Processo:833/03.6TAVFR.P2
Data do Acordão: 16/10/2012Relator: JOAQUIM GOMESTribunal:trp
Decisão: Meio processual:

I - O despacho de não pronúncia não está sujeito às exigências de fundamentação das sentenças, mas apenas ao dever genérico previsto no nº 4 do art. 97º do CPP. II - A ausência ou insuficiência de fundamentação desse despacho constitui uma irregularidade, a arguir perante o tribunal que proferiu a decisão. III - As condutas típicas intencionalmente orientadas à frustração do direito de crédito mediante um projeto de resolução criminosa que normalmente se estende por vários atos de defraudação direta ou indireta do património tanto podem conduzir a situações de falência real ou efetiva como a situações de falência aparente ou simulada, i.é., insolvências criadas artificialmente com o único propósito de prejudicar os credores. IV - O crime de Insolvência dolosa [art. 227.º do CP] integra os casos de insolvência real ou efetiva e os casos de insolvência aparente ou simulada.

Profissão: Data de nascimento: 1/1/1970
Tipo de evento:
Descricao acidente:

Importancias a pagar seguradora:

Relator
JOAQUIM GOMES
Descritores
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA FUNDAMENTAÇÃO INSOLVÊNCIA DOLOSA INSOLVÊNCIA APARENTE
No do documento
Data do Acordão
10/17/2012
Votação
UNANIMIDADE
Texto integral
S
Meio processual
REC. PENAL.
Decisão
PROVIDO.
Sumário
I - O despacho de não pronúncia não está sujeito às exigências de fundamentação das sentenças, mas apenas ao dever genérico previsto no nº 4 do art. 97º do CPP. II - A ausência ou insuficiência de fundamentação desse despacho constitui uma irregularidade, a arguir perante o tribunal que proferiu a decisão. III - As condutas típicas intencionalmente orientadas à frustração do direito de crédito mediante um projeto de resolução criminosa que normalmente se estende por vários atos de defraudação direta ou indireta do património tanto podem conduzir a situações de falência real ou efetiva como a situações de falência aparente ou simulada, i.é., insolvências criadas artificialmente com o único propósito de prejudicar os credores. IV - O crime de Insolvência dolosa [art. 227.º do CP] integra os casos de insolvência real ou efetiva e os casos de insolvência aparente ou simulada.
Decisão integral
Recurso n.° 833/03.6TAVFR.P1 Relator: Joaquim Correia Gomes Adjunta: Paula Guerreiro 
Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto 
1. RELATÓRIO 
1. Na Instrução n.° 833/03.6TAVFR do 2.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, em que são: 
Recorrente/Assistente: B….., Lda. 
Recorridos/Arguidos: C….., D…., E…. e F….. 
Recorrido: Ministério Público 
foi proferida decisão instrutória em 201l/Out./27, a fls. 1240-1255, que não pronunciou os arguidos pela prática, como autores materiais, de um crime de insolvência dolosa da previsão do artigo 227.° do Código Penal. 
2. A assistente interpôs recurso em 201l/Dez./09 a fls. 1292-1342, sem que tivesse formulado expressamente qualquer pedido, mas concluindo que: l.°) Refere o artigo 374° n°2 do CPP, aplicável às decisões instrutórias, que a fundamentação de uma decisão traduz-se numa enumeração de factos provados e não provados — em sede instrutória dos indiciados e não indiciados — seguida de uma exposição tanto quanto possível completa dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame críticos das provas que serviram para formar a convicção [A]; 
2.°) No despacho de não pronúncia o tribunal não fundamenta a sua decisão por referência aos meios de prova que foram carreados para os autos, ficando a assistente sem perceber que relevo foi dado à abundante prova testemunhal produzida na fase de inquérito e por outro que concretos meios de prova serviram para sustentar as suas conclusões, omissão que é geradora de nulidade atento o previsto no artigo 379.°, n.° 1 do Código de Processo Penal [B)]; 
3.°) Os factos considerados provados pela Meritíssima são exíguos face à abundante prova produzida; por sua vez os factos considerados não provados não passam de conclusões que teriam, necessariamente, que estar assentes em factos, o que não acontece [C)]; 
4.º) É certo que nesta nova decisão a meritíssima procurou fundamentar o seu despacho, por ordem da decisão da Relação, mas pouco mais ponderou que o depoimento dos arguidos, de G….., de H….., I…. e fez comentários desajustados acerca dessas mesmas provas, não avaliando todas as demais referidas nestas alegações assim corno nas anteriores; a fundamentação agora dada é desajustada e insuficiente [D)]; 
5.°) Apesar da fundamentação agora oferecida, a meritíssima desconsiderou depoimentos que justificavam decisão diversa da proferida e que deveriam ser interpretados nos termos já expostos na motivação deste recurso, vejamos: O depoimento do arguido C…., gerente da falida (Fls. 338 e ss, não foi devidamente ponderado); O depoimento do arguido D…. de fls. 345 e ss também não foi devidamente ponderado; Depoimento de I….; Depoimento de N…..; Depoimento de J…. fls 271 e ss.; K…. de fls. 290 e ss.; F…. (fls. 255 e 258) e E… (fls.258 e 262); L…. [E)]; 
6.°) O que aconteceu com depoimentos repetiu-se com a omissão de pronúncia relativamente a alguns documentos, a saber: A fls. 364 encontra-se um parecer da senhora liquidatária onde esta apenas identifica cinco credores com créditos pouco volumosos; O auto de arresto da diligência de 23-3-2001 não foi devidamente considerado já que dele consta que foram apreendidos bens no valor de aproximadamente € 150.000; outro documento não valorizado no despacho de arquivamento é o relatório pericial do Dr. M…. que claramente demonstra que o arguido D…. usou títulos de crédito pagos e reformados para instaurar execuções através das quais atacou do co-arguido C…. e com a conivência deste; Também não foi considerada a sentença proferida no processo n.° 703- B/2001; Tão pouco foi considerada a “nova” acusação por descaminho deduzida contra D…. no âmbito do inquérito n.° 1346/06 da 4 Subsecção do Ministério Publico, no qual este é acusado do descaminho dos bens que na diligência de 11-6-2001 ficaram à sua guarda; Nem foi considerado o auto de mudança de fiel depositário datado de 27 de Julho de 2001; Ou acarta de fls.94; Igualmente muito importantes são os documentos de fls.771 a 913 que não foram considerados, mas demonstram claramente o património da empresa que foi dissipado [F)]; 
7.°) Está demonstrado que a assistente só se decidiu a vender à falida as quantidade de cortiça referidas nos autos após recolher boas informações bancárias daquela sociedade, o que demonstra que não estava com as dificuldades retratadas no despacho de arquivamento [G) e H)]; 
8.°) Não restam dúvidas que a empresa tinha bom nome em 2000 e no início de 2001, e também é verdade que em 23 de Março de 2001 — altura em que se realizou a diligência de arresto promovido pela assistente — a empresa laborava normalmente, já que com o arresto da B…. a empresa não fechou, tendo até mais mercadorias do que as arrestadas, conforme declarou o seu representante legal no depoimento que prestou na Policia Judiciária [I), J)]; 
9.°) Em 9 de Junho de 2001 a empresa deixou de funcionar porque o arguido levou todas as suas existências para a fábrica do outro arguido, D…. [K)]; 
10.°) As existências foram removidas em veículos da empresa do arguido D…. numa operação que começou de madrugada, de sexta-feira para sábado, e que os arguidos pretendiam que não fosse muito visível a ponto de não ter contado com a colaboração de funcionários [L)]; 
11.°) A operação foi descoberta, por casualidade, por N…. que, ao passar junto às instalações da falida no dia 9 de Junho de 2001, se apercebeu de tamanho aparato dando conhecimento desse facto ao gerente da assistente que de imediato se deslocou às instalações da falida [M)]; 
12°) Porque sabia que a garantia patrimonial do seu crédito “estava carregada” em carros de D…., o gerente da assistente montou vigília seguindo os camiões que saíam daquelas instalações com ajuda de amigos, familiares e com intervenção da GNR, tendo os arguidos e seus colaboradores se escondido quando se aperceberam da perseguição [N), O)]; 
13.°) Em 11 de Junho de 2001 foi feita pela GNR uma busca nas instalações de D1…., Lda., tendo sido identificadas, sem chapas identificadoras (entretanto removidas), as máquinas arrestadas e que para ali foram encaminhadas [P)]; 
14.°) Mais tarde, por denúncia de J…. que escreveu a carta de fls. 94 e ss (que aqui se dá por reproduzida) ficou a saber-se que C…. e D…. programaram o descaminho dos bens arrestados e a dissipação do restante património da empresa e também de património pessoal [Q)]; 
15.°) Era intenção do arguido C…. prosseguir a actividade de “industrial da cortiça”, sob outro nome e sem ter que prestar contas à sua mulher [R)]; 
16.°) Após o descaminho a B…. pediu que fosse efectuada a alteração do fiel depositário dos bens por si arrestados em 23 de Março de 2001. Essa diligência foi marcada para 27 de Julho de 2001 [S)]; 
17.°) Porém, no local encontravam-se sacos de rolhas que, conforme resulta do identificado auto, continham rolhas em quantidade e qualidade diversa da arrestada, que terão sido adquiridas a O…., Lda. conforme resulta do depoimento de L….
18.°) Os arguidos não se limitaram a descaminhar bens ou a trocar rolhas, mas também se entenderam na condução dos processos que entretanto D1…., Lda. instaurou contra a falida e contra o arguido C…. [U)]; 
19.°) Resulta também dos autos que a falida nunca se opôs às diligências de D…., embora às da assistente sempre se tenha oposto e com a violência que resulta da condenação do arguido C…. no processo n.° 515/01.3GAVFR do 2.° Juízo Criminal por ter ameaçado de morte o gerente da assistente durante a diligência para mudança de fiei depositário ocorrida a 27 de Julho de 2001 [V)];
20.°) No âmbito do processo de falência quando foram apreendidas os bens da massa falida, apurou-se que os bens arrolados não correspondiam aos arrestados em 23-3-2001, tal como foi constatado pela liquidatária, pelo senhor louvado P…., por K…. e por N…. [X)]; 21.º) Nos autos de falência só cinco credores é que reclamaram créditos que totalizavam €441.144,12. O arguido D1…., Lda. reclamou a mais a quantia de €75.143,69. 
O assistente recuperou € 75.077 com adjudicação de um imóvel em execução instaurada contra C….. Pelo que as dívidas da falida não ultrapassavam € 300.000 [Z)]; 
22°) Os activos da empresa em 9-6-2001 eram aqueles que resultam da certidão de fls.771 a 913 e ascendiam a €727.292,38, conforme já referido na motivação [AA)]; 
23.°) Do exposto resulta que o arguido C…. conduziu a empresa à falência, dissipando o seu património que era suficiente para o pagamento das suas dívidas levando-o para a fábrica do outro arguido D…., comportamento que se subsume ao previsto na alínea a) do artigo 227.° do Código Penal [AB)]; 
24.°) O arguido C…. diminuiu o seu activo, destruiu a contabilidade, permitiu que o arguido D…. reclamasse contra a sua empresa créditos inexistentes, comportamento que se subsume à alínea b) do artigo 227° do Código Penal [AC)] 
25.°) Em 2001, o arguido adquiriu à assistente cortiça no valor de € 97.553,50 num total de compras de € 143,895,82, comportamento que se subsume à alínea d) do artigo 227° do Código Penal [AD)]; 
26.°) Por sua vez, o comportamento do arguido D…. subsume-se ao previsto na alínea b) do Código Penal já que nestes autos está claramente demonstrada a participação do arguido D1…, Lda. em toda esta história [AE)];
27.°) Isto posto, este arguido preenche de forma clara e plena os pressupostos do n°. 2 do artigo 227° do Código Penal. Poderia até constituir exemplo académico da aplicabilidade prática desta norma, pelo que deve ser pronunciado pela prática desse mesmo crime [AF)]; 
28.°) Relativamente aos arguidos F… e E…, devem os mesmos ser acusados como cúmplices do crime de insolvência dolosa já que constituíram meio para a estratégia do arguido C… [AG)]; 
29.°) A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 379.°, n.° 1 e 374.°, n.° 2 do Código Processo Penal e o artigo 227.°, n.° 1 e 2 do Código Penal [AH)]. 
