I- A previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía. II- O rendimento excluído da cessão, designado como “rendimento indisponível” caracteriza-se como a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor e seu agregado familiar. III- Com a fixação de um montante do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, responsabiliza-se o devedor requerente pela obtenção de tal rendimento com vista ao pagamento de parte do passivo, sendo certo que a concessão efectiva da exoneração depende de aquele observar, ao longo de cinco anos, o comportamento que lhe é imposto no referido segmento normativo (nº 4º, do artº 239º, do CIRE).
Proc. nº 579/13.7TBVFR.P1 - APELAÇÃO Relator: Caimoto Jácome(1463) Adjuntos:Macedo Domingues() Oliveira Abreu() ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO 1- RELATÓRIO B......, com os sinais dos autos, veio requerer a declaração da sua insolvência, invocando o estatuído nos arts. 3º, nº 1, 18º, 20º, 23º e seguintes, e 235º e seguintes, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03, cuja última alteração foi dada pela Lei nº 16/2012, de 20/04. Foi proferida decisão judicial, transitada em julgado, a declarar em estado de insolvência a requerente (artº 28º, do CIRE).*A requerente/insolvente pediu a exoneração do passivo restante (artº 235º e seguintes do CIRE).*Por decisão de 02/04/2013, a Sr.ª Juíza da 1ª instância decidiu admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, nos seguintes termos: “(…)Pelo exposto, decido: a) Admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante. b) A exoneração será concedida uma vez observadas as condições previstas no artigo 239º do CIRE. c) Determinar que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo, designado período de cessão, o rendimento disponível que a Insolvente venha a auferir será cedido ao Sr. Fiduciário, garantindo-se como rendimento da Insolvente, o equivalente ao valor de um salário nacional, para cujo cargo desde já se nomeia a Srª. Administradora da Insolvência.”. *Por requerimento, de 31/10/2013, veio a insolvente alegar que integra o agregado familiar dos pais e que, se antes de ser decretada a sua insolvência contribuía mensalmente para as despesas do lar com €100,00, sendo os pais a suportar a maioria dos encargos domésticos, a verdade é que o seu pai se encontra agora desempregado, sem receber qualquer subsídio ou vencimento e a mãe está de baixa médica em virtude de doença, sendo com o seu vencimento que são liquidadas as despesas inerentes ao lar, designadamente água, luz, gás e alimentação. Requer que seja fixado como montante necessário ao sustento da insolvente, o valor de €590,05 (todo o seu vencimento), necessário para assegurar a sua subsistência e do seu agregado familiar. *Notificada para vir aos autos indicar prova do alegado, a insolvente juntou um recibo de vencimento do pai, alegando que afinal o mesmo trabalha como cantoneiro, facto que, segundo afirma, desconhecia, auferindo mensalmente €485,00 e o comprovativo do valor da pensão auferida pela sua mãe, no valor de €281,50 (fls. 87). Apreciando o requerido, foi proferido, em 05/12/2013, despacho no qual se conclui que “tendo em conta este quadro factual apurado, não se nos afigura minimamente justificado o pedido de alteração do valor fixado” e, por isso, se decidiu indeferir o requerido, por falta de fundamento fáctico e legal. Inconformada, a requerente apelou deste despacho, tendo, na sua alegação, formulado as seguintes conclusões. 1. Perante os factos supra indicados (I a VII) que se dão por reproduzidos, é patente e notória a ilegalidade da decisão proferida pelo tribunal a quo, ao indeferir a exclusão do vencimento integral do rendimento disponível da recorrente, e o consequente indeferimento da alteração do valor fixado a título de rendimento necessário ao seu sustento. 2. Mas, e sempre com todo o respeito que é devido pelas decisões tomadas pelos nossos tribunais, é patente e notória a ilegalidade daquela decisão. 3. Da decisão da exoneração do passivo restante datada de 02.04.2013 consta, designadamente, o seguinte:“(…) Determino que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo, designado período de cessão, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir será cedido ao Srº Fiduciário, garantindo-se como rendimento da insolvente, o equivalente ao valor de um salário nacional ...”. 4. Em virtude de alteração superveniente das suas condições de vida, por requerimento datado de 31.10.2013, veio a insolvente requerer que lhe fosse permitido ficar com todo o seu salário mensal, no valor de € 590,05, para assegurar o seu sustento e do seu agregado familiar. 5. Tendo apresentado novo requerimento em 03.12.2013, a precisar a composição do agregado familiar, bem como os rendimentos auferidos pelos pais, entretanto separados de facto. 6. O tribunal a quo, na decisão recorrida, entendeu que “não se afigura minimamente justificado alterar o valor fixado”, e indeferiu ao requerido, “por falta de fundamento fáctico e legal”. 7. Sem que tenham sido tecidas, e no que à apreciação de tal questão interessa, quaisquer considerações que fundamentassem tal decisão, designadamente, o vencimento auferido pela insolvente, as suas condições de vida e as despesas necessárias para assegurar o seu sustento, e do seu agregado familiar, com o mínimo de dignidade. 8. Ora, a recorrente alegou na petição inicial (01.02.2013) e nos requerimentos apresentados em 31.10.2013 e 03.12.2013, respectivamente, a alteração das suas condições de vida, a composição actual do seu agregado familiar, o rendimento auferido pela mãe e as despesas que tem de suportar para assegurar a sua sobrevivência e da progenitora. 9. Nos termos do disposto no nº 3 do artigo 239º do CIRE, “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;( sublinhado nosso);ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.” 10. Assim, está excluído do rendimento disponível, referido no nº 2 do aludido artigo 239º do CIRE o que seja razoavelmente necessário para “o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”. 11. Pela decisão recorrida foi excluído do rendimento disponível o montante equivalente a um salário mínimo nacional, como sendo aquele que é o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor, ou seja, o equivalente a € 485,00 mensais. Contudo, ao fazer-se fé nas declarações da ora recorrente, relativamente às alegadas despesas mensais, devem as mesmas ser contempladas, ao menos, em abstracto. O que não foi feito na decisão recorrida! 12. Tendo a ora recorrente alegado na petição inicial e dois requerimentos subsequentes determinadas despesas mensais relativas ao seu sustento, habitação, saúde, transporte, vestuário, das quais não juntou prova, mas que não foram impugnadas nos autos, perante a ausência de quaisquer factos que permitam questionar tais despesas, não podia o tribunal recorrido ter considerado as mesmas como inexistentes, no caso concreto da recorrente. Aliás, o valor fixado e mantido na decisão recorrida não está, sequer, fundamentado, não se percebendo como se chegou a ele! 13. Ora, tendo presente o disposto no artigo 239º, nº 3, al. b) (i) do CIRE supra transcrito, deverá entender-se que o legislador consagrou um limite máximo para o que considera ser o razoavelmente necessário para o sustento minimamente condigno do indivíduo, fixando-o, de forma objectiva, no montante equivalente a três salários mínimos nacionais. 