I - Não decorre do art.º 4.º/1 do Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, qualquer hierarquia dos direitos conferidos ao consumidor em consequência da desconformidade do bem com o contrato, podendo exercer qualquer dos direitos, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais, como está plasmado no seu n.º 5. II - O comprador de veículo automóvel usado tem direito à resolução do contrato de compra e venda, ao abrigo do disposto no art.º 4.º/1 e 5.º desse diploma legal, por desconformidade com o contrato de compra e venda, quando a quilometragem apresentada pelo stand vendedor, aquando da sua aquisição, era de 94.650 Km, quando na realidade já tinha uma quilometragem de 156.884Km.
2.ª Secção Apelação n.º 4990/14.8TBVNG.P1 Acordam no Tribunal da Relação do Porto***I- Relatório. B…, residente na Rua…, em Vila Nova de Gaia, intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra C…UNIPESSOAL, LDA, com sede na Rua…, Vila Nova de Gaia, e BANCO D…, S.A., com sede na …, pedindo que seja reconhecida a resolução do contrato de compra e venda tendo por objeto o veículo identificado nos autos, a condenação da primeira Ré na entrega da quantia de €16.414,14, bem como no pagamento da quantia de €2.500,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, contados desde a data da citação, que se declare a invalidade do contrato de crédito ao consumo identificado na petição inicial e a condenação da segunda Ré na entrega ao Autor dos juros de mora e das prestações pagos. Para tanto, e em síntese, alega que celebrou com a primeira Ré um contrato de compra e venda, em 20 de Dezembro de 2012, tendo por objeto um veículo automóvel, de matrícula ..-IJ-.., pelo preço de €15.900,00, cuja quilometragem anunciada era de 93.650Km. Para o pagamento do preço celebrou com a segunda Ré um contrato de crédito ao consumo, no valor total de €16.414,14 e com despesas incluídas. Mas movidos alguns dias, o veículo começou a manifestar problemas mecânicos e que no âmbito das diligências realizadas para apurar a natureza das anomalias constatou que o mesmo à data da compra tinha, pelo menos, 156.884 Km percorridos, sendo certo que não o adquiriria se tivesse tido conhecimento de tal facto. Por força do sucedido sofreu danos de natureza não patrimonial, que enumera. Regularmente citada, a primeira Ré contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação. Por exceção, para invocar a caducidade do direito do Autor a propor a presente ação. Por impugnação para, negar conhecer qualquer problema relacionado com a viciação da quilometragem e que o Autor o tivesse procurado depois da compra reclamando os vícios apontados, sendo certo que alega que se disponibilizou para anular o negócio, o que não foi aceite pelo Autor, tendo então procedido à revisão completa da viatura. Mais alegou que no momento da compra do veículo não foi a questão da quilometragem apontada pelo Autor como sendo fundamental na sua decisão. E concluiu pedindo a improcedência da ação e a condenação do Autor como litigante de má-fé. Também a segunda Ré BANCO D…, S.A. defendendo-se por exceção e por impugnação. Por exceção, para invocar a caducidade do direito do Autor a propor a presente ação porquanto decorreram mais de seis meses entre a data em que lhe denunciou os defeitos e a da propositura da presente ação. Por impugnação, alegou desconhecer os termos do contrato de compra e venda outorgado entre o Autor e a primeira Ré e o estado em que se encontrava o veículo à data da venda. E que o Autor não procedeu à entrega do preço à primeira Ré, motivo pelo qual não pode reaver para si montantes a cujo pagamento não procedeu. O Autor respondeu às invocadas exceções, pugnando pela sua improcedência. Saneado o processo, realizou-se audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, tendo sido, a final, proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e: a) Declarou resolvido o contrato de compra e venda do veículo automóvel identificado; b) Declarou resolvido o contrato de crédito ao consumo celebrado entre o Autor e a segunda Ré; c) Condenou a segunda Ré a entregar ao Autor o valor das prestações já liquidadas, cujo montante será liquidado em sede incidental, acrescido de juros de mora, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento; d) Absolveu, no mais, as Rés do pedido. Desta sentença veio a 1.ª Ré “C…” interpor o presente recurso, alegando e concluindo nos termos seguintes: 1- A apelante entende que não ficou provada, a essencialidade para o A. do número de quilómetros que a viatura ostentava, para que se decidisse pela compra da mesma. 2-Como também entende a Recorrente, que foi demonstrado documentalmente que a viatura em questão foi por si adquirida em 15 de Novembro de 2012 a um terceiro que lhe garantiu que a mesma tinha 93.600Km. 3-Tendo junto para o efeito documento designado por DOC 1 com a sua contestação, cujo valor provatório não foi posto em causa, não tendo sequer sido impugnado pelo A. 4- Tal documento comprova à saciedade a data da compra da viatura, por parte da R. aqui recorrente, a quem é que a viatura foi adquirida e o nº de Km que o vendedor garantiu por escrito por si assinado, que a viatura ostentava. 5- Salvo o devido respeito, não tendo tal documento sido impugnado, o Tribunal "a quo", não podia sem mais dar tal facto como não provado. 6-Na sentença em crise ficou dado como não provado, que a R. aqui recorrente, soubesse ou tivesse perfeito conhecimento que a viatura tinha mais quilómetros do que os ostentados. 7-Para mais à frente considerar que a recorrente teve "culpa" nesse desconhecimento, porquanto quando adquiriu o veículo tinha a obrigação de diligenciar quais as condições efetivas da viatura, tanto mais que sendo comerciante, tal obrigação seria acrescida. 8-Na verdade, a recorrente, logo na sua contestação alega o total desconhecimento sobre a desconformidade ou viciação de quilómetros, sendo certo que o vendedor da viatura lhe havia garantido por escrito que a mesma tinha os quilómetros que ostentava. 9-O Tribunal “a quo” deveria ter decidido de forma diferente uma vez que o R. não tem culpa. 10-Desde logo quanto à matéria de facto dada como assente, deveria ter sido acrescentada um ponto com a seguinte redação: “A 1ª Ré comprou o veículo em questão em 15 de Novembro de 2012 a um terceiro que lhe garantiu que a mesma tinha 93.600Km”. 11-O que constitui facto extintivo do direito invocado pelo A. e que não foi objeto de impugnação. 12-Por outro lado, e não obstante conhecer da diferença de quilometragem desde Janeiro de 2013, nunca o Autor interpelou o Réu para reparar ou substituir ou reduzir o negócio. 13-O Tribunal “a quo” invoca com o DL 67/2003 de 08/04, como sendo aplicável ao caso. Todavia, com o devido respeito, não a aplicou de forma correta. 14-Efectivamente é esta a legislação aplicável a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a proteção dos interesses dos consumidores. 15-Todavia, ao A. não podia recorrer-se diretamente à resolução contratual, sem antes se terem por verificados determinados circunstancialismos prévios, nomeadamente a hierarquia constante do nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003. 16-O nº 1 do Art. 4º do citado DL que dispõe: “Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato” 17-E o nº 5 – “O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou, constituir abuso de direito, nos termos gerais”. 18-Pese embora no art.º 4º DL 67/2003, não se faça expressa referência a esta hierarquia, deverá entender-se que ela resulta dos princípios gerais e que está implícita no preceito, quando se estabelece como limite a «impossibilidade e o abuso de direito. 19-Nos termos da Diretiva 99/44 (transposta para a ordem jurídica interna através do citado DL 67/2003 cuja aplicação aqui se defende), o consumidor não pode escolher livremente entre os direitos. Pelo contrário, existia uma clara hierarquia entre os quatro direitos atribuídos ao consumidor/comprador. 20-Primeiro que tudo, o consumidor deveria solicitar a reparação ou a substituição do bem. E apenas preenchidas determinadas condições, lançava mão dos instrumentos da redução do preço ou rescisão contratual. 21-Assim, o A. ao ter peticionado como o fez, pedindo de imediato a resolução do contrato, sem antes ter esgotado a hierarquização imposta pelo nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003, violou tal normativo, assim como o fez igualmente a Mma. Juíza «a quo» ao julgar procedente a pretensão do A. 22-Pois o A. não podia exigir, sem mais, a resolução contrato, conforme fez. 23-Na verdade, o direito que lhe assistia era o de que a viatura fosse reparada ou substituída. Não outro. Para exercer algum dos outros direitos previstos no nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003, era necessário, designadamente, alegar e provar que a reparação ou substituição do veículo era impossível. 24-Em conclusão: não assistia ao A. o direito à resolução do contrato – único direito exigido nos presentes autos. 25-É que, mesmo demonstrado que efetivamente a quilometragem foi alterada, também se demonstrou, pela junção do DOC 1 da contestação – E NÃO IMPUGNADO PELO A. – que a R. não teve culpa, pois que se limitou a adquiri-lo com os Km lá indicados. 