Processo:3707/18.2T8LSB.L1-7
Data do Acordão: 01/07/2019Relator: MICAELA SOUSATribunal:trl
Decisão: Meio processual:

I – A circunstância de o senhorio poder efectuar a resoluçăo do contrato de arrendamento por via extrajudicial năo o priva da possibilidade de recorrer a uma acçăo judicial destinada àquela resoluçăo, posto que o procedimento especial de despejo é apenas um meio processual colocado à disposiçăo do senhorio em alternativa à acçăo de despejo, nada obstando a que o senhorio a esta recorra em lugar de instaurar esse procedimento, quer ali deduza o pedido isolado de resoluçăo com fundamento na falta de pagamento de rendas, quer o deduza em cumulaçăo com outros pedidos. II - O que se impơe questionar é se os senhorios, podendo resolver e tendo resolvido o contrato mediante comunicaçăo extrajudicial enviada à arrendatária, afinal năo possuem interesse em agir relevante para recorrer à acçăo judicial. III - O autor tem interesse processual se, da situaçăo descrita, resulta que essa parte necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito; a acçăo instaurada deve ser o meio judicial mais rápido, económico e adequado para obter a tutela visada. IV - A necessidade de tutela judicial năo pode ser negada quando, após a comunicaçăo da resoluçăo do contrato, a arrendatária persiste na ocupaçăo do locado, ao longo de cinco anos, sem o pagamento de qualquer renda e assim se mantém năo obstante a interpelaçăo para a entrega do locado e respectivas chaves. V - Na identificaçăo do objecto do litígio o juiz terá de lhe atribuir uma qualificaçăo jurídica provisória, procedendo à enunciaçăo das questơes em litígio de acordo com as várias soluçơes plausíveis da questăo de direito, o que fará através da ponderaçăo da relevância jurídica dos factos carreados para os autos pelas partes e em funçăo também da matéria factual a que oficiosamente possa atender, nos termos do art. 5º, n.º 2 do Código de Processo Civil, considerando as soluçơes jurídicas que săo, razoavelmente, suscitadas pela sua perspectiva provisória (atendendo também à jurisprudência e à doutrina), pela perspectiva do autor e pela perspectiva do réu. VI – A identificaçăo do objecto do litígio e a enunciaçăo dos temas de prova delimitam o âmbito da instruçăo, sendo esta balizada pela causa de pedir e pelas excepçơes deduzidas, pelo que deverá incidir sobre os factos relevantes para o exame e decisăo da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova e que constituem, impedem, modificam ou extinguem o direito controvertido, tal como decorre do vertido nos articulados. VII - Recaindo sobre o senhorio a obrigaçăo de realizar as obras de conservaçăo, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, nos termos do artigo 1074º, n.º 1 do Código Civil, a falta de cumprimento dessa obrigaçăo pode constituir fundamento de resoluçăo do contrato pelo arrendatário, nos termos do artigo 1083º, n.º 1 do referido diploma legal. VIII - No entanto, tem sido uniformemente entendido que, enquanto se mantiver no gozo do imóvel, o arrendatário năo poderá utilizar a excepçăo de năo cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência da năo realizaçăo das obras, apenas podendo efectuar a reduçăo da renda na medida proporcional à privaçăo ou diminuiçăo do gozo. Se existe cumprimento defeituoso ou parcial pelo senhorio, tal apenas dispensa o arrendatário de pagar a renda correspondente à falta verificada; no caso de mora do senhorio na reparaçăo dos defeitos, o arrendatário năo pode, mantendo-se no gozo da coisa locada, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno, sob pena de incorrer em mora.

Profissão: Data de nascimento: 1/1/1970
Tipo de evento:
Descricao acidente:

Importancias a pagar seguradora:

Relator
MICAELA SOUSA
Descritores
ARRENDAMENTO RESOLUÇĂO INTERESSE EM AGIR OBRAS DE CONSERVAÇĂO
No do documento
RL
Data do Acordão
07/02/2019
Votação
UNANIMIDADE
Texto integral
S
Meio processual
APELAÇĂO
Decisão
IMPROCEDENTE
Sumário
I – A circunstância de o senhorio poder efectuar a resoluçăo do contrato de arrendamento por via extrajudicial năo o priva da possibilidade de recorrer a uma acçăo judicial destinada àquela resoluçăo, posto que o procedimento especial de despejo é apenas um meio processual colocado à disposiçăo do senhorio em alternativa à acçăo de despejo, nada obstando a que o senhorio a esta recorra em lugar de instaurar esse procedimento, quer ali deduza o pedido isolado de resoluçăo com fundamento na falta de pagamento de rendas, quer o deduza em cumulaçăo com outros pedidos. II - O que se impơe questionar é se os senhorios, podendo resolver e tendo resolvido o contrato mediante comunicaçăo extrajudicial enviada à arrendatária, afinal năo possuem interesse em agir relevante para recorrer à acçăo judicial. III - O autor tem interesse processual se, da situaçăo descrita, resulta que essa parte necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito; a acçăo instaurada deve ser o meio judicial mais rápido, económico e adequado para obter a tutela visada. IV - A necessidade de tutela judicial năo pode ser negada quando, após a comunicaçăo da resoluçăo do contrato, a arrendatária persiste na ocupaçăo do locado, ao longo de cinco anos, sem o pagamento de qualquer renda e assim se mantém năo obstante a interpelaçăo para a entrega do locado e respectivas chaves. V - Na identificaçăo do objecto do litígio o juiz terá de lhe atribuir uma qualificaçăo jurídica provisória, procedendo à enunciaçăo das questơes em litígio de acordo com as várias soluçơes plausíveis da questăo de direito, o que fará através da ponderaçăo da relevância jurídica dos factos carreados para os autos pelas partes e em funçăo também da matéria factual a que oficiosamente possa atender, nos termos do art. 5º, n.º 2 do Código de Processo Civil, considerando as soluçơes jurídicas que săo, razoavelmente, suscitadas pela sua perspectiva provisória (atendendo também à jurisprudência e à doutrina), pela perspectiva do autor e pela perspectiva do réu. VI – A identificaçăo do objecto do litígio e a enunciaçăo dos temas de prova delimitam o âmbito da instruçăo, sendo esta balizada pela causa de pedir e pelas excepçơes deduzidas, pelo que deverá incidir sobre os factos relevantes para o exame e decisăo da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova e que constituem, impedem, modificam ou extinguem o direito controvertido, tal como decorre do vertido nos articulados. VII - Recaindo sobre o senhorio a obrigaçăo de realizar as obras de conservaçăo, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, nos termos do artigo 1074º, n.º 1 do Código Civil, a falta de cumprimento dessa obrigaçăo pode constituir fundamento de resoluçăo do contrato pelo arrendatário, nos termos do artigo 1083º, n.º 1 do referido diploma legal. VIII - No entanto, tem sido uniformemente entendido que, enquanto se mantiver no gozo do imóvel, o arrendatário năo poderá utilizar a excepçăo de năo cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência da năo realizaçăo das obras, apenas podendo efectuar a reduçăo da renda na medida proporcional à privaçăo ou diminuiçăo do gozo. Se existe cumprimento defeituoso ou parcial pelo senhorio, tal apenas dispensa o arrendatário de pagar a renda correspondente à falta verificada; no caso de mora do senhorio na reparaçăo dos defeitos, o arrendatário năo pode, mantendo-se no gozo da coisa locada, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno, sob pena de incorrer em mora.