3. O Ministério Público respondeu em 20l2/Mar./23, a fls. 1350-1357, pugnando que se negue provimento ao recurso, sustentando essencialmente o seguinte: 
1.º) O apontado vício da falta de fundamentação corresponde a uma irregularidade e não a nenhuma nulidade, sanável ou insanável, tomando por base a conjugação do disposto nos artigos 119.°, 120.°, 123.° do Código de Processo Penal e o suporte nos acórdãos desta Relação de 2008/Set./10 e 2011/Mai./05; 
2.°) Na decisão instrutória posta em crise nestes autos, verifica-se que aí foi feita a indicação das diligências realizadas em sede de inquérito e instrução, indicando-se de seguida o factualismo que se considerou provado e não provado, tendo-se analisado criticamente a prova, explicitando-se de forma clara o raciocínio lógico que levou a definir aquela matéria de facto; 
3.°) A decisão instrutória recorrida encontra-se devidamente fundamentada, devendo manter-se nos precisos termos em que foi proferida, uma vez que se encontra devida e suficientemente fundamentada e, face à prova produzida nos autos, não existem indícios suficientes que permitam submeter qualquer um dos arguidos a julgamento pela prática da infracção criminal de insolvência dolosa, quer como autores materiais, quer como cúmplices. 
4. Recebidos os autos nesta Relação e aqui autuados em 2012/Jun./06, foram os mesmos com vista ao Ministério Público que emitiu parecer em 2012/Jun./l8 a fls. 1369-1376, que, aderindo à resposta anterior, sustenta igualmente que o recurso não merece provimento, porquanto: 
1.º) A verificar-se a falta de suficiência da fundamentação da decisão esta seria uma mera irregularidade, sujeita ao regime do artigo l23.° do Código de Processo Penal que estaria já sanada, porque não foi invocada nos termos e no prazo do n.° 1 deste artigo, mas mesmo que assim não se entendesse não se verifica a suscitada falta de fundamentação; 
2.°) Mas também não se verifica que entre os actos típicos imputados aos arguidos e a declaração de insolvência se verifique a necessária “conexão histórica” ou a “ligação fáctica”, não havendo para o efeito a prova suficientes dessa conexão ou ligação, face aos depoimentos já anotados na resposta anterior do Ministério Público. 
5. O recorrente replicou por correio electrónico expedido em 2012/Jul./04 a fls. 1383-1388 mantendo a sua posição inicial. *
* * O objecto do recurso passa pela falta de fundamentação da decisão instrutória [a)] e pela existência de indícios para a pronúncia dos arguidos pelo crime de insolvência dolosa [b)]. *
* * II. FUNDAMENTAÇÃO 
a) A falta de fundamentação da decisão instrutória 
O dever de fundamentar uma decisão judicial é uma decorrência, em primeiro lugar, do disposto no art. 205.°, n.° 1 da Constituição, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Trata-se de uma injunção constitucional mas de configuração legal, mediante a qual se deixa ao legislador ordinário a regulação do respectivo instituto, conferindo-lhe uma ampla margem de conformação, muito embora se deva preservar a essência da respectiva directiva constitucional. No entanto, tal dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no artigo 32.°, n.° 1, da Constituição, podendo também ser perspectivado como uma dimensão do direito a um processo equitativo, com assento no artigo 20.°, n.° 4 da Constituição, mas também referenciado nos artigos 10.º da DUDH, 14.° do PIDCP, 6.°, § 1 da CEDH e 47.°, n.° 2 da CDFUE — neste último sentido se tem pronunciado o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) (Acs.TEDH de 1994/Abr./19, Van de Hurk c. Holanda; 1994/Dez./09, Hiro Balani c. Espanha; Ruiz Torija c. Espanha; 1998/Fev./19 Higgins e outros c. França; 2001/Set./27, Hirvisaari e. Finlândia; 2005/Abr./28, Albina c. Roménia). 
A propósito tem se considerado que o dever de fundamentação tem subjacente duas funções primordiais: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão (i), permitindo simultaneamente às partes o conhecimentos da razão de ser das mesmas (ii), conferindo-lhes a possibilidade de recurso, colocando o tribunal superior numa posição em que possa exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente (iii); b) outra, de ordem extraprocessual, de modo a tornar possível um controlo externo e geral sobre a razoabilidade da argumentação do contexto descritivo e justificativo decisório, garantindo-se a transparência do processo e da decisão (Ac.TC 55/85, 322/93, 135/99, 408/2007). Daí que o dever constitucional de motivação das decisões judiciais imponha uma obrigação de fundamentação completa, mediante uma valoração crítica e racional de todas as questões essenciais ou pertinentes que importem ser resolvidas, permitindo a transparência do processo decisório, promovendo a sua compreensão e aceitação, o que só é possível se a correspondente motivação estiver devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido (Ac. TC 401/02 e 546/98). Tal implica que, ao proferir-se uma decisão judicial, se conheçam as razões que a sustentam, de modo a se aferir se a mesma está fundada na Lei e no Direito. A motivação será assim perspectivada como um elemento de transparência democrática e de qualidade da justiça, intrínseco a todo o acto jurisdicional decisório, de forma a aferir-se da sua razoabilidade e a obstar-se a decisões arbitrárias. 
Saliente-se, no entanto, que essa exigência de motivação varia em função das questões que são suscitadas, tudo dependendo das circunstâncias de cada caso, designadamente da sua natureza e complexidade. A motivação das decisões deve é ser clara, expondo de modo suficiente as razões que a sustentam, respondendo às questões pertinentes e controvertidas que foram suscitadas. Mas não existe nenhuma obrigação motivadora que imponha o conhecimento de todos os argumentos expendidos pelas partes, não sendo exigível que se responda a todas as questões de uma forma minuciosa. 
A propósito o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), partindo do artigo 6.°, § 1 da CEDH, considera que o direito a um processo equitativo tem essencialmente subjacente dois pressupostos: o primeiro é que a motivação é essencial para a qualidade e transparência da justiça, levando o juiz a controlar os fundamentos da sua decisão, ao mesmo tempo que é um factor contra o arbítrio; o segundo é que as partes tenham conhecimento das razões que levaram à decisão, permitindo àquelas um controlo dos fundamentos desta última e eventualmente, a sua impugnação mediante recurso. 
Isto não significa que esse dever de motivação se estenda minuciosamente a todos os argumentos invocados, mas apenas aos que sejam considerados como pertinentes ou seja, àqueles que são susceptíveis de influenciar a tomada de decisão (Acs.TEDH de 1994/Abr./19, Van de Hurk c. Holanda; 1994/Dez./09, Hiro Balani c. Espanha, Ruiz TorijalEspanha; 1998/Fev./19, Higgins e outros c. França; 2006/Jan./31, Merigaud/França). A profundidade e o nível de motivação varia em função das questões suscitadas e das circunstâncias do caso, designadamente a sua natureza e complexidade ([Acs.TEDH de 1997/Mai./29, Georgiadis/Grécia; 1997/Jul./01, Gustafson c. Suécia; 1994/Dez./09, Hiro Balani/Espanha), não podendo revestir-se de um carácter lapidar ou tabular (Ac.TEDH de 1997/Mai./29, Georgiadis c. Grécia), impondo sempre um exame efectivo dos argumentos invocados (Ac.TEDH de 2000/Mar/21, Dulaurans c. França). 
A partir desta leitura da vinculação constitucional do dever de fundamentação, é necessário que existam mecanismos jurídicos infra-constitucionais, que no direito público começaram por ser designadas por garantias institucionais (Institutioneile Garantien), que implementem aquela injunção constitucional e assegurem na prática judiciária o seu exercício, o qual pode assumir matizes distintas, atenta a relevância da respectiva decisão judicial. *Nesta conformidade o Código de Processo Penal[1] começa por estabelecer no seu artigo 97.°, n.° 4 que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. No entanto e em algumas situações precisa o nível e a própria estrutura da fundamentação, como sucede com os despachos de aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial (194.°, n.° 4), da decisão instrutória de pronúncia (308.°, n.° 1 e 283.°, n.° 3) e da sentença (374.°, 375.º, 376.°), cuja inobservância conduz à nulidade da correspondente decisão (194.°, n.° 4; 283.°, n.° 3; 309.°, 379.°, n.° 1) 
Isto não significa que, em alguns casos, não se possa efectuar essa fundamentação mediante remissão, designadamente para os motivos da promoção do M. P. ou para outras peças processuais, desde que transpareça que o juiz procedeu a uma real e efectiva ponderação das questões suscitadas, como sucede com o decretamento ou a manutenção da prisão preventiva (Ac.TC 189/99, 396/2003) ou da decisão instrutória de pronúncia mediante remissão para a acusação pública (307.°, n.° 1). 
Por sua vez, no regime geral da invalidade dos actos, com destaque para o seu princípio da legalidade recepcionado no artigo 118.°, n.° 1 do Código Processo Penal, estabelece-se que “A violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal so determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, consagrando-se nitidamente um apertado princípio da taxatividade ou de “numerus clausus” das nulidades. Daí que sejam apenas irregularidades os restantes vícios não atingidos expressamente pela nulidade, tal como decorre da regra subsidiária do n.° 2 deste artigo 118.° — aqui se alude que “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular”. Tratando-se de nulidades sanáveis e de irregularidades, as mesmas têm que ser suscitadas perante o tribunal que as cometeu (120º, n.° 1; 123.°, n.° 1). Tal não sucede se forem nulidades insanáveis, pois estas são do conhecimento oficioso (119º, n.° 1) ou então sendo nulidade das sentenças, podem estas ser, desde logo, fundamento imediato de recurso (397.°, n.° 2). Tais nulidades ou irregularidades são dominadas pela sua característica de relatividade — em oposição à natureza absoluta das nulidades insanáveis —, pois estão condicionadas à invocação pelo interessado (i), no correspondente prazo e adequadamente perante o tribunal que as cometeu, e à possibilidade de ficarem sanadas (ii), designadamente se for ultrapassado o correspondente prazo de arguição sem que se provoque o seu conhecimento (121º, n.° 1, por interpretação conjugada com os artigos 120.°, n.° 1 e 123°, n.° 1). 
Assim, a reparação oficiosa de uma irregularidade, nos termos do artigo 123.°, n.° 2, só é possível enquanto esta não estiver sanada. Caso contrário, ou seja, admitir-se a reparação oficiosa de uma irregularidade que já tivesse sido convalidada, designadamente pelo decurso do tempo, estar-se-ia perante uma mera irregularidade que passaria a ter a natureza de uma nulidade insanável, o que, convenhamos, colidiria com a unidade e a harmonia do sistema jurídico, pois numa escala de invalidade dos actos aquele que representa uma imperfeição menor ou ligeira passaria a estar sujeito à mesma regulação e robustez destruidora daqueles vícios que apresentam um defeito ostensivo e insuperável (9.°, n.° 1 Código Civil). 
Aliás e sabendo que o actual Código de Processo Penal seguiu de perto as soluções que vieram a ser consagradas no sistema processual penal italiano, sendo, por isso, conhecedor do mesmo, temos como relevante para uma leitura do nosso regime dos vícios das decisões judiciais, que aquele não tenha estabelecido um preceito semelhante ao do artigo 125.°, do C. P. Penal Italiano, relativo à “Forme dei provvedimenti del giudice” que para a deficiência de motivação das decisões jurisdicionais catalogou as mesmas de nulidade — aí se preceitua que “Le sentenze e le ordinanze sono motivate, a pena di nullitá [177, 604, 606 lette]. I decreti sono motivati, a pena di nullitá [181], nei casi in cui la motivazione é espressamente prescrita dalla legge [127, 132, 244, 247, 253, 267, 321, 409, 414]”. 