26-Em suma, o A. deveria ter pedido a condenação da R. na reparação ou substituição do veículo, ao invés optou por exigir dele a resolução do contrato, à qual, face aos factos por si alegados, não tem direito, em virtude da não ocorrência de qualquer dos factos jurídicos que a lei estabelece com indispensáveis para tal. 27-A prova documental, bem como a produção de prova testemunhal, deveria ter levado o Tribunal «a quo» a decidir de forma oposta. 28-O A. nunca imputou dolo à R., que sempre providenciou pela assistência ao veículo, sempre que contactada pelo A. 29-O documento junto pela R. em sede de contestação, não impugnado pelo A. comprova que o R. desconhecia a quilometragem real do veículo. 30-O veículo não está inapto ao fim a que se destina pois o A. usa-o, com frequência. 31-Atendendo a todas estas circunstâncias é notório o abuso de direito ao resolver o contrato e exigir o preço de volta, tanto mais que o A. está na posse da viatura à cerda de 20 meses, fazendo uso normal da mesma, facto que implica desvalorização da mesma, a qual não é contemplada na sentença em crise. 32-Na pior das hipóteses, o que por uma questão de raciocínio se admite, já não constituiria abuso de direito, a redução do preço, sendo a R. condenada a restituir a diferença que viesse a ser apurada quanto ao valor a abater a título da diferença de quilómetros. 33-Mostram-se assim violada a norma do art. 914º do CC e o nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003. Nestes termos, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, julgue totalmente improcedente a ação.***Não estão juntas contra-alegações.***O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.***II – Âmbito do Recurso. Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº4, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que as questões essenciais a decidir consistem em saber se o veículo apresentava defeito e, na afirmativa, se o Autor tem direito à resolução do contrato de compra e venda.***III – Fundamentação fáctico-jurídica. 1) Da matéria de facto. Na decisão recorrida foi considerada a seguinte factualidade: 1) O Autor é proprietário do veículo automóvel de marca Renault, modelo …, com a matrícula ..-IJ-..; 2) Este veículo foi adquirido pelo Autor ao Stand C…, Unipessoal, Lda, no dia 20 de Dezembro de 2012; 3) O valor da aquisição ascendeu aos €15.900,00; 4) Para tanto, celebrou o Autor um contrato de crédito com o Banco D…, S.A. para aquisição do referido automóvel, cuja marca, modelo e matrícula se mostra expressamente mencionado em tal contrato, ascendendo o capital mutuado ao valor de €16.414,14, com despesas incluídas, sendo reembolsável em noventa e seis prestações mensais, no montante de €261,13 cada – documento de fls. 12v- a 15, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; 5) Na celebração do contrato, foi afirmado pela primeira Ré que o automóvel em causa apresentava uma quilometragem de 93.650Km; 6) Para que o Autor se decidisse pela compra da aludida viatura por aquele preço, era essencial o número de quilómetros que a mesma ostentava; 7) Pois caso o Autor tivesse conhecimento que a viatura tinha mais quilómetros, nunca teria celebrado o negócio nos moldes em que o fez; 8) Efetuada a compra e movidos alguns dias, o veículo começou a apresentar um barulho estranho; 9) Tendo tal facto sido comunicado à primeira Ré; 10) A primeira Ré prontificou-se a resolver o problema, tendo o Autor deixado a viatura no seu stand durante alguns dias para reparação; 11) Como os problemas não ficaram resolvidos, passados pouco tempo o Autor deslocou-se a uma oficina da Renault, em local não concretamente apurado, para apurar as razões das anomalias; 12) Naquela oficina, o Autor foi informado que a quilometragem exibida no conta-quilómetros da viatura não tinha correspondência com a realidade; 13) Ou seja, o número de quilómetros visualizado no conta-quilómetros era inferior ao número de quilómetros que o veículo comprado tinha percorrido; 14) Para demonstrar essa realidade, a oficina da Renault sita em …, remeteu ao Autor um histórico das intervenções aí efetuadas na viatura; 15) Desse documento consta que a referida viatura, no dia 30.11.2011 tinha atingido já o 144.025Kms e que a revisão dos 90.000Km havia sido feita em 22.02.2011; 16) O Autor obteve o histórico do IMTT relativo às inspeções periódicas realizadas ao veículo e constatou que aquela viatura, em 13.11.2012 foi sujeita a uma inspeção extraordinária e contava com 156.884Kms; 17) Sendo que na data da compra o conta-quilómetros ostentava menos 63.234Kms; 18) O que permite concluir que a viatura foi objeto de viciação de quilómetros; 19) O número de quilómetros percorridos reveste uma natureza crucial no valor de uma viatura usada; 20) Sendo fundamental a conformidade entre os quilómetros percorridos e os espelhados pelo conta-quilómetros para aferir o desgaste sofrido, a deterioração dos componentes, das peças a substituir e testes a realizar na via do veículo; 21) Sendo ainda importante para as revisões obrigatórias a efetuar ao veículo; 22) A primeira Ré procedeu a uma revisão da viatura, de acordo com o orçamento que a marca elaborou, e entregou-a, volvidos poucos dias, ao Autor; 23) Aquando da celebração do contrato de crédito supra identificado, a segunda Ré procedeu à transferência do respetivo preço de aquisição para a primeira Ré. 24) A ação foi proposta em 31 de Julho de 2014; 25) Com data de 8 de Fevereiro de 2013, o Autor remeteu à primeira Ré a missiva constante de fls. 18v. e 19, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, comunicando a divergência na quilometragem do veículo e concedendo o prazo de oito dias para que a situação fosse resolvida.***2) O Direito. 1. 1. Vejamos agora a questão de fundo e que consiste em saber se os factos apurados permitem, ou não, ao Autor, o direito à resolução do contrato de compra e venda do automóvel. A questão da viciação ou desconformidade entre os quilómetros efetivamente percorridos e os registados no veículo automóvel, no momento da sua aquisição pelo comprador, não é nova, e sobre ela este coletivo já se pronunciou no recente Acórdão desta Relação, proferido em 29/09/2015, proc. n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/137972" target="_blank">399/14.1TJPRT.P1</a>, relatado pelo ora relator. E no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/3/2012, proc. n.º 777/09.8TBALQ.L1-6, disponível em www.dgsi.pt, igualmente relatado pelo ora relator, foi decidida questão idêntica à dos presentes autos, pelo que iremos seguir de perto o que aí se exarou. 1.2. De acordo com o art.º 874.º e 879.º do C. Civil, o contrato de compra e venda é aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, e tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço. “A compra e venda é um contrato pelo qual se transmite uma coisa ou um direito contra o recebimento de uma quantia em dinheiro (preço). O resultado final do negócio consistirá na aquisição por parte do comprador do direito de propriedade sobre o bem vendido, à qual acrescerá como efeito subordinado a aquisição da posse, bem como a aquisição por parte do vendedor do direito de propriedade sobre determinadas espécies monetárias” – Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, Almedina, 4.ª edição. Pag. 19. Impõe o art.º 882.º/1 do C. Civil que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrar ao tempo da venda, o que implica para o comprador a obrigação de a rececionar ou levantar no lugar e no momento devidos. O contrato de compra e venda é um contrato primordialmente não formal, pois não está, em regra, sujeito a forma especial, salvo nos casos expressamente previstos na lei (art.º 219.º do C. C). Por sua vez, estatui o art. 913º do Código Civil: 1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes. 2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria. A este propósito comentam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, pág. 205: “...O artigo 913º cria um regime especial cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica [...] para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas: a) Vício que desvalorize a coisa; b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina. Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afetadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos. Como disposição interpretativa, manda o nº2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria [...]”. A venda da coisa pode considerar-se venda defeituosa quando, numa perspetiva de “funcionalidade”, contém: “Vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina.” Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº2)” – cfr. “Compra e Venda de Coisas Defeituosas - Conformidade e Segurança”, de Calvão da Silva, pág. 41. A coisa será defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado. No mesmo sentido escreve Luís Menezes Leitão, ob.cit., pág. 120, “(… A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão "vícios", tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que "a falta de qualidades", embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato. Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas toma-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações.” Assim, flui da conjugação do disposto nos art.