14. Quanto ao valor mínimo que se deve considerar como mínimo garantido, o mesmo resultará das necessidades que em concreto o Insolvente apresentar, tendo como referência o disposto no artigo 824º do CPC, que não permite a penhora quando o executado não tenha outro rendimento de montante equivalente ao salário mínimo nacional, entendido este como a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo. 15. Sucede que, para lá do montante máximo já não estará em causa a dignidade humana, o que justificará, assim, a exigência acrescida de fundamentação no caso desse limite máximo ser excedido. Nesse sentido, Ac. RP de 12.06.12, in Proc. 51/12.2TBESP-E.P1, in www.dgsi.pt. 16. A jurisprudência constitucional (cfr. Ac. do TC nº 177/2002, com força obrigatória geral, publicado in DR, 1ª Série-A, nº 150, de 02.07.2004, p. 5158), de que são reflexo as alterações introduzidas ao artigo 824º do anterior CPC pelo Dec.-Lei n.º 38/2003, de 08.03, é no sentido de que o salário mínimo nacional será um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado como essencial para garantir um mínimo de subsistência condigna. 17. Tais critérios não devem, todavia, ser utilizados de forma automática, sem se atender aos aspectos particulares do caso concreto em apreciação. De igual modo, o critério do padrão de vida do homem-médio português que a decisão recorrida utiliza, de forma automática, estabelecendo uma estreita conexão desse com o valor do ordenado mínimo nacional, não pode ser aceite, sem mais, sob pena de uma interpretação restritiva do disposto no artigo 239º, nº 3, al. b) (i) do CIRE, o que a lei não permite. 18. Sendo certo que a exoneração do passivo restante não pode ser vista como a possibilidade de o insolvente se liberar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores durante o período de cessão, o montante a excluir deve, todavia, ser o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e respectivo agregado familiar, cabendo ao juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar este limite. 19. A prevalência da função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular sobre a sua função externa, que como é sabido, é a garantia geral dos credores, devem harmonizar-se, sacrificando-se a garantia dos credores na justa medida do que seja razoavelmente necessário para o sustento condigno do devedor e o seu agregado familiar e para o exercício condigno da sua actividade profissional e outras despesas que se integrem nesse conceito – neste sentido cfr. Ac. TRL de 05.07.12, in Proc. nº 7373/11.8TBALM-A.L1-2, disponível in www.dgsi.pt. 20. Escrevem Luis A. Carvalho Fernandes e João Labareda em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Júris, Volume II, pag. 194 que “… a subal. I) refere-se ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. O legislador adopta um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno: 3 vezes o salário mínimo nacional”. 21. Ora, in casu, o agregado familiar da insolvente é composto actualmente por duas pessoas. As quais têm despesas próprias, como médico-medicamentosas, vestuário, calçado, alimentação, transporte. Até mesmo em sede de despesas que podemos considerar comuns, como o consumo de água, luz, gás, certamente que duas pessoas gastam mais do que uma. 22. A reforma mensal auferida pela mãe da insolvente, no valor de € 281,50, somada ao salário daquela, no valor líquido mensal de € 590,05, resulta no valor de € 871,55. Sendo com tal montante que ambas vivem e sobrevivem! O qual é inferior a dois salários mínimos nacionais! 23. Assim, a quantia fixada à insolvente para o seu sustento (€ 485,00) é manifestamente insuficiente para garantir uma vida digna a estas duas pessoas. Tratando-se de uma questão de sobrevivência! 24. Afigura-se como razoável e adequado, para que estas pessoas vivam os actuais tempos difíceis com dignidade, satisfazendo as suas necessidades básicas, como sejam a de habitar uma casa com o mínimo de conforto, a de suportar as despesas do dia a dia, sem luxos, e a de ter acesso aos cuidados de saúde, que a recorrente veja excluído do passivo restante, o montante integral do seu vencimento mensal (€ 690,05). 25. Considerando-se que o montante que a recorrente pretende ver retido em seu proveito - € 590,05 - não extravasa o conceito do “razoavelmente necessário” e acautela o sustento minimamente digno da insolvente e seu agregado familiar. Nesse sentido, Ac. RL de 02.05.2013, relatado pela Desembargadora Magda Geraldes, in www.dgsi.pt e Ac. RG, de 18.06.2013, relatado pelo Desembargador Paulo Duarte Barreto, in dge.mj.pt. 26. O Julgador da Sentença não procedeu a uma correcta interpretação e aplicação do direito. 27. Na verdade, o Tribunal a quo fez uma análise redutora e ligeira, quer dos factos, quer do direito aplicável, tendo sido violados na sentença recorrida os seguintes normativos legais: artigo 239º do CIRE e artigo 26º da CRP. Nestes termos, deve revogar-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que seja determinada a exclusão do vencimento integral da recorrente do rendimento disponível e a consequente alteração do valor fixado a título de rendimento necessário ao seu sustento e do seu agregado familiar. Não houve resposta à alegação. ** Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. 2- FUNDAMENTAÇÃO 2.1- OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL O objecto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil (CPC) (actualmente arts. 635º, nº 4, e 640º, nºs 1 e 2, do NCPC).*A matéria de facto apurada é que consta da sentença que decretou a insolvência da apelante e a resultante de documentação junta pela requerente. De relevo, interessa considerar o seguinte: - A requerente assumiu obrigações de que resultaram dívidas no montante de cerca de € 20.000,00 (a entidades financeiras). - A requerente é solteira e vive com a sua mãe, a qual aufere uma pensão de reforma de € 281,50, constituindo ambas o respectivo agregado familiar. - A requerente aufere o salário mensal ilíquido de € 590,05.*Visa a recorrente com o presente recurso, a revogação da decisão contida no despacho de 05/12/2013, que manteve a decisão que fixou a obrigação da insolvente em proceder à entrega à Srª administradora da insolvência (fiduciário), a título de rendimento disponível, o rendimento que a insolvente venha a auferir que exceda o montante correspondente ao Salário Mínimo Nacional (€ 485,00). Na perspectiva da apelante, a decisão ora recorrida põe em causa a garantia do sustento minimamente digno do agregado familiar da recorrente. Vejamos. Dispõe o art° 235°, do CIRE, que se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. Como referem L. A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, p. 183 e segs.) “O Título que se inicia no art.º 235.