Ora a deficiência de fundamentação das decisões jurisdicionais, não surge sequer no catálogo das nulidades absolutas e como tal insanáveis do artigo 119.º ou no quadro das nulidades relativas do subsequente artigo 120.°, nem expressamente em qualquer disposição legal. No que concerne à decisão instrutória e só quando esta for de pronúncia é que está expressamente prevista a respectiva nulidade. Vejamos no entanto como é que a jurisprudência tem encarado os vícios da falta de fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia, reconhecendo-se desde já que a mesma não tem sido uniforme, já que a propósito se têm alinhado as seguintes posições: 
— a decisão instrutória deverá conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitem chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária, acarretando essa falta de descrição factual a nulidade da decisão instrutória (308.°, n.° 2, 283.°, n.° 3, al. b), do C. P. Penal; Ac.TRE de 2005/Mar./0l (Recurso n.° 148 1/04-1)); 
— a omissão da descrição e especificação dos factos do requerimento instrutório que se devam considerar suficientemente indiciados ou não, constitui uma irregularidade que influi no conhecimento da causa, que pode ser conhecida oficiosamente (123.°, n.° 2 do C. P. Penal; Ac.TRG 2007/Fev./12 (Recurso n.° 2335/06-1), 2005/Jul./04 (CJ IV/300), 2004/Dez./06 (Recurso n.° 1823/04-1), 2004/Set./27 (Recurso n.° 1008/04-2), 2004/Jan./01 (Recurso n.° 293/04-1); 
- O despacho de não pronúncia não está sujeito às exigências de fundamentação das sentenças, estabelecidas no art. 374º, n.° 2, mas apenas ao dever genérico previsto no art. 97.°, n.° 4, ambos do C. P. P., consistindo a falta de fundamentação numa irregularidade, sujeita ao regime geral do art. 123.°, devendo para o efeito ser atempadamente suscitada perante o juiz, sob pena de se considerar sanada (Ac.TRL de 2004/Jan./15 (CJ I/125), 2004/Out./14 (CJ IV/145), Ac.TRC de 2006/Jun./14 (Recurso n.° 823/06), Ac. TRP 2007/Set./0l (Recurso n.° 5119/07-1), 2008/Set./10 e 2011/Jan/05.[2]
Tem sido este último posicionamento aquele que temos seguido, o qual se mostra mais consentâneo com a disciplina da legalidade ou validade dos actos em geral e com o regime específico da nulidade da decisão instrutória. É que se bem atentarmos neste último, apenas se quis revestir a decisão instrutória de nulidade quando esta for de pronúncia, como já referimos, e apenas em duas situações tipo expressamente tabeladas: a) quando represente uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública ou no requerimento para abertura da instrução conducente à pronúncia — excluiu-se a alteração não substancial (309.°) e aqui diverge-se da regulamentação específica da nulidade das sentenças; b) quando não se respeite o registo legal descritivo da acusação (283.°, n.° 3, mediante remissão do art. 308.°, n.° 2). 
A ser assim, não podemos estender o rigor descritivo da (in)validade da decisão de pronúncia ao despacho de não pronúncia, porquanto o segmento normativo do artigo 283.°. n.° 3 é privativo da regulação daquele libelo, já que o seu proémio apenas menciona que “A acusação contém, sob pena de nulidade:”, não estando o despacho de arquivamento do inquérito, como se pode constatar da previsão do artigo 277.°, sujeito à mesma rigidez narrativa. Aliás, caso se sustente essa interpretação extensiva do artigo 283.°, n.° 3 ao despacho de não pronúncia, estar-se-ia formalmente a “fugir” de um juízo crítico da prova, que aqui tem toda a pertinência em se fazer, atentas as finalidades do debate instrutório (298.°) e da própria instrução (286.°, n.° 1) pois esta visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito. 
No caso, o recorrente não suscitou o pretenso vício de irregularidade da decisão recorrida de não pronúncia no tribunal recorrido, pelo que, à partida, estaria aberto o caminho para se considerar sanado tal vício. 
Porém, a decisão sumária anteriormente proferida nesta Relação em 2011/Jul./11, a fls. 1204-1229 deu provimento ao recurso pretérito, partindo certamente do pressuposto, que não nos cabe avaliar, de que a questão a decidir já foi “apreciada de modo uniforme e reiterado” (417.°, n.° 6, al. d)[3] e com base na seguinte argumentação, que se encontra na sua descrição justificativa (fls. 1223-1229), a qual optamos por transcrever: (i) “se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já pode ser declarada oficiosamente [a irregularidade] sem qualquer restrição” (fls. 1225); (ii) “Evidencia-se, pois que o tribunal a quo, para além de citar matéria de facto que fica muito aquém da vertida no RAI e até daquela que se sumariou no relatório, limitando-se a exarar pouco mais do que conclusões nos factos considerados não indiciados, também não expressou na decisão qualquer razão, circunstância ou referência que permitia identificar os concretos meios de prova que atendeu para obter a sua convicção a tal propósito e os termos em que os mesmos foram ou não atendidos, acrescentando ainda a alusão a factualidade, que não especificou, mas que diz abrangida pelo princípio “ne bis in idem” (fls. 1226); (iii) “Consequentemente, entendendo-se que a irregularidade que se evidencia do texto da decisão recorrida atinge valores e princípios que extravasam o interesse dos concretos sujeitos processuais, deve a mesma ser declarada oficiosamente por este tribunal de recurso e determinada a sua reparação pelo tribunal a quo, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 123.°, n.° 2 do Cód. Proc. Penal, ocorrendo a invalidade de todos os efeitos e de todos os actos subsequentes dele dependentes” (fls. 1229). Como se pode constatar esta primeira decisão desta Relação seguiu um dos três caminhos atrás expostos. 
Mas é este posicionamento que aqui teremos rigorosamente de respeitar devido à força do caso julgado formal (672.° C. P. Civil ex vi 4.° C. P. Penal), enquanto manifestação do princípio da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito (2.° da Constituição), na dimensão da afectação das legítimas expectativas dos cidadãos, as quais não podem ser arbitrária ou inadmissivelmente afectadas por decisões judiciárias contrárias (Ac.TC 176/2012, 135/2012, 18/2011, 158/2008, 615/2007, 302/2006, 160/2000, 99/99, 625/98, 285/92, 303/90, 287/90, 86/84, 17/84, 11/83). Como já se salientou “o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar” (Ac.TC 60/2000). Assim e por força do caso julgado, que neste caso será formal e por isso com relevância apenas endoprocessual, devemos acautelar a protecção da confiança dos destinatários processuais na actuação do Tribunais, o que implica um mínimo de certeza na tutela, quer na âmbito decisório, quer ao nível da fundamentação essencial que sustentou aquela, pois a mesma já criou fortes expectativas jurídicas de ser mantida ao longo do processo, não se admitindo afectações arbitrárias ou desproporcionalmente gravosas com as quais, o cidadão comum, minimamente avisado, não pode razoavelmente vir a contar (Ac.STJ 2007/Mar./27). E essa vinculação do caso julgado formal dirige-se tanto a este Tribunal de Recurso, como aos demais sujeitos processuais, pelo que é destituído de fundamento vir agora, em sede de recurso, fazer-se apelo, como faz a assistente, ao disposto no artigo 374.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, onde se enumeram os requisitos de uma sentença, de modo a que tal segmento normativo seja aplicável às decisões instrutórias. * A decisão recorrida datada de 2011/Out./27, a fls. 1240-1255 comporta essencialmente um contexto descritivo (fls. 1240-1242), que integra o seu relatório e o saneamento do processo, para depois passar ao seu contexto justificativo, que integra a epígrafe aí designada por “Decisão”, mas que acaba por corresponder a uma fundamentação. Nesta começa por enumerar a prova recolhida durante o inquérito e a instrução, indicando depois a factualidade que considera com “interesse para a decisão da causa”, distinguindo os factos considerados indiciados daqueles que não estão indiciados, fazendo um bosquejo da prova produzida e apreciando a mesma criticamente (fls. 1242-1249). A partir daqui passa para a análise do crime de insolvência aqui em causa e pelas possibilidades de tipificação através da conduta dos arguidos, tanto no plano da insolvência dolosa, como negligente, concluindo pela não pronúncia dos arguidos (fls. 1249-1255). 
No seu recurso (fls. 1292-1342), com destaque para a sua motivação, a assistente, muito embora aponte que “a decisão em crise omite a indicação e o exame crítico das provas produzidas”, suportando-se na conjugação dos artigos 374.°, n.° 2 e 379.°, n.° 1 al. a), que aqui não têm qualquer aplicação, acaba, no seu essencial, por divergir da argumentação da decisão recorrida, de tal modo que indica e analisa “cada um dos raciocínios” desta, fazendo o seu “Comentário” (fls. 1294-1314). Ora estes “comentários” evidenciam uma divergência na análise da prova e não que a mesma tenha reconhecido a insuficiência motivatória da decisão recorrida. 
Aliás, esta centra a sua descrição justificativa na indiciação ou não da factualidade pertinente e nos meios de prova a que concedeu relevo, explicitando as respectivas razões. Naturalmente que existe divergência entre a decisão de não pronúncia e os propósitos de pronúncia motivados pela recorrente no seu requerimento de abertura de instrução e renovados neste seu recurso. Mas isso não significa que exista essa falta de fundamentação por parte do despacho recorrido, o qual se centra naquilo que considera essencial para um juízo decisório, justificando de modo razoável o seu posicionamento. 
Nesta conformidade, improcede este fundamento de recurso. 
* 
b) Existência de indícios suficientes para a pronúncia pelo crime de insolvência dolosa 
i) Os indícios suficientes 
Estabelece o art. 308.°, n.° 1 do Código Processo Penal[4] que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de urna pena ou de urna medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Segundo o art. 283.°, n.° 2, para onde remete o art. 308.°, n.° 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar urna possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, urna pena ou medida de segurança”. Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, está o disposto no art. 286.°, n.° 1, segundo o qual “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Neste juízo de suficiência de indícios deve igualmente estar presente o dever de respeito pela dignidade da pessoa humana, o qual é imanente a qualquer Estado de Direito Democrático e está consagrado no nosso ordenamento jurídico interno (l.°; 24.°, n.° 1, 25.° da Constituição), assim como nas fontes internacionais de direito a que estamos vinculados (5.° da DUDH[5] 3º, nº 1 da CEDH[6] 7º, n.° 1, l0.°, n.° 1 do PIDCP[7] 1.º, 3°, n.° 1, 4.° da CDFUE[8]; 8.°, 16.°, n.° 2 Constituição). Para o efeito reconhece-se, entre outras coisas, que uma acusação ou uma pronúncia podem sempre afectar o bom-nome e a reputação de uma pessoa (26.°, n.° 1, Constituição), devendo-se acautelar as intromissões abusivas e arbitrárias na respectiva esfera de direitos (art. 12.°, DUDH; 8.° da CEDH). Assim e como se afirmou no Ac. do STJ de 2005/Mai./18[9], “aquela “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa” — neste sentido e entre outros já se tinham manifestado os Ac. da R.P. de 1990/Jan./l0, 1993/Out./20, bem como o Ac. R.L. 1999/Fev./20, in, respectivamente, C.J., 1/247, IV/261, I/145. 
A par deste princípio da dignidade humana ou então como uma das suas manifestações específicas surge o princípio “in dubio pro reo”, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência (32.°, n.° 2, C. Rep.; 11.º, n.° 1 DUDH; 6.°, n.° 2 da CEDH; 1.º, n.° 1 da CDFUE). De acordo com o princípio “in dubio pro reo” sempre que se esteja, no decurso da apreciação e avaliação da prova perante uma dúvida irremovível e razoável, quanto à verificação de certos factos que geram a sua incerteza, deve o Tribunal favorecer o arguido. Aliás, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de realçar a relevância deste princípio e da inadmissibilidade da sua exclusão na valoração da prova que está subjacente ao despacho de pronúncia, ao “julgar inconstitucionais os artigos 286°, n°1, 298°, e 308°, n° 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32 n° 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de uni juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil.” [Ac. 439/02].[10] O mesmo tem sido assinalado pela demais jurisprudência, segundo a qual “O juízo de prognose que determinará a sujeição do arguido a julgamento é equivalente tanto na fase de inquérito, como na fase de instrução, e exige uma possibilidade de condenação em julgamento que respeite o princípio in dubiopro reo.” [Ac. R. Porto de 2011/Nov./23]. 