ºs 913.º, nº1, a 915.º do C. Civil, que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação da coisa; de anulação do contrato, do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo. Como ensina Pedro Romano Martinez, in “Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos”, pág., 135 e 136, Almedina, 2.ª Edição, “ (… O regime do cumprimento defeituoso, estabelecido nos arts. 913.º e segs. do Código Civil, vale tanto no caso de ser prestada a coisa devida, mas esta se apresentar com um defeito, como também para as hipóteses em que foi prestada coisa diversa da devida. E, sustenta: “ (… As consequências da compra e venda de coisas defeituosas determinam-se atentos três aspetos: em primeiro lugar, na medida em que se trata de um cumprimento defeituoso, encontram aplicação as regras gerais da responsabilidade contratual (arts. 798.º segs. Código Civil); segundo, no art. 913.º, nº1, do Código Civil faz-se uma remissão para a secção anterior…Nos termos gerais, incumbe ao comprador a prova do defeito (art. 342º, nº l Código Civil) e presume-se a culpa do vendedor, se a coisa entregue padecer de defeito (art. 799.º, nºl, Código Civil)”. Mas, de acordo o disposto no art.º 916.º do C. Civil a responsabilidade do vendedor pela venda de coisa defeituosa depende da prévia denúncia do vício ou falta de qualidade da coisa pelo comprador, exceto se aquele tiver atuado com dolo, denúncia a efetuar até 30 dias depois de conhecido o vício e dentro de seis meses após a entrega da coisa. 1.3. Mas, para além do regime codificado no C. Civil, importa ainda ter em consideração outras disposições legais que visam proteger o consumidor e que lhe confere um regime mais favorável e, por isso, prevalece sobre as demais disposições. Na verdade, o adquirente de coisa defeituosa beneficia ainda da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (LDC, aprovada pelo Dec. Lei n.º 24/96, de 31/7, alterada pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril e na sua versão anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2014, de 28/7), bem como do regime de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, instituído pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, alterado e republicado pelo Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de maio. De acordo como o art.º 2/1 da LDC, “ Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” O Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, aplica-se apenas às pessoas que exerçam com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, e cujo fornecimento de bens ou serviços ocorra nesse âmbito e sejam destinados a uso não profissional pelo adquirente, como é rigorosamente o caso dos autos. O consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, e os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor (art.ºs 3.º/1, al. a) e 4.º da LDC). E tem ainda direito à indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, sendo que o produtor desses bens é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei – seu art.º 12. Por sua vez, o vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem. E, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato – art.ºs 3 e 4/1.º do Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril. Com este diploma legal pretendeu-se proteger o consumidor relativamente à aquisição de bens de consumo (móveis ou imóveis), em que o bem entregue padece de desconformidade face ao contrato de compra e venda, presumindo-se as seguintes situações em que ocorre desconformidade com o contrato, a saber: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem - (seu art.º2.º/1 e 2). O vendedor que satisfaça os direitos concedidos ao consumidor beneficia do direito de regresso contra o profissional a quem adquiriu a coisa, por todos os prejuízos causados pelo exercício desses direitos – art.º 7.º/1 do Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril. Pode, ainda, o consumidor que tenha adquirido coisa defeituosa, e sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante vendedor, optar por exigir diretamente do produtor a sua reparação ou substituição, salvo se tal se manifestar impossível ou desproporcionado tendo em conta o valor que o bem teria se não existisse falta de conformidade, a importância desta e a possibilidade de a solução alternativa ser concretizada sem grave inconveniente para o consumidor. Ao produtor é concedia a faculdade de se opor à reparação ou substituição se o defeito resultar exclusivamente de declarações do vendedor sobre a coisa e sua utilização, ou de má utilização ou que o defeito não existia no momento em que colocou a coisa em circulação – art.º 6.º Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril. Portanto, e resumindo, mesmo no âmbito dos diplomas legais citados, a sua aplicação sempre depende da existência de “vícios da coisa ou coisa defeituosa”, vendida ou adquirida, ou “desconformidade face ao contrato de compra e venda”, ou seja, perspetivando-se que o bem sofra de vício que a desvalorize ou que impeça a realização da finalidade a que a mesma se destina ou careça das qualidades necessárias e asseguradas pelo vendedor para a realização desse fim. 1.4. Descendo ao caso concreto, está provado que o Autor/recorrido adquiriu, em 20/12/2012, à recorrente, pelo preço de €15.900,00, o veículo automóvel de marca Renault, modelo …, com a matrícula ..-IJ-.., e para poder efetuar o pagamento contraiu junto da 2.ª Ré um empréstimo bancário no valor de €16.414,14, com despesas incluídas, a liquidar em noventa e seis prestações mensais, no montante de €261,13 cada. E mais se demonstrou que aquando da celebração do contrato de compra e venda a recorrente afirmou que o automóvel mencionado apresentava uma quilometragem de 93.650Km, o que foi essencial para que o Autor se decidisse adquiri-lo por esse preço, pois que caso tivesse conhecimento que a viatura tinha mais quilómetros nunca teria celebrado o negócio nos moldes em que o fez. E porque o veículo, passados alguns dias após a sua aquisição começou a apresentar um barulho estranho, deu conhecimento à primeira Ré, a qual se prontificou a resolver o problema, tendo o Autor deixado a viatura no seu stand durante alguns dias para reparação, mas que não foram resolvidos, vindo então a ter conhecimento, através de uma oficina da Renault, que a quilometragem exibida no conta-quilómetros da viatura não tinha correspondência com a realidade, pois de acordo com o histórico das intervenções no veículo, este no dia 30.11.2011 tinha atingido já o 144.025Kms e a revisão dos 90.000Km havia sido feita em 22.02.2011, sendo igualmente confirmado pelo histórico do IMTT relativo às inspeções periódicas realizadas ao veículo que em 13.11.2012 foi sujeita a uma inspeção extraordinária e contava com 156.884Kms, ou seja, o veículo foi vendido pela recorrente ao recorrido como se o mesmo apresentasse apenas 94.650 Km percorridos quando efetivamente contava com mais 63.234Km. Perante esta factualidade é evidente houve adulteração do número de quilómetros no veículo e que essa adulteração tem por finalidade enganar o comprador e obter e a obter um preço maior do que aquele que seria obtido. Decorrentemente, não oferece dúvidas de que a diferença apontada de quilómetros, tratando-se de carro usado, configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava conforme com a descrição que dele foi feita pelo vendedor, sabido que esse elemento é essencial na determinação da vontade do comprador e do preço, o mesmo é dizer que a viatura não tinha as qualidades que o Réu assegurou, pois como se escreveu no Ac. do T. Rel. do Porto, de 14/2/2005, Proc. n.º 0456802, in www.dgsi.pt/jtrp, “(… não pode considerar-se irrelevante para o comum das pessoas, que se proponham adquirir uma viatura usada, o número de quilómetros que a mesma possa ter realmente percorrido, isto é, não é de aceitar que não haja uma diferença e bastante acentuada entre duas viaturas usadas que, apesar de aparentarem as mesmas características e estado de conservação, apresentem diferente quilometragem efetivamente percorrida, designadamente quando uma apresenta 45.000 Kms. e a outra 100.000 Kms. realmente percorridos, porquanto, como é público e notório, o desgaste global da viatura aumenta com o maior número de quilómetros percorridos) E no caso concreto preenche o conceito de consumidor o adquirente de uma viatura automóvel destinada a uso não profissional (como é o caso do Autor), se o respetivo fornecedor (no caso a recorrente) exercer com caráter profissional a correspondente atividade económica - n.º 1 do art.º 2.º da LDC. Resumindo, da factualidade assente resulta claramente ter a recorrente a categoria de pessoa que exerce atividade com caráter profissional, sendo clara a posição de consumidor por banda do Autor, atenta a qualificação vertida no nº1, do art.º 2º, da LDC (Lei nº24/96, de 31 de julho, na sua versão anterior às alterações efetuadas pela Lei n.