Decisão integral
Acordam as Juízas na 7ª Secçăo do Tribunal da Relaçăo de Lisboa
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I – RELATÓRIO
A., B. e C. intentaram contra D. a presente acçăo declarativa de condenaçăo, com processo comum formulando os seguintes pedidos:
·    A declaraçăo de resoluçăo do contrato de arrendamento de duraçăo limitada, para habitaçăo celebrado em 1 de Agosto de 1999 com a ré e a condenaçăo desta a entregar aos autores o locado, livre e devoluto de pessoas e bens;
·    A condenaçăo da ré a pagar aos autores a quantia de € 21 997,08 (vinte e um mil novecentos e noventa e sete euros e oito cêntimos), por rendas vencidas e năo pagas desde Novembro de 2012, acrescida do valor das rendas que se vencerem até ao trânsito da sentença que decretar a resoluçăo do contrato de arrendamento;
·     A condenaçăo da ré no pagamento da quantia de € 698,32 (€ 349,16 x 2) por cada mês de atraso na entrega do locado livre e devoluto, a partir da data do trânsito em julgado da sentença que declare a resoluçăo do contrato e a ré se constitua em mora e até efectivo pagamento;
·      No caso de assim se năo entender, deve o pedido subsidiário ser julgado procedente e a ré ser condenada a entregar o locado desocupado de pessoas e bens e a pagar aos autores a quantia de € 5 586,56 (cinco mil quinhentos e oitenta e seis euros e cinquenta e seis cêntimos) correspondente a rendas năo pagas;
·      E ainda o valor de € 15 400,00, a título de indemnizaçăo por enriquecimento sem causa, a que acresce a quantia mensal de € 350,00, enquanto a ré mantiver a ocupaçăo ilícita do locado e até à sua efectiva entrega;
·      Tudo acrescido de juros à taxa legal contados do trânsito em julgado da sentença.
Alegam para tanto, muito em síntese, o seguinte:
·  Os autores săo proprietários do segundo andar direito, destinado a habitaçăo, do prédio sito em ..., freguesia da Ameixoeira, Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 2... e actualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santa Clara sob o artigo 3..., direito que lhes adveio por óbito de DS, falecido em 25-07-2015 e de quem săo os únicos herdeiros;
·      O referido imóvel foi dado de arrendamento à ré pelo falecido DS por contrato de arrendamento de duraçăo limitada, celebrado em 1 de Agosto de 1999, com destino a habitaçăo, mediante o pagamento de renda mensal fixada no valor de Esc. 70 000$00 (€ 349,16);
·     A ré pagou a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer outra renda;
·     Ainda em vida do senhorio DS, este e a mulher, notificaram a ré, por notificaçăo judicial avulsa, comunicando a resoluçăo do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, notificaçăo que esta assinou em 30 de Janeiro de 2014, recusando-se, contudo, a entregar o locado livre e desocupado de pessoas e bens.
A ré contestou suscitando a excepçăo de falta de interesse em agir dado o fundamento da resoluçăo ser a falta de pagamento de rendas, o que permite ao senhorio proceder à resoluçăo por comunicaçăo à contraparte, tanto mais que os autores procederam a tal comunicaçăo por notificaçăo judicial avulsa, assinada pela ré em 30 de Janeiro de 2014, tendo cessado entăo o contrato de arrendamento, pelo que deveriam recorrer ao Balcăo Nacional de Arrendamento para executar o despejo; mais invocou a prescriçăo das rendas que se venceram até Fevereiro de 2013, impugnando ainda o seu valor mensal.
Alegou ainda que lhe assiste o direito de recusar o pagamento das rendas porque o locado năo apresenta as condiçơes mínimas de habitabilidade, o que coloca em causa a sua segurança e saúde, nomeadamente, apresenta os armários da cozinha apodrecidos, o autoclismo năo funciona, ausência de isolamento na caixa de estores, porta e janela, e as paredes e tectos têm manchas e fissuras e uma tomada eléctrica encontra-se em estado que coloca em causa a segurança da ré, pelo que o senhorio incumpriu o dever de lhe proporcionar o gozo do imóvel, sendo que solicitou a realizaçăo de obras, sem sucesso; mais refere que mesmo que assim năo se entenda, sempre o valor da renda terá de ser reduzido em dois terços, durante todo o período após Fevereiro de 2013, face ao avançado estado de degradaçăo do locado.
Os autores apresentaram resposta sustentando ser admissível o recurso à acçăo judicial ainda que tenham ao seu dispor a via extrajudicial, para além do que à data da interpelaçăo feita năo tinham as obrigaçơes fiscais, imposto de selo, cumpridas, o que os impedia de recorrer ao Balcăo Nacional de Arrendamento; mais afastaram a falta de condiçơes de habitabilidade do locado e consideram essa invocaçăo um exercício abusivo de direito, refutando também a prescriçăo das rendas.
