1. Do confronto do artigo 562.º, com o n.º 1 do artigo 566.º, ambos do Código Civil, resulta o primado da reparação in natura, competindo à seguradora a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar tal princípio, tendo em conta dois factores: o preço da reparação e o valor do veículo, não o venal, mas o patrimonial. 2. A aplicação do critério de “perda total”, implicando o cumprimento da obrigação de indemnização em dinheiro e não através da reparação do veículo, previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, restringe-se ao procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da “proposta razoável”, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade. 3. Caso não haja acordo no âmbito do referido procedimento, valem as regras gerais enunciadas nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil.
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório A... intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra B..., “C..., Lda” e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo que os réus sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 8.868,41, acrescidos de juros de mora à taxa legal vencidos desde a citação. Alegou em síntese: no dia 21 de Novembro de 2009, no IC2, Cruz de Marouços, em Coimbra, quando conduzia o seu veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...)-CH, foi interveniente num acidente de viação causado pelo réu B..., que conduzia na ocasião um veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula UC-(...), em sentido contrário ao do autor, perdeu o controlo deste veículo e invadiu a meia faixa de rodagem onde este seguia, embatendo com a parte lateral esquerda do ligeiro de mercadorias no parte frontal do veículo do autor; à data do embate, os primeiro e segundo réus não haviam contratado com qualquer companhia de seguros o seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo UC; do acidente resultaram lesões corporais para o autor, que teve de estar de repouso durante uma semana, bem como um trauma psicológico, tendo sofrido ainda desgaste e preocupações, nomeadamente pelo facto de o veículo não estar seguro, reclamando para indemnização destes danos não patrimoniais a quantia de € 1.500,00; o veículo sofreu estragos cuja reparação foi orçada em € 3.194,80, quantia que já pagou; o veículo esteve paralisado durante seis meses, tendo pago pelo custo da respectiva recolha a quantia de € 820,00; o veículo sofreu ainda uma desvalorização de € 500,00 pelo facto de ter sido interveniente no acidente; a privação do veículo durante os referidos seis meses deve ser ressarcida com o pagamento de uma indemnização de € 2.760,00, atento o preço médio de aluguer de um veículo da mesma categoria; em consequência do acidente suportou ainda custos, com transportes e certidão de participação do acidente, de € 85,60. O réu Fundo de Garantia Automóvel contestou impugnando a generalidade da matéria de facto e alegando que após peritagem concluiu que a reparação era economicamente inviável, uma vez que o veículo não valeria mais do que € 850,00, tendo dado conta dessa posição ao autor em 1 de Fevereiro de 2010, pelo que não se considera responsável pelas pretendidas despesas de parqueamento e pela imobilização do veículo. A ré C..., Lda., contestou, invocando desconhecimento da matéria de facto alegada na petição inicial e alegando que à data do acidente já não era proprietária do veículo UC, que vendera em 30 de Setembro de 2009, não tendo por isso qualquer responsabilidade na regularização dos danos decorrentes do acidente. O réu B... contestou refutando a sua culpa na produção do acidente, que imputou à existência de óleo na faixa de rodagem, o que considera constituir uma causa de força maior excludente da respectiva responsabilidade. Foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto relevante para a decisão da causa, sem reclamações. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto, que não foi objecto de qualquer reclamação. Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e consequentemente, condeno os réus B... e Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao autor a quantia de € 5.300,41 (cinco mil trezentos e oito euros e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos desde a citação sobre a quantia de € 5.000,41 (cinco mil e oito euros e quarenta e um cêntimos) e vencidos desde a data da presente decisão sobre a quantia de € 300,00 (trezentos euros), absolvendo-os do remanescente do pedido Absolvo a ré C..., Lda. do pedido.[…]» Inconformado, apelou o réu Fundo de Garantia Automóvel, apresentando alegações, onde formula as seguintes conclusões: 1- Na douta sentença em apreciação optou-se, relativamente aos danos causados no veículo do lesado, pela sua indemnização mediante a reconstituição natural, neste caso, a reposição da quantia referente a tal reconstituição natural uma vez esta já tinha ocorrido. 2- Tal opção pela reconstituição natural foi justificada pela Mma. Juiz a quo como decorrente do primado da reposição natural quando confrontada com qualquer outro tipo de indemnização, 3- Bem como, muito em resumo, pelo facto de não se ter provado (por parte do lesante) que a reposição natural seria excessivamente onerosa, facto que, por contrário ao princípio geral, e conformar matéria de excepção ao direito invocado pelo Autor, incumbiria provar ao próprio lesante (ou a quem processualmente assume posição similar – caso do FGA). 4- Assim, invocando que o valor do veículo com interesse para a decisão da causa é o seu valor patrimonial (querendo com isto significar o valor que o mesmo tem na esfera patrimonial do lesado, enquanto objecto de utilidade e enquanto cumpridor de uma função, valor esse que não se confunde com o mero valor venal/comercial do mesmo), concluiu que não ficou demonstrado que o valor da reparação do veículo fosse excessivamente superior ao seu valor patrimonial, pelo que concluiu como adequada a sua reparação ou o pagamento do valor desta. 5- Ora, constata-se que a douta sentença em apreciação apenas teve em conta as normas e princípios do Código Civil, descurando uma norma especial que tem por objecto a destrinça dos veículos reparáveis dos não reparáveis quando danificados em acidentes de viação. 6- Tal norma corresponde ao artº 41º nº 1 al. c) do Dec-Lei 291/2007 de 21/08, a qual, por ser especial, e nos tempos gerais do direito, tem aplicação prioritária relativamente à factualidade que constitui o seu objecto, afastando assim a aplicação de normas gerais. 7- Razão pela qual a Mma. Juiz a quo deveria ter optado pela aplicação ao caso da referida norma do Dec-Lei 291/07 a qual redundaria num resultado bem diferente. 8- Assim, no caso sub judice, estando perante uma reparação com um custo de Euros: 3.194,80, um valor venal de Euros: 850,00 e uma valoração (por veículo com mais de 2 anos) de 120% do valor venal (ou seja 1.020,00 Euros), tal redundaria numa perda total uma vez que o valor “tout court” da reparação é muito superior ao valor venal majorado. 9- De acordo com o dispositivo legal citado (artº 41º nº 1 c), tal resultado originaria a opção pela perda total do veículo do lesado, sendo o mesmo apenas indemnizável em dinheiro através do pagamento seu valor venal, descontado o salvado. 