Em suma, podemos dizer que “Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito democrático e da presunção da inocência impõem que a expressão indícios suficientes (308°/JCPP,) seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final” (Ac. R. Porto de 2010/Jan./20). 
Isto significa que no culminar da fase de instrução, como se refere no Ac. desta Relação de 2006/Jan./04, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases. Em primeiro lugar, por um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada. Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido. Por último efectuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se conclua que predomina uma razoável possibilidade do arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se sempre um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efectuar em julgamento. * ii) O crime de insolvência dolosa 
No crime de insolvência dolosa da previsão do artigo 227.°, pune-se no seu n.° 1º “O devedor que com intenção de prejudicar os credores: a) Destruir, danificar, inutilizar ou fazer desaparecer parte do seu património; b) Diminuir ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida; c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente; é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente …” 
Mais se acrescenta no seu n.° 2 que “O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.° 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em beneficio deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada”. 
Neste crime pretende-se tutelar directamente o património dos credores ou então e para se ser mais preciso o direito ao crédito por parte destes, como de resto se pode constatar do preceituado no CIRE[11], mais precisamente no seu artigo 1.º ao instituir que o processamento de insolvência é “um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores”. Mas isto sem que se possa esquecer que através deste mesmo ilícito se pretende proteger, ainda que mediatamente, o correcto funcionamento da economia de mercado, como peça fundamental do sistema socioeconómico. 
As acções típicas encontram-se enumeradas nas diversas alíneas, as quais correspondem a actos que, de um modo geral, visam a diminuição efectiva do património (a), a diminuição simulada do património (b), a dissimulação contabilística dos prejuízos ou dos lucros (e) o retardamento da apresentação à falência, mediante expedientes de compra e venda de mercadoria a crédito (d). Tratam-se de condutas, todas elas dolosas, vinculadas à realização do estado de insolvência, uma vez que as mesmas foram determinantes para que tivesse ocorrido essa situação de desequilíbrio financeiro negativo, em que o passivo se sobrepõe inexoravelmente ao activo, mediante o qual o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. 
Daí que as condutas típicas intencionalmente orientadas à frustração do direito de crédito, mediante um projecto de resolução criminosa, que normalmente se estende por vários actos de defraudação directa ou indirecta do património, os quais se podem prolongar no tempo, tanto podem conduzir a situações de falência real ou efectiva, como a situações de falência aparente ou simulada, que corresponde aos casos de insolvência criadas artificialmente e com o único propósito de prejudicar os credores. Por isso, o crime de insolvência dolosa acaba por integrar não só os casos correntes de insolvência real ou efectiva, como também os casos de insolvência aparente ou simulada, agora tão frequentes. 
Por sua vez, a declaração judicial de insolvência, corresponde a uma condição objectiva de punibilidade, corno tem sido jurisprudência corrente (Ac.STJ de 1993/Set./22)[12]. * Atento o requerimento de abertura de instrução (RAI) e o actual recurso formulado pela assistente, em que neste e ultrapassado aquilo que aponta como sendo nulidade da decisão instrutória se renovam as considerações já expendidas naquele, seguindo até o mesmo texto ou alterando-o ligeiramente, quer quanto à existência de indícios, quer no que concerne à tipificação de um crime de insolvência dolosa, o que está essencialmente em causa é a diminuição efectiva do património, na vertente de os arguidos terem feito “desaparecer parte do seu património” — entenda-se da sociedade falida. 
O desaparecimento do património corresponde ao descaminho dos bens que o integram, os quais tanto podem ser um significado material, como imaterial — e não propriamente à sua “desaparição jurídica”, mediante actos de tradição ou através de qualquer negócio jurídico que façam diminuir ficticiamente o património. Assim, o acto de fazer desaparecer tem o significado de impossibilitar que se descubra o paradeiro dos bens, inclusive de mercadorias, que se encontrem na titularidade e disponibilidade do devedor, de modo que os credores não tenham possibilidade de ver satisfeitos os seus créditos em relação àquele outro. 
No entanto, também podemos constatar que foi suscitado no RAI, tanto em termos argumentativos (por exemplo nos itens 31, 33, 61, 62 e 165), como factuais (item XXXV) o desaparecimento da contabilidade da sociedade falida, que agora foram igualmente renovados em sede de recurso (Conclusão AC). 
A propósito diremos que a ocultação dos elementos contabilísticos, que integra a alínea b) do n.° 1 do artigo 227.° do Código Penal, será tipicamente relevante quando a mesma visar obstar ao conhecimento real da situação contabilística e financeira do devedor que vier a ser insolvente, mormente o seu património, surgindo a falta desses elementos como um expediente para obstar ao respectivo controle do activo e do passivo contabilístico, contribuindo, assim, para a situação de insolvência — este conduta de ocultação contabilística é normalmente usada para as situações de insolvência aparente ou simuladas. 
Na decisão instrutória foi apenas considerado indiciado o seguinte: 
a) Por sentença proferida em 14-06-2004, no âmbito do processo n.° 2440/03.4TBVFR, foi declarada a falência de “C…., Lda”, transitada em julgado em 27-07-2004; 
b) Em tais autos foram apreendidos os seguintes bens — os quais estão melhor descritos a fis. 12459 
c) A contabilidade da falida não foi apreendida 
d) Em 2002, foi criada a sociedade “Q…., Lda”, tendo como gerentes E…. e mulher, F….., gerida, de facto, pelo arguido C……”. 
Nas suas alegações de recurso, a assistente considera que nessa decisão se “esqueceu” — foi esta a expressão utilizada — do seguinte: 
- A fábrica do insolvente encerrou em 9 de Junho de 2001 de onde foram retiradas as todas as existências; 
- Só apareceram cinco credores a reclamar créditos; 
- A contabilidade da falida foi destruída; 
- As existências eram avultadas, tal como resulta de documentos apresentados pela administração fiscal; 
- As existências da falida foram conduzidas para a fábrica de D…... 
Diga-se a propósito que a prova revelada nos autos e que apresentam um carácter objectivo correspondem essencialmente à prova documental, a saber: a dissolução e liquidação da sociedade “Q…. — Lda.” (fls. 266/267) e a procuração de 2001/Dez./21, a fls. 263, a declaração de 2005/Dez./09, de fls. 268; a sentença homologatória do divórcio de 2002/Dez./18, de fls. 283/284; o auto de apreensão de bens efectuado pela GNR em 2001/Jun./11, a fis. 303; a carta de 2001/Set./25, de fls. 311, onde é patente o litigio entre o arguido C….. e a sua ex-esposa; a sentença de graduação de créditos de 2006/Ago./03, de fls. 329-335, respeitante à sociedade “D1…., Lda.”; o auto de arrolamento e apreensão de bens de 2004/Jul./21, de fls. 354-356, de 2004/Out./29 de fls. 357-358; o parecer da senhora liquidatária da falência de fls. 364; o auto de arresto da diligência de 23/Mar./200l; a informação de 2004/Jun./16 de fls. 503, onde se patenteia a recusa do arguido C…. em fornecer os elementos contabilísticos, e o relatório pericial do Dr. M…. de 2004/Jun./22, fls. 504-517; as sentenças proferidas nos processos crime respeitante ao crime de descaminho de bens; os documentos enviados pela administração fiscal de fls. 771-913, que mereceu a leitura da assistente em 2009/Dez./17, a fls. 924-928. 
Desta prova, conjugado com os depoimentos prestados por I…., N…., J…. e K…., F…. e E…., podemos considerar que se encontram suficientemente indiciados os factos descritos na decisão instrutória e ainda ou também os descritos sob os itens II, III, IV, mas aqui fazendo-se referência aos credores que reclamaram os seus créditos no processo de insolvência, V a X, XIV, XVI, XVII, XVIII, XXIII. XXIV, explicitando-se quem eram os sócios da Q…. e da existência da procuração a favor do arguido C…. e eliminando-se a parte final (“demonstrando claramente ...“), XXV, XXVI, explicitando-se quais foram os créditos reclamados e reconhecidos à sociedade D1…., Lda, de que o arguido D…. é sócio-gerente; XXVIII, XXIX, XXXIII, XXXV, XXXV, XXXVI, todos do RAI, que deve ser integrado com o descrito nas conclusões AA), AB), AC) do recurso aqui em apreço. 
Para o efeito torna-se por demais pertinente ter presente os elementos que ultimamente foram fornecidos pela administração fiscal e deles fazer a leitura que a assistente aqui recorrente efectuou em 2009/Dez./17, a fls. 924-928 e agora renovou nas suas alegações de recurso, como se pode constatar nas alíneas a) a 1), conjugado com as subsequentes alíneas de a) a f), a fls. 1331-1332. 
Tais elementos de prova, os quais devem ser lidos conjugada e não isoladamente, bem como conexionados com os citados depoimentos que foram anteriormente assinalados, correspondem a standards probatórios objectivos, que uma leitura dos mesmos, mais atenta e com conhecimento das “performances” contabilísticas e financeiras empresariais, devem ser submetidos a um juízo crítico de (des)construção dos factos, ainda que com o recurso, na fase de julgamento, a auxílio especializado de um economista ou solicitar os pareceres que considerar conveniente, como permite o disposto no artigo 649.° do Código de Processo Civil ex vi artigo 4.° do Código de Processo Penal. Essa prova conduz à existência de um juízo probatório, seja de indiciação, como de imputabilidade ou mesmo condenatório em relação aos arguidos C…. e D…. na criação de um estado de insolvência aparente ou simulado, como de resto se pode constatar pelo total dos créditos que foram reconhecidos no processo de insolvência que rondaram apenas os €366.000,43, quando o activo ocultado pelo desaparecimento da contabilidade era superior. Tal conduta integra o cometimento de um crime de insolvência dolosa da previsão do artigo 227, n.° 1, al. a) e b) por parte do arguido C…. e de um crime de insolvência dolosa da previsão do artigo 227, n.° 1, al. a) e b) e n.° 2 no que concerne ao arguido D….. 
O mesmo não sucede em relação aos arguidos F…. e E…., pois estes surgem como meras “testas de ferro”, não se tendo minimamente indiciado que os mesmos tivessem conhecimento do presente projecto delituoso do arguido C…., quando este constituiu, através destes, a sociedade “Q…., Lda.” 
Nesta conformidade, tem aqui plena procedência este último fundamento de recurso, mas apenas e tão-só quanto àqueles dois primeiros arguidos, sendo certo que, se bem percebemos, a assistente não impugna a decisão de não pronúncia no que concerne a estes dois últimos arguidos. * 
* * III. DECISÃO 
Nos termos e fundamentos expostos, concede-se parcial provimento ao recurso interposto pelo assistente B…., Lda e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, a qual deve pronunciar os arguidos C…., D…., pelos factos e crime anteriormente assinalados, referenciando a conveniente prova testemunhal, documental e assessoria técnica especializada. 
Mais se condena o assistente na taxa de justiça de três (3) Ucs. (515.°, n.° 1, al. b), do C. P. Penal), pelo seu decaimento parcial. 
Notifique. 

Porto, 17 de Outubro de 2012 
Joaquim Arménio Correia Gomes
Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro
____________________
[1] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizerem referência sem indicação expressa da sua origem
[2] Estando todos os acórdãos citados não publicados na Colectânea de Jurisprudência (CJ), acessíveis em wvw.dsi.pt, tendo sido os dois últimos por nós relatados.
[3] E isto porque as demais situações que comportam uma decisão sumária, tal como se encontra regulado no artigo 417.°, n.° 6, correspondem a casos de improcedência do recurso, como seja a circunstância que obste ao conhecimento do recurso (a); a casos de rejeição do mesmo (b), o que sucede nas situações contempladas no artigo 420°, n.° 1 (manifesta improcedência do recurso; causa da sua não admissibilidade; vícios das conclusões recursivas que o afectem na sua totalidade) ou então de existência de causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo de recurso (c).