Em 8 de Outubro de 2018 foi proferido despacho convidando a ré a concretizar a data em que ocorreram as situaçơes que impediram o gozo do imóvel e a data e modo pelo qual solicitou a realizaçăo de obras e ainda a extensăo da afectaçăo do gozo do imóvel.
A ré acedeu ao convite, por requerimento de 22 de Outubro de 2018, esclarecendo que os problemas mencionados, com excepçăo do autoclismo, agravaram-se há cerca de sete/oito anos e desde entăo solicitou ao senhorio a realizaçăo de obras, através de contactos verbais, confirmando que reside no imóvel mas sente a sua segurança e saúde colocadas em causa.
Os autores responderam ao novo articulado.
Em 9 de Janeiro de 2019, teve lugar a realizaçăo de audiência prévia com prolaçăo do despacho saneador em que foram aferidos os pressupostos processuais relevantes, sendo julgadas improcedentes as excepçơes de falta de interesse em agir e de prescriçăo das rendas.
Foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova.
A ré reclamou do objecto do litígio por considerar que tendo invocado a diminuiçăo do gozo do imóvel locado decorrente do seu estado de degradaçăo, tal privaçăo do gozo deve determinar uma diminuiçăo da renda mensal, conforme pedido efectuado na contestaçăo.
Foi proferido despacho que indeferiu a aludida reclamaçăo.
Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, em 11 de Fevereiro de 2019, que decidiu a causa nos seguintes termos:
“a) Declarar que o contrato de arrendamento dos autos se extinguiu, por via da comunicada resoluçăo, por notificaçăo avulsa, no dia 30.01.2014.
b) Condenar a Ré a entregar aos Autores o locado livre e devoluto de pessoas e bens.
c) Condenar a Ré a pagar aos Autores as rendas vencidas desde Novembro de 2012 e até Janeiro de 2014 (isto é, até à data da resoluçăo), no valor total de € 4.888,24 (quatro mil oitocentos e oitenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos).
d) Condenar a Ré a pagar aos Autores as rendas peticionadas vencidas desde Fevereiro de 2014 (posteriormente à resoluçăo) a Fevereiro de 2018, na quantia total de € 17.108,84 (dezassete mil cento e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), a título de indemnizaçăo (artigo 1045º, n.º 1 do Código Civil) e, bem assim, as rendas vencidas desde Março de 2018 em diante e vincendas até à restituiçăo, igualmente a título de indemnizaçăo.
e) Após o trânsito em julgado da presente sentença, caso a Ré năo proceda à entrega do locado livre de pessoas e bens, haverá lugar a indemnizaçăo do valor correspondente à renda em dobro, pelo atraso na restituiçăo da coisa (cfr. artigos artigos 1045º, n.º 2 do Código Civil).
f) Condenar a Ré no pagamento aos Autores de juros de mora, à taxa legal, contados desde o trânsito em julgado da sentença.
g) Conceder à Ré o prazo de trinta dias, após o trânsito em julgado da presente sentença, para desocupar o locado.”
É desta sentença que a ré interpơe o presente recurso concluindo as suas alegaçơes do seguinte modo:
1. Nos presentes autos os Recorridos requereram como pedido principal a resoluçăo do contrato de arrendamento com falta de pagamento das rendas, a qual, nos termos do no n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, opera por comunicaçăo à contraparte, isto é, sem necessidade de intervençăo judicial (artigo 14.º n.º 1 do NRAU)
2. Ainda que se admita no seguimento de alguma jurisprudência, que a via extrajudicial é, apenas, uma via alternativa năo imperativa, que năo faz claudicar o recurso à via judicial, os presentes autos gozam de um atributo que escapam ao âmbito da citada jurisprudência, e tornam evidente a verificaçăo da excepçăo da falta de interesse em agir, que o Tribunal a quo julgou improcedente no douto despacho saneador.
3. É que, por notificaçăo avulsa assinada pela R. em 30.10.2014, os anteriores senhorios fizeram cessar o contrato de arrendamento
4. É manifesto que os Recorridos năo necessitavam do Tribunal para fazer valer o seu alegado direito de obter a resoluçăo do contrato de arrendamento uma vez que este já havia cessado, por via extrajudicial, e por opçăo dos Recorridos.
5. Deveriam, isto sim, os Recorridos recorrer de imediato ao BNA, para executar e tornar efectivo o despejo na sequência de cessaçăo do contrato que já tenha operado extrajudicialmente, como in casu sucedeu.
6. O procedimento especial de despejo é o meio processual que se destina, justamente, a efectivar a cessaçăo do arrendamento, quando o arrendatário năo desocupe o locado na data prevista na lei, e năo ficou demonstrado nos presentes autos qualquer dificuldade dos Recorridos no recurso ao citado procedimento, que pudesse justificar a presente acçăo.
7. Acresce que năo foi alegada e, por conseguinte, provada, qualquer dificuldade dos Recorridos no recurso ao citado procedimento, que pudesse justificar a presente acçăo.
8. Por conseguinte, o douto Tribunal, ao ter julgado improcedente a excepçăo da falta de interesse em agir dos Recorridos violou o disposto nos artigos 1083.º e 1084.º do Código Civil e artigo 14.º do NRAU.
9. Por outro lado, o Tribunal năo levou ao objecto do litígio a matéria invocada pela Recorrente na contestaçăo relacionada com a excepçăo do năo cumprimento do contrato de arrendamento (falta de condiçơes de habitabilidade do bem locado), indeferindo a Reclamaçăo apresentada pela Recorrente ao douto despacho, decisăo com a qual a Recorrente năo se conforma.
10. Ao năo permitir a inclusăo da referida questăo no objecto do litígio e temas da prova, o Tribunal comprometeu a boa e justa composiçăo do litígio, violando o artigo 596.º do CPC.
11. Ou o douto Tribunal, entendendo possuir todos os elementos necessários, conhecia expressamente da excepçăo deduzida, julgando-a improcedente, com os fundamentos invocados para indeferir a Reclamaçăo ou, năo o fazendo, como năo o fez, năo poderia deixar de levar a matéria ao objecto do litígio e aos temas da prova
12. Termos em que deverá ser revogado o despacho que indeferiu a reclamaçăo apresentada, acrescentando-se ao objecto do litígio a matéria relacionada com a invocada excepçăo do năo cumprimento, isto é, a falta de condiçơes do imóvel locado, submetendo-a à prova necessária.