° respeita, como a sua epígrafe logo esclarece, a «disposições específicas da insolvência de pessoas singulares», que não têm correspondência no CPEREF” (Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo DL nº 132/93, de 23/04, cuja última redacção foi dada pelo DL nº 315/98, de 20/10). “A exoneração de que se trata neste Capítulo, traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante”. “(…) A exoneração do passivo restante não tem como finalidade essencial a satisfação dos direitos dos credores, mas sim conferir ao devedor singular a possibilidade de se libertar de algumas dívidas com vista à sua reabilitação económica. Naturalmente que o legislador pretendeu conjugar esta possibilidade conferida em benefício do devedor com o princípio fundamental do processo de insolvência que é o ressarcimento dos credores, determinando que o devedor durante um determinado período (período de cessão) cedesse, na medida das suas disponibilidades, uma parte do seu rendimento para pagamento aos credores; mas nem por isso se poderá dizer que a exoneração do passivo não tem qualquer utilidade quando os devedores não possuem qualquer rendimento de que possam dispor para este efeito. Com efeito – reafirma-se – a exoneração do passivo restante é concedida em benefício do devedor e visa a sua recuperação económica e, nessa medida, mal se compreenderia que a mesma não fosse admitida naquelas situações em que mais se justificaria, ou seja, nos casos em que a situação económica do insolvente é mais precária e onde se torna mais premente a sua recuperação e reabilitação económica. A impossibilidade de concessão da exoneração do passivo restante nestas situações penalizaria injustamente o devedor que se encontra em situação mais difícil – que, continuando a suportar o peso do seu passivo, não teria qualquer hipótese de ultrapassar a sua situação de insolvência – relativamente aos outros devedores que, encontrando-se em melhor situação – porque podem dispor de alguma parte, por pequena que seja, do seu rendimento – poderiam usufruir da exoneração do passivo restante, libertando-se, ao fim de algum tempo, do seu passivo e adquirindo condições para ultrapassar a situação de insolvência em que se encontraram. Decorre do Preâmbulo do DL n.º 53/2004, que o insolvente assume a obrigação, entre outras, de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores e findo esse período de cessão, profere-se despacho em que se exonera ou não o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. Significa isto que este procedimento impõe dois momentos distintos, como sejam um despacho inicial - art. 238º - e um despacho de exoneração - arts. 237º e 244º. O Prof. L. Menezes Leitão (CIRE Anotado, 3ª ed. 2006, pág. 220), ao manifestar-se sobre este princípio geral, explica que consiste na possibilidade concedida aos devedores a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, visando conceder ao devedor um fresh start, permitindo-lhe recomeçar de novo a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior. Ora, da análise de todos os motivos que se impõem ao tribunal para averiguação e para deferir ou indeferir liminarmente o pedido, isto é, para o dito despacho inicial do art. 238º e 239º, nº 1, resulta que a função do Juiz será a de verificar, mesmo com produção de prova, se necessário, se o insolvente merece ou não que lhe seja dada uma nova oportunidade, ainda que apenas com concretização a prazo de 5 anos, submetendo-o a um período experimental, denominado “período de cessão” (n.º 2, do art. 239º), findo o qual poderá terminar em sucesso ou não do mesmo pedido. Dispõe o artº 239º, do CIRE: 1. Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial (…). 2. O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designado fiduciário (…) nos termos e para os efeitos do artigo seguinte. 3. Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) (…); b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (…).”. O Prof. Menezes Leitão (Direito da insolvência, pag. 305), sustenta que a previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía. Deve ter-se presente que o instituto da exoneração do passivo restante constitui uma espécie de "prémio" concedido ao insolvente, pessoa singular, que, esforçando-se por cumprir as suas obrigações, entrega algo aos credores para pagar as suas dívidas. Porém, não é, nem pode ser, um puro perdão de dívidas. Admitir o benefício da exoneração do passivo restante sem ter nada para entregar é frustrar o seu pressuposto legal e transformá-lo num puro perdão de dívidas, imposto aos credores, sem que algo recebam. "Exoneração do passivo restante" significa, literalmente, que se exonera a parte que falta pagar e não tudo o que falta pagar. O pagamento a uma parte dos credores, pelo menos, com o rendimento disponível é pressuposto necessário da admissão liminar do benefício de exoneração do passivo restante. A concessão efectiva da exoneração será decidida através do despacho previsto no artº 344º, do CIRE, sem prejuízo de se determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração (artº 243º, do CIRE). A norma contida no n.º 3-b) (i), do 239º, do CIRE, deve ser interpretada no sentido de que o sustento minimamente digno será fixado até 3 vezes o salário mínimo nacional (€ 1.455,00 em 2013), podendo exceder esse montante em casos excepcionais. A menção ao que seja razoavelmente necessário envolve claramente um juízo e ponderação casuística do juiz sobre o montante a fixar. Neste sentido, Assunção Cristas (Exoneração do devedor pelo passivo restante, Themis, 2005, p. 167) que adopta também esta interpretação: o rendimento disponível engloba todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, excluindo (…) os montantes que se consideram razoavelmente necessários para o sustento do devedor e do seu agregado familiar (até três vezes o salário mínimo nacional, excepto se, fundadamente, o juiz determinar montante superior). No âmbito da insolvência, a exclusão de entrega ao fiduciário prevista no art. 239º/3-b)(i), do CIRE, também pode atingir montante equivalente a 3 vezes o salário mínimo nacional, o qual funciona igualmente como limite máximo (só podendo ser excedido por decisão fundamentada), competindo ao juiz fixar, com razoabilidade, até esse limite, o montante que lhe pareça necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do respectivo agregado familiar. Em suma, o legislador estabeleceu dois limites: um mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto (o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar), a ponderar pelo juiz em cada caso concreto, conforme as circunstâncias particulares do devedor; um limite máximo obtido através de um critério quantificável e objectivo (o equivalente a três salários mínimos nacionais), o qual, excepcionalmente poderá ser excedido em casos que o justifiquem. Conforme se ajuizou no (sumário) acórdão desta Relação, de 12/06/2012 (acessível em www.dgsi.pt), “na interpretação do sentido da exclusão prevista no art. 239º, nº 3, al. b, (i) do CIRE haverá que atender a um limite mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto (o razoavelmente necessário para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar) e a um limite máximo, obtido de forma objectiva (o valor equivalente a três salários mínimos nacionais). O conceito de sustento minimamente digno do devedor é um conceito aberto, a objectivar face à singularidade que reveste a situação concreta de cada devedor/insolvente e que tem como subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana. O limite, que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade, corresponde ao salário mínimo nacional.”. Ponderou-se no acórdão desta Relação, de 11/09/2012 (acessível em www.dgsi.pt), que o rendimento excluído da cessão, designado como “rendimento indisponível” (cf. Ac. RL, de 12/4/2011, Col., II/129) – caracteriza-se como a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor; por forma exemplificativa, a norma legal indica tal limite de sobrevivência como não podendo exceder 3 vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão judicial em contrário, naturalmente fundamentada, como o deve ser qualquer decisão judicial (pensamos assim não ter adequadamente atingido o escopo legal a caracterização efectuada no douto Ac. RP, de 15/7/09, Col., III/216, quando vê um “mínimo legal” na ideia de sustento minimamente digno, e um “máximo legal” na ideia de 3 vezes o salário mínimo nacional; na verdade, aquilo que se encontra em causa é apenas uma cláusula aberta de “sustento digno”, a preencher prudentemente pelo juiz, exemplificada na lei com um limite máximo; consideramos que o sustento digno apenas se acha em concreto, e não pode dizer-se que, em si mesmo entendido, constitui um “mínimo” ou então que esse mínimo é integrado por noções de dignidade do trabalho, redução da pobreza, segurança ou socorro social, como o são o salário mínimo nacional ou, ainda configurável, a fixação do montante de um rendimento social de inserção; no sentido em que a lei não fixa um limite mínimo para o rendimento indisponível, cf. Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, I, pg. 63). Durante o período de cessão, o devedor fica obrigado a comportar-se em conformidade com o estatuído nas diversas alíneas do nº 4, do artº 239º, do CIRE, pois que, como sublinhado, a exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor. Por outro lado, convém ter presente que o pedido de exoneração do passivo restante constitui um incidente da instância, pelo que competia à requerente indicar, desde logo, os meios de prova do alegado no requerimento, efectuado com a petição de apresentação à insolvência (artº 303º, nº 1, do CPC), o que a requerente não fez no concernente à demonstração das despesas mensais alegadas, designadamente as referentes ao consumo da eletricidade, água, gás bem como médicas/medicamentosas. Enunciados estes princípios e normativos, analisemos o caso concreto. A apelante entende que deve ser fixado, para o sustento da recorrente e agregado familiar, o valor equivalente ao seu salário mensal, ou seja, nada quer ceder ao fiduciário. Pois bem. Antes de mais, muito se estranha, para não dizer mais, que a insolvente, no seu requerimento de 31/10/2013, venha dizer que o seu agregado familiar é composto por si e pelos seus pais e que o pai se encontra desempregado, e, depois de notificada para comprovar o alegado, veio, logo em 03/12/2013, dizer que desconhecia não só que o seu pai afinal estava empregado como os seus pais estavam separados de facto!!! Perante tanta ignorância ou distracção, é legítimo questionar se a apelante vive ou viveu com os pais… Constata-se que a requerente/apelante não indicou qualquer prova no concernente à demonstração das alegadas despesas mensais (electricidade, água, gás, telefone, despesas médico-medicamentosas, etc). Agora, na alegação do recurso, vem, de novo, alegar factos respeitantes às despesas do seu agregado familiar, que não podem ser tidos em conta, sendo, de resto, certo que, mais uma vez, não indica qualquer prova do alegado/concluído. Obviamente, não basta alegar. É necessário provar. Deste modo, ponderando a factualidade apurada (diminuta), não pode deixar de reconhecer-se ou aceitar-se que a situação económica e financeira do agregado familiar, constituído pela apelante e sua mãe, é, obviamente, menos do que remediada, a pender para a pobreza (em Portugal, o limiar de pobreza fixa-se em € 14/dia). O seu rendimento disponível é, para já, limitado, embora não se possa afirmar que esteja numa situação dramática, em comparação com as centenas de milhares de portugueses actualmente desempregados, incluindo casais com filhos a cargo. Porém, como predito, com a fixação de um montante do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, responsabiliza-se o devedor requerente pela obtenção de tal rendimento com vista ao pagamento de parte do passivo, sendo certo que a concessão efectiva da exoneração depende de aquele observar, ao longo de cinco anos, o comportamento que lhe é imposto no referido segmento normativo (nº 4º, do artº 239º, do CIRE). Ao devedor/insolvente requerente da exoneração do passivo restante deve dar-se a oportunidade para obter rendimento, durante o “período de cessão”, que lhe permita satisfazer parte, ou a totalidade, da dívida. No entanto, como também já salientado, a exoneração do passivo restante não pode ser vista como a possibilidade de o insolvente se liberar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores durante o período de cessão. O maior rigor na execução do seu orçamento familiar, sem quebra do que se considera o sustento minimamente digno do seu agregado, e a afectação do rendimento disponível resultante dessa melhor execução, por muito pouco que seja, para a satisfação as obrigações para com os credores, constituem as condições para que, no termo desse período de cinco anos, o insolvente se veja completamente libertado das dívidas ainda pendentes de pagamento (ver Ac. desta Relação, de 10/05/2011, proc. nº 1292/10.2TJPRT-D.P1, em www.dgsi.pt). A requerente tem de empenhar-se, séria e denodadamente, na obtenção de rendimento disponível para entregar ao fiduciário, a fim de amortizar parte, maior ou menor, do seu passivo, no montante de cerca de € 20.000,00. Tudo ponderado, afigura-se-nos que a requerente, com algum esforço e disciplina, está em condições de entregar, para já, ao fiduciário a quantia mensal que aufere na parte que excede o salário mínimo nacional (€ 485,00), sem que a disponibilidade de tal montante ponha em causa o sustento minimamente digno do respectivo agregado familiar. Improcede, assim, o concluído na alegação do recurso. 3- DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela massa insolvente.*Anexa-se o sumário. Porto,12/05/2014 Caimoto Jácome Macedo Domingues Oliveira Abreu _____________________________ SUMÁRIO (artº 713º, nº 7, do CPC, actual artº 663º, nº 7): I- A previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía. II- O rendimento excluído da cessão, designado como “rendimento indisponível” caracteriza-se como a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor e seu agregado familiar. III- Com a fixação de um montante do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, responsabiliza-se o devedor requerente pela obtenção de tal rendimento com vista ao pagamento de parte do passivo, sendo certo que a concessão efectiva da exoneração depende de aquele observar, ao longo de cinco anos, o comportamento que lhe é imposto no referido segmento normativo (nº 4º, do artº 239º, do CIRE).