10- Tal opção indemnizatória acarretaria decorrentes consequências, nomeadamente a obrigação do lesante em suportar o parqueamento apenas até ao dia da decisão sobre a perda total, o que, no caso concreto, e uma vez que a mesma é comunicada a 01/02/2010 (cfr. doc. 1 junto com a a p.i.), ou seja, por 73 dias, o que, atento a quantia paga por um total de 138 dias peticionados e aplicando a regra matemática de “3 simples”, resultaria num dano indemnizável limitado a Euros: 433,77. 11- Tal opção teria ainda consequências ao nível da quantia atribuída a título de paralisação, a qual se limitaria também temporalmente até ao dia 01/02/2010, o que redundaria numa quantia aproximada aos 2,5 meses de paralisação, ou seja, atento o valor mensal atribuído, a um valor indemnizatório de Euros: 450,00. 12- Assim, para os danos patrimoniais colocados em crise pelo actual recurso, e atenta a legislação e fórmula de cálculo indicada, resultaria num valor global de Euros: 1.989,37, valor esse que somado aos Euros. 300,00 sentenciados a título de danos não patrimoniais, originaria uma indemnização global de Euros: 2.289,37, pela qual se pugna. 13- A sentença em causa violou, entre outros, o disposto no nº 1 al. c) do artº 41º do Dec-Lei 291/07 de 21/08 ao não lhe dar o sentido e âmbito de aplicação supra pugnado. O autor não apresentou contra-alegações. II. Do mérito do recurso 1. Definição do objecto do recurso O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se na seguinte questão, enunciada pelo recorrente nas suas alegações de recurso: saber se foi correcta a opção por parte do tribunal de 1.ª instância, pela indemnização através da reposição natural ao invés da opção pela verificação de uma situação de perda total do veículo, com as demais consequências daí decorrentes. 3. Fundamentos de facto Provou-se nos autos a seguinte factualidade: a) No dia 21 de Novembro de 2009, os primeiro e segundo réus não haviam contratado com qualquer companhia de seguros o seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente da circulação do UC-(...). b) No dia 21 de Novembro de 2009, pelas 10 horas e 30 minutos, no IC2, Cruz de Marouços, área da comarca de Coimbra, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula UC-(...) e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...)-CH. c) O veículo UC-(...) era conduzido pelo réu B.... d) O veículo (...)-CH pertencia ao autor e era por este conduzido. e) O veículo UC transitava no IC2 no sentido Coimbra – Condeixa-a-Nova, pela hemifaixa direita atento o referido sentido. f) O veículo CH transitava no IC2 no sentido Condeixa-a-Nova – Coimbra, pela hemifaixa de rodagem direita atento o mencionado sentido. g) O veículo CH circulava à velocidade de cerca de 40 quilómetros por hora. h) A estrada apresentava duas vias, sem separador, sendo ladeada de bermas e asfaltada. i) A faixa de rodagem tinha uma largura de 12,30 metros. j) Com a largura das vias de trânsito por onde seguiam os veículos UC e CH de 3,50 metros cada. k) A estrada descreve um traçado de curva ascendente à esquerda, atento o sentido Coimbra – Condeixa-a-Nova. l) Antecedido por viaduto que na ocasião se encontrava em obras. m) No momento, o tempo estava chuvoso e o piso molhado. n) Em ambos os sentidos se verificava circulação de veículos. o) Ao aproximar-se da referida curva à esquerda, o condutor do UC perdeu o controlo do veículo e entrou em despiste. p) Vindo a invadir a meia faixa contrária. q) Onde colidiu com a parte lateral direita (zona da porta) na parte frontal do veículo CH, que ali se encontrava a passar. r) Na sequência do embate, o autor sofreu dores musculares, torácicas e abdominais, causadas pela acção do cinto de segurança. s) A dificuldade de resolução das questões relativas à reparação do veículo tem causado ao autor desgaste e preocupação. t) O veículo CH sofreu diversos estragos com o embate. u) A sua reparação custou ao autor € 3.194,80. v) Devido às diligências realizadas junto do Fundo de Garantia Automóvel e ao período necessário para aquisição de peças e consequente reparação, o veículo esteve parado na oficina onde foi reparado entre 21 de Novembro de 2009 e 7 de Abril de 2010. w) O autor pagou € 820,00 pelo custo de recolha da viatura na oficina. x) O veículo CH é de marca Opel, modelo Vectra A, 1.6i, de cinco lugares, do ano de 1993, e tinha percorrido até à data cerca de 119.000 quilómetros. y) Mantinha-se em bom estado de conservação mecânica, de chaparia, electricidade e pintura. z) Após a vistoria realizada, o Fundo de Garantia Automóvel atribuiu ao veículo sinistrado o montante de € 526,67. aa) O autor não tinha mais veículos ao seu dispor. ab) Necessitava de transporte para se deslocar e transportar a sua esposa do Sobreiro para Condeixa, onde a mesma trabalha. ac) Entre o dia do acidente e o dia 7 de Abril de 2010 socorreu-se de automóveis de familiares e amigos, de transportes públicos e de táxis. ad) Em consequência do acidente, o autor despendeu € 85,60 em serviços de táxi, transportes públicos, certidão da participação do acidente e despesas de fax. ae) O réu Fundo de Garantia Automóvel atribuiu ao veículo o valor venal de € 849,53. af) E propôs ao autor, em 1 de Fevereiro de 2010, uma indemnização de € 850,00. ag) O período de tempo necessário para a reparação do veículo foi estimado em cinco dias úteis. ah) A ré C..., Lda. vendeu o veículo de matrícula UC-(...) a D... no dia 30 de Setembro de 2009. ai) Tendo entregue a viatura, acompanhada da respectiva declaração de venda, com a assinatura reconhecida, ao referido D... em data anterior ao dia 30 de Setembro de 2009. aj) O referido D... , através do seu stand, vendeu o veículo UC ao réu B... no dia 6 de Novembro de 2009. 3. Fundamentos de direito 3.1. A inaplicabilidade do critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, por não se ter provado o “valor venal” Na sintetização do objecto do presente recurso, referiu-se que o mesmo se resume a saber se foi correcta a opção por parte do tribunal de 1.ª instância, pela indemnização através da reposição natural ao invés da opção pela verificação de uma situação de perda total do veículo. O recorrente alega que, face ao valor venal do veículo (€ 850,00) e ao custo da reparação (€ 3.194,80), se deveria ter considerado a verificação de “perda total” uma vez que tal valor venal, ainda que majorado nos termos da lei (valoração correspondente a 120%, traduzindo-se no valor final de € 1.020,00 Euros), corresponde a um valor muito inferior ao da reparação. Invoca em defesa da sua tese, o disposto no artigo 41.º do Decreto-lei n.º 291/2007 de 21/08. Sob a epígrafe “Perda total”, dispõe a alínea c) do n.º 1 do invocado artigo 41.º do Decreto-lei n.º 291/2007 de 21/08: «1 — Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses: a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total; b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança; c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos. 2 — O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente. 3 — O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização. 4 — Ao propor o pagamento de uma indemnização com base no conceito de perda total, a empresa de seguros está obrigada a prestar, cumulativamente, as seguintes informações ao lesado: a) A identificação da entidade que efectuou a quantificação do valor estimado da reparação e a apreciação da sua exequibilidade; b) O valor venal do veículo no momento anterior ao acidente; c) A estimativa do valor do respectivo salvado e a identificação de quem se compromete a adquiri-lo com base nessa avaliação. 5 — Nos casos de perda total do veículo a matrícula é cancelada nos termos do artigo 119.