13. Por fim, a douta Sentença é nula por oposiçăo entre os fundamentos e a decisăo.
14. Na verdade, nos termos do artigo 1087.º, o prazo mínimo supletivo legal para desocupaçăo do locado é de 30 dias.
15. Ora, consigna-se na douta Sentença que “considerando que a Ré se encontra desempregada e que năo lhe săo conhecidos rendimentos, concede-se à mesma um prazo de (….)”
16. Seria expectável que, com base em tais considerandos, o Tribunal fixasse um prazo superior ao supletivo, porém, limita-se a conceder “o prazo de trinta dias”, isto é, o prazo supletivo legal.
17. Pelo que, em bom rigor, as consideraçơes tecidas a propósito da situaçăo económica da Recorrente năo tiveram qualquer reflexo na decisăo do Tribunal, isto é, a fundamentaçăo foi num sentido e a decisăo foi noutro, o que acarreta a nulidade da Sentença nos termos e para efeitos do disposto na alínea c), do n. º1 do artigo 615.º do CPC.
18. Ainda que assim năo se entenda, o que por mero dever de patrocínio se concebe, e atentos os factos provados n.º 14 e 15.º, deverá a douta Sentença ser revogada por outra que conceda à Recorrente um prazo nunca inferior a 90 dias para a desocupaçăo do locado.
19. Em suma, a douta Sentença violou o disposto no artigo 1087.º do Código Civil e alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Nestes termos […] deve o presente Recurso ser julgado procedente.
A recorrida A. apresentou contra-alegaçơes pugnando pela improcedência do recurso e manutençăo da decisăo recorrida.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusơes do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questơes de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciaçăo das questơes suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusơes que năo encontrem correspondência com a motivaçăo - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª ediçăo, pág. 95.
Na falta de especificaçăo logo no requerimento de interposiçăo, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, n.º 3, do CPC), contudo o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusơes da alegaçăo (cf. n.º 4 do mencionado art. 635º). Por isso, todas as questơes de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que năo sejam abordadas nas conclusơes da alegaçăo do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusơes, têm de se considerar decididas e arrumadas, năo podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisơes judiciais, o recurso visa tăo só suscitar a reapreciaçăo do decidido, năo podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questơes novas - cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., 2016, 3ª ediçăo, pág. 97.
Assim, perante as conclusơes da alegaçăo da ré/apelante, o objecto do presente recurso consiste na apreciaçăo das seguintes questơes:
·     Da excepçăo de falta de interesse em agir;
·     Da existência ou năo de erro na definiçăo do objecto do litígio;
·   Nulidade da sentença por oposiçăo entre os fundamentos e oposiçăo.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇĂO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos:
·  Os Autores săo proprietários do segundo andar direito, destinado a habitaçăo, do prédio sito... freguesia da Ameixoeira, Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o Número 2... e actualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santa Clara sob o artigo 3..., que proveio dos artigos ...  da extinta freguesia da Ameixoeira, concelho de Lisboa.
·    O imóvel que integra o referido andar veio à posse dos Autores por sucessăo de DS, falecido em 25/07/2015, e de que săo os únicos herdeiros.
·   O locado foi dado de arrendamento à Ré pelo falecido DS e mulher A. por contrato de arrendamento de duraçăo limitada celebrado em 1 de Agosto de 1999.
·   O locado destinava-se a habitaçăo da Ré, năo podendo sublocar ou ceder, no todo ou em parte os direitos do arrendamento (cláusula quinta).
·   O contrato tinha a duraçăo de 5 anos, com início em 1 de Agosto de 1999 e termo aprazado para 1 de Agosto de 2004 (cláusula primeira).
·   O contrato renovar-se-ia automaticamente no fim do prazo, por períodos de três anos (cláusula primeira).
·  A renda estipulada foi de 70 000$00, que feita a conversăo equivale a € 349,16 (trezentos e quarenta e nove euros e dezasseis cêntimos) mensais e devia ser paga por depósito ou transferência bancária para a conta de que o senhorio era titular ou em casa do seu representante na Rua...  – Lisboa, no primeiro dia do mês anterior a que respeitar (cláusula segunda).
·     A Ré pagou a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer renda.
·    Ainda em vida do senhorio DS, este e a mulher, aqui Autora, notificaram a Ré, por notificaçăo judicial avulsa cuja cópia se mostra inserta a fls. 17 a 26, da resoluçăo do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas vencidas de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2013.
·    A Ré assinou a certidăo de notificaçăo avulsa em 30 de Janeiro de 2014.
·     Apesar da comunicada resoluçăo do contrato a Ré recusou-se a entregar aos Autores o locado livre e desocupado de pessoas e bens.
·    Em 6 de Junho de 2017 a Ré foi interpelada pelo Advogado dos Autores, em representaçăo destes, para entregar as chaves do andar e pagar as quantias peticionadas a título de rendas.
·    A Ré năo deu resposta à referida interpelaçăo.
·  A Ré encontra-se desempregada e năo lhe săo conhecidos rendimentos.
·   A Ré apresentou na Câmara Municipal de Lisboa pedidos de atribuiçăo de uma habitaçăo municipal que năo foram deferidos.
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O Tribunal a quo considerou năo provados os seguintes factos:
·     O valor actual da renda cifra-se em € 320,00.
·     A Ré pagou todas as rendas relativas ao ano de 2013.
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3.2. – APRECIAÇĂO DO MÉRITO DO RECURSO
Da excepçăo dilatória de falta de interesse em agir
A ré/apelante vem recorrer da decisăo proferida em sede de despacho saneador que julgou improcedente a excepçăo de falta de interesse em agir que aquela havia suscitado na sua contestaçăo.