Proc. nº 579/13.7TBVFR.P1 - APELAÇÃO Relator: Caimoto Jácome(1463) Adjuntos:Macedo Domingues() Oliveira Abreu() ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO 1- RELATÓRIO B......, com os sinais dos autos, veio requerer a declaração da sua insolvência, invocando o estatuído nos arts. 3º, nº 1, 18º, 20º, 23º e seguintes, e 235º e seguintes, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03, cuja última alteração foi dada pela Lei nº 16/2012, de 20/04. Foi proferida decisão judicial, transitada em julgado, a declarar em estado de insolvência a requerente (artº 28º, do CIRE).*A requerente/insolvente pediu a exoneração do passivo restante (artº 235º e seguintes do CIRE).*Por decisão de 02/04/2013, a Sr.ª Juíza da 1ª instância decidiu admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, nos seguintes termos: “(…)Pelo exposto, decido: a) Admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante. b) A exoneração será concedida uma vez observadas as condições previstas no artigo 239º do CIRE. c) Determinar que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo, designado período de cessão, o rendimento disponível que a Insolvente venha a auferir será cedido ao Sr. Fiduciário, garantindo-se como rendimento da Insolvente, o equivalente ao valor de um salário nacional, para cujo cargo desde já se nomeia a Srª. Administradora da Insolvência.”. *Por requerimento, de 31/10/2013, veio a insolvente alegar que integra o agregado familiar dos pais e que, se antes de ser decretada a sua insolvência contribuía mensalmente para as despesas do lar com €100,00, sendo os pais a suportar a maioria dos encargos domésticos, a verdade é que o seu pai se encontra agora desempregado, sem receber qualquer subsídio ou vencimento e a mãe está de baixa médica em virtude de doença, sendo com o seu vencimento que são liquidadas as despesas inerentes ao lar, designadamente água, luz, gás e alimentação. Requer que seja fixado como montante necessário ao sustento da insolvente, o valor de €590,05 (todo o seu vencimento), necessário para assegurar a sua subsistência e do seu agregado familiar. *Notificada para vir aos autos indicar prova do alegado, a insolvente juntou um recibo de vencimento do pai, alegando que afinal o mesmo trabalha como cantoneiro, facto que, segundo afirma, desconhecia, auferindo mensalmente €485,00 e o comprovativo do valor da pensão auferida pela sua mãe, no valor de €281,50 (fls. 87). Apreciando o requerido, foi proferido, em 05/12/2013, despacho no qual se conclui que “tendo em conta este quadro factual apurado, não se nos afigura minimamente justificado o pedido de alteração do valor fixado” e, por isso, se decidiu indeferir o requerido, por falta de fundamento fáctico e legal. Inconformada, a requerente apelou deste despacho, tendo, na sua alegação, formulado as seguintes conclusões. 1. Perante os factos supra indicados (I a VII) que se dão por reproduzidos, é patente e notória a ilegalidade da decisão proferida pelo tribunal a quo, ao indeferir a exclusão do vencimento integral do rendimento disponível da recorrente, e o consequente indeferimento da alteração do valor fixado a título de rendimento necessário ao seu sustento. 2. Mas, e sempre com todo o respeito que é devido pelas decisões tomadas pelos nossos tribunais, é patente e notória a ilegalidade daquela decisão. 3. Da decisão da exoneração do passivo restante datada de 02.04.2013 consta, designadamente, o seguinte:“(…) Determino que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo, designado período de cessão, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir será cedido ao Srº Fiduciário, garantindo-se como rendimento da insolvente, o equivalente ao valor de um salário nacional ...”. 4. Em virtude de alteração superveniente das suas condições de vida, por requerimento datado de 31.10.2013, veio a insolvente requerer que lhe fosse permitido ficar com todo o seu salário mensal, no valor de € 590,05, para assegurar o seu sustento e do seu agregado familiar. 5. Tendo apresentado novo requerimento em 03.12.2013, a precisar a composição do agregado familiar, bem como os rendimentos auferidos pelos pais, entretanto separados de facto. 6. O tribunal a quo, na decisão recorrida, entendeu que “não se afigura minimamente justificado alterar o valor fixado”, e indeferiu ao requerido, “por falta de fundamento fáctico e legal”. 7. Sem que tenham sido tecidas, e no que à apreciação de tal questão interessa, quaisquer considerações que fundamentassem tal decisão, designadamente, o vencimento auferido pela insolvente, as suas condições de vida e as despesas necessárias para assegurar o seu sustento, e do seu agregado familiar, com o mínimo de dignidade. 8. Ora, a recorrente alegou na petição inicial (01.02.2013) e nos requerimentos apresentados em 31.10.2013 e 03.12.2013, respectivamente, a alteração das suas condições de vida, a composição actual do seu agregado familiar, o rendimento auferido pela mãe e as despesas que tem de suportar para assegurar a sua sobrevivência e da progenitora. 9. Nos termos do disposto no nº 3 do artigo 239º do CIRE, “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;( sublinhado nosso);ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.” 10. Assim, está excluído do rendimento disponível, referido no nº 2 do aludido artigo 239º do CIRE o que seja razoavelmente necessário para “o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”. 11. Pela decisão recorrida foi excluído do rendimento disponível o montante equivalente a um salário mínimo nacional, como sendo aquele que é o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor, ou seja, o equivalente a € 485,00 mensais. Contudo, ao fazer-se fé nas declarações da ora recorrente, relativamente às alegadas despesas mensais, devem as mesmas ser contempladas, ao menos, em abstracto. O que não foi feito na decisão recorrida! 12. Tendo a ora recorrente alegado na petição inicial e dois requerimentos subsequentes determinadas despesas mensais relativas ao seu sustento, habitação, saúde, transporte, vestuário, das quais não juntou prova, mas que não foram impugnadas nos autos, perante a ausência de quaisquer factos que permitam questionar tais despesas, não podia o tribunal recorrido ter considerado as mesmas como inexistentes, no caso concreto da recorrente. Aliás, o valor fixado e mantido na decisão recorrida não está, sequer, fundamentado, não se percebendo como se chegou a ele! 13. Ora, tendo presente o disposto no artigo 239º, nº 3, al. b) (i) do CIRE supra transcrito, deverá entender-se que o legislador consagrou um limite máximo para o que considera ser o razoavelmente necessário para o sustento minimamente condigno do indivíduo, fixando-o, de forma objectiva, no montante equivalente a três salários mínimos nacionais. 