[4] Mais uma vez e doravante serão deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem. 
[5] Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 Dezembro de 1948 [DR 1978/Mar./09] 
[6] Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que foi aprovada, para ratificação, pela Lei n.° 65/78, de 1 3/Out. 
[7] Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado, para ratificação, pela Lei n.° 29/78, de 1 2/Jun. [DR 1, n.° 133]. 
[8] Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, publicada na sua versão consolidada, no JOUE C/83/389, de 2010/Mar./03 
[9] Relatado pelo Cons. Pereira Madeira e divulgado em www.dsi.pt, como todos os demais a que não se faça expressa referência quanto à sua origem.
[10] Relatado pela Cons. Maria Fernanda Palma e acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
[11] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto -Lei n.° 53/2004, de 18 de Março, alterado pelos Decretos-Leis n.° 200/2004, de 18 de Agosto, 76 -A/2006, de 29 de Março, 282/2007, de 7 de Agosto, 116/2008, de 4 de Julho, 185/2009, de 12 de Agosto e pela Lei n.° 16/2012, de 20 de Abril 
[12] Relatado pelo Cons. Ferreira Dias e acessível em wwwdgsi.pt.

Recurso n.° 833/03.6TAVFR.P1 Relator: Joaquim Correia Gomes Adjunta: Paula Guerreiro Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto 1. RELATÓRIO 1. Na Instrução n.° 833/03.6TAVFR do 2.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, em que são: Recorrente/Assistente: B….., Lda. Recorridos/Arguidos: C….., D…., E…. e F….. Recorrido: Ministério Público foi proferida decisão instrutória em 201l/Out./27, a fls. 1240-1255, que não pronunciou os arguidos pela prática, como autores materiais, de um crime de insolvência dolosa da previsão do artigo 227.° do Código Penal. 2. A assistente interpôs recurso em 201l/Dez./09 a fls. 1292-1342, sem que tivesse formulado expressamente qualquer pedido, mas concluindo que: l.°) Refere o artigo 374° n°2 do CPP, aplicável às decisões instrutórias, que a fundamentação de uma decisão traduz-se numa enumeração de factos provados e não provados — em sede instrutória dos indiciados e não indiciados — seguida de uma exposição tanto quanto possível completa dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame críticos das provas que serviram para formar a convicção [A]; 2.°) No despacho de não pronúncia o tribunal não fundamenta a sua decisão por referência aos meios de prova que foram carreados para os autos, ficando a assistente sem perceber que relevo foi dado à abundante prova testemunhal produzida na fase de inquérito e por outro que concretos meios de prova serviram para sustentar as suas conclusões, omissão que é geradora de nulidade atento o previsto no artigo 379.°, n.° 1 do Código de Processo Penal [B)]; 3.°) Os factos considerados provados pela Meritíssima são exíguos face à abundante prova produzida; por sua vez os factos considerados não provados não passam de conclusões que teriam, necessariamente, que estar assentes em factos, o que não acontece [C)]; 4.º) É certo que nesta nova decisão a meritíssima procurou fundamentar o seu despacho, por ordem da decisão da Relação, mas pouco mais ponderou que o depoimento dos arguidos, de G….., de H….., I…. e fez comentários desajustados acerca dessas mesmas provas, não avaliando todas as demais referidas nestas alegações assim corno nas anteriores; a fundamentação agora dada é desajustada e insuficiente [D)]; 5.°) Apesar da fundamentação agora oferecida, a meritíssima desconsiderou depoimentos que justificavam decisão diversa da proferida e que deveriam ser interpretados nos termos já expostos na motivação deste recurso, vejamos: O depoimento do arguido C…., gerente da falida (Fls. 338 e ss, não foi devidamente ponderado); O depoimento do arguido D…. de fls. 345 e ss também não foi devidamente ponderado; Depoimento de I….; Depoimento de N…..; Depoimento de J…. fls 271 e ss.; K…. de fls. 290 e ss.; F…. (fls. 255 e 258) e E… (fls.258 e 262); L…. [E)]; 6.°) O que aconteceu com depoimentos repetiu-se com a omissão de pronúncia relativamente a alguns documentos, a saber: A fls. 364 encontra-se um parecer da senhora liquidatária onde esta apenas identifica cinco credores com créditos pouco volumosos; O auto de arresto da diligência de 23-3-2001 não foi devidamente considerado já que dele consta que foram apreendidos bens no valor de aproximadamente € 150.000; outro documento não valorizado no despacho de arquivamento é o relatório pericial do Dr. M…. que claramente demonstra que o arguido D…. usou títulos de crédito pagos e reformados para instaurar execuções através das quais atacou do co-arguido C…. e com a conivência deste; Também não foi considerada a sentença proferida no processo n.° 703- B/2001; Tão pouco foi considerada a “nova” acusação por descaminho deduzida contra D…. no âmbito do inquérito n.° 1346/06 da 4 Subsecção do Ministério Publico, no qual este é acusado do descaminho dos bens que na diligência de 11-6-2001 ficaram à sua guarda; Nem foi considerado o auto de mudança de fiel depositário datado de 27 de Julho de 2001; Ou acarta de fls.94; Igualmente muito importantes são os documentos de fls.771 a 913 que não foram considerados, mas demonstram claramente o património da empresa que foi dissipado [F)]; 7.°) Está demonstrado que a assistente só se decidiu a vender à falida as quantidade de cortiça referidas nos autos após recolher boas informações bancárias daquela sociedade, o que demonstra que não estava com as dificuldades retratadas no despacho de arquivamento [G) e H)]; 8.°) Não restam dúvidas que a empresa tinha bom nome em 2000 e no início de 2001, e também é verdade que em 23 de Março de 2001 — altura em que se realizou a diligência de arresto promovido pela assistente — a empresa laborava normalmente, já que com o arresto da B…. a empresa não fechou, tendo até mais mercadorias do que as arrestadas, conforme declarou o seu representante legal no depoimento que prestou na Policia Judiciária [I), J)]; 9.°) Em 9 de Junho de 2001 a empresa deixou de funcionar porque o arguido levou todas as suas existências para a fábrica do outro arguido, D…. [K)]; 10.°) As existências foram removidas em veículos da empresa do arguido D…. numa operação que começou de madrugada, de sexta-feira para sábado, e que os arguidos pretendiam que não fosse muito visível a ponto de não ter contado com a colaboração de funcionários [L)]; 11.°) A operação foi descoberta, por casualidade, por N…. que, ao passar junto às instalações da falida no dia 9 de Junho de 2001, se apercebeu de tamanho aparato dando conhecimento desse facto ao gerente da assistente que de imediato se deslocou às instalações da falida [M)]; 12°) Porque sabia que a garantia patrimonial do seu crédito “estava carregada” em carros de D…., o gerente da assistente montou vigília seguindo os camiões que saíam daquelas instalações com ajuda de amigos, familiares e com intervenção da GNR, tendo os arguidos e seus colaboradores se escondido quando se aperceberam da perseguição [N), O)]; 13.°) Em 11 de Junho de 2001 foi feita pela GNR uma busca nas instalações de D1…., Lda., tendo sido identificadas, sem chapas identificadoras (entretanto removidas), as máquinas arrestadas e que para ali foram encaminhadas [P)]; 14.°) Mais tarde, por denúncia de J…. que escreveu a carta de fls. 94 e ss (que aqui se dá por reproduzida) ficou a saber-se que C…. e D…. programaram o descaminho dos bens arrestados e a dissipação do restante património da empresa e também de património pessoal [Q)]; 15.°) Era intenção do arguido C…. prosseguir a actividade de “industrial da cortiça”, sob outro nome e sem ter que prestar contas à sua mulher [R)]; 16.°) Após o descaminho a B…. pediu que fosse efectuada a alteração do fiel depositário dos bens por si arrestados em 23 de Março de 2001. Essa diligência foi marcada para 27 de Julho de 2001 [S)]; 17.°) Porém, no local encontravam-se sacos de rolhas que, conforme resulta do identificado auto, continham rolhas em quantidade e qualidade diversa da arrestada, que terão sido adquiridas a O…., Lda. conforme resulta do depoimento de L…. 18.°) Os arguidos não se limitaram a descaminhar bens ou a trocar rolhas, mas também se entenderam na condução dos processos que entretanto D1…., Lda. instaurou contra a falida e contra o arguido C…. [U)]; 19.°) Resulta também dos autos que a falida nunca se opôs às diligências de D…., embora às da assistente sempre se tenha oposto e com a violência que resulta da condenação do arguido C…. no processo n.° 515/01.3GAVFR do 2.° Juízo Criminal por ter ameaçado de morte o gerente da assistente durante a diligência para mudança de fiei depositário ocorrida a 27 de Julho de 2001 [V)]; 20.°) No âmbito do processo de falência quando foram apreendidas os bens da massa falida, apurou-se que os bens arrolados não correspondiam aos arrestados em 23-3-2001, tal como foi constatado pela liquidatária, pelo senhor louvado P…., por K…. e por N…. [X)]; 21.º) Nos autos de falência só cinco credores é que reclamaram créditos que totalizavam €441.144,12. O arguido D1…., Lda. reclamou a mais a quantia de €75.143,69. O assistente recuperou € 75.077 com adjudicação de um imóvel em execução instaurada contra C….. Pelo que as dívidas da falida não ultrapassavam € 300.000 [Z)]; 22°) Os activos da empresa em 9-6-2001 eram aqueles que resultam da certidão de fls.771 a 913 e ascendiam a €727.292,38, conforme já referido na motivação [AA)]; 23.°) Do exposto resulta que o arguido C…. conduziu a empresa à falência, dissipando o seu património que era suficiente para o pagamento das suas dívidas levando-o para a fábrica do outro arguido D…., comportamento que se subsume ao previsto na alínea a) do artigo 227.° do Código Penal [AB)]; 24.°) O arguido C…. diminuiu o seu activo, destruiu a contabilidade, permitiu que o arguido D…. reclamasse contra a sua empresa créditos inexistentes, comportamento que se subsume à alínea b) do artigo 227° do Código Penal [AC)] 25.°) Em 2001, o arguido adquiriu à assistente cortiça no valor de € 97.553,50 num total de compras de € 143,895,82, comportamento que se subsume à alínea d) do artigo 227° do Código Penal [AD)]; 26.°) Por sua vez, o comportamento do arguido D…. subsume-se ao previsto na alínea b) do Código Penal já que nestes autos está claramente demonstrada a participação do arguido D1…, Lda. em toda esta história [AE)]; 27.°) Isto posto, este arguido preenche de forma clara e plena os pressupostos do n°. 2 do artigo 227° do Código Penal. Poderia até constituir exemplo académico da aplicabilidade prática desta norma, pelo que deve ser pronunciado pela prática desse mesmo crime [AF)]; 28.°) Relativamente aos arguidos F… e E…, devem os mesmos ser acusados como cúmplices do crime de insolvência dolosa já que constituíram meio para a estratégia do arguido C… [AG)]; 29.°) A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 379.°, n.° 1 e 374.°, n.° 2 do Código Processo Penal e o artigo 227.°, n.° 1 e 2 do Código Penal [AH)]. 3. O Ministério Público respondeu em 20l2/Mar./23, a fls. 1350-1357, pugnando que se negue provimento ao recurso, sustentando essencialmente o seguinte: 1.º) O apontado vício da falta de fundamentação corresponde a uma irregularidade e não a nenhuma nulidade, sanável ou insanável, tomando por base a conjugação do disposto nos artigos 119.°, 120.°, 123.° do Código de Processo Penal e o suporte nos acórdãos desta Relação de 2008/Set./10 e 2011/Mai./05; 2.°) Na decisão instrutória posta em crise nestes autos, verifica-se que aí foi feita a indicação das diligências realizadas em sede de inquérito e instrução, indicando-se de seguida o factualismo que se considerou provado e não provado, tendo-se analisado criticamente a prova, explicitando-se de forma clara o raciocínio lógico que levou a definir aquela matéria de facto; 3.°) A decisão instrutória recorrida encontra-se devidamente fundamentada, devendo manter-se nos precisos termos em que foi proferida, uma vez que se encontra devida e suficientemente fundamentada e, face à prova produzida nos autos, não existem indícios suficientes que permitam submeter qualquer um dos arguidos a julgamento pela prática da infracção criminal de insolvência dolosa, quer como autores materiais, quer como cúmplices. 4. Recebidos os autos nesta Relação e aqui autuados em 2012/Jun./06, foram os mesmos com vista ao Ministério Público que emitiu parecer em 2012/Jun./l8 a fls. 1369-1376, que, aderindo à resposta anterior, sustenta igualmente que o recurso não merece provimento, porquanto: 1.