Sustenta a apelante que sendo o fundamento do pedido de resoluçăo do contrato de arrendamento a falta de pagamento de rendas, a resoluçăo pelo senhorio opera por comunicaçăo à contraparte, nos termos dos art.ºs 1083º, n.º 3 e 1084º, n.º 2 do C. Civil, estando a acçăo de despejo reservada, nos termos do art. 14º, n.º 1 do Novo Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro e subsequentes alteraçơes), para as situaçơes em que a lei impơe o recurso à via judicial, pelo que năo existe qualquer interesse relevante dos autores/senhorios em interpor a presente acçăo, o que, neste caso, é mais evidente porque aqueles já fizeram cessar o contrato de arrendamento por notificaçăo judicial avulsa, assinada pela ré; assim, o procedimento especial de despejo era o meio processual próprio para efectivar a cessaçăo do arrendamento e a desocupaçăo do locado.
A recorrida pugna pela manutençăo da decisăo recorrida entendendo que nada obsta à instauraçăo da acçăo judicial, tanto mais que os autores nesta năo săo os mesmos que procederam à notificaçăo judicial avulsa, para além de o contrato de arrendamento năo ter sido declarado na Repartiçăo de Finanças, sendo que o pagamento do imposto de selo é condiçăo de aceitaçăo do requerimento de procedimento especial de despejo.
O Tribunal a quo apreciou a questăo em apreço nos seguintes termos:
“Apreciando dir-se-á que a acçăo de despejo constituiu meio processual adequado para a cessaçăo coerciva, por iniciativa do senhorio, de um contrato de arrendamento válido (artigo 14º NRAU).
A referida acçăo tem por fundamento qualquer facto que, segundo a lei, confira ao senhorio o direito de fazer cessar uma relaçăo jurídica de arrendamento e tem por escopo final obter a condenaçăo do arrendatário a despejar o prédio que gozava (Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. I, pág. 159 e Pais de Sousa, Extinçăo do Arrendamento Predial).
O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) foi aprovado pela Lei n.º 6/2006 de 27/2, e entrou em vigor em 28/6/2006 (artigos 1º e 65º).
Prescreve o artigo 59º n.º 1 do NRAU que este se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relaçơes contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.
À situaçăo sub judice é incontroverso que se aplica o Novo Regime do Arrendamento Urbano.
Como bem se decidiu no douto Acórdăo da Relaçăo do Porto, datado de 17.10.2013 (disponível em www.dgsi.pt): “As disposiçơes do NRAU abandonaram a ideia que provinha da anterior legislaçăo segundo a qual a resoluçăo do contrato de arrendamento apenas podia ser decretada judicialmente (artigo 1084.º do Código Civil) e, em conformidade com essa inovaçăo, criaram um mecanismo para, nos casos de falta de pagamento da renda em caso de mora superior a três meses, o senhorio poder resolver o contrato mediante mera comunicaçăo extrajudicial ao arrendatário (artigo 9.º, n.º 7, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro).
Esta inovaçăo legislativa logo suscitou uma dúvida: se, nesses casos, o senhorio apenas pode operar a resoluçăo através da comunicaçăo extrajudicial, năo possuindo interesse em agir para recorrer à acçăo de despejo ou se o senhorio, apesar de ter à sua disposiçăo àquela via, pode optar por lançar măo da acçăo de despejo possuindo para o efeito interesse em agir suficiente. (…)
O facto de o n.º 1 do artigo 1084º do Código Civil prescrever que a resoluçăo do arrendamento pelo senhorio com fundamento na falta de pagamento de renda opera por comunicaçăo à contraparte, apenas pode significar que a declaraçăo de vontade no sentido da resoluçăo pode ser manifestada por essa forma, mas já năo que o senhorio esteja impedido de lançar măo de uma acçăo judicial manifestando essa vontade e pedindo a condenaçăo do réu nas consequências legais do seu incumprimento. (…)
Assiste ao senhorio o direito a instaurar acçăo declarativa destinada à resoluçăo do contrato de arrendamento, mesmo quando tenha ao seu dispor a via da resoluçăo extrajudicial (art. 9º do CC)”.
Aqui chegados, como é consabido o interesse processual é pressuposto do recurso a juízo (cfr. Lebre de Freitas, J. redinha e R. Pinto, “CPC Anotado”, vol. I, p. 14 e Ac. do STJ de 16/09/2008 in www.dgsi.pt).
“O interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situaçăo subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessăo daquela tutela” (Miguel Teixeira de Sousa “As partes, o objecto e prova na acçăo declarativa”, p. 97).
Como se refere no Ac. do STJ de 8/03/2001 “O interesse em agir constitui um pressuposto processual, que năo se confunde com a legitimidade processual”.
A admissibilidade da demanda judicial está subordinada à subsistência de um interesse em agir.
O interesse em agir, enquanto pressuposto processual, tem sido definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acçăo e constitui excepçăo dilatória inominada, de conhecimento oficioso, conducente à absolviçăo da instância (neste sentido vide Abrantes Geraldes, 1 Vol. (2ª Ed. Revista e ampliada, Almedina, pág. 262 e 263).
Como se exarou no acórdăo da Relaçăo de Évora de 12.07.2007 (proc. n.º 728/07-3, consultável em www.dgsi.pt) há falta de interesse em agir quando, entre o objecto da acçăo e o pedido formulado năo existe uma situaçăo de conflitualidade sobre o direito, uma situaçăo e incerteza objectiva e grave sobre o direito de que o autor se arroga.
A este propósito decidiu-se no acórdăo da Relaçăo de Lisboa de 21.11.2013 (proc. n.º 1303/12.7 TVLSB.L2-6, consultável em www.dgsi.pt), “o interesse em agir consiste na necessidade e utilidade da demanda considerado o sistema jurídico aplicável às pretensơes invocadas e a sua verificaçăo basta-se com a necessidade razoável do recurso à acçăo judicial. (…)
Na jurisprudência é aceite que o interesse em agir é verdadeiro pressuposto processual inominado determinante da absolviçăo da instância.
O interesse em agir consiste assim na verificaçăo da necessidade ou utilidade da acçăo, sendo definido como «a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acçăo».