14. Quanto ao valor mínimo que se deve considerar como mínimo garantido, o mesmo resultará das necessidades que em concreto o Insolvente apresentar, tendo como referência o disposto no artigo 824º do CPC, que não permite a penhora quando o executado não tenha outro rendimento de montante equivalente ao salário mínimo nacional, entendido este como a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo. 15. Sucede que, para lá do montante máximo já não estará em causa a dignidade humana, o que justificará, assim, a exigência acrescida de fundamentação no caso desse limite máximo ser excedido. Nesse sentido, Ac. RP de 12.06.12, in Proc. 51/12.2TBESP-E.P1, in www.dgsi.pt. 16. A jurisprudência constitucional (cfr. Ac. do TC nº 177/2002, com força obrigatória geral, publicado in DR, 1ª Série-A, nº 150, de 02.07.2004, p. 5158), de que são reflexo as alterações introduzidas ao artigo 824º do anterior CPC pelo Dec.-Lei n.º 38/2003, de 08.03, é no sentido de que o salário mínimo nacional será um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado como essencial para garantir um mínimo de subsistência condigna. 17. Tais critérios não devem, todavia, ser utilizados de forma automática, sem se atender aos aspectos particulares do caso concreto em apreciação. De igual modo, o critério do padrão de vida do homem-médio português que a decisão recorrida utiliza, de forma automática, estabelecendo uma estreita conexão desse com o valor do ordenado mínimo nacional, não pode ser aceite, sem mais, sob pena de uma interpretação restritiva do disposto no artigo 239º, nº 3, al. b) (i) do CIRE, o que a lei não permite. 18. Sendo certo que a exoneração do passivo restante não pode ser vista como a possibilidade de o insolvente se liberar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores durante o período de cessão, o montante a excluir deve, todavia, ser o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e respectivo agregado familiar, cabendo ao juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar este limite. 19. A prevalência da função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular sobre a sua função externa, que como é sabido, é a garantia geral dos credores, devem harmonizar-se, sacrificando-se a garantia dos credores na justa medida do que seja razoavelmente necessário para o sustento condigno do devedor e o seu agregado familiar e para o exercício condigno da sua actividade profissional e outras despesas que se integrem nesse conceito – neste sentido cfr. Ac. TRL de 05.07.12, in Proc. nº 7373/11.8TBALM-A.L1-2, disponível in www.dgsi.pt. 20. Escrevem Luis A. Carvalho Fernandes e João Labareda em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Júris, Volume II, pag. 194 que “… a subal. I) refere-se ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. O legislador adopta um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno: 3 vezes o salário mínimo nacional”. 21. Ora, in casu, o agregado familiar da insolvente é composto actualmente por duas pessoas. As quais têm despesas próprias, como médico-medicamentosas, vestuário, calçado, alimentação, transporte. Até mesmo em sede de despesas que podemos considerar comuns, como o consumo de água, luz, gás, certamente que duas pessoas gastam mais do que uma. 22. A reforma mensal auferida pela mãe da insolvente, no valor de € 281,50, somada ao salário daquela, no valor líquido mensal de € 590,05, resulta no valor de € 871,55. Sendo com tal montante que ambas vivem e sobrevivem! O qual é inferior a dois salários mínimos nacionais! 23. Assim, a quantia fixada à insolvente para o seu sustento (€ 485,00) é manifestamente insuficiente para garantir uma vida digna a estas duas pessoas. Tratando-se de uma questão de sobrevivência! 24. Afigura-se como razoável e adequado, para que estas pessoas vivam os actuais tempos difíceis com dignidade, satisfazendo as suas necessidades básicas, como sejam a de habitar uma casa com o mínimo de conforto, a de suportar as despesas do dia a dia, sem luxos, e a de ter acesso aos cuidados de saúde, que a recorrente veja excluído do passivo restante, o montante integral do seu vencimento mensal (€ 690,05). 25. Considerando-se que o montante que a recorrente pretende ver retido em seu proveito - € 590,05 - não extravasa o conceito do “razoavelmente necessário” e acautela o sustento minimamente digno da insolvente e seu agregado familiar. Nesse sentido, Ac. RL de 02.05.2013, relatado pela Desembargadora Magda Geraldes, in www.dgsi.pt e Ac. RG, de 18.06.2013, relatado pelo Desembargador Paulo Duarte Barreto, in dge.mj.pt. 26. O Julgador da Sentença não procedeu a uma correcta interpretação e aplicação do direito. 27. Na verdade, o Tribunal a quo fez uma análise redutora e ligeira, quer dos factos, quer do direito aplicável, tendo sido violados na sentença recorrida os seguintes normativos legais: artigo 239º do CIRE e artigo 26º da CRP. Nestes termos, deve revogar-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que seja determinada a exclusão do vencimento integral da recorrente do rendimento disponível e a consequente alteração do valor fixado a título de rendimento necessário ao seu sustento e do seu agregado familiar. Não houve resposta à alegação. ** Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. 2- FUNDAMENTAÇÃO 2.1- OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL O objecto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil (CPC) (actualmente arts. 635º, nº 4, e 640º, nºs 1 e 2, do NCPC).*A matéria de facto apurada é que consta da sentença que decretou a insolvência da apelante e a resultante de documentação junta pela requerente. De relevo, interessa considerar o seguinte: - A requerente assumiu obrigações de que resultaram dívidas no montante de cerca de € 20.000,00 (a entidades financeiras). - A requerente é solteira e vive com a sua mãe, a qual aufere uma pensão de reforma de € 281,50, constituindo ambas o respectivo agregado familiar. - A requerente aufere o salário mensal ilíquido de € 590,05.*Visa a recorrente com o presente recurso, a revogação da decisão contida no despacho de 05/12/2013, que manteve a decisão que fixou a obrigação da insolvente em proceder à entrega à Srª administradora da insolvência (fiduciário), a título de rendimento disponível, o rendimento que a insolvente venha a auferir que exceda o montante correspondente ao Salário Mínimo Nacional (€ 485,00). Na perspectiva da apelante, a decisão ora recorrida põe em causa a garantia do sustento minimamente digno do agregado familiar da recorrente. Vejamos. Dispõe o art° 235°, do CIRE, que se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. Como referem L. A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, p. 183 e segs.) “O Título que se inicia no art.º 235.° respeita, como a sua epígrafe logo esclarece, a «disposições específicas da insolvência de pessoas singulares», que não têm correspondência no CPEREF” (Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo DL nº 132/93, de 23/04, cuja última redacção foi dada pelo DL nº 315/98, de 20/10). “A exoneração de que se trata neste Capítulo, traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante”. “(…) A exoneração do passivo restante não tem como finalidade essencial a satisfação dos direitos dos credores, mas sim conferir ao devedor singular a possibilidade de se libertar de algumas dívidas com vista à sua reabilitação económica. Naturalmente que o legislador pretendeu conjugar esta possibilidade conferida em benefício do devedor com o princípio fundamental do processo de insolvência que é o ressarcimento dos credores, determinando que o devedor durante um determinado período (período de cessão) cedesse, na medida das suas disponibilidades, uma parte do seu rendimento para pagamento aos credores; mas nem por isso se poderá dizer que a exoneração do passivo não tem qualquer utilidade quando os devedores não possuem qualquer rendimento de que possam dispor para este efeito. Com efeito – reafirma-se – a exoneração do passivo restante é concedida em benefício do devedor e visa a sua recuperação económica e, nessa medida, mal se compreenderia que a mesma não fosse admitida naquelas situações em que mais se justificaria, ou seja, nos casos em que a situação económica do insolvente é mais precária e onde se torna mais premente a sua recuperação e reabilitação económica. A impossibilidade de concessão da exoneração do passivo restante nestas situações penalizaria injustamente o devedor que se encontra em situação mais difícil – que, continuando a suportar o peso do seu passivo, não teria qualquer hipótese de ultrapassar a sua situação de insolvência – relativamente aos outros devedores que, encontrando-se em melhor situação – porque podem dispor de alguma parte, por pequena que seja, do seu rendimento – poderiam usufruir da exoneração do passivo restante, libertando-se, ao fim de algum tempo, do seu passivo e adquirindo condições para ultrapassar a situação de insolvência em que se encontraram. Decorre do Preâmbulo do DL n.º 53/2004, que o insolvente assume a obrigação, entre outras, de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores e findo esse período de cessão, profere-se despacho em que se exonera ou não o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. Significa isto que este procedimento impõe dois momentos distintos, como sejam um despacho inicial - art. 238º - e um despacho de exoneração - arts. 237º e 244º. O Prof. L. Menezes Leitão (CIRE Anotado, 3ª ed. 2006, pág. 220), ao manifestar-se sobre este princípio geral, explica que consiste na possibilidade concedida aos devedores a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, visando conceder ao devedor um fresh start, permitindo-lhe recomeçar de novo a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior. Ora, da análise de todos os motivos que se impõem ao tribunal para averiguação e para deferir ou indeferir liminarmente o pedido, isto é, para o dito despacho inicial do art. 238º e 239º, nº 1, resulta que a função do Juiz será a de verificar, mesmo com produção de prova, se necessário, se o insolvente merece ou não que lhe seja dada uma nova oportunidade, ainda que apenas com concretização a prazo de 5 anos, submetendo-o a um período experimental, denominado “período de cessão” (n.º 2, do art. 239º), findo o qual poderá terminar em sucesso ou não do mesmo pedido. Dispõe o artº 239º, do CIRE: 1. Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial (…). 2. O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designado fiduciário (…) nos termos e para os efeitos do artigo seguinte. 3. Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) (…); b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (…).”. O Prof. Menezes Leitão (Direito da insolvência, pag. 305), sustenta que a previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía. Deve ter-se presente que o instituto da exoneração do passivo restante constitui uma espécie de "prémio" concedido ao insolvente, pessoa singular, que, esforçando-se por cumprir as suas obrigações, entrega algo aos credores para pagar as suas dívidas. Porém, não é, nem pode ser, um puro perdão de dívidas. Admitir o benefício da exoneração do passivo restante sem ter nada para entregar é frustrar o seu pressuposto legal e transformá-lo num puro perdão de dívidas, imposto aos credores, sem que algo recebam. "Exoneração do passivo restante" significa, literalmente, que se exonera a parte que falta pagar e não tudo o que falta pagar. O pagamento a uma parte dos credores, pelo menos, com o rendimento disponível é pressuposto necessário da admissão liminar do benefício de exoneração do passivo restante. A concessão efectiva da exoneração será decidida através do despacho previsto no artº 344º, do CIRE, sem prejuízo de se determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração (artº 243º, do CIRE). A norma contida no n.º 3-b) (i), do 239º, do CIRE, deve ser interpretada no sentido de que o sustento minimamente digno será fixado até 3 vezes o salário mínimo nacional (€ 1.455,00 em 2013), podendo exceder esse montante em casos excepcionais. A menção ao que seja razoavelmente necessário envolve claramente um juízo e ponderação casuística do juiz sobre o montante a fixar. Neste sentido, Assunção Cristas (Exoneração do devedor pelo passivo restante, Themis, 2005, p. 167) que adopta também esta interpretação: o rendimento disponível engloba todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, excluindo (…) os montantes que se consideram razoavelmente necessários para o sustento do devedor e do seu agregado familiar (até três vezes o salário mínimo nacional, excepto se, fundadamente, o juiz determinar montante superior). No âmbito da insolvência, a exclusão de entrega ao fiduciário prevista no art. 239º/3-b)(i), do CIRE, também pode atingir montante equivalente a 3 vezes o salário mínimo nacional, o qual funciona igualmente como limite máximo (só podendo ser excedido por decisão fundamentada), competindo ao juiz fixar, com razoabilidade, até esse limite, o montante que lhe pareça necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do respectivo agregado familiar. Em suma, o legislador estabeleceu dois limites: um mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto (o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar), a ponderar pelo juiz em cada caso concreto, conforme as circunstâncias particulares do devedor; um limite máximo obtido através de um critério quantificável e objectivo (o equivalente a três salários mínimos nacionais), o qual, excepcionalmente poderá ser excedido em casos que o justifiquem. Conforme se ajuizou no (sumário) acórdão desta Relação, de 12/06/2012 (acessível em www.dgsi.pt), “na interpretação do sentido da exclusão prevista no art. 239º, nº 3, al. b, (i) do CIRE haverá que atender a um limite mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto (o razoavelmente necessário para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar) e a um limite máximo, obtido de forma objectiva (o valor equivalente a três salários mínimos nacionais). O conceito de sustento minimamente digno do devedor é um conceito aberto, a objectivar face à singularidade que reveste a situação concreta de cada devedor/insolvente e que tem como subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana. O limite, que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade, corresponde ao salário mínimo nacional.”