º 47/2014 de 28 de julho), para o qual remete o art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, sendo este o diploma legal aplicável no caso em apreço (na sua atual redação, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 84/2008, de 21/05, que entrou em vigor em 20 de junho de 2008) e que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Diretiva nº1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio, com vista à aproximação das disposições dos Estados membros da União Europeia sobre certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, sem com isso diminuir o nível de proteção já reconhecido entre nós ao consumidor, designadamente, na Lei nº24/96, de 31 de julho (cfr. parte preambular do Decreto-Lei n.º67/2003 e seu art.º 1.º). O Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, na versão dada pelo Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de maio, no seu art.º 5.º, n.º1 e 2, estabelece os prazos para o exercício dos direitos do consumidor, consignados no respetivo art.º 4.º, fixando-os em 2 dois ou 5 anos a contar da entrega do bem, consoante se trate de coisa móvel ou imóvel, podendo ser reduzido para um ano, por acordo das partes, no caso de coisa móvel usada, como prazos de caducidade. E o seu art.º 5.º-A estabelece o prazo para o exercício desses direitos, nomeadamente determinando que caducam no termo de qualquer dos prazos referidos e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes (seu n.º1), devendo o consumidor, para poder exercer esses direitos, denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detetado (seu n.º2). 1.5. Argumenta a recorrente que logo na sua contestação alega o total desconhecimento sobre a desconformidade ou viciação de quilómetros, sendo certo que o vendedor da viatura lhe havia garantido por escrito que a mesma tinha os quilómetros que ostentava e foi demonstrado documentalmente que a viatura em questão foi por si adquirida em 15 de Novembro de 2012 a um terceiro que lhe garantiu que a mesma tinha 93.600Km, tendo junto esse documento, que não foi impugnado, o que prova que não teve "culpa" nesse desconhecimento. Ora, em primeiro lugar, o que o documento (fls. 37) em causa demonstra é apenas o que nele consta, ou seja, uma declaração de venda em que o vendedor (António José Lopes Santos Marques) declara que “vendi a viatura de marca …, modelo…, com a matrícula …, ano 2009, Km 93.600, à firma C…, ….”. Dele não resulta que o vendedor lhe garantiu ou assegurou que o veículo tivesse apenas essa quilometragem. E, ainda que assim não fosse, isto é, que tal facto lhe fosse assegurado pelo vendedor, não o inibe da responsabilidade perante o comprador Autor, o que torna totalmente irrelevante a sua prova ou não prova. Na realidade, exercendo a apelante a atividade profissional de compra e venda de veículos, terá de ser ele a suportar os prejuízos, não o comprador, de acordo com o velho brocardos latino “ubi commoda, ibi incommoda”. Assim, concorda-se integralmente com o que se escreveu na decisão recorrida de que “…, da parte da primeira Ré houve necessariamente culpa já que quando adquiriu o veículo para venda não diligenciou, como lhe competia dado o carácter profissional da sua atividade, por averiguar quais as condições do mesmo, bastando-lhe para tal seguir o mesmo procedimento que o Autor veio a fazer, sendo certo que tal averiguação se impunha, face à frequência e facilidade (infelizmente) com que tal prática é levada a cabo no mercado de veículos usados, o que é do conhecimento dos profissionais que nele operam. Assim sendo, mais não resta do que concluir, face á impossibilidade de eliminação do defeito e não tendo sido alegados quaisquer factos tendentes quer à substituição do veículo, quer à redução do preço, que assiste ao Autor o direito a ver resolvido o contrato”. Não colhe, pois, o argumento invocado e que se traduziria na circunstância de, como a recorrente foi eventualmente enganada, estaria liberta de responsabilidade, pois como se deixou dito tem sempre a possibilidade de exercer o seu direito de regresso contra o vendedor. 1.6. Sustenta a recorrente que o Autor não pode recorrer diretamente à resolução contratual, como o fez, sem antes se terem por verificados determinados circunstancialismos prévios, nomeadamente a hierarquia constante do nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003, ou seja, primeiro que tudo, o consumidor deveria solicitar a reparação ou a substituição do bem. E apenas preenchidas determinadas condições, lançava mão dos instrumentos da redução do preço ou rescisão contratual. Mas sem razão. Desde logo, porque não decorre do art.º 4.º/1 do Dec. Lei n.º 67/2003, qualquer hierarquia dos direitos conferidos ao consumidor em consequência da desconformidade do bem com o contrato, podendo exercer qualquer dos direitos, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais, como está plasmado no seu n.º 5, do qual não se infere essa hierarquia. Reconhece-se que o consumidor para exercer tais direitos deve, previamente, denunciar ao vendedor a falta de conformidade notada, como o exige o n.º3 do art.º 5.º desse diploma legal, na medida em que deverá permitir ao vendedor a possibilidade de repor, sem encargos para aquele, a desejada e obrigatória conformidade, em consonância com o próprio contrato firmado, como se tudo tivesse corrido bem desde o inicio. Mas daí não decorre que o regime legal estabeleça uma hierarquia no exercício dos direitos conferidos ao consumidor - nº5, do art.º 4º -, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais. Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, acima mencionado, onde pode ler-se no seu sumário:” O n.º1 do art.º 4.º do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de abril não estabelece uma hierarquia no exercício dos direitos conferidos ao consumidor, cujo exercício fica apenas limitado à sua impossibilidade ou que traduza abuso de direito, nos termos gerais - n.º5”. Pedro Romano Martinez, ob. citada, pág. 141, sustenta haver “uma sequência lógica: em primeiro lugar, o vendedor está adstrito a eliminar o defeito da coisa e, não sendo possível ou apresentando-se como demasiado onerosa a eliminação do defeito, a substituir a coisa vendida; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço, mas não sendo este meio satisfatório, cabe ao comprador pedir a resolução do contrato”. E entende que a remissão feita pelo art.º 913.º do C. Civil para o art.º 905.º levaria a supor não se estar perante uma resolução, pois aí fala-se em anulabilidade do contrato, mas deve entender-se tratar-se de uma resolução do contrato (pág. 136 e 137). Depois, porque mesmo que assim não fosse, no caso concreto, é manifestamente impossível a reparação ou substituição do veículo, visto que o fundamento invocado pelo autor assenta da disparidade substancial da quilometragem real percorrida e a que consta do contrato de compra e venda e do respetivo conta-quilómetros. Se assim é, como fazer a reparação ou substituição? A reparação é impossível, pois não se pode apagar o número de quilómetros percorrido do veículo de modo a que tudo se passasse como se não tivesse sucedido. E quanto à substituição, é igualmente impossível, a menos que o apelante se dispusesse a colocar à disposição do autor outro veículo, da mesma marca, modelo, ano de matrícula, quilometragem, estado de conservação e preço. E não foi esta a posição assumida pelo apelante na contestação, onde alega apenas não ter tido culpa, por ter também adquirido o veículo com a quilometragem nele indicada, como se fosse o autor, enquanto consumidor e comprador, a assumir os encargos daí decorrentes. Por outro lado, também não é exigível ao autor que fique com o veículo, optando por uma redução do preço que pagou, porque seria de todo intolerável ficar com esse veículo, ainda que por preço inferior, por não resultar dos autos que se tivesse tido conhecimento dessa circunstância, ainda assim, o teria adquirido. Portanto, no caso concreto, sendo manifestamente impossível a reparação ou substituição do veículo, provado o defeito referido, tendo direito à redução do preço ou à resolução do contrato, não ocorrendo qualquer abuso de direito nesta última opção, dada a gravidade do defeito do veículo e da sua repercussão negativa na aptidão para o fim a que se destina e no seu valor que justifica objetivamente a perda de interesse do autor na aquisição. Como é sabido e consabido, a resolução do contrato pode ocorrer quando esteja prevista na lei ou por acordo das partes, sendo os seus efeitos equiparados à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, o mesmo é dizer que a resolução tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, e faz-se por declaração à outra parte – art.ºs 289.º/1, 432.º/1, 433.º e 436.º/1, todos do C. Civil. Em jeito de conclusão, não merece, pois, censura, a decisão recorrida, reconhecido que foi, ao Autor, o direito à resolução do contrato de compra e venda. Improcede a apelação. Vencido no recurso, suportará o apelante as respetivas custas – art.º 527.º/1 do C. P. Civil.***IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C. 1. Não decorre do art.º 4.º/1 do Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, qualquer hierarquia dos direitos conferidos ao consumidor em consequência da desconformidade do bem com o contrato, podendo exercer qualquer dos direitos, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais, como está plasmado no seu n.º 5. 2. O comprador de veículo automóvel usado tem direito à resolução do contrato de compra e venda, ao abrigo do disposto no art.º 4.º/1 e 5.º desse diploma legal, por desconformidade com o contrato de compra e venda, quando a quilometragem apresentada pelo stand vendedor, aquando da sua aquisição, era de 94.650 Km, quando na realidade já tinha uma quilometragem de 156.884Km.****IV. Decisão Em face do exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida. Custas pela apelante. Porto, 2016/02/10 Tomé Ramião Vítor Amaral Luís Cravo