Em conclusăo, o interesse em agir consiste na necessidade e utilidade da demanda considerado o sistema jurídico aplicável às pretensơes invocadas. (…) 
O pressuposto processual em causa deve ser analisado também à luz dos princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça, em dupla vertente: consagraçăo e limitaçăo. (…) 
Em conclusăo, extrai-se dos princípios constitucionais e do desenho da acçăo enquanto adjectivaçăo do direito (artigo 2.º, n.º 2 do CPC) que o interesse em agir é pressuposto processual e que a sua verificaçăo se basta com a necessidade razoável do recurso à acçăo judicial a que alude o Professor Antunes Varela.
Assim, tem de considerar-se que a sua verificaçăo ocorre sempre que o demandante tenha necessidade de intervençăo judicial para reconhecimento da sua pretensăo, tal como a configura no exercício da sua liberdade de conformaçăo da acçăo”.
O que manifestamente se verifica na hipótese sub judice, sendo certo que a Ré se mantém até ao presente no locado e que os Autores pretendem efectivar o seu despejo, com a entrega do locado livre e devoluto de pessoas e bens e, bem assim, a sua condenaçăo no pagamento das quantias peticionadas.
“Havendo uma relaçăo jurídica, havendo incumprimento por uma das suas partes das respectivas obrigaçơes, havendo do incumpridor a năo-aceitaçăo pacífica das consequências desse incumprimento e permanecendo a situaçăo fáctica aquém do que adviria dessas consequências, deve entender-se, de acordo com um critério de razoabilidade e de justa medida, que a parte năo inadimplente tem interesse em agir bastante para (optar) recorrer a uma acçăo judicial que lhe reconheça o direito e condene a outra nas consequências do seu incumprimento” (Acórdăo da Relaçăo do Porto, datado de 17.10.2013, já anteriormente citado).
Pelo que, considerando a causa de pedir e os pedidos formulados pelos Autores, impơe-se concluir pela improcedência da suscitada excepçăo de falta de interesse em agir.
I.I – 3 – Decisăo 
Termos em que, atentas as consideraçơes expendidas e as normas legais citadas, se julga improcedente a suscitada excepçăo de falta de interesse em agir.”
O excurso doutrinário efectuado na decisăo recorrida a propósito do pressuposto processual de interesse em agir menciona correcta e adequadamente a sua configuraçăo jurídica, o que dispensa ulteriores consideraçơes a esse propósito, havendo apenas que analisar sobre o bem fundado da decisăo a que aportou, ou seja, se no caso em apreço se verifica por parte dos autores o interesse em agir ou na obtençăo da decisăo judicial que visam alcançar com a interposiçăo da presente acçăo.
O contrato de arrendamento em apreço nos presentes autos foi celebrado em 1 de Agosto de 1999, na vigência do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo DL 321-B/90, de 15 de Outubro, com destino a habitaçăo e duraçăo limitada.
O art. 26º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro estipula que os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes, ou seja, as atinentes à transmissăo por morte, denúncia e indemnizaçăo por benfeitorias.
Nos termos do art. 12º, n.º 1 do C. Civil “a lei só dispơe para o futuro”.
Porém, de acordo com o n.º 2 da referida disposiçăo legal “quando a lei dispơe sobre as condiçơes de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relaçơes jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relaçơes já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
“As normas jurídicas que determinam o efeito de um facto (de que derivam, portanto, o nascimento, a extinçăo ou a modificaçăo de uma relaçăo jurídica) referem-se unicamente aos factos futuros dessa espécie. As normas que se referem imediatamente aos próprios direitos, isto é, abstraindo dos factos do seu nascimento ou da sua extinçăo, do seu conteúdo ou do seu efeito, da sua existência ou da sua inexistência, regem, igualmente, para o futuro, mas abrangem os direitos dessa índole já existentes” – cf. J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. I, pág. 47; no mesmo sentido, Fernando Baptista de Oliveira, Contratos Privados – Das Noçơes à Prática Judicial, Vol. I, pág. 143.
O arrendamento configura uma situaçăo jurídica duradoura, como tal visada na segunda parte do n.º 2 do art. 12º do C. Civil.
Por sua vez, o art. 59º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro dispơes que “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relaçơes contratuais constituídas que subsistam nessa data.”
À data do início da vigência do aludido diploma – 28-06-2006 (art.ºs 1º e 65º do NRAU) -, o contrato de arrendamento objecto dos autos ainda se mantinha em vigor.
A presente acçăo deu entrada em juízo em 16-02-2018, momento temporal que corresponde ao da sua instauraçăo (cf. art. 267º do CPC), data em que vigorava o regime instituído pelo NRAU.
Estando em causa, na presente acçăo, normas de direito substantivo atinentes à extinçăo de um contrato de arrendamento, com fundamento na ocorrência de factos integrativos da sua resoluçăo, ter-se-á de considerar o regime em vigor à data da propositura da acçăo, que, no caso, năo é o correspondente ao que vigorava à data da celebraçăo do referido contrato, mas sim o decorrente do NRAU – cf. neste sentido, acórdăo do Supremo Tribunal de Justiça de 22-05-2012, relator Sousa Leite, processo n.º 66/03.1TBCLB.C2.S1 acessível na Base de dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestăo Financeira e Equipamentos da Justiça, IP, em www.dgsi.pt.
Adianta-se, desde já, que se adere à jurisprudência maioritária segundo a qual, no âmbito do NRAU, a comunicaçăo extrajudicial prevista no art.º 1084º do Código Civil năo constitui o único meio ao dispor do senhorio para operar a resoluçăo do contrato de arrendamento, com fundamento no incumprimento pelo arrendatário da obrigaçăo de pagamento das rendas, tendo este, de igual modo, a possibilidade de, para esse efeito, recorrer à acçăo judicial (de despejo), competindo-lhe optar pelo uso de um ou outro meio, pois que esta se afigura ser este o entendimento que melhor se ajusta a uma interpretaçăo sistemática e teleológica das normas jurídicas que, no âmbito do novo RAU, se destinam a regulamentar o arrendamento e os modos da respectiva cessaçăo.