. Ponderou-se no acórdão desta Relação, de 11/09/2012 (acessível em www.dgsi.pt), que o rendimento excluído da cessão, designado como “rendimento indisponível” (cf. Ac. RL, de 12/4/2011, Col., II/129) – caracteriza-se como a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor; por forma exemplificativa, a norma legal indica tal limite de sobrevivência como não podendo exceder 3 vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão judicial em contrário, naturalmente fundamentada, como o deve ser qualquer decisão judicial (pensamos assim não ter adequadamente atingido o escopo legal a caracterização efectuada no douto Ac. RP, de 15/7/09, Col., III/216, quando vê um “mínimo legal” na ideia de sustento minimamente digno, e um “máximo legal” na ideia de 3 vezes o salário mínimo nacional; na verdade, aquilo que se encontra em causa é apenas uma cláusula aberta de “sustento digno”, a preencher prudentemente pelo juiz, exemplificada na lei com um limite máximo; consideramos que o sustento digno apenas se acha em concreto, e não pode dizer-se que, em si mesmo entendido, constitui um “mínimo” ou então que esse mínimo é integrado por noções de dignidade do trabalho, redução da pobreza, segurança ou socorro social, como o são o salário mínimo nacional ou, ainda configurável, a fixação do montante de um rendimento social de inserção; no sentido em que a lei não fixa um limite mínimo para o rendimento indisponível, cf. Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, I, pg. 63). Durante o período de cessão, o devedor fica obrigado a comportar-se em conformidade com o estatuído nas diversas alíneas do nº 4, do artº 239º, do CIRE, pois que, como sublinhado, a exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor. Por outro lado, convém ter presente que o pedido de exoneração do passivo restante constitui um incidente da instância, pelo que competia à requerente indicar, desde logo, os meios de prova do alegado no requerimento, efectuado com a petição de apresentação à insolvência (artº 303º, nº 1, do CPC), o que a requerente não fez no concernente à demonstração das despesas mensais alegadas, designadamente as referentes ao consumo da eletricidade, água, gás bem como médicas/medicamentosas. Enunciados estes princípios e normativos, analisemos o caso concreto. A apelante entende que deve ser fixado, para o sustento da recorrente e agregado familiar, o valor equivalente ao seu salário mensal, ou seja, nada quer ceder ao fiduciário. Pois bem. Antes de mais, muito se estranha, para não dizer mais, que a insolvente, no seu requerimento de 31/10/2013, venha dizer que o seu agregado familiar é composto por si e pelos seus pais e que o pai se encontra desempregado, e, depois de notificada para comprovar o alegado, veio, logo em 03/12/2013, dizer que desconhecia não só que o seu pai afinal estava empregado como os seus pais estavam separados de facto!!! Perante tanta ignorância ou distracção, é legítimo questionar se a apelante vive ou viveu com os pais… Constata-se que a requerente/apelante não indicou qualquer prova no concernente à demonstração das alegadas despesas mensais (electricidade, água, gás, telefone, despesas médico-medicamentosas, etc). Agora, na alegação do recurso, vem, de novo, alegar factos respeitantes às despesas do seu agregado familiar, que não podem ser tidos em conta, sendo, de resto, certo que, mais uma vez, não indica qualquer prova do alegado/concluído. Obviamente, não basta alegar. É necessário provar. Deste modo, ponderando a factualidade apurada (diminuta), não pode deixar de reconhecer-se ou aceitar-se que a situação económica e financeira do agregado familiar, constituído pela apelante e sua mãe, é, obviamente, menos do que remediada, a pender para a pobreza (em Portugal, o limiar de pobreza fixa-se em € 14/dia). O seu rendimento disponível é, para já, limitado, embora não se possa afirmar que esteja numa situação dramática, em comparação com as centenas de milhares de portugueses actualmente desempregados, incluindo casais com filhos a cargo. Porém, como predito, com a fixação de um montante do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, responsabiliza-se o devedor requerente pela obtenção de tal rendimento com vista ao pagamento de parte do passivo, sendo certo que a concessão efectiva da exoneração depende de aquele observar, ao longo de cinco anos, o comportamento que lhe é imposto no referido segmento normativo (nº 4º, do artº 239º, do CIRE). Ao devedor/insolvente requerente da exoneração do passivo restante deve dar-se a oportunidade para obter rendimento, durante o “período de cessão”, que lhe permita satisfazer parte, ou a totalidade, da dívida. No entanto, como também já salientado, a exoneração do passivo restante não pode ser vista como a possibilidade de o insolvente se liberar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores durante o período de cessão. O maior rigor na execução do seu orçamento familiar, sem quebra do que se considera o sustento minimamente digno do seu agregado, e a afectação do rendimento disponível resultante dessa melhor execução, por muito pouco que seja, para a satisfação as obrigações para com os credores, constituem as condições para que, no termo desse período de cinco anos, o insolvente se veja completamente libertado das dívidas ainda pendentes de pagamento (ver Ac. desta Relação, de 10/05/2011, proc. nº 1292/10.2TJPRT-D.P1, em www.dgsi.pt). A requerente tem de empenhar-se, séria e denodadamente, na obtenção de rendimento disponível para entregar ao fiduciário, a fim de amortizar parte, maior ou menor, do seu passivo, no montante de cerca de € 20.000,00. Tudo ponderado, afigura-se-nos que a requerente, com algum esforço e disciplina, está em condições de entregar, para já, ao fiduciário a quantia mensal que aufere na parte que excede o salário mínimo nacional (€ 485,00), sem que a disponibilidade de tal montante ponha em causa o sustento minimamente digno do respectivo agregado familiar. Improcede, assim, o concluído na alegação do recurso. 3- DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela massa insolvente.*Anexa-se o sumário. Porto,12/05/2014 Caimoto Jácome Macedo Domingues Oliveira Abreu _____________________________ SUMÁRIO (artº 713º, nº 7, do CPC, actual artº 663º, nº 7): I- A previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía. II- O rendimento excluído da cessão, designado como “rendimento indisponível” caracteriza-se como a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor e seu agregado familiar. III- Com a fixação de um montante do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, responsabiliza-se o devedor requerente pela obtenção de tal rendimento com vista ao pagamento de parte do passivo, sendo certo que a concessão efectiva da exoneração depende de aquele observar, ao longo de cinco anos, o comportamento que lhe é imposto no referido segmento normativo (nº 4º, do artº 239º, do CIRE).