º) A verificar-se a falta de suficiência da fundamentação da decisão esta seria uma mera irregularidade, sujeita ao regime do artigo l23.° do Código de Processo Penal que estaria já sanada, porque não foi invocada nos termos e no prazo do n.° 1 deste artigo, mas mesmo que assim não se entendesse não se verifica a suscitada falta de fundamentação; 2.°) Mas também não se verifica que entre os actos típicos imputados aos arguidos e a declaração de insolvência se verifique a necessária “conexão histórica” ou a “ligação fáctica”, não havendo para o efeito a prova suficientes dessa conexão ou ligação, face aos depoimentos já anotados na resposta anterior do Ministério Público. 5. O recorrente replicou por correio electrónico expedido em 2012/Jul./04 a fls. 1383-1388 mantendo a sua posição inicial. * * * O objecto do recurso passa pela falta de fundamentação da decisão instrutória [a)] e pela existência de indícios para a pronúncia dos arguidos pelo crime de insolvência dolosa [b)]. * * * II. FUNDAMENTAÇÃO a) A falta de fundamentação da decisão instrutória O dever de fundamentar uma decisão judicial é uma decorrência, em primeiro lugar, do disposto no art. 205.°, n.° 1 da Constituição, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Trata-se de uma injunção constitucional mas de configuração legal, mediante a qual se deixa ao legislador ordinário a regulação do respectivo instituto, conferindo-lhe uma ampla margem de conformação, muito embora se deva preservar a essência da respectiva directiva constitucional. No entanto, tal dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no artigo 32.°, n.° 1, da Constituição, podendo também ser perspectivado como uma dimensão do direito a um processo equitativo, com assento no artigo 20.°, n.° 4 da Constituição, mas também referenciado nos artigos 10.º da DUDH, 14.° do PIDCP, 6.°, § 1 da CEDH e 47.°, n.° 2 da CDFUE — neste último sentido se tem pronunciado o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) (Acs.TEDH de 1994/Abr./19, Van de Hurk c. Holanda; 1994/Dez./09, Hiro Balani c. Espanha; Ruiz Torija c. Espanha; 1998/Fev./19 Higgins e outros c. França; 2001/Set./27, Hirvisaari e. Finlândia; 2005/Abr./28, Albina c. Roménia). A propósito tem se considerado que o dever de fundamentação tem subjacente duas funções primordiais: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão (i), permitindo simultaneamente às partes o conhecimentos da razão de ser das mesmas (ii), conferindo-lhes a possibilidade de recurso, colocando o tribunal superior numa posição em que possa exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente (iii); b) outra, de ordem extraprocessual, de modo a tornar possível um controlo externo e geral sobre a razoabilidade da argumentação do contexto descritivo e justificativo decisório, garantindo-se a transparência do processo e da decisão (Ac.TC 55/85, 322/93, 135/99, 408/2007). Daí que o dever constitucional de motivação das decisões judiciais imponha uma obrigação de fundamentação completa, mediante uma valoração crítica e racional de todas as questões essenciais ou pertinentes que importem ser resolvidas, permitindo a transparência do processo decisório, promovendo a sua compreensão e aceitação, o que só é possível se a correspondente motivação estiver devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido (Ac. TC 401/02 e 546/98). Tal implica que, ao proferir-se uma decisão judicial, se conheçam as razões que a sustentam, de modo a se aferir se a mesma está fundada na Lei e no Direito. A motivação será assim perspectivada como um elemento de transparência democrática e de qualidade da justiça, intrínseco a todo o acto jurisdicional decisório, de forma a aferir-se da sua razoabilidade e a obstar-se a decisões arbitrárias. Saliente-se, no entanto, que essa exigência de motivação varia em função das questões que são suscitadas, tudo dependendo das circunstâncias de cada caso, designadamente da sua natureza e complexidade. A motivação das decisões deve é ser clara, expondo de modo suficiente as razões que a sustentam, respondendo às questões pertinentes e controvertidas que foram suscitadas. Mas não existe nenhuma obrigação motivadora que imponha o conhecimento de todos os argumentos expendidos pelas partes, não sendo exigível que se responda a todas as questões de uma forma minuciosa. A propósito o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), partindo do artigo 6.°, § 1 da CEDH, considera que o direito a um processo equitativo tem essencialmente subjacente dois pressupostos: o primeiro é que a motivação é essencial para a qualidade e transparência da justiça, levando o juiz a controlar os fundamentos da sua decisão, ao mesmo tempo que é um factor contra o arbítrio; o segundo é que as partes tenham conhecimento das razões que levaram à decisão, permitindo àquelas um controlo dos fundamentos desta última e eventualmente, a sua impugnação mediante recurso. Isto não significa que esse dever de motivação se estenda minuciosamente a todos os argumentos invocados, mas apenas aos que sejam considerados como pertinentes ou seja, àqueles que são susceptíveis de influenciar a tomada de decisão (Acs.TEDH de 1994/Abr./19, Van de Hurk c. Holanda; 1994/Dez./09, Hiro Balani c. Espanha, Ruiz TorijalEspanha; 1998/Fev./19, Higgins e outros c. França; 2006/Jan./31, Merigaud/França). A profundidade e o nível de motivação varia em função das questões suscitadas e das circunstâncias do caso, designadamente a sua natureza e complexidade ([Acs.TEDH de 1997/Mai./29, Georgiadis/Grécia; 1997/Jul./01, Gustafson c. Suécia; 1994/Dez./09, Hiro Balani/Espanha), não podendo revestir-se de um carácter lapidar ou tabular (Ac.TEDH de 1997/Mai./29, Georgiadis c. Grécia), impondo sempre um exame efectivo dos argumentos invocados (Ac.TEDH de 2000/Mar/21, Dulaurans c. França). A partir desta leitura da vinculação constitucional do dever de fundamentação, é necessário que existam mecanismos jurídicos infra-constitucionais, que no direito público começaram por ser designadas por garantias institucionais (Institutioneile Garantien), que implementem aquela injunção constitucional e assegurem na prática judiciária o seu exercício, o qual pode assumir matizes distintas, atenta a relevância da respectiva decisão judicial. *Nesta conformidade o Código de Processo Penal[1] começa por estabelecer no seu artigo 97.°, n.° 4 que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. No entanto e em algumas situações precisa o nível e a própria estrutura da fundamentação, como sucede com os despachos de aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial (194.°, n.° 4), da decisão instrutória de pronúncia (308.°, n.° 1 e 283.°, n.° 3) e da sentença (374.°, 375.º, 376.°), cuja inobservância conduz à nulidade da correspondente decisão (194.°, n.° 4; 283.°, n.° 3; 309.°, 379.°, n.° 1) Isto não significa que, em alguns casos, não se possa efectuar essa fundamentação mediante remissão, designadamente para os motivos da promoção do M. P. ou para outras peças processuais, desde que transpareça que o juiz procedeu a uma real e efectiva ponderação das questões suscitadas, como sucede com o decretamento ou a manutenção da prisão preventiva (Ac.TC 189/99, 396/2003) ou da decisão instrutória de pronúncia mediante remissão para a acusação pública (307.°, n.° 1). Por sua vez, no regime geral da invalidade dos actos, com destaque para o seu princípio da legalidade recepcionado no artigo 118.°, n.° 1 do Código Processo Penal, estabelece-se que “A violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal so determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, consagrando-se nitidamente um apertado princípio da taxatividade ou de “numerus clausus” das nulidades. Daí que sejam apenas irregularidades os restantes vícios não atingidos expressamente pela nulidade, tal como decorre da regra subsidiária do n.° 2 deste artigo 118.° — aqui se alude que “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular”. Tratando-se de nulidades sanáveis e de irregularidades, as mesmas têm que ser suscitadas perante o tribunal que as cometeu (120º, n.° 1; 123.°, n.° 1). Tal não sucede se forem nulidades insanáveis, pois estas são do conhecimento oficioso (119º, n.° 1) ou então sendo nulidade das sentenças, podem estas ser, desde logo, fundamento imediato de recurso (397.°, n.° 2). Tais nulidades ou irregularidades são dominadas pela sua característica de relatividade — em oposição à natureza absoluta das nulidades insanáveis —, pois estão condicionadas à invocação pelo interessado (i), no correspondente prazo e adequadamente perante o tribunal que as cometeu, e à possibilidade de ficarem sanadas (ii), designadamente se for ultrapassado o correspondente prazo de arguição sem que se provoque o seu conhecimento (121º, n.° 1, por interpretação conjugada com os artigos 120.°, n.° 1 e 123°, n.° 1). Assim, a reparação oficiosa de uma irregularidade, nos termos do artigo 123.°, n.° 2, só é possível enquanto esta não estiver sanada. Caso contrário, ou seja, admitir-se a reparação oficiosa de uma irregularidade que já tivesse sido convalidada, designadamente pelo decurso do tempo, estar-se-ia perante uma mera irregularidade que passaria a ter a natureza de uma nulidade insanável, o que, convenhamos, colidiria com a unidade e a harmonia do sistema jurídico, pois numa escala de invalidade dos actos aquele que representa uma imperfeição menor ou ligeira passaria a estar sujeito à mesma regulação e robustez destruidora daqueles vícios que apresentam um defeito ostensivo e insuperável (9.°, n.° 1 Código Civil). Aliás e sabendo que o actual Código de Processo Penal seguiu de perto as soluções que vieram a ser consagradas no sistema processual penal italiano, sendo, por isso, conhecedor do mesmo, temos como relevante para uma leitura do nosso regime dos vícios das decisões judiciais, que aquele não tenha estabelecido um preceito semelhante ao do artigo 125.°, do C. P. Penal Italiano, relativo à “Forme dei provvedimenti del giudice” que para a deficiência de motivação das decisões jurisdicionais catalogou as mesmas de nulidade — aí se preceitua que “Le sentenze e le ordinanze sono motivate, a pena di nullitá [177, 604, 606 lette]. I decreti sono motivati, a pena di nullitá [181], nei casi in cui la motivazione é espressamente prescrita dalla legge [127, 132, 244, 247, 253, 267, 321, 409, 414]”. Ora a deficiência de fundamentação das decisões jurisdicionais, não surge sequer no catálogo das nulidades absolutas e como tal insanáveis do artigo 119.º ou no quadro das nulidades relativas do subsequente artigo 120.°, nem expressamente em qualquer disposição legal. No que concerne à decisão instrutória e só quando esta for de pronúncia é que está expressamente prevista a respectiva nulidade. Vejamos no entanto como é que a jurisprudência tem encarado os vícios da falta de fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia, reconhecendo-se desde já que a mesma não tem sido uniforme, já que a propósito se têm alinhado as seguintes posições: — a decisão instrutória deverá conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitem chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária, acarretando essa falta de descrição factual a nulidade da decisão instrutória (308.°, n.° 2, 283.°, n.° 3, al. b), do C. P. Penal; Ac.TRE de 2005/Mar./0l (Recurso n.° 148 1/04-1)); — a omissão da descrição e especificação dos factos do requerimento instrutório que se devam considerar suficientemente indiciados ou não, constitui uma irregularidade que influi no conhecimento da causa, que pode ser conhecida oficiosamente (123.°, n.° 2 do C. P. Penal; Ac.TRG 2007/Fev./12 (Recurso n.° 2335/06-1), 2005/Jul./04 (CJ IV/300), 2004/Dez./06 (Recurso n.° 1823/04-1), 2004/Set./27 (Recurso n.° 1008/04-2), 2004/Jan./01 (Recurso n.° 293/04-1); - O despacho de não pronúncia não está sujeito às exigências de fundamentação das sentenças, estabelecidas no art. 374º, n.° 2, mas apenas ao dever genérico previsto no art. 97.°, n.° 4, ambos do C. P. P., consistindo a falta de fundamentação numa irregularidade, sujeita ao regime geral do art. 123.°, devendo para o efeito ser atempadamente suscitada perante o juiz, sob pena de se considerar sanada (Ac.TRL de 2004/Jan./15 (CJ I/125), 2004/Out./14 (CJ IV/145), Ac.TRC de 2006/Jun./14 (Recurso n.