Com efeito, da conjugaçăo do vertido no art. 9º, n.º 7 do NRAU, que define a forma por que deve concretizar-se a notificaçăo ou comunicaçăo (notificaçăo judicial avulsa ou contacto pessoal) para a cessaçăo do contrato de arrendamento, no art. 15º, n.º 1, e) (que determina que o comprovativo de tal comunicaçăo ou notificaçăo e o contrato de arrendamento passam a constituir título executivo) e no ar.º 14º, n.º 1 (que estipula que a acçăo de despejo constitui meio para fazer cessar a situaçăo jurídica do arrendamento) năo se pode concluir que resulta afastada a admissibilidade de recurso à via judicial para operar a resoluçăo do contrato de arrendamento com fundamento na situaçăo de mora por mais de três meses, por parte do arrendatário, no pagamento das rendas vencidas.
Note-se que o próprio art. 1048º, n.º 1 do C. Civil, ao prever a caducidade do direito à resoluçăo do contrato por falta de pagamento da renda quando o locatário, até ao termo do prazo para a contestaçăo da acçăo declarativa, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnizaçăo, ressalva a sua aplicabilidade “quando for exercido judicialmente” o direito à resoluçăo do contrato por falta de pagamento da renda, ou seja, deixa claramente em aberto a possibilidade de o exercício do direito à resoluçăo poder ocorrer seja por via judicial, seja por via extrajudicial.
Aliás, no ponto 1 da Exposiçăo de Motivos da Proposta de Lei do Arrendamento nº 34/X consta expressamente: “O regime jurídico mantém a sua imperatividade em sede de cessaçăo do contrato de arrendamento, mas abre-se a hipótese à resoluçăo extrajudicial do contrato, com base no incumprimento que, pela sua gravidade, ou consequências, torne inexigível à outra a manutençăo do arrendamento”, o que năo pode deixar de significar que, para além de se manterem os mecanismos pré-existente para a cessaçăo do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, se criou um novo mecanismo visando idêntico fim, mas com o objectivo de agilizar o procedimento relativo à resoluçăo do contrato e entrega do locado, que surge, năo em substituiçăo dos anteriormente existentes, mas em aditamento a estes.
Atente-se na explanaçăo elucidativa que a este propósito consta do acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Lisboa de 11-12-2018, relator Jorge Leal, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/104607" target="_blank">10901/17.1T8LSB.L1-2</a> (aliás, expressamente convocado pela recorrente, que dele, contudo, pretendeu retirar ilaçăo contrária, que năo se afigura consonante com o que dele consta):
“É sabido que até à entrada em vigor do NRAU o contrato de locaçăo só podia ser resolvido pelo locador judicialmente (art.º 1047.º do Código Civil: “a resoluçăo do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do locatário tem de ser decretada pelo tribunal”; art.º 63.º n.º 2 do RAU – Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15.10: “a resoluçăo do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do arrendatário tem de ser decretada pelo tribunal”).
O NRAU alterou o art.º 1047.º do Código Civil, aí passando a figurar que “a resoluçăo do contrato de locaçăo pode ser feita judicial ou extrajudicialmente.”
No que concerne à resoluçăo do contrato de arrendamento urbano, passou a prever-se uma cláusula geral, que inclui a resoluçăo por iniciativa do senhorio, nos termos da qual “é fundamento de resoluçăo o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutençăo do arrendamento (…)” […] No que concerne, em particular, àquela que constitui a principal obrigaçăo do arrendatário, o pagamento da renda, no n.º 3 do art.º 1083.º do CC passou a estipular-se, na versăo inicial do NRAU, que “é inexigível ao senhorio a manutençăo do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas, ou de oposiçăo pelo arrendatário à realizaçăo de obra ordenada por autoridade pública  (…)”. No que respeita a este último fundamento de resoluçăo do contrato de arrendamento, prescreve-se (na versăo inicial do NRAU) no n.º 1 do art.º 1084.º do CC que a resoluçăo pelo senhorio opera “por comunicaçăo à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigaçăo incumprida.” Essa comunicaçăo deverá ser efetuada mediante notificaçăo judicial avulsa ou mediante contacto pessoal de advogado, solicitador ou solicitador de execuçăo, sendo neste caso feita na pessoa do notificando, com entrega do duplicado da comunicaçăo e cópia dos documentos que a acompanhem, devendo o notificando assinar o original (art.º 9.º n.º 7 do NRAU – versăo inicial). Se o locado năo for desocupado (e o arrendatário năo se socorrer da faculdade de fazer abortar a resoluçăo pondo fim à mora no prazo de três meses após a comunicaçăo – n.º 3 do art.º 1084.º do CC – versăo inicial do NRAU) o senhorio poderá instaurar execuçăo para entrega de coisa certa, servindo de título executivo o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicaçăo ao arrendatário da declaraçăo de resoluçăo (alínea e) do n.º 1 do art.º 15.º do NRAU – versăo inicial).
Quanto aos restantes fundamentos de resoluçăo do contrato de arrendamento urbano, a resoluçăo pelo senhorio será, conforme se enuncia no n.º 2 do art.º 1084.º do CC, “decretada nos termos da lei de processo”, ou seja, através de açăo que a lei continua a designar de “acçăo de despejo” (art.º 14.º do NRAU).
Face a este regime discutia-se se o senhorio poderia peticionar a resoluçăo do contrato em açăo judicial nos casos de mora do inquilino, no pagamento de renda, superior a três meses, ou seja, em situaçơes em que, em princípio, poderia resolver o contrato pela via extra-judicial.
O texto dos citados n.ºs 1 e 2 do artigo 1084.º do CC, conjugado com o disposto no art.º 1080.º do Código Civil – versăo original do NRAU (“o disposto nesta subsecçăo tem natureza imperativa, salvo disposiçăo em contrário”), assim como a redaçăo do n.º 1 do art.º 14.º do NRAU (“a acçăo de despejo destina-se a fazer cessar a situaçăo jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessaçăo, e segue a forma de processo comum declarativo”) podiam inculcar a ideia de que o senhorio năo podia recorrer aos tribunais para obter a declaraçăo judicial da resoluçăo do contrato de arrendamento nos casos ora referidos.