º do Código da Estrada.» Decorre da norma em apreço, no que ao caso respeita, que se entende que o veículo sinistrado está em situação de perda total[1], sendo a obrigação de indemnização cumprida em dinheiro e não através de reparação, quando “o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos”. A M.ª Juíza optou pela indemnização através da reposição natural, com base na seguinte argumentação: o nosso sistema confere prioridade à reposição natural, que faculta ao lesado uma tutela mais perfeita do seu direito; esta prioridade impõe-se ao devedor, que só pode contrariá-la invocando as circunstâncias previstas no art. 566.º, n.º 1, do Código Civil [mostrando que a reconstituição natural não é possível ou que é excessivamente onerosa para ele]; deve entender-se que a restauração in natura é excessivamente onerosa para o devedor quando houver uma manifesta e flagrante desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural importa para o devedor; a onerosidade deve apreciar-se em termos amplos, considerando-se inclusivamente legítimos interesses de ordem moral ou sentimental; para se concluir pela excessiva onerosidade da reparação de um veículo não basta atender ao valor venal do veículo, sendo ainda necessário considerar o valor de uso do seu proprietário; um veículo muito usado e com um valor comercial muito diminuto pode, não obstante, satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor comercial, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, não reconstituindo a situação que o lesado teria se não fosse o facto gerador do dano; por isso, a excessiva onerosidade há-de aferir-se, não pela diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas entre aquele preço e o valor que o veículo representa dentro do património do lesado, e que poderemos designar por valor patrimonial do veículo; sendo a restauração natural imposta, no interesse de ambas as partes, como modo normal de indemnização, se o credor reclama a restauração natural é ao devedor que pretenda contrapor-lhe a indemnização pecuniária que cabe alegar e provar que a restauração natural resulta excessivamente onerosa para ele; resulta da regra geral consagrada no art. 342.º do Código Civil, que ao credor cabe a prova do princípio, que é a restauração natural, e ao devedor a prova da excepção, ou seja, que a restauração natural é excessivamente onerosa para si; cabia aos réus demonstrar que o valor patrimonial (e não venal) do veículo do autor era substancialmente inferior ao custo da reparação; os réus não lograram produzir tal prova, uma vez que o FGA apenas demonstrou que, no âmbito das diligências tendentes à regularização amigável do sinistro, fixou o valor venal do veículo em € 850,00. O recorrente discorda mas, salvo o devido respeito, sem razão. Vejamos porquê. Alegou o réu, ora recorrente, na sua douta contestação, a seguinte factualidade que foi vertida na base instrutória: À data do acidente o veículo CH não se encontrava já cotado nas publicações da especialidade nem aparecia nas ferramentas informáticas internacionalmente utilizadas. (quesito 40.º) A última publicação com o valor do veículo é a cotação Eurotax de Junho de 2002, que lhe atribuía então o valor de € 2.650,00. (quesito 41.º) A desvalorização anual de veículos «não novos» é de 15% a 20%? (quesito 42.º) Tendo por isso o réu Fundo de Garantia Automóvel atribuído ao veículo o valor venal de € 849,53. (quesito 43.º) Às questões factuais enunciadas, respondeu o tribunal a quo: Quesito 41º - Não provado. Quesito 42º - Não provado. Quesito 43º - Provado que «O réu Fundo de Garantia Automóvel atribuiu ao veículo o valor venal de € 849,53». Ou seja, de toda a factualidade alegada referente à concretização do “valor venal”, o tribunal a quo deu como provado apenas que o recorrente (FGA) «atribuiu ao veículo o valor venal de € 849,53». Em suma, não se provou o valor venal do veículo. O ora recorrente alegou no seu articulado, que: a Dekra Internacional considerou que a reparação era economicamente inviável, já que foi orçamentada em € 3.493,22, atribuindo ao veículo o valor venal de € 700,00 (artigos 8.º, 9.º e 10.º); a última publicação com o valor do veículo - cotação EUROTAX de Junho de 2002 – atribuía-lhe o valor de € 2.650,00 (artigo 15.º); a desvalorização anual em veículos «não novos» é de 15% a 20% (artigo 17.º); em conclusão, o valor venal do veículo é de € 849,53 (artigo 19.º). Perante a transcrição parcial da decisão da matéria de facto que antecede, concluímos que o tribunal não deu como provado a cotação da Eurotax de 2002, nem a desvalorização anual do veículo - quesitos 41.º e 42.º [factores em que o recorrente suporta a conclusão acerca do valor venal], considerando provado apenas que o recorrente atribuiu ao veículo o valor venal de € 849,53. Ora, ressalvando sempre todo o respeito devido, sem pôr em causa a credibilidade que os serviços do recorrente possam merecer ao tribunal, considerar provado que o recorrente atribuiu ao veículo o valor venal de € 849,53 não equivale a considerar provado que o veículo tinha efectivamente o valor venal de € 849,53. Não se tendo provado o valor venal do veículo, revela-se desde logo insusceptível de aplicação, in casu, o critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-lei n.º 291/2007 de 21/08. Acresce que a prova dos pressupostos fácticos de aplicação do critério referido sempre incumbiria ao lesante (na situação em apreço, ao recorrente, que o substitui), face à natureza de excepção que consubstancia (artigo 342/2 CC). Decorre do exposto, salvo o devido respeito, a manifesta improcedência do recurso. 3.2. A inaplicabilidade do critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007, de 21/08, na fase judicial Apesar de termos concluído pela inaplicabilidade do critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, por não se ter provado o “valor venal”, cumpre esgotar a questão. O critério invocado pelo recorrente não se revela aplicável na fase judicial, como veremos. O artigo 562.º do Código Civil estabelece o princípio da reposição natural, nestes termos: «Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.» O n.º 1 do artigo 566.º do mesmo diploma legal prevê as condições em que, subsidiariamente, há lugar à indemnização em dinheiro: «A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.» Aplicando o critério legal enunciado (primado da reparação in natura) a uma situação de indemnização por acidente de viação, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 4.12.2007[2], cujo sumário se transcreve, que à seguradora cumpre a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar o princípio em causa, e que a mesma tem em conta dois factores: o preço da reparação e o valor, não o venal, mas o patrimonial[3]: 1 - Em matéria da obrigação de indemnização por danos o princípio, a regra, é a restauração natural; a excepção é a indemnização por equivalente. 2 - Aplicando à situação as regras básicas do ónus da prova, ao Autor cabe a prova do princípio, à Ré cabe a prova da excepção. 3 - Ao autor, que viu o seu automóvel danificado em acidente de viação, cabe a prova do em quanto importa a sua reparação, restaurando in natura o veículo danificado; à Ré seguradora, que acha essa reparação excessivamente onerosa, cabe a prova disso mesmo - que a reparação é não apenas onerosa, mas excessivamente onerosa. 