2.ª Secção Apelação n.º 4990/14.8TBVNG.P1 Acordam no Tribunal da Relação do Porto***I- Relatório. B…, residente na Rua…, em Vila Nova de Gaia, intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra C…UNIPESSOAL, LDA, com sede na Rua…, Vila Nova de Gaia, e BANCO D…, S.A., com sede na …, pedindo que seja reconhecida a resolução do contrato de compra e venda tendo por objeto o veículo identificado nos autos, a condenação da primeira Ré na entrega da quantia de €16.414,14, bem como no pagamento da quantia de €2.500,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, contados desde a data da citação, que se declare a invalidade do contrato de crédito ao consumo identificado na petição inicial e a condenação da segunda Ré na entrega ao Autor dos juros de mora e das prestações pagos. Para tanto, e em síntese, alega que celebrou com a primeira Ré um contrato de compra e venda, em 20 de Dezembro de 2012, tendo por objeto um veículo automóvel, de matrícula ..-IJ-.., pelo preço de €15.900,00, cuja quilometragem anunciada era de 93.650Km. Para o pagamento do preço celebrou com a segunda Ré um contrato de crédito ao consumo, no valor total de €16.414,14 e com despesas incluídas. Mas movidos alguns dias, o veículo começou a manifestar problemas mecânicos e que no âmbito das diligências realizadas para apurar a natureza das anomalias constatou que o mesmo à data da compra tinha, pelo menos, 156.884 Km percorridos, sendo certo que não o adquiriria se tivesse tido conhecimento de tal facto. Por força do sucedido sofreu danos de natureza não patrimonial, que enumera. Regularmente citada, a primeira Ré contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação. Por exceção, para invocar a caducidade do direito do Autor a propor a presente ação. Por impugnação para, negar conhecer qualquer problema relacionado com a viciação da quilometragem e que o Autor o tivesse procurado depois da compra reclamando os vícios apontados, sendo certo que alega que se disponibilizou para anular o negócio, o que não foi aceite pelo Autor, tendo então procedido à revisão completa da viatura. Mais alegou que no momento da compra do veículo não foi a questão da quilometragem apontada pelo Autor como sendo fundamental na sua decisão. E concluiu pedindo a improcedência da ação e a condenação do Autor como litigante de má-fé. Também a segunda Ré BANCO D…, S.A. defendendo-se por exceção e por impugnação. Por exceção, para invocar a caducidade do direito do Autor a propor a presente ação porquanto decorreram mais de seis meses entre a data em que lhe denunciou os defeitos e a da propositura da presente ação. Por impugnação, alegou desconhecer os termos do contrato de compra e venda outorgado entre o Autor e a primeira Ré e o estado em que se encontrava o veículo à data da venda. E que o Autor não procedeu à entrega do preço à primeira Ré, motivo pelo qual não pode reaver para si montantes a cujo pagamento não procedeu. O Autor respondeu às invocadas exceções, pugnando pela sua improcedência. Saneado o processo, realizou-se audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, tendo sido, a final, proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e: a) Declarou resolvido o contrato de compra e venda do veículo automóvel identificado; b) Declarou resolvido o contrato de crédito ao consumo celebrado entre o Autor e a segunda Ré; c) Condenou a segunda Ré a entregar ao Autor o valor das prestações já liquidadas, cujo montante será liquidado em sede incidental, acrescido de juros de mora, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento; d) Absolveu, no mais, as Rés do pedido. Desta sentença veio a 1.ª Ré “C…” interpor o presente recurso, alegando e concluindo nos termos seguintes: 1- A apelante entende que não ficou provada, a essencialidade para o A. do número de quilómetros que a viatura ostentava, para que se decidisse pela compra da mesma. 2-Como também entende a Recorrente, que foi demonstrado documentalmente que a viatura em questão foi por si adquirida em 15 de Novembro de 2012 a um terceiro que lhe garantiu que a mesma tinha 93.600Km. 3-Tendo junto para o efeito documento designado por DOC 1 com a sua contestação, cujo valor provatório não foi posto em causa, não tendo sequer sido impugnado pelo A. 4- Tal documento comprova à saciedade a data da compra da viatura, por parte da R. aqui recorrente, a quem é que a viatura foi adquirida e o nº de Km que o vendedor garantiu por escrito por si assinado, que a viatura ostentava. 5- Salvo o devido respeito, não tendo tal documento sido impugnado, o Tribunal "a quo", não podia sem mais dar tal facto como não provado. 6-Na sentença em crise ficou dado como não provado, que a R. aqui recorrente, soubesse ou tivesse perfeito conhecimento que a viatura tinha mais quilómetros do que os ostentados. 7-Para mais à frente considerar que a recorrente teve "culpa" nesse desconhecimento, porquanto quando adquiriu o veículo tinha a obrigação de diligenciar quais as condições efetivas da viatura, tanto mais que sendo comerciante, tal obrigação seria acrescida. 8-Na verdade, a recorrente, logo na sua contestação alega o total desconhecimento sobre a desconformidade ou viciação de quilómetros, sendo certo que o vendedor da viatura lhe havia garantido por escrito que a mesma tinha os quilómetros que ostentava. 9-O Tribunal “a quo” deveria ter decidido de forma diferente uma vez que o R. não tem culpa. 10-Desde logo quanto à matéria de facto dada como assente, deveria ter sido acrescentada um ponto com a seguinte redação: “A 1ª Ré comprou o veículo em questão em 15 de Novembro de 2012 a um terceiro que lhe garantiu que a mesma tinha 93.600Km”. 11-O que constitui facto extintivo do direito invocado pelo A. e que não foi objeto de impugnação. 12-Por outro lado, e não obstante conhecer da diferença de quilometragem desde Janeiro de 2013, nunca o Autor interpelou o Réu para reparar ou substituir ou reduzir o negócio. 13-O Tribunal “a quo” invoca com o DL 67/2003 de 08/04, como sendo aplicável ao caso. Todavia, com o devido respeito, não a aplicou de forma correta. 14-Efectivamente é esta a legislação aplicável a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a proteção dos interesses dos consumidores. 15-Todavia, ao A. não podia recorrer-se diretamente à resolução contratual, sem antes se terem por verificados determinados circunstancialismos prévios, nomeadamente a hierarquia constante do nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003. 16-O nº 1 do Art. 4º do citado DL que dispõe: “Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato” 17-E o nº 5 – “O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou, constituir abuso de direito, nos termos gerais”. 18-Pese embora no art.º 4º DL 67/2003, não se faça expressa referência a esta hierarquia, deverá entender-se que ela resulta dos princípios gerais e que está implícita no preceito, quando se estabelece como limite a «impossibilidade e o abuso de direito. 19-Nos termos da Diretiva 99/44 (transposta para a ordem jurídica interna através do citado DL 67/2003 cuja aplicação aqui se defende), o consumidor não pode escolher livremente entre os direitos. Pelo contrário, existia uma clara hierarquia entre os quatro direitos atribuídos ao consumidor/comprador. 20-Primeiro que tudo, o consumidor deveria solicitar a reparação ou a substituição do bem. E apenas preenchidas determinadas condições, lançava mão dos instrumentos da redução do preço ou rescisão contratual. 21-Assim, o A. ao ter peticionado como o fez, pedindo de imediato a resolução do contrato, sem antes ter esgotado a hierarquização imposta pelo nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003, violou tal normativo, assim como o fez igualmente a Mma. Juíza «a quo» ao julgar procedente a pretensão do A. 22-Pois o A. não podia exigir, sem mais, a resolução contrato, conforme fez. 23-Na verdade, o direito que lhe assistia era o de que a viatura fosse reparada ou substituída. Não outro. Para exercer algum dos outros direitos previstos no nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003, era necessário, designadamente, alegar e provar que a reparação ou substituição do veículo era impossível. 24-Em conclusão: não assistia ao A. o direito à resolução do contrato – único direito exigido nos presentes autos. 25-É que, mesmo demonstrado que efetivamente a quilometragem foi alterada, também se demonstrou, pela junção do DOC 1 da contestação – E NÃO IMPUGNADO PELO A. – que a R. não teve culpa, pois que se limitou a adquiri-lo com os Km lá indicados. 26-Em suma, o A. deveria ter pedido a condenação da R. na reparação ou substituição do veículo, ao invés optou por exigir dele a resolução do contrato, à qual, face aos factos por si alegados, não tem direito, em virtude da não ocorrência de qualquer dos factos jurídicos que a lei estabelece com indispensáveis para tal. 27-A prova documental, bem como a produção de prova testemunhal, deveria ter levado o Tribunal «a quo» a decidir de forma oposta. 