Porém, tal interpretaçăo da lei deixaria em sérias dificuldades os senhorios nas situaçơes em que năo fosse possível interpelar o arrendatário para lhe comunicar a resoluçăo, nomeadamente por se desconhecer o seu paradeiro, assim como nos casos de contratos de arrendamento năo reduzidos a escrito […] Por outro lado, o próprio legislador concebia a existência de açơes em que o direito à resoluçăo do contrato por falta de pagamento da renda era exercido por meio de açăo declarativa, conforme decorria desde logo, do disposto no n.º 1 do art.º 1048.º do Código Civil – redaçăo original do NRAU […] De resto, mesmo no âmbito de normas atinentes ao arrendamento urbano, o legislador previa e subentendia como admissível a propositura de açơes de resoluçăo do contrato de arrendamento fundadas na falta de pagamento de renda. Assim, quando o arrendatário procede ao depósito de rendas, estipulava o n.º 2 do art.º 21.º do NRAU (redaçăo original) que “quando o senhorio pretenda resolver judicialmente o contrato por năo pagamento de renda, a impugnaçăo [do depósito] deve ser efectuada em acçăo de despejo a intentar no prazo de 20 dias contados da comunicaçăo do depósito ou, estando a acçăo já pendente, na resposta à contestaçăo ou em articulado específico, apresentado no prazo de 10 dias contados da comunicaçăo em causa, sempre que esta ocorra depois da contestaçăo.”
Na exposiçăo de motivos da Proposta de Lei n.º 34/X, que deu origem ao NRAU (D.A.R. II série-A, n.º 47, de 07.09.2005, pág. 57 e seguintes), escreve-se, a propósito de normas propostas de conteúdo idêntico às que foram aprovadas, que “o regime jurídico mantém a sua imperatividade em sede de cessaçăo do contrato de arrendamento, mas abre-se a hipótese à resoluçăo extrajudicial do contrato, com base em incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutençăo do arrendamento. As partes devem pautar-se pelo princípio da boa fé no cumprimento das suas obrigaçơes, dando um sinal ao mercado de que o arrendatário deve primar pelo pontual cumprimento das obrigaçơes, prevendo-se expressamente que é sempre inexigível ao senhorio a manutençăo do arrendamento em caso de mora no pagamento da renda superior a três meses, ou de oposiçăo pelo arrendatário à realizaçăo de obra ordenada por autoridade pública. (…) A almejada agilizaçăo da actual acçăo de despejo passa pela separaçăo entre a fase declarativa e executiva, através da alteraçăo de algumas normas do Código de Processo Civil (CPC). (…). Tendo em vista aligeirar a pendência processual em fase declarativa, prevê-se a ampliaçăo do número de títulos executivos de formaçăo extrajudicial, possibilitando-se ao senhorio o recurso imediato à acçăo executiva, por exemplo, nos casos em que o contrato de arrendamento tenha cessado por revogaçăo das partes, por caducidade por decurso do prazo ou por oposiçăo à renovaçăo. De igual modo, nos casos de cessaçăo por resoluçăo com base em mora no pagamento da renda superior a três meses, ou devido a oposiçăo pelo arrendatário à realizaçăo de obra ordenada por autoridade pública, se o senhorio proceder à notificaçăo judicial do arrendatário, ou à sua notificaçăo através de contacto pessoal pelo advogado ou solicitador de execuçăo, e o arrendatário mantiver a sua conduta inadimplente, permite-se a formaçăo de título executivo extrajudicial.”
Pese embora a almejada preocupaçăo de agilizaçăo processual, năo se surpreendia na exposiçăo de motivos a intençăo de retirar ao senhorio a possibilidade de, facultativamente, buscar junto dos tribunais a extinçăo do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas. Assim, caberia ao senhorio apreciar qual a via que melhor servia os seus interesses, sendo certo que, para além dos casos gritantes já supra enunciados, o recurso à via judicial seria desde logo mais aconselhável quando se antevisse controvérsia no que concerne à própria caraterizaçăo do contrato como sendo de arrendamento, à identificaçăo das respetivas partes, ao montante das rendas devidas, ou quando se pretendesse demandar igualmente o fiador do contrato de arrendamento, prevenindo eventual controvérsia acerca da formaçăo de título executivo contra este (no sentido da necessidade da acçăo declarativa, vide, v.g., acórdăos da Relaçăo de Lisboa, de 23.10.2007, processo 6397/2007-7 e de 08.11.2007, processo 7685/2007-6; entendendo que o título executivo complexo definido no art.º 15.º n.º 2 do NRAU pode ser utilizado para reclamar rendas também do fiador, v.g., acórdăo da Relaçăo de Lisboa, de 12.12.2008, processo 10790/2008-7 e acórdăo da Relaçăo de Coimbra, de 21.4.2009, processo 7864/07.5TBLRA-B.C1, todos publicados na internet, dgsi-itij). Acresce ainda, entre outras vantagens do recurso aos tribunais, a possibilidade de por via da citaçăo judicial o senhorio encurtar o prazo entăo previsto (na redaçăo original do NRAU) no art.º 1084.º n.º 3 do CC para a purgaçăo da mora (“a resoluçăo pelo senhorio, quando opere por comunicaçăo à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de três meses”), uma vez que em sede de açăo declarativa as somas devidas e a respetiva indemnizaçăo deveriam (e devem) ser prestadas até ao termo do prazo para a contestaçăo (art.º 1048.º n.º 1). Mais relevante ainda, a faculdade da purgaçăo da mora só poder ser exercida uma vez, em fase judicial (n.º 2 do art.º 1048.º), contrariamente ao que, à luz do regime original do NRAU, ocorria em sede extrajudicial.
Por outro lado, nos termos do art.º 930.º-B, n.º 1, al. a), do CPC de 1961, a oposiçăo a execuçăo para entrega de imóvel arrendado que se fundasse em título executivo extrajudicial suspenderia a execuçăo. […]
A imperatividade proclamada no art.º 1080.º do CC năo colidiria com a facultatividade do recurso à via extrajudicial para o senhorio resolver o contrato de arrendamento com base na mora no pagamento da renda superior a três meses […]
Se o senhorio resolvesse extrajudicialmente o contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas, e, em lugar de instaurar as competentes execuçơes para entrega de imóvel arrendado e pagamento das rendas e indemnizaçăo, instaurasse açăo de despejo, ou, afinal, açăo de apreciaçăo da cessaçăo do contrato de arrendamento por resoluçăo justificada, eventualmente cumulada com o pedido de condenaçăo do arrