistindo, então, razão ao arguido quanto à existência de hiato factual que obsta à aplicação do direito ao caso concreto. Isto porque o tribunal deu como não provado o único facto do qual se poderia extrair, ainda que de forma indirecta, a falta de justificação da posse, ou seja considerou não provado que o arguido destinasse a arma unicamente ao uso como meio de agressão. Nesta perspectiva, evidencia-se, pois, uma falha na matéria fáctica apurada que podia e devia ter sido colmatada visto que essencial à definição e inserção da arma possuída em determinada categoria legal e, consequentemente, à imputação do crime.*§2º Contradição insanável de fundamentação No entanto, associada a esta questão da indefinição da arma em causa e da insuficiência factual aparece uma outra bem mais grave como decorre da matéria já aflorada: a da contradição insanável da fundamentação, evidenciada, além do mais, nos seguintes segmentos: Factos provados i) Faca de mato sem aplicação definida; ii) Faca de mato/Punhal; iii) O auto de apreensão junto aos autos não contém qualquer descrição estando manifestamente incompleto; iv) Associação do elemento subjectivo da infracção à circunstância do arguido saber que a arma era insusceptível de registo e manifesto. Factos provados/Factos não provados v) Confissão integral e sem reservas dando-se, porém, como não provado que o arguido detinha a arma com o único propósito de fazer uso dela como arma de agressão.[5] Factos provados/Motivação vi) Considerando-se que o arguido confessou os factos incriminadores ressalta da motivação que este invocou que a arma era um objecto de coleccionismo, fazendo parte de uma edição limitada e numerada, considerando o tribunal a quo que tal circunstância não encontrava correspondência nos elementos constantes dos autos e era inócua, visto a arma ser insusceptível de registo ou manifesto e não estar o seu valor histórico/artístico licenciado. Como é óbvio, tal alegação é tudo menos inócua já que sempre afastaria uma qualquer assumpção da intencionalidade criminosa, como concluiria qualquer cidadão médio minimamente cuidadoso e informado. Acresce ainda evidenciar-se claramente que o tribunal a quo ignorou o dever de procura da verdade material e decidiu com base numa simples fotografia junta ao processo, sem sequer cuidar de ver e ordenar o exame directo à arma, como se impunha, mais que não fosse face às dúvidas que a alegação do arguido necessariamente suscitava e que o julgador não tinha conhecimentos específicos para resolver.*c) Síntese Nesta conformidade, considerando o supra exposto é inegável que a decisão recorrida se mostra indelevelmente inquinada por insuficiências e incongruências, vícios que pela sua extensão e natureza são insusceptíveis de suprimento neste Tribunal, até pela falta de exame directo à arma apreendida que pudesse esclarecer devidamente as suas características e natureza. Tal circunstância devia determinar o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do seu objecto, de harmonia com o disposto nos arts. 426º n.º 1 e 426º-A, do Cód. Proc. Penal. Porém, estando em causa processo especial sujeito a regras muito estritas de tramitação e constatando-se que as contradições factuais evolam da própria acusação deduzida, o que devia ter determinado o indeferimento do proposto julgamento em processo sumário por impossibilidade legal de estabelecer o objecto do processo e determinar se os factos constituíam crime punível com pena de prisão até 5 anos, entende-se que os autos deverão, neste contexto e preciso caso, seguir para o Ministério Público, nos termos do art. 390º b), do mesmo diploma, para tramitação sob outra forma processual, por não estar determinada a natureza ilícita dos factos e se afigurar imprescindível à boa decisão da causa e correcto esclarecimento da questão da arma ser ou não proibida, a realização de diligências probatórias – v.g. exame directo - que ditam a impossibilidade de observância dos prazos que regulam o julgamento em processo sumário [v. art. 387º n.º 2 b)].***III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal desta Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto, anulando o julgamento realizado em processo sumário do arguido B… e os actos subsequentes dele dependentes, designadamente a sentença recorrida, devendo os autos seguir para o Ministério Público, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 390º n.ºs 1 a) e b) e 387º n.ºs 1 e 2 b), do Cód. Proc. Penal, para tramitação sob outra forma processual, por impossibilidade de observância dos prazos que regulam o julgamento em processo sumário. Sem tributação – art. 513º n.º 1, a contrario, do Cód. Proc. Penal.*(Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, nº 2 do Cód. Proc. Penal) Porto, 4 de Julho de 2012 Maria Deolinda Gaudêncio Gomes Dionísio António José Moreira Ramos _________________ [1] Cfr., Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pág. 339. E Ac. STJ de 11/7/2007 - Proc. 07P1416/relator Armindo Monteiro -, in dgsi.pt. [2] Cf. Ac. do STJ de 5/12/2007, Processo n.º 07P3406, disponível in dgsi.pt. [3] V., a este propósito, Ac. do STJ de 26/11/2008, Processo n.º 08P3372/relator Santos Cabral, disponível em dgsi.pt.jstj, Simas Santos/Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª Ed., págs. 75/76, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 340. [4] Cfr. Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º. [5] Aliás, na acta de audiência não existe rasto de tal tipo de confissão nem do cumprimento do disposto no art. 344º n.º 1, do Cód. Proc. Penal.