° 823/06), Ac. TRP 2007/Set./0l (Recurso n.° 5119/07-1), 2008/Set./10 e 2011/Jan/05.[2] Tem sido este último posicionamento aquele que temos seguido, o qual se mostra mais consentâneo com a disciplina da legalidade ou validade dos actos em geral e com o regime específico da nulidade da decisão instrutória. É que se bem atentarmos neste último, apenas se quis revestir a decisão instrutória de nulidade quando esta for de pronúncia, como já referimos, e apenas em duas situações tipo expressamente tabeladas: a) quando represente uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública ou no requerimento para abertura da instrução conducente à pronúncia — excluiu-se a alteração não substancial (309.°) e aqui diverge-se da regulamentação específica da nulidade das sentenças; b) quando não se respeite o registo legal descritivo da acusação (283.°, n.° 3, mediante remissão do art. 308.°, n.° 2). A ser assim, não podemos estender o rigor descritivo da (in)validade da decisão de pronúncia ao despacho de não pronúncia, porquanto o segmento normativo do artigo 283.°. n.° 3 é privativo da regulação daquele libelo, já que o seu proémio apenas menciona que “A acusação contém, sob pena de nulidade:”, não estando o despacho de arquivamento do inquérito, como se pode constatar da previsão do artigo 277.°, sujeito à mesma rigidez narrativa. Aliás, caso se sustente essa interpretação extensiva do artigo 283.°, n.° 3 ao despacho de não pronúncia, estar-se-ia formalmente a “fugir” de um juízo crítico da prova, que aqui tem toda a pertinência em se fazer, atentas as finalidades do debate instrutório (298.°) e da própria instrução (286.°, n.° 1) pois esta visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito. No caso, o recorrente não suscitou o pretenso vício de irregularidade da decisão recorrida de não pronúncia no tribunal recorrido, pelo que, à partida, estaria aberto o caminho para se considerar sanado tal vício. Porém, a decisão sumária anteriormente proferida nesta Relação em 2011/Jul./11, a fls. 1204-1229 deu provimento ao recurso pretérito, partindo certamente do pressuposto, que não nos cabe avaliar, de que a questão a decidir já foi “apreciada de modo uniforme e reiterado” (417.°, n.° 6, al. d)[3] e com base na seguinte argumentação, que se encontra na sua descrição justificativa (fls. 1223-1229), a qual optamos por transcrever: (i) “se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já pode ser declarada oficiosamente [a irregularidade] sem qualquer restrição” (fls. 1225); (ii) “Evidencia-se, pois que o tribunal a quo, para além de citar matéria de facto que fica muito aquém da vertida no RAI e até daquela que se sumariou no relatório, limitando-se a exarar pouco mais do que conclusões nos factos considerados não indiciados, também não expressou na decisão qualquer razão, circunstância ou referência que permitia identificar os concretos meios de prova que atendeu para obter a sua convicção a tal propósito e os termos em que os mesmos foram ou não atendidos, acrescentando ainda a alusão a factualidade, que não especificou, mas que diz abrangida pelo princípio “ne bis in idem” (fls. 1226); (iii) “Consequentemente, entendendo-se que a irregularidade que se evidencia do texto da decisão recorrida atinge valores e princípios que extravasam o interesse dos concretos sujeitos processuais, deve a mesma ser declarada oficiosamente por este tribunal de recurso e determinada a sua reparação pelo tribunal a quo, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 123.°, n.° 2 do Cód. Proc. Penal, ocorrendo a invalidade de todos os efeitos e de todos os actos subsequentes dele dependentes” (fls. 1229). Como se pode constatar esta primeira decisão desta Relação seguiu um dos três caminhos atrás expostos. Mas é este posicionamento que aqui teremos rigorosamente de respeitar devido à força do caso julgado formal (672.° C. P. Civil ex vi 4.° C. P. Penal), enquanto manifestação do princípio da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito (2.° da Constituição), na dimensão da afectação das legítimas expectativas dos cidadãos, as quais não podem ser arbitrária ou inadmissivelmente afectadas por decisões judiciárias contrárias (Ac.TC 176/2012, 135/2012, 18/2011, 158/2008, 615/2007, 302/2006, 160/2000, 99/99, 625/98, 285/92, 303/90, 287/90, 86/84, 17/84, 11/83). Como já se salientou “o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar” (Ac.TC 60/2000). Assim e por força do caso julgado, que neste caso será formal e por isso com relevância apenas endoprocessual, devemos acautelar a protecção da confiança dos destinatários processuais na actuação do Tribunais, o que implica um mínimo de certeza na tutela, quer na âmbito decisório, quer ao nível da fundamentação essencial que sustentou aquela, pois a mesma já criou fortes expectativas jurídicas de ser mantida ao longo do processo, não se admitindo afectações arbitrárias ou desproporcionalmente gravosas com as quais, o cidadão comum, minimamente avisado, não pode razoavelmente vir a contar (Ac.STJ 2007/Mar./27). E essa vinculação do caso julgado formal dirige-se tanto a este Tribunal de Recurso, como aos demais sujeitos processuais, pelo que é destituído de fundamento vir agora, em sede de recurso, fazer-se apelo, como faz a assistente, ao disposto no artigo 374.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, onde se enumeram os requisitos de uma sentença, de modo a que tal segmento normativo seja aplicável às decisões instrutórias. * A decisão recorrida datada de 2011/Out./27, a fls. 1240-1255 comporta essencialmente um contexto descritivo (fls. 1240-1242), que integra o seu relatório e o saneamento do processo, para depois passar ao seu contexto justificativo, que integra a epígrafe aí designada por “Decisão”, mas que acaba por corresponder a uma fundamentação. Nesta começa por enumerar a prova recolhida durante o inquérito e a instrução, indicando depois a factualidade que considera com “interesse para a decisão da causa”, distinguindo os factos considerados indiciados daqueles que não estão indiciados, fazendo um bosquejo da prova produzida e apreciando a mesma criticamente (fls. 1242-1249). A partir daqui passa para a análise do crime de insolvência aqui em causa e pelas possibilidades de tipificação através da conduta dos arguidos, tanto no plano da insolvência dolosa, como negligente, concluindo pela não pronúncia dos arguidos (fls. 1249-1255). No seu recurso (fls. 1292-1342), com destaque para a sua motivação, a assistente, muito embora aponte que “a decisão em crise omite a indicação e o exame crítico das provas produzidas”, suportando-se na conjugação dos artigos 374.°, n.° 2 e 379.°, n.° 1 al. a), que aqui não têm qualquer aplicação, acaba, no seu essencial, por divergir da argumentação da decisão recorrida, de tal modo que indica e analisa “cada um dos raciocínios” desta, fazendo o seu “Comentário” (fls. 1294-1314). Ora estes “comentários” evidenciam uma divergência na análise da prova e não que a mesma tenha reconhecido a insuficiência motivatória da decisão recorrida. Aliás, esta centra a sua descrição justificativa na indiciação ou não da factualidade pertinente e nos meios de prova a que concedeu relevo, explicitando as respectivas razões. Naturalmente que existe divergência entre a decisão de não pronúncia e os propósitos de pronúncia motivados pela recorrente no seu requerimento de abertura de instrução e renovados neste seu recurso. Mas isso não significa que exista essa falta de fundamentação por parte do despacho recorrido, o qual se centra naquilo que considera essencial para um juízo decisório, justificando de modo razoável o seu posicionamento. Nesta conformidade, improcede este fundamento de recurso. * b) Existência de indícios suficientes para a pronúncia pelo crime de insolvência dolosa i) Os indícios suficientes Estabelece o art. 308.°, n.° 1 do Código Processo Penal[4] que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de urna pena ou de urna medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Segundo o art. 283.°, n.° 2, para onde remete o art. 308.°, n.° 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar urna possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, urna pena ou medida de segurança”. Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, está o disposto no art. 286.°, n.° 1, segundo o qual “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Neste juízo de suficiência de indícios deve igualmente estar presente o dever de respeito pela dignidade da pessoa humana, o qual é imanente a qualquer Estado de Direito Democrático e está consagrado no nosso ordenamento jurídico interno (l.°; 24.°, n.° 1, 25.° da Constituição), assim como nas fontes internacionais de direito a que estamos vinculados (5.° da DUDH[5] 3º, nº 1 da CEDH[6] 7º, n.° 1, l0.°, n.° 1 do PIDCP[7] 1.º, 3°, n.° 1, 4.° da CDFUE[8]; 8.°, 16.°, n.° 2 Constituição). Para o efeito reconhece-se, entre outras coisas, que uma acusação ou uma pronúncia podem sempre afectar o bom-nome e a reputação de uma pessoa (26.°, n.° 1, Constituição), devendo-se acautelar as intromissões abusivas e arbitrárias na respectiva esfera de direitos (art. 12.°, DUDH; 8.° da CEDH). Assim e como se afirmou no Ac. do STJ de 2005/Mai./18[9], “aquela “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa” — neste sentido e entre outros já se tinham manifestado os Ac. da R.P. de 1990/Jan./l0, 1993/Out./20, bem como o Ac. R.L. 1999/Fev./20, in, respectivamente, C.J., 1/247, IV/261, I/145. A par deste princípio da dignidade humana ou então como uma das suas manifestações específicas surge o princípio “in dubio pro reo”, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência (32.°, n.° 2, C. Rep.; 11.º, n.° 1 DUDH; 6.°, n.° 2 da CEDH; 1.º, n.° 1 da CDFUE). De acordo com o princípio “in dubio pro reo” sempre que se esteja, no decurso da apreciação e avaliação da prova perante uma dúvida irremovível e razoável, quanto à verificação de certos factos que geram a sua incerteza, deve o Tribunal favorecer o arguido. Aliás, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de realçar a relevância deste princípio e da inadmissibilidade da sua exclusão na valoração da prova que está subjacente ao despacho de pronúncia, ao “julgar inconstitucionais os artigos 286°, n°1, 298°, e 308°, n° 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32 n° 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de uni juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil.” [Ac. 439/02].[10] O mesmo tem sido assinalado pela demais jurisprudência, segundo a qual “O juízo de prognose que determinará a sujeição do arguido a julgamento é equivalente tanto na fase de inquérito, como na fase de instrução, e exige uma possibilidade de condenação em julgamento que respeite o princípio in dubiopro reo.” [Ac. R. Porto de 2011/Nov./23]. Em suma, podemos dizer que “Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito democrático e da presunção da inocência impõem que a expressão indícios suficientes (308°/JCPP,) seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final” (Ac. R. Porto de 2010/Jan./20). Isto significa que no culminar da fase de instrução, como se refere no Ac. desta Relação de 2006/Jan./04, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases. Em primeiro lugar, por um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada. Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido. Por último efectuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se conclua que predomina uma razoável possibilidade do arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se sempre um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efectuar em julgamento. * ii) O crime de insolvência dolosa No crime de insolvência dolosa da previsão do artigo 227.°, pune-se no seu n.° 1º “O devedor que com intenção de prejudicar os credores: a) Destruir, danificar, inutilizar ou fazer desaparecer parte do seu património; b) Diminuir ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida; c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente; é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente …” Mais se acrescenta no seu n.° 2 que “O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.° 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em beneficio deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada”. Neste crime pretende-se tutelar directamente o património dos credores ou então e para se ser mais preciso o direito ao crédito por parte destes, como de resto se pode constatar do preceituado no CIRE[11], mais precisamente no seu artigo 1.º ao instituir que o processamento de insolvência é “um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores”. Mas isto sem que se possa esquecer que através deste mesmo ilícito se pretende proteger, ainda que mediatamente, o correcto funcionamento da economia de mercado, como peça fundamental do sistema socioeconómico. As acções típicas encontram-se enumeradas nas diversas alíneas, as quais correspondem a actos que, de um modo geral, visam a diminuição efectiva do património (a), a diminuição simulada do património (b), a dissimulação contabilística dos prejuízos ou dos lucros (e) o retardamento da apresentação à falência, mediante expedientes de compra e venda de mercadoria a crédito (d). Tratam-se de condutas, todas elas dolosas, vinculadas à realização do estado de insolvência, uma vez que as mesmas foram determinantes para que tivesse ocorrido essa situação de desequilíbrio financeiro negativo, em que o passivo se sobrepõe inexoravelmente ao activo, mediante o qual o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. Daí que as condutas típicas intencionalmente orientadas à frustração do direito de crédito, mediante um projecto de resolução criminosa, que normalmente se estende por vários actos de defraudação directa ou indirecta do património, os quais se podem prolongar no tempo, tanto podem conduzir a situações de falência real ou efectiva, como a situações de falência aparente ou simulada, que corresponde aos casos de insolvência criadas artificialmente e com o único propósito de prejudicar os credores. Por isso, o crime de insolvência dolosa acaba por integrar não só os casos correntes de insolvência real ou efectiva, como também os casos de insolvência aparente ou simulada, agora tão frequentes. Por sua vez, a declaração judicial de insolvência, corresponde a uma condição objectiva de punibilidade, corno tem sido jurisprudência corrente (Ac.STJ de 1993/Set./22)[12]. * Atento o requerimento de abertura de instrução (RAI) e o actual recurso formulado pela assistente, em que neste e ultrapassado aquilo que aponta como sendo nulidade da decisão instrutória se renovam as considerações já expendidas naquele, seguindo até o mesmo texto ou alterando-o ligeiramente, quer quanto à existência de indícios, quer no que concerne à tipificação de um crime de insolvência dolosa, o que está essencialmente em causa é a diminuição efectiva do património, na vertente de os arguidos terem feito “desaparecer parte do seu património” — entenda-se da sociedade falida. O desaparecimento do património corresponde ao descaminho dos bens que o integram, os quais tanto podem ser um significado material, como imaterial — e não propriamente à sua “desaparição jurídica”, mediante actos de tradição ou através de qualquer negócio jurídico que façam diminuir ficticiamente o património. Assim, o acto de fazer desaparecer tem o significado de impossibilitar que se descubra o paradeiro dos bens, inclusive de mercadorias, que se encontrem na titularidade e disponibilidade do devedor, de modo que os credores não tenham possibilidade de ver satisfeitos os seus créditos em relação àquele outro. No entanto, também podemos constatar que foi suscitado no RAI, tanto em termos argumentativos (por exemplo nos itens 31, 33, 61, 62 e 165), como factuais (item XXXV) o desaparecimento da contabilidade da sociedade falida, que agora foram igualmente renovados em sede de recurso (Conclusão AC). A propósito diremos que a ocultação dos elementos contabilísticos, que integra a alínea b) do n.° 1 do artigo 227.° do Código Penal, será tipicamente relevante quando a mesma visar obstar ao conhecimento real da situação contabilística e financeira do devedor que vier a ser insolvente, mormente o seu património, surgindo a falta desses elementos como um expediente para obstar ao respectivo controle do activo e do passivo contabilístico, contribuindo, assim, para a situação de insolvência — este conduta de ocultação contabilística é normalmente usada para as situações de insolvência aparente ou simuladas. Na decisão instrutória foi apenas considerado indiciado o seguinte: a) Por sentença proferida em 14-06-2004, no âmbito do processo n.° 2440/03.4TBVFR, foi declarada a falência de “C…., Lda”, transitada em julgado em 27-07-2004; b) Em tais autos foram apreendidos os seguintes bens — os quais estão melhor descritos a fis. 12459 c) A contabilidade da falida não foi apreendida d) Em 2002, foi criada a sociedade “Q…., Lda”, tendo como gerentes E…. e mulher, F….., gerida, de facto, pelo arguido C……”. Nas suas alegações de recurso, a assistente considera que nessa decisão se “esqueceu” — foi esta a expressão utilizada — do seguinte: - A fábrica do insolvente encerrou em 9 de Junho de 2001 de onde foram retiradas as todas as existências; - Só apareceram cinco credores a reclamar créditos; - A contabilidade da falida foi destruída; - As existências eram avultadas, tal como resulta de documentos apresentados pela administração fiscal; - As existências da falida foram conduzidas para a fábrica de D…... Diga-se a propósito que a prova revelada nos autos e que apresentam um carácter objectivo correspondem essencialmente à prova documental, a saber: a dissolução e liquidação da sociedade “Q…. — Lda.” (fls. 266/267) e a procuração de 2001/Dez./21, a fls. 263, a declaração de 2005/Dez./09, de fls. 268; a sentença homologatória do divórcio de 2002/Dez./18, de fls. 283/284; o auto de apreensão de bens efectuado pela GNR em 2001/Jun./11, a fis. 303; a carta de 2001/Set./25, de fls. 311, onde é patente o litigio entre o arguido C….. e a sua ex-esposa; a sentença de graduação de créditos de 2006/Ago./03, de fls. 329-335, respeitante à sociedade “D1…., Lda.”; o auto de arrolamento e apreensão de bens de 2004/Jul./21, de fls. 354-356, de 2004/Out./29 de fls. 357-358; o parecer da senhora liquidatária da falência de fls. 364; o auto de arresto da diligência de 23/Mar./200l; a informação de 2004/Jun./16 de fls. 503, onde se patenteia a recusa do arguido C…. em fornecer os elementos contabilísticos, e o relatório pericial do Dr. M…. de 2004/Jun./22, fls. 504-517; as sentenças proferidas nos processos crime respeitante ao crime de descaminho de bens; os documentos enviados pela administração fiscal de fls. 771-913, que mereceu a leitura da assistente em 2009/Dez./17, a fls. 924-928. Desta prova, conjugado com os depoimentos prestados por I…., N…., J…. e K…., F…. e E…., podemos considerar que se encontram suficientemente indiciados os factos descritos na decisão instrutória e ainda ou também os descritos sob os itens II, III, IV, mas aqui fazendo-se referência aos credores que reclamaram os seus créditos no processo de insolvência, V a X, XIV, XVI, XVII, XVIII, XXIII. XXIV, explicitando-se quem eram os sócios da Q…. e da existência da procuração a favor do arguido C…. e eliminando-se a parte final (“demonstrando claramente ...“), XXV, XXVI, explicitando-se quais foram os créditos reclamados e reconhecidos à sociedade D1…., Lda, de que o arguido D…. é sócio-gerente; XXVIII, XXIX, XXXIII, XXXV, XXXV, XXXVI, todos do RAI, que deve ser integrado com o descrito nas conclusões AA), AB), AC) do recurso aqui em apreço. Para o efeito torna-se por demais pertinente ter presente os elementos que ultimamente foram fornecidos pela administração fiscal e deles fazer a leitura que a assistente aqui recorrente efectuou em 2009/Dez./17, a fls. 924-928 e agora renovou nas suas alegações de recurso, como se pode constatar nas alíneas a) a 1), conjugado com as subsequentes alíneas de a) a f), a fls. 1331-1332. Tais elementos de prova, os quais devem ser lidos conjugada e não isoladamente, bem como conexionados com os citados depoimentos que foram anteriormente assinalados, correspondem a standards probatórios objectivos, que uma leitura dos mesmos, mais atenta e com conhecimento das “performances” contabilísticas e financeiras empresariais, devem ser submetidos a um juízo crítico de (des)construção dos factos, ainda que com o recurso, na fase de julgamento, a auxílio especializado de um economista ou solicitar os pareceres que considerar conveniente, como permite o disposto no artigo 649.° do Código de Processo Civil ex vi artigo 4.° do Código de Processo Penal. Essa prova conduz à existência de um juízo probatório, seja de indiciação, como de imputabilidade ou mesmo condenatório em relação aos arguidos C…. e D…. na criação de um estado de insolvência aparente ou simulado, como de resto se pode constatar pelo total dos créditos que foram reconhecidos no processo de insolvência que rondaram apenas os €366.000,43, quando o activo ocultado pelo desaparecimento da contabilidade era superior. Tal conduta integra o cometimento de um crime de insolvência dolosa da previsão do artigo 227, n.° 1, al. a) e b) por parte do arguido C…. e de um crime de insolvência dolosa da previsão do artigo 227, n.° 1, al. a) e b) e n.° 2 no que concerne ao arguido D….. O mesmo não sucede em relação aos arguidos F…. e E…., pois estes surgem como meras “testas de ferro”, não se tendo minimamente indiciado que os mesmos tivessem conhecimento do presente projecto delituoso do arguido C…., quando este constituiu, através destes, a sociedade “Q…., Lda.” Nesta conformidade, tem aqui plena procedência este último fundamento de recurso, mas apenas e tão-só quanto àqueles dois primeiros arguidos, sendo certo que, se bem percebemos, a assistente não impugna a decisão de não pronúncia no que concerne a estes dois últimos arguidos. * * * III. DECISÃO Nos termos e fundamentos expostos, concede-se parcial provimento ao recurso interposto pelo assistente B…., Lda e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, a qual deve pronunciar os arguidos C…., D…., pelos factos e crime anteriormente assinalados, referenciando a conveniente prova testemunhal, documental e assessoria técnica especializada. Mais se condena o assistente na taxa de justiça de três (3) Ucs. (515.°, n.° 1, al. b), do C. P. Penal), pelo seu decaimento parcial. Notifique. Porto, 17 de Outubro de 2012 Joaquim Arménio Correia Gomes Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro ____________________ [1] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizerem referência sem indicação expressa da sua origem [2] Estando todos os acórdãos citados não publicados na Colectânea de Jurisprudência (CJ), acessíveis em wvw.dsi.pt, tendo sido os dois últimos por nós relatados. [3] E isto porque as demais situações que comportam uma decisão sumária, tal como se encontra regulado no artigo 417.°, n.° 6, correspondem a casos de improcedência do recurso, como seja a circunstância que obste ao conhecimento do recurso (a); a casos de rejeição do mesmo (b), o que sucede nas situações contempladas no artigo 420°, n.° 1 (manifesta improcedência do recurso; causa da sua não admissibilidade; vícios das conclusões recursivas que o afectem na sua totalidade) ou então de existência de causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo de recurso (c). [4] Mais uma vez e doravante serão deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem. [5] Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 Dezembro de 1948 [DR 1978/Mar./09] [6] Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que foi aprovada, para ratificação, pela Lei n.° 65/78, de 1 3/Out. [7] Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado, para ratificação, pela Lei n.° 29/78, de 1 2/Jun. [DR 1, n.° 133]. [8] Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, publicada na sua versão consolidada, no JOUE C/83/389, de 2010/Mar./03 [9] Relatado pelo Cons. Pereira Madeira e divulgado em www.dsi.pt, como todos os demais a que não se faça expressa referência quanto à sua origem. [10] Relatado pela Cons. Maria Fernanda Palma e acessível em www.tribunalconstitucional.pt. [11] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto -Lei n.° 53/2004, de 18 de Março, alterado pelos Decretos-Leis n.° 200/2004, de 18 de Agosto, 76 -A/2006, de 29 de Março, 282/2007, de 7 de Agosto, 116/2008, de 4 de Julho, 185/2009, de 12 de Agosto e pela Lei n.° 16/2012, de 20 de Abril [12] Relatado pelo Cons. Ferreira Dias e acessível em wwwdgsi.pt.