28-O A. nunca imputou dolo à R., que sempre providenciou pela assistência ao veículo, sempre que contactada pelo A. 29-O documento junto pela R. em sede de contestação, não impugnado pelo A. comprova que o R. desconhecia a quilometragem real do veículo. 30-O veículo não está inapto ao fim a que se destina pois o A. usa-o, com frequência. 31-Atendendo a todas estas circunstâncias é notório o abuso de direito ao resolver o contrato e exigir o preço de volta, tanto mais que o A. está na posse da viatura à cerda de 20 meses, fazendo uso normal da mesma, facto que implica desvalorização da mesma, a qual não é contemplada na sentença em crise. 32-Na pior das hipóteses, o que por uma questão de raciocínio se admite, já não constituiria abuso de direito, a redução do preço, sendo a R. condenada a restituir a diferença que viesse a ser apurada quanto ao valor a abater a título da diferença de quilómetros. 33-Mostram-se assim violada a norma do art. 914º do CC e o nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003. Nestes termos, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, julgue totalmente improcedente a ação.***Não estão juntas contra-alegações.***O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.***II – Âmbito do Recurso. Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº4, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que as questões essenciais a decidir consistem em saber se o veículo apresentava defeito e, na afirmativa, se o Autor tem direito à resolução do contrato de compra e venda.***III – Fundamentação fáctico-jurídica. 1) Da matéria de facto. Na decisão recorrida foi considerada a seguinte factualidade: 1) O Autor é proprietário do veículo automóvel de marca Renault, modelo …, com a matrícula ..-IJ-..; 2) Este veículo foi adquirido pelo Autor ao Stand C…, Unipessoal, Lda, no dia 20 de Dezembro de 2012; 3) O valor da aquisição ascendeu aos €15.900,00; 4) Para tanto, celebrou o Autor um contrato de crédito com o Banco D…, S.A. para aquisição do referido automóvel, cuja marca, modelo e matrícula se mostra expressamente mencionado em tal contrato, ascendendo o capital mutuado ao valor de €16.414,14, com despesas incluídas, sendo reembolsável em noventa e seis prestações mensais, no montante de €261,13 cada – documento de fls. 12v- a 15, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; 5) Na celebração do contrato, foi afirmado pela primeira Ré que o automóvel em causa apresentava uma quilometragem de 93.650Km; 6) Para que o Autor se decidisse pela compra da aludida viatura por aquele preço, era essencial o número de quilómetros que a mesma ostentava; 7) Pois caso o Autor tivesse conhecimento que a viatura tinha mais quilómetros, nunca teria celebrado o negócio nos moldes em que o fez; 8) Efetuada a compra e movidos alguns dias, o veículo começou a apresentar um barulho estranho; 9) Tendo tal facto sido comunicado à primeira Ré; 10) A primeira Ré prontificou-se a resolver o problema, tendo o Autor deixado a viatura no seu stand durante alguns dias para reparação; 11) Como os problemas não ficaram resolvidos, passados pouco tempo o Autor deslocou-se a uma oficina da Renault, em local não concretamente apurado, para apurar as razões das anomalias; 12) Naquela oficina, o Autor foi informado que a quilometragem exibida no conta-quilómetros da viatura não tinha correspondência com a realidade; 13) Ou seja, o número de quilómetros visualizado no conta-quilómetros era inferior ao número de quilómetros que o veículo comprado tinha percorrido; 14) Para demonstrar essa realidade, a oficina da Renault sita em …, remeteu ao Autor um histórico das intervenções aí efetuadas na viatura; 15) Desse documento consta que a referida viatura, no dia 30.11.2011 tinha atingido já o 144.025Kms e que a revisão dos 90.000Km havia sido feita em 22.02.2011; 16) O Autor obteve o histórico do IMTT relativo às inspeções periódicas realizadas ao veículo e constatou que aquela viatura, em 13.11.2012 foi sujeita a uma inspeção extraordinária e contava com 156.884Kms; 17) Sendo que na data da compra o conta-quilómetros ostentava menos 63.234Kms; 18) O que permite concluir que a viatura foi objeto de viciação de quilómetros; 19) O número de quilómetros percorridos reveste uma natureza crucial no valor de uma viatura usada; 20) Sendo fundamental a conformidade entre os quilómetros percorridos e os espelhados pelo conta-quilómetros para aferir o desgaste sofrido, a deterioração dos componentes, das peças a substituir e testes a realizar na via do veículo; 21) Sendo ainda importante para as revisões obrigatórias a efetuar ao veículo; 22) A primeira Ré procedeu a uma revisão da viatura, de acordo com o orçamento que a marca elaborou, e entregou-a, volvidos poucos dias, ao Autor; 23) Aquando da celebração do contrato de crédito supra identificado, a segunda Ré procedeu à transferência do respetivo preço de aquisição para a primeira Ré. 24) A ação foi proposta em 31 de Julho de 2014; 25) Com data de 8 de Fevereiro de 2013, o Autor remeteu à primeira Ré a missiva constante de fls. 18v. e 19, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, comunicando a divergência na quilometragem do veículo e concedendo o prazo de oito dias para que a situação fosse resolvida.***2) O Direito. 1. 1. Vejamos agora a questão de fundo e que consiste em saber se os factos apurados permitem, ou não, ao Autor, o direito à resolução do contrato de compra e venda do automóvel. A questão da viciação ou desconformidade entre os quilómetros efetivamente percorridos e os registados no veículo automóvel, no momento da sua aquisição pelo comprador, não é nova, e sobre ela este coletivo já se pronunciou no recente Acórdão desta Relação, proferido em 29/09/2015, proc. n.º 399/14.1TJPRT.P1, relatado pelo ora relator. E no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/3/2012, proc. n.º 777/09.8TBALQ.L1-6, disponível em www.dgsi.pt, igualmente relatado pelo ora relator, foi decidida questão idêntica à dos presentes autos, pelo que iremos seguir de perto o que aí se exarou. 1.2. De acordo com o art.º 874.º e 879.º do C. Civil, o contrato de compra e venda é aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, e tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço. “A compra e venda é um contrato pelo qual se transmite uma coisa ou um direito contra o recebimento de uma quantia em dinheiro (preço). O resultado final do negócio consistirá na aquisição por parte do comprador do direito de propriedade sobre o bem vendido, à qual acrescerá como efeito subordinado a aquisição da posse, bem como a aquisição por parte do vendedor do direito de propriedade sobre determinadas espécies monetárias” – Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, Almedina, 4.ª edição. Pag. 19. Impõe o art.º 882.º/1 do C. Civil que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrar ao tempo da venda, o que implica para o comprador a obrigação de a rececionar ou levantar no lugar e no momento devidos. O contrato de compra e venda é um contrato primordialmente não formal, pois não está, em regra, sujeito a forma especial, salvo nos casos expressamente previstos na lei (art.º 219.º do C. C). Por sua vez, estatui o art. 913º do Código Civil: 1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes. 2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria. A este propósito comentam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, pág. 205: “...O artigo 913º cria um regime especial cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica [...] para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas: a) Vício que desvalorize a coisa; b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina. Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afetadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos. Como disposição interpretativa, manda o nº2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria [...]”. A venda da coisa pode considerar-se venda defeituosa quando, numa perspetiva de “funcionalidade”, contém: “Vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina.” Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº2)” – cfr. “Compra e Venda de Coisas Defeituosas - Conformidade e Segurança”, de Calvão da Silva, pág. 41. A coisa será defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado. No mesmo sentido escreve Luís Menezes Leitão, ob.cit., pág. 120, “(… A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão "vícios", tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que "a falta de qualidades", embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato. Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas toma-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações.” Assim, flui da conjugação do disposto nos art.ºs 913.º, nº1, a 915.º do C. Civil, que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação da coisa; de anulação do contrato, do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo. Como ensina Pedro Romano Martinez, in “Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos”, pág., 135 e 136, Almedina, 2.ª Edição, “ (… O regime do cumprimento defeituoso, estabelecido nos arts. 913.º e segs. do Código Civil, vale tanto no caso de ser prestada a coisa devida, mas esta se apresentar com um defeito, como também para as hipóteses em que foi prestada coisa diversa da devida. E, sustenta: “ (… As consequências da compra e venda de coisas defeituosas determinam-se atentos três aspetos: em primeiro lugar, na medida em que se trata de um cumprimento defeituoso, encontram aplicação as regras gerais da responsabilidade contratual (arts. 798.º segs. Código Civil); segundo, no art. 913.º, nº1, do Código Civil faz-se uma remissão para a secção anterior…Nos termos gerais, incumbe ao comprador a prova do defeito (art. 342º, nº l Código Civil) e presume-se a culpa do vendedor, se a coisa entregue padecer de defeito (art. 799.º, nºl, Código Civil)”. Mas, de acordo o disposto no art.º 916.º do C. Civil a responsabilidade do vendedor pela venda de coisa defeituosa depende da prévia denúncia do vício ou falta de qualidade da coisa pelo comprador, exceto se aquele tiver atuado com dolo, denúncia a efetuar até 30 dias depois de conhecido o vício e dentro de seis meses após a entrega da coisa. 1.3. Mas, para além do regime codificado no C. Civil, importa ainda ter em consideração outras disposições legais que visam proteger o consumidor e que lhe confere um regime mais favorável e, por isso, prevalece sobre as demais disposições. Na verdade, o adquirente de coisa defeituosa beneficia ainda da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (LDC, aprovada pelo Dec. Lei n.º 24/96, de 31/7, alterada pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril e na sua versão anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2014, de 28/7), bem como do regime de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, instituído pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, alterado e republicado pelo Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de maio. De acordo como o art.º 2/1 da LDC, “ Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” O Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, aplica-se apenas às pessoas que exerçam com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, e cujo fornecimento de bens ou serviços ocorra nesse âmbito e sejam destinados a uso não profissional pelo adquirente, como é rigorosamente o caso dos autos. O consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, e os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor (art.ºs 3.º/1, al. a) e 4.º da LDC). E tem ainda direito à indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, sendo que o produtor desses bens é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei – seu art.º 12. Por sua vez, o vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem. E, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato – art.ºs 3 e 4/1.º do Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril. Com este diploma legal pretendeu-se proteger o consumidor relativamente à aquisição de bens de consumo (móveis ou imóveis), em que o bem entregue padece de desconformidade face ao contrato de compra e venda, presumindo-se as seguintes situações em que ocorre desconformidade com o contrato, a saber: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem - (seu art.º2.º/1 e 2). O vendedor que satisfaça os direitos concedidos ao consumidor beneficia do direito de regresso contra o profissional a quem adquiriu a coisa, por todos os prejuízos causados pelo exercício desses direitos – art.º 7.º/1 do Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril. Pode, ainda, o consumidor que tenha adquirido coisa defeituosa, e sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante vendedor, optar por exigir diretamente do produtor a sua reparação ou substituição, salvo se tal se manifestar impossível ou desproporcionado tendo em conta o valor que o bem teria se não existisse falta de conformidade, a importância desta e a possibilidade de a solução alternativa ser concretizada sem grave inconveniente para o consumidor. Ao produtor é concedia a faculdade de se opor à reparação ou substituição se o defeito resultar exclusivamente de declarações do vendedor sobre a coisa e sua utilização, ou de má utilização ou que o defeito não existia no momento em que colocou a coisa em circulação – art.º 6.º Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril. Portanto, e resumindo, mesmo no âmbito dos diplomas legais citados, a sua aplicação sempre depende da existência de “vícios da coisa ou coisa defeituosa”, vendida ou adquirida, ou “desconformidade face ao contrato de compra e venda”, ou seja, perspetivando-se que o bem sofra de vício que a desvalorize ou que impeça a realização da finalidade a que a mesma se destina ou careça das qualidades necessárias e asseguradas pelo vendedor para a realização desse fim. 1.4. Descendo ao caso concreto, está provado que o Autor/recorrido adquiriu, em 20/12/2012, à recorrente, pelo preço de €15.900,00, o veículo automóvel de marca Renault, modelo …, com a matrícula ..-IJ-.., e para poder efetuar o pagamento contraiu junto da 2.ª Ré um empréstimo bancário no valor de €16.414,14, com despesas incluídas, a liquidar em noventa e seis prestações mensais, no montante de €261,13 cada. E mais se demonstrou que aquando da celebração do contrato de compra e venda a recorrente afirmou que o automóvel mencionado apresentava uma quilometragem de 93.650Km, o que foi essencial para que o Autor se decidisse adquiri-lo por esse preço, pois que caso tivesse conhecimento que a viatura tinha mais quilómetros nunca teria celebrado o negócio nos moldes em que o fez. E porque o veículo, passados alguns dias após a sua aquisição começou a apresentar um barulho estranho, deu conhecimento à primeira Ré, a qual se prontificou a resolver o problema, tendo o Autor deixado a viatura no seu stand durante alguns dias para reparação, mas que não foram resolvidos, vindo então a ter conhecimento, através de uma oficina da Renault, que a quilometragem exibida no conta-quilómetros da viatura não tinha correspondência com a realidade, pois de acordo com o histórico das intervenções no veículo, este no dia 30.11.2011 tinha atingido já o 144.025Kms e a revisão dos 90.000Km havia sido feita em 22.02.2011, sendo igualmente confirmado pelo histórico do IMTT relativo às inspeções periódicas realizadas ao veículo que em 13.11.2012 foi sujeita a uma inspeção extraordinária e contava com 156.884Kms, ou seja, o veículo foi vendido pela recorrente ao recorrido como se o mesmo apresentasse apenas 94.650 Km percorridos quando efetivamente contava com mais 63.234Km. Perante esta factualidade é evidente houve adulteração do número de quilómetros no veículo e que essa adulteração tem por finalidade enganar o comprador e obter e a obter um preço maior do que aquele que seria obtido. Decorrentemente, não oferece dúvidas de que a diferença apontada de quilómetros, tratando-se de carro usado, configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava conforme com a descrição que dele foi feita pelo vendedor, sabido que esse elemento é essencial na determinação da vontade do comprador e do preço, o mesmo é dizer que a viatura não tinha as qualidades que o Réu assegurou, pois como se escreveu no Ac. do T. Rel. do Porto, de 14/2/2005, Proc. n.º 0456802, in www.dgsi.pt/jtrp, “(… não pode considerar-se irrelevante para o comum das pessoas, que se proponham adquirir uma viatura usada, o número de quilómetros que a mesma possa ter realmente percorrido, isto é, não é de aceitar que não haja uma diferença e bastante acentuada entre duas viaturas usadas que, apesar de aparentarem as mesmas características e estado de conservação, apresentem diferente quilometragem efetivamente percorrida, designadamente quando uma apresenta 45.000 Kms. e a outra 100.000 Kms. realmente percorridos, porquanto, como é público e notório, o desgaste global da viatura aumenta com o maior número de quilómetros percorridos) E no caso concreto preenche o conceito de consumidor o adquirente de uma viatura automóvel destinada a uso não profissional (como é o caso do Autor), se o respetivo fornecedor (no caso a recorrente) exercer com caráter profissional a correspondente atividade económica - n.º 1 do art.º 2.º da LDC. Resumindo, da factualidade assente resulta claramente ter a recorrente a categoria de pessoa que exerce atividade com caráter profissional, sendo clara a posição de consumidor por banda do Autor, atenta a qualificação vertida no nº1, do art.º 2º, da LDC (Lei nº24/96, de 31 de julho, na sua versão anterior às alterações efetuadas pela Lei n.º 47/2014 de 28 de julho), para o qual remete o art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, sendo este o diploma legal aplicável no caso em apreço (na sua atual redação, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 84/2008, de 21/05, que entrou em vigor em 20 de junho de 2008) e que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Diretiva nº1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio, com vista à aproximação das disposições dos Estados membros da União Europeia sobre certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, sem com isso diminuir o nível de proteção já reconhecido entre nós ao consumidor, designadamente, na Lei nº24/96, de 31 de julho (cfr. parte preambular do Decreto-Lei n.º67/2003 e seu art.º 1.º). O Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, na versão dada pelo Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de maio, no seu art.º 5.º, n.º1 e 2, estabelece os prazos para o exercício dos direitos do consumidor, consignados no respetivo art.º 4.º, fixando-os em 2 dois ou 5 anos a contar da entrega do bem, consoante se trate de coisa móvel ou imóvel, podendo ser reduzido para um ano, por acordo das partes, no caso de coisa móvel usada, como prazos de caducidade. E o seu art.º 5.º-A estabelece o prazo para o exercício desses direitos, nomeadamente determinando que caducam no termo de qualquer dos prazos referidos e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes (seu n.º1), devendo o consumidor, para poder exercer esses direitos, denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detetado (seu n.º2). 1.5. Argumenta a recorrente que logo na sua contestação alega o total desconhecimento sobre a desconformidade ou viciação de quilómetros, sendo certo que o vendedor da viatura lhe havia garantido por escrito que a mesma tinha os quilómetros que ostentava e foi demonstrado documentalmente que a viatura em questão foi por si adquirida em 15 de Novembro de 2012 a um terceiro que lhe garantiu que a mesma tinha 93.600Km, tendo junto esse documento, que não foi impugnado, o que prova que não teve "culpa" nesse desconhecimento. Ora, em primeiro lugar, o que o documento (fls. 37) em causa demonstra é apenas o que nele consta, ou seja, uma declaração de venda em que o vendedor (António José Lopes Santos Marques) declara que “vendi a viatura de marca …, modelo…, com a matrícula …, ano 2009, Km 93.600, à firma C…, ….”. Dele não resulta que o vendedor lhe garantiu ou assegurou que o veículo tivesse apenas essa quilometragem. E, ainda que assim não fosse, isto é, que tal facto lhe fosse assegurado pelo vendedor, não o inibe da responsabilidade perante o comprador Autor, o que torna totalmente irrelevante a sua prova ou não prova. Na realidade, exercendo a apelante a atividade profissional de compra e venda de veículos, terá de ser ele a suportar os prejuízos, não o comprador, de acordo com o velho brocardos latino “ubi commoda, ibi incommoda”. Assim, concorda-se integralmente com o que se escreveu na decisão recorrida de que “…, da parte da primeira Ré houve necessariamente culpa já que quando adquiriu o veículo para venda não diligenciou, como lhe competia dado o carácter profissional da sua atividade, por averiguar quais as condições do mesmo, bastando-lhe para tal seguir o mesmo procedimento que o Autor veio a fazer, sendo certo que tal averiguação se impunha, face à frequência e facilidade (infelizmente) com que tal prática é levada a cabo no mercado de veículos usados, o que é do conhecimento dos profissionais que nele operam. Assim sendo, mais não resta do que concluir, face á impossibilidade de eliminação do defeito e não tendo sido alegados quaisquer factos tendentes quer à substituição do veículo, quer à redução do preço, que assiste ao Autor o direito a ver resolvido o contrato”. Não colhe, pois, o argumento invocado e que se traduziria na circunstância de, como a recorrente foi eventualmente enganada, estaria liberta de responsabilidade, pois como se deixou dito tem sempre a possibilidade de exercer o seu direito de regresso contra o vendedor. 1.6. Sustenta a recorrente que o Autor não pode recorrer diretamente à resolução contratual, como o fez, sem antes se terem por verificados determinados circunstancialismos prévios, nomeadamente a hierarquia constante do nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003, ou seja, primeiro que tudo, o consumidor deveria solicitar a reparação ou a substituição do bem. E apenas preenchidas determinadas condições, lançava mão dos instrumentos da redução do preço ou rescisão contratual. Mas sem razão. Desde logo, porque não decorre do art.º 4.º/1 do Dec. Lei n.º 67/2003, qualquer hierarquia dos direitos conferidos ao consumidor em consequência da desconformidade do bem com o contrato, podendo exercer qualquer dos direitos, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais, como está plasmado no seu n.º 5, do qual não se infere essa hierarquia. Reconhece-se que o consumidor para exercer tais direitos deve, previamente, denunciar ao vendedor a falta de conformidade notada, como o exige o n.º3 do art.º 5.º desse diploma legal, na medida em que deverá permitir ao vendedor a possibilidade de repor, sem encargos para aquele, a desejada e obrigatória conformidade, em consonância com o próprio contrato firmado, como se tudo tivesse corrido bem desde o inicio. Mas daí não decorre que o regime legal estabeleça uma hierarquia no exercício dos direitos conferidos ao consumidor - nº5, do art.º 4º -, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais. Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, acima mencionado, onde pode ler-se no seu sumário:” O n.º1 do art.º 4.º do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de abril não estabelece uma hierarquia no exercício dos direitos conferidos ao consumidor, cujo exercício fica apenas limitado à sua impossibilidade ou que traduza abuso de direito, nos termos gerais - n.º5”. Pedro Romano Martinez, ob. citada, pág. 141, sustenta haver “uma sequência lógica: em primeiro lugar, o vendedor está adstrito a eliminar o defeito da coisa e, não sendo possível ou apresentando-se como demasiado onerosa a eliminação do defeito, a substituir a coisa vendida; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço, mas não sendo este meio satisfatório, cabe ao comprador pedir a resolução do contrato”. E entende que a remissão feita pelo art.º 913.º do C. Civil para o art.º 905.º levaria a supor não se estar perante uma resolução, pois aí fala-se em anulabilidade do contrato, mas deve entender-se tratar-se de uma resolução do contrato (pág. 136 e 137). Depois, porque mesmo que assim não fosse, no caso concreto, é manifestamente impossível a reparação ou substituição do veículo, visto que o fundamento invocado pelo autor assenta da disparidade substancial da quilometragem real percorrida e a que consta do contrato de compra e venda e do respetivo conta-quilómetros. Se assim é, como fazer a reparação ou substituição? A reparação é impossível, pois não se pode apagar o número de quilómetros percorrido do veículo de modo a que tudo se passasse como se não tivesse sucedido. E quanto à substituição, é igualmente impossível, a menos que o apelante se dispusesse a colocar à disposição do autor outro veículo, da mesma marca, modelo, ano de matrícula, quilometragem, estado de conservação e preço. E não foi esta a posição assumida pelo apelante na contestação, onde alega apenas não ter tido culpa, por ter também adquirido o veículo com a quilometragem nele indicada, como se fosse o autor, enquanto consumidor e comprador, a assumir os encargos daí decorrentes. Por outro lado, também não é exigível ao autor que fique com o veículo, optando por uma redução do preço que pagou, porque seria de todo intolerável ficar com esse veículo, ainda que por preço inferior, por não resultar dos autos que se tivesse tido conhecimento dessa circunstância, ainda assim, o teria adquirido. Portanto, no caso concreto, sendo manifestamente impossível a reparação ou substituição do veículo, provado o defeito referido, tendo direito à redução do preço ou à resolução do contrato, não ocorrendo qualquer abuso de direito nesta última opção, dada a gravidade do defeito do veículo e da sua repercussão negativa na aptidão para o fim a que se destina e no seu valor que justifica objetivamente a perda de interesse do autor na aquisição. Como é sabido e consabido, a resolução do contrato pode ocorrer quando esteja prevista na lei ou por acordo das partes, sendo os seus efeitos equiparados à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, o mesmo é dizer que a resolução tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, e faz-se por declaração à outra parte – art.ºs 289.º/1, 432.º/1, 433.º e 436.º/1, todos do C. Civil. Em jeito de conclusão, não merece, pois, censura, a decisão recorrida, reconhecido que foi, ao Autor, o direito à resolução do contrato de compra e venda. Improcede a apelação. Vencido no recurso, suportará o apelante as respetivas custas – art.º 527.º/1 do C. P. Civil.***IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C. 1. Não decorre do art.º 4.º/1 do Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, qualquer hierarquia dos direitos conferidos ao consumidor em consequência da desconformidade do bem com o contrato, podendo exercer qualquer dos direitos, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais, como está plasmado no seu n.º 5. 2. O comprador de veículo automóvel usado tem direito à resolução do contrato de compra e venda, ao abrigo do disposto no art.º 4.º/1 e 5.º desse diploma legal, por desconformidade com o contrato de compra e venda, quando a quilometragem apresentada pelo stand vendedor, aquando da sua aquisição, era de 94.650 Km, quando na realidade já tinha uma quilometragem de 156.884Km.****IV. Decisão Em face do exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida. Custas pela apelante. Porto, 2016/02/10 Tomé Ramião Vítor Amaral Luís Cravo