4 - Um dos pólos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação; o outro não é o valor venal do veículo mas o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado. 5 - Se a ré seguradora quer beneficiar da excepção não lhe basta «encostar-se» ao valor venal; antes precisa de alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado, e por que preço, um outro veículo que igualmente lhe satisfizesse as suas necessidades «danificadas» O recorrente vem invocar a aplicação do critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, defendendo que se trata de norma “especial”, “afastando assim a aplicação de normas gerais” (conclusão 6.ª). No entanto, como já se disse na nota 1., a norma em apreço constitui tão só um critério para o procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da “proposta razoável”, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade. Tal entendimento resulta desde logo da sua integração sistemática - Cap. III “Da regularização dos sinistros” – disciplinando o legislador no capítulo em causa [art. 31.º a 46.º] as regras para apresentação por parte do responsável pela indemnização, da “Proposta razoável” prevista nos artigos 38.º e 39.º. A evolução do preceito leva-nos à Directiva n.º 2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Maio, relativa ao chamado «procedimento de oferta razoável», generalizado aos sinistros regularizáveis ao abrigo de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, pela 5.ª Directiva do Seguro Automóvel (Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio), que aditou um artigo 4.º-E à citada Directiva n.º 2000/26/CE. O Decreto-Lei nº 83/2006 de 3 de Maio de 2006 transpôs parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, e fixou as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir a assunção da sua responsabilidade em caso de sinistro no âmbito do seguro automóvel. Como se refere no preâmbulo do citado diploma legal, a instituição do mecanismo da «Declaração amigável de acidente automóvel» acarretou resultados positivos na celeridade da regularização dos sinistros, visando o legislador com a norma em apreço (DL 83/2006), o reforço da protecção dos interesses económicos dos consumidores, realizado, nomeadamente, por duas vias: 1) através da fixação de prazos em relação aos vários procedimentos exigidos para a regularização do sinistro; 2) através da definição de forma clara e objectiva do que deve ser considerado como perda total do veículo em consequência de um sinistro automóvel, bem como os elementos de cálculo da respectiva indemnização. Em suma, e como se depreende do preâmbulo do DL 83/2006, a definição de “perda total” prevista neste diploma tem a ver o reforço da protecção dos interesses económicos do consumidor (lesado no acidente de viação), no âmbito do procedimento de regularização extra-judicial do litígio. O DL 291/2007 de 21/08 revogou o DL 83/2006 [artigo 94.º, n.º 1, e)], propondo-se realizar a “actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação”[4], mantendo no essencial o «procedimento de proposta razoável», alargando o seu âmbito de aplicação[5]. Na vigência do DL 291/2007 de 21/08, tal como já acontecia quando vigorava o DL 83/2006, o critério de definição de “perda total” revela-se apenas aplicável no âmbito da regularização extra-judicial do conflito através do procedimento de apresentação da “proposta razoável” prevista nos artigos 38.º e 39.º. O critério em causa foi definido e concretizado de forma objectiva, com vista à agilização dum procedimento extrajudicial específico, integrando-se no capítulo referente a esse procedimento, não podendo, em sede de discussão judicial, generalizar-se a sua aplicação de forma a sobrepor-se, ou a revogar, os princípios decorrentes do confronto do artigo 562.º com o n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil, nomeadamente no que se refere ao ónus que impende sobre a seguradora [ou de quem a substitui], de provar a excessiva onerosidade, susceptível de afastar o princípio da reparação in natura, considerando dois factores: o preço da reparação e o valor, não o venal, mas o patrimonial. Foi este o entendimento acolhido por este Tribunal no acórdão de 11.03.2008[6], cujo sumário se transcreve parcialmente: «[…] 3. O regime instaurado pelo DL 83/06 ao aditar ao DL 522/85 os artigos 20º-A a 20º-O (entretanto substituídos pelo regime do DL 291/07- S.O.R.C.A.) visa directamente apenas a regularização extrajudicial de sinistros, no termo de cujo processo de regularização a seguradora deve apresentar ao lesado uma proposta razoável de indemnização, podendo esta aferir-se pelo valor venal do veículo no caso de perda total. 4. Não tendo o lesado aceitado essa proposta, nada justifica a aplicação directa desse regime ao caso que ele apresente a juízo, onde pode fazer valer o direito à reparação nos termos do Código Civil […]»[7] Perante a conclusão a que chegámos, resta concluir pela inaplicabilidade in casu, também por esta via, do critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007, de 21/08. Do exposto terá que decorrer, salvo o devido respeito, a improcedência da argumentação do recorrente e, em consequência, a improcedência do recurso, não merecendo censura a douta sentença recorrida, que se deverá manter na íntegra. III. Dispositivo Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso e, em consequência, em manter na íntegra a sentença recorrida. Custas do recurso pelo Apelante. * O presente acórdão compõe-se de dezasseis páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário. * Carlos Querido (Relator) Virgílio Mateus Carvalho Martins [1] Como adiante se desenvolverá, a norma em apreço constitui tão só um critério para o procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da “proposta razoável”, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade. Tal entendimento resulta desde logo da sua integração sistemática - Cap. III “Da regularização dos sinistros” – disciplinando o legislador no capítulo em causa [art. 31.º a 46.º] as regras para apresentação por parte do responsável pela indemnização, da “Proposta razoável” prevista nos artigos 38.º e 39.º. [2] Proferido no Processo n.º 06B4219, acessível em http://www.dgsi.pt [3] O mesmo entendimento se colhe do acórdão do STJ, de 12.02.2004, proferido no Processo n.º 03A4468, também acessível em http://www.dgsi.pt, onde se decidiu: «Para se apreciar se a reposição natural manifestada na reparação integral da viatura sinistrada é excessivamente onerosa para o devedor (artigo 566° no 1 do Código Civil) não é bastante tomar meramente em consideração o valor comercial do veículo versus sua reparação integral, sendo também absolutamente imprescindível tornar em conta o uso que o seu proprietário lhe dá, assim como a possibilidade de que ele dispõe de adquirir um outro igual pelo mesmo valor.» [4] Vide respectivo preâmbulo. [5] O que resulta do confronto do artigo 20.º-B do DL 83/2006, com o artigo 32.º do DL 291/2007. [6] Proferido no Processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/124494" target="_blank">3318/06.5TBVIS.C1</a>, relatado pelo Desembargador Virgílio Mateus, que subscreve o presente acórdão como 1.º adjunto – acessível em http://www.dgsi.pt [7] No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7.09.2010, proferido no Processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/143844" target="_blank">425/09.6TBPFR.P1</a>, cujo sumário se transcreve parcialmente: «[…] V - Assim, mediante a apresentação de uma proposta razoável de indemnização apresentada pela seguradora, fundada nos critérios estabelecidos nesse diploma (291/2007), pode o segurado ou o terceiro aceitá-la, resolvendo-se em definitivo o litígio. VI - Porém, se não houver acordo, e se houver necessidade de recorrer às vias judiciais, a determinação da espécie e o quantum da indemnização passam a ser regulados pelos regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, entre os quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação integral do dano, ficando afastada a aplicação dos critérios previstos no Capítulo III do DL 291/2007, designadamente o art. 41º. […]».
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório A... intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra B..., “C..., Lda” e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo que os réus sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 8.868,41, acrescidos de juros de mora à taxa legal vencidos desde a citação. Alegou em síntese: no dia 21 de Novembro de 2009, no IC2, Cruz de Marouços, em Coimbra, quando conduzia o seu veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...)-CH, foi interveniente num acidente de viação causado pelo réu B..., que conduzia na ocasião um veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula UC-(...), em sentido contrário ao do autor, perdeu o controlo deste veículo e invadiu a meia faixa de rodagem onde este seguia, embatendo com a parte lateral esquerda do ligeiro de mercadorias no parte frontal do veículo do autor; à data do embate, os primeiro e segundo réus não haviam contratado com qualquer companhia de seguros o seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo UC; do acidente resultaram lesões corporais para o autor, que teve de estar de repouso durante uma semana, bem como um trauma psicológico, tendo sofrido ainda desgaste e preocupações, nomeadamente pelo facto de o veículo não estar seguro, reclamando para indemnização destes danos não patrimoniais a quantia de € 1.500,00; o veículo sofreu estragos cuja reparação foi orçada em € 3.194,80, quantia que já pagou; o veículo esteve paralisado durante seis meses, tendo pago pelo custo da respectiva recolha a quantia de € 820,00; o veículo sofreu ainda uma desvalorização de € 500,00 pelo facto de ter sido interveniente no acidente; a privação do veículo durante os referidos seis meses deve ser ressarcida com o pagamento de uma indemnização de € 2.760,00, atento o preço médio de aluguer de um veículo da mesma categoria; em consequência do acidente suportou ainda custos, com transportes e certidão de participação do acidente, de € 85,60. O réu Fundo de Garantia Automóvel contestou impugnando a generalidade da matéria de facto e alegando que após peritagem concluiu que a reparação era economicamente inviável, uma vez que o veículo não valeria mais do que € 850,00, tendo dado conta dessa posição ao autor em 1 de Fevereiro de 2010, pelo que não se considera responsável pelas pretendidas despesas de parqueamento e pela imobilização do veículo. A ré C..., Lda., contestou, invocando desconhecimento da matéria de facto alegada na petição inicial e alegando que à data do acidente já não era proprietária do veículo UC, que vendera em 30 de Setembro de 2009, não tendo por isso qualquer responsabilidade na regularização dos danos decorrentes do acidente. O réu B... contestou refutando a sua culpa na produção do acidente, que imputou à existência de óleo na faixa de rodagem, o que considera constituir uma causa de força maior excludente da respectiva responsabilidade. Foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto relevante para a decisão da causa, sem reclamações. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto, que não foi objecto de qualquer reclamação. Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e consequentemente, condeno os réus B... e Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao autor a quantia de € 5.300,41 (cinco mil trezentos e oito euros e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos desde a citação sobre a quantia de € 5.000,41 (cinco mil e oito euros e quarenta e um cêntimos) e vencidos desde a data da presente decisão sobre a quantia de € 300,00 (trezentos euros), absolvendo-os do remanescente do pedido Absolvo a ré C..., Lda. do pedido.[…]» Inconformado, apelou o réu Fundo de Garantia Automóvel, apresentando alegações, onde formula as seguintes conclusões: 1- Na douta sentença em apreciação optou-se, relativamente aos danos causados no veículo do lesado, pela sua indemnização mediante a reconstituição natural, neste caso, a reposição da quantia referente a tal reconstituição natural uma vez esta já tinha ocorrido. 2- Tal opção pela reconstituição natural foi justificada pela Mma. Juiz a quo como decorrente do primado da reposição natural quando confrontada com qualquer outro tipo de indemnização, 3- Bem como, muito em resumo, pelo facto de não se ter provado (por parte do lesante) que a reposição natural seria excessivamente onerosa, facto que, por contrário ao princípio geral, e conformar matéria de excepção ao direito invocado pelo Autor, incumbiria provar ao próprio lesante (ou a quem processualmente assume posição similar – caso do FGA). 4- Assim, invocando que o valor do veículo com interesse para a decisão da causa é o seu valor patrimonial (querendo com isto significar o valor que o mesmo tem na esfera patrimonial do lesado, enquanto objecto de utilidade e enquanto cumpridor de uma função, valor esse que não se confunde com o mero valor venal/comercial do mesmo), concluiu que não ficou demonstrado que o valor da reparação do veículo fosse excessivamente superior ao seu valor patrimonial, pelo que concluiu como adequada a sua reparação ou o pagamento do valor desta. 5- Ora, constata-se que a douta sentença em apreciação apenas teve em conta as normas e princípios do Código Civil, descurando uma norma especial que tem por objecto a destrinça dos veículos reparáveis dos não reparáveis quando danificados em acidentes de viação. 6- Tal norma corresponde ao artº 41º nº 1 al. c) do Dec-Lei 291/2007 de 21/08, a qual, por ser especial, e nos tempos gerais do direito, tem aplicação prioritária relativamente à factualidade que constitui o seu objecto, afastando assim a aplicação de normas gerais. 7- Razão pela qual a Mma. Juiz a quo deveria ter optado pela aplicação ao caso da referida norma do Dec-Lei 291/07 a qual redundaria num resultado bem diferente. 8- Assim, no caso sub judice, estando perante uma reparação com um custo de Euros: 3.194,80, um valor venal de Euros: 850,00 e uma valoração (por veículo com mais de 2 anos) de 120% do valor venal (ou seja 1.020,00 Euros), tal redundaria numa perda total uma vez que o valor “tout court” da reparação é muito superior ao valor venal majorado. 9- De acordo com o dispositivo legal citado (artº 41º nº 1 c), tal resultado originaria a opção pela perda total do veículo do lesado, sendo o mesmo apenas indemnizável em dinheiro através do pagamento seu valor venal, descontado o salvado. 10- Tal opção indemnizatória acarretaria decorrentes consequências, nomeadamente a obrigação do lesante em suportar o parqueamento apenas até ao dia da decisão sobre a perda total, o que, no caso concreto, e uma vez que a mesma é comunicada a 01/02/2010 (cfr. doc. 1 junto com a a p.i.), ou seja, por 73 dias, o que, atento a quantia paga por um total de 138 dias peticionados e aplicando a regra matemática de “3 simples”, resultaria num dano indemnizável limitado a Euros: 433,77. 11- Tal opção teria ainda consequências ao nível da quantia atribuída a título de paralisação, a qual se limitaria também temporalmente até ao dia 01/02/2010, o que redundaria numa quantia aproximada aos 2,5 meses de paralisação, ou seja, atento o valor mensal atribuído, a um valor indemnizatório de Euros: 450,00. 12- Assim, para os danos patrimoniais colocados em crise pelo actual recurso, e atenta a legislação e fórmula de cálculo indicada, resultaria num valor global de Euros: 1.989,37, valor esse que somado aos Euros. 300,00 sentenciados a título de danos não patrimoniais, originaria uma indemnização global de Euros: 2.289,37, pela qual se pugna. 13- A sentença em causa violou, entre outros, o disposto no nº 1 al. c) do artº 41º do Dec-Lei 291/07 de 21/08 ao não lhe dar o sentido e âmbito de aplicação supra pugnado. O autor não apresentou contra-alegações. II. Do mérito do recurso 1. Definição do objecto do recurso O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se na seguinte questão, enunciada pelo recorrente nas suas alegações de recurso: saber se foi correcta a opção por parte do tribunal de 1.ª instância, pela indemnização através da reposição natural ao invés da opção pela verificação de uma situação de perda total do veículo, com as demais consequências daí decorrentes. 3. Fundamentos de facto Provou-se nos autos a seguinte factualidade: a) No dia 21 de Novembro de 2009, os primeiro e segundo réus não haviam contratado com qualquer companhia de seguros o seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente da circulação do UC-(...). b) No dia 21 de Novembro de 2009, pelas 10 horas e 30 minutos, no IC2, Cruz de Marouços, área da comarca de Coimbra, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula UC-(...) e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...)-CH. c) O veículo UC-(...) era conduzido pelo réu B.... d) O veículo (...)-CH pertencia ao autor e era por este conduzido. e) O veículo UC transitava no IC2 no sentido Coimbra – Condeixa-a-Nova, pela hemifaixa direita atento o referido sentido. f) O veículo CH transitava no IC2 no sentido Condeixa-a-Nova – Coimbra, pela hemifaixa de rodagem direita atento o mencionado sentido. g) O veículo CH circulava à velocidade de cerca de 40 quilómetros por hora. h) A estrada apresentava duas vias, sem separador, sendo ladeada de bermas e asfaltada. i) A faixa de rodagem tinha uma largura de 12,30 metros. j) Com a largura das vias de trânsito por onde seguiam os veículos UC e CH de 3,50 metros cada. k) A estrada descreve um traçado de curva ascendente à esquerda, atento o sentido Coimbra – Condeixa-a-Nova. l) Antecedido por viaduto que na ocasião se encontrava em obras. m) No momento, o tempo estava chuvoso e o piso molhado. n) Em ambos os sentidos se verificava circulação de veículos. o) Ao aproximar-se da referida curva à esquerda, o condutor do UC perdeu o controlo do veículo e entrou em despiste. p) Vindo a invadir a meia faixa contrária. q) Onde colidiu com a parte lateral direita (zona da porta) na parte frontal do veículo CH, que ali se encontrava a passar. r) Na sequência do embate, o autor sofreu dores musculares, torácicas e abdominais, causadas pela acção do cinto de segurança. s) A dificuldade de resolução das questões relativas à reparação do veículo tem causado ao autor desgaste e preocupação. t) O veículo CH sofreu diversos estragos com o embate. u) A sua reparação custou ao autor € 3.194,80. v) Devido às diligências realizadas junto do Fundo de Garantia Automóvel e ao período necessário para aquisição de peças e consequente reparação, o veículo esteve parado na oficina onde foi reparado entre 21 de Novembro de 2009 e 7 de Abril de 2010. w) O autor pagou € 820,00 pelo custo de recolha da viatura na oficina. x) O veículo CH é de marca Opel, modelo Vectra A, 1.6i, de cinco lugares, do ano de 1993, e tinha percorrido até à data cerca de 119.000 quilómetros. y) Mantinha-se em bom estado de conservação mecânica, de chaparia, electricidade e pintura. z) Após a vistoria realizada, o Fundo de Garantia Automóvel atribuiu ao veículo sinistrado o montante de € 526,67. aa) O autor não tinha mais veículos ao seu dispor. ab) Necessitava de transporte para se deslocar e transportar a sua esposa do Sobreiro para Condeixa, onde a mesma trabalha. ac) Entre o dia do acidente e o dia 7 de Abril de 2010 socorreu-se de automóveis de familiares e amigos, de transportes públicos e de táxis. ad) Em consequência do acidente, o autor despendeu € 85,60 em serviços de táxi, transportes públicos, certidão da participação do acidente e despesas de fax. ae) O réu Fundo de Garantia Automóvel atribuiu ao veículo o valor venal de € 849,53. af) E propôs ao autor, em 1 de Fevereiro de 2010, uma indemnização de € 850,00. ag) O período de tempo necessário para a reparação do veículo foi estimado em cinco dias úteis. ah) A ré C..., Lda. vendeu o veículo de matrícula UC-(...) a D... no dia 30 de Setembro de 2009. ai) Tendo entregue a viatura, acompanhada da respectiva declaração de venda, com a assinatura reconhecida, ao referido D... em data anterior ao dia 30 de Setembro de 2009. aj) O referido D... , através do seu stand, vendeu o veículo UC ao réu B... no dia 6 de Novembro de 2009. 3. Fundamentos de direito 3.1. A inaplicabilidade do critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, por não se ter provado o “valor venal” Na sintetização do objecto do presente recurso, referiu-se que o mesmo se resume a saber se foi correcta a opção por parte do tribunal de 1.ª instância, pela indemnização através da reposição natural ao invés da opção pela verificação de uma situação de perda total do veículo. O recorrente alega que, face ao valor venal do veículo (€ 850,00) e ao custo da reparação (€ 3.194,80), se deveria ter considerado a verificação de “perda total” uma vez que tal valor venal, ainda que majorado nos termos da lei (valoração correspondente a 120%, traduzindo-se no valor final de € 1.020,00 Euros), corresponde a um valor muito inferior ao da reparação. Invoca em defesa da sua tese, o disposto no artigo 41.º do Decreto-lei n.º 291/2007 de 21/08. Sob a epígrafe “Perda total”, dispõe a alínea c) do n.º 1 do invocado artigo 41.º do Decreto-lei n.º 291/2007 de 21/08: «1 — Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses: a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total; b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança; c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos. 2 — O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente. 3 — O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização. 4 — Ao propor o pagamento de uma indemnização com base no conceito de perda total, a empresa de seguros está obrigada a prestar, cumulativamente, as seguintes informações ao lesado: a) A identificação da entidade que efectuou a quantificação do valor estimado da reparação e a apreciação da sua exequibilidade; b) O valor venal do veículo no momento anterior ao acidente; c) A estimativa do valor do respectivo salvado e a identificação de quem se compromete a adquiri-lo com base nessa avaliação. 5 — Nos casos de perda total do veículo a matrícula é cancelada nos termos do artigo 119.º do Código da Estrada.» Decorre da norma em apreço, no que ao caso respeita, que se entende que o veículo sinistrado está em situação de perda total[1], sendo a obrigação de indemnização cumprida em dinheiro e não através de reparação, quando “o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos”. A M.ª Juíza optou pela indemnização através da reposição natural, com base na seguinte argumentação: o nosso sistema confere prioridade à reposição natural, que faculta ao lesado uma tutela mais perfeita do seu direito; esta prioridade impõe-se ao devedor, que só pode contrariá-la invocando as circunstâncias previstas no art. 566.º, n.º 1, do Código Civil [mostrando que a reconstituição natural não é possível ou que é excessivamente onerosa para ele]; deve entender-se que a restauração in natura é excessivamente onerosa para o devedor quando houver uma manifesta e flagrante desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural importa para o devedor; a onerosidade deve apreciar-se em termos amplos, considerando-se inclusivamente legítimos interesses de ordem moral ou sentimental; para se concluir pela excessiva onerosidade da reparação de um veículo não basta atender ao valor venal do veículo, sendo ainda necessário considerar o valor de uso do seu proprietário; um veículo muito usado e com um valor comercial muito diminuto pode, não obstante, satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor comercial, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, não reconstituindo a situação que o lesado teria se não fosse o facto gerador do dano; por isso, a excessiva onerosidade há-de aferir-se, não pela diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas entre aquele preço e o valor que o veículo representa dentro do património do lesado, e que poderemos designar por valor patrimonial do veículo; sendo a restauração natural imposta, no interesse de ambas as partes, como modo normal de indemnização, se o credor reclama a restauração natural é ao devedor que pretenda contrapor-lhe a indemnização pecuniária que cabe alegar e provar que a restauração natural resulta excessivamente onerosa para ele; resulta da regra geral consagrada no art. 342.º do Código Civil, que ao credor cabe a prova do princípio, que é a restauração natural, e ao devedor a prova da excepção, ou seja, que a restauração natural é excessivamente onerosa para si; cabia aos réus demonstrar que o valor patrimonial (e não venal) do veículo do autor era substancialmente inferior ao custo da reparação; os réus não lograram produzir tal prova, uma vez que o FGA apenas demonstrou que, no âmbito das diligências tendentes à regularização amigável do sinistro, fixou o valor venal do veículo em € 850,00. O recorrente discorda mas, salvo o devido respeito, sem razão. Vejamos porquê. Alegou o réu, ora recorrente, na sua douta contestação, a seguinte factualidade que foi vertida na base instrutória: À data do acidente o veículo CH não se encontrava já cotado nas publicações da especialidade nem aparecia nas ferramentas informáticas internacionalmente utilizadas. (quesito 40.º) A última publicação com o valor do veículo é a cotação Eurotax de Junho de 2002, que lhe atribuía então o valor de € 2.650,00. (quesito 41.º) A desvalorização anual de veículos «não novos» é de 15% a 20%? (quesito 42.º) Tendo por isso o réu Fundo de Garantia Automóvel atribuído ao veículo o valor venal de € 849,53. (quesito 43.º) Às questões factuais enunciadas, respondeu o tribunal a quo: Quesito 41º - Não provado. Quesito 42º - Não provado. Quesito 43º - Provado que «O réu Fundo de Garantia Automóvel atribuiu ao veículo o valor venal de € 849,53». Ou seja, de toda a factualidade alegada referente à concretização do “valor venal”, o tribunal a quo deu como provado apenas que o recorrente (FGA) «atribuiu ao veículo o valor venal de € 849,53». Em suma, não se provou o valor venal do veículo. O ora recorrente alegou no seu articulado, que: a Dekra Internacional considerou que a reparação era economicamente inviável, já que foi orçamentada em € 3.493,22, atribuindo ao veículo o valor venal de € 700,00 (artigos 8.º, 9.º e 10.º); a última publicação com o valor do veículo - cotação EUROTAX de Junho de 2002 – atribuía-lhe o valor de € 2.650,00 (artigo 15.º); a desvalorização anual em veículos «não novos» é de 15% a 20% (artigo 17.º); em conclusão, o valor venal do veículo é de € 849,53 (artigo 19.º). Perante a transcrição parcial da decisão da matéria de facto que antecede, concluímos que o tribunal não deu como provado a cotação da Eurotax de 2002, nem a desvalorização anual do veículo - quesitos 41.º e 42.º [factores em que o recorrente suporta a conclusão acerca do valor venal], considerando provado apenas que o recorrente atribuiu ao veículo o valor venal de € 849,53. Ora, ressalvando sempre todo o respeito devido, sem pôr em causa a credibilidade que os serviços do recorrente possam merecer ao tribunal, considerar provado que o recorrente atribuiu ao veículo o valor venal de € 849,53 não equivale a considerar provado que o veículo tinha efectivamente o valor venal de € 849,53. Não se tendo provado o valor venal do veículo, revela-se desde logo insusceptível de aplicação, in casu, o critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-lei n.º 291/2007 de 21/08. Acresce que a prova dos pressupostos fácticos de aplicação do critério referido sempre incumbiria ao lesante (na situação em apreço, ao recorrente, que o substitui), face à natureza de excepção que consubstancia (artigo 342/2 CC). Decorre do exposto, salvo o devido respeito, a manifesta improcedência do recurso. 3.2. A inaplicabilidade do critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007, de 21/08, na fase judicial Apesar de termos concluído pela inaplicabilidade do critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, por não se ter provado o “valor venal”, cumpre esgotar a questão. O critério invocado pelo recorrente não se revela aplicável na fase judicial, como veremos. O artigo 562.º do Código Civil estabelece o princípio da reposição natural, nestes termos: «Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.» O n.º 1 do artigo 566.º do mesmo diploma legal prevê as condições em que, subsidiariamente, há lugar à indemnização em dinheiro: «A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.» Aplicando o critério legal enunciado (primado da reparação in natura) a uma situação de indemnização por acidente de viação, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 4.12.2007[2], cujo sumário se transcreve, que à seguradora cumpre a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar o princípio em causa, e que a mesma tem em conta dois factores: o preço da reparação e o valor, não o venal, mas o patrimonial[3]: 1 - Em matéria da obrigação de indemnização por danos o princípio, a regra, é a restauração natural; a excepção é a indemnização por equivalente. 2 - Aplicando à situação as regras básicas do ónus da prova, ao Autor cabe a prova do princípio, à Ré cabe a prova da excepção. 3 - Ao autor, que viu o seu automóvel danificado em acidente de viação, cabe a prova do em quanto importa a sua reparação, restaurando in natura o veículo danificado; à Ré seguradora, que acha essa reparação excessivamente onerosa, cabe a prova disso mesmo - que a reparação é não apenas onerosa, mas excessivamente onerosa. 4 - Um dos pólos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação; o outro não é o valor venal do veículo mas o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado. 5 - Se a ré seguradora quer beneficiar da excepção não lhe basta «encostar-se» ao valor venal; antes precisa de alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado, e por que preço, um outro veículo que igualmente lhe satisfizesse as suas necessidades «danificadas» O recorrente vem invocar a aplicação do critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, defendendo que se trata de norma “especial”, “afastando assim a aplicação de normas gerais” (conclusão 6.ª). No entanto, como já se disse na nota 1., a norma em apreço constitui tão só um critério para o procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da “proposta razoável”, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade. Tal entendimento resulta desde logo da sua integração sistemática - Cap. III “Da regularização dos sinistros” – disciplinando o legislador no capítulo em causa [art. 31.º a 46.º] as regras para apresentação por parte do responsável pela indemnização, da “Proposta razoável” prevista nos artigos 38.º e 39.º. A evolução do preceito leva-nos à Directiva n.º 2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Maio, relativa ao chamado «procedimento de oferta razoável», generalizado aos sinistros regularizáveis ao abrigo de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, pela 5.ª Directiva do Seguro Automóvel (Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio), que aditou um artigo 4.º-E à citada Directiva n.º 2000/26/CE. O Decreto-Lei nº 83/2006 de 3 de Maio de 2006 transpôs parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, e fixou as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir a assunção da sua responsabilidade em caso de sinistro no âmbito do seguro automóvel. Como se refere no preâmbulo do citado diploma legal, a instituição do mecanismo da «Declaração amigável de acidente automóvel» acarretou resultados positivos na celeridade da regularização dos sinistros, visando o legislador com a norma em apreço (DL 83/2006), o reforço da protecção dos interesses económicos dos consumidores, realizado, nomeadamente, por duas vias: 1) através da fixação de prazos em relação aos vários procedimentos exigidos para a regularização do sinistro; 2) através da definição de forma clara e objectiva do que deve ser considerado como perda total do veículo em consequência de um sinistro automóvel, bem como os elementos de cálculo da respectiva indemnização. Em suma, e como se depreende do preâmbulo do DL 83/2006, a definição de “perda total” prevista neste diploma tem a ver o reforço da protecção dos interesses económicos do consumidor (lesado no acidente de viação), no âmbito do procedimento de regularização extra-judicial do litígio. O DL 291/2007 de 21/08 revogou o DL 83/2006 [artigo 94.º, n.º 1, e)], propondo-se realizar a “actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação”[4], mantendo no essencial o «procedimento de proposta razoável», alargando o seu âmbito de aplicação[5]. Na vigência do DL 291/2007 de 21/08, tal como já acontecia quando vigorava o DL 83/2006, o critério de definição de “perda total” revela-se apenas aplicável no âmbito da regularização extra-judicial do conflito através do procedimento de apresentação da “proposta razoável” prevista nos artigos 38.º e 39.º. O critério em causa foi definido e concretizado de forma objectiva, com vista à agilização dum procedimento extrajudicial específico, integrando-se no capítulo referente a esse procedimento, não podendo, em sede de discussão judicial, generalizar-se a sua aplicação de forma a sobrepor-se, ou a revogar, os princípios decorrentes do confronto do artigo 562.º com o n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil, nomeadamente no que se refere ao ónus que impende sobre a seguradora [ou de quem a substitui], de provar a excessiva onerosidade, susceptível de afastar o princípio da reparação in natura, considerando dois factores: o preço da reparação e o valor, não o venal, mas o patrimonial. Foi este o entendimento acolhido por este Tribunal no acórdão de 11.03.2008[6], cujo sumário se transcreve parcialmente: «[…] 3. O regime instaurado pelo DL 83/06 ao aditar ao DL 522/85 os artigos 20º-A a 20º-O (entretanto substituídos pelo regime do DL 291/07- S.O.R.C.A.) visa directamente apenas a regularização extrajudicial de sinistros, no termo de cujo processo de regularização a seguradora deve apresentar ao lesado uma proposta razoável de indemnização, podendo esta aferir-se pelo valor venal do veículo no caso de perda total. 4. Não tendo o lesado aceitado essa proposta, nada justifica a aplicação directa desse regime ao caso que ele apresente a juízo, onde pode fazer valer o direito à reparação nos termos do Código Civil […]»[7] Perante a conclusão a que chegámos, resta concluir pela inaplicabilidade in casu, também por esta via, do critério previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007, de 21/08. Do exposto terá que decorrer, salvo o devido respeito, a improcedência da argumentação do recorrente e, em consequência, a improcedência do recurso, não merecendo censura a douta sentença recorrida, que se deverá manter na íntegra. III. Dispositivo Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso e, em consequência, em manter na íntegra a sentença recorrida. Custas do recurso pelo Apelante. * O presente acórdão compõe-se de dezasseis páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário. * Carlos Querido (Relator) Virgílio Mateus Carvalho Martins [1] Como adiante se desenvolverá, a norma em apreço constitui tão só um critério para o procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da “proposta razoável”, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade. Tal entendimento resulta desde logo da sua integração sistemática - Cap. III “Da regularização dos sinistros” – disciplinando o legislador no capítulo em causa [art. 31.º a 46.º] as regras para apresentação por parte do responsável pela indemnização, da “Proposta razoável” prevista nos artigos 38.º e 39.º. [2] Proferido no Processo n.º 06B4219, acessível em http://www.dgsi.pt [3] O mesmo entendimento se colhe do acórdão do STJ, de 12.02.2004, proferido no Processo n.º 03A4468, também acessível em http://www.dgsi.pt, onde se decidiu: «Para se apreciar se a reposição natural manifestada na reparação integral da viatura sinistrada é excessivamente onerosa para o devedor (artigo 566° no 1 do Código Civil) não é bastante tomar meramente em consideração o valor comercial do veículo versus sua reparação integral, sendo também absolutamente imprescindível tornar em conta o uso que o seu proprietário lhe dá, assim como a possibilidade de que ele dispõe de adquirir um outro igual pelo mesmo valor.» [4] Vide respectivo preâmbulo. [5] O que resulta do confronto do artigo 20.º-B do DL 83/2006, com o artigo 32.º do DL 291/2007. [6] Proferido no Processo n.º 3318/06.5TBVIS.C1, relatado pelo Desembargador Virgílio Mateus, que subscreve o presente acórdão como 1.º adjunto – acessível em http://www.dgsi.pt [7] No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7.09.2010, proferido no Processo n.º 425/09.6TBPFR.P1, cujo sumário se transcreve parcialmente: «[…] V - Assim, mediante a apresentação de uma proposta razoável de indemnização apresentada pela seguradora, fundada nos critérios estabelecidos nesse diploma (291/2007), pode o segurado ou o terceiro aceitá-la, resolvendo-se em definitivo o litígio. VI - Porém, se não houver acordo, e se houver necessidade de recorrer às vias judiciais, a determinação da espécie e o quantum da indemnização passam a ser regulados pelos regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, entre os quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação integral do dano, ficando afastada a aplicação dos critérios previstos no Capítulo III do DL 291/2007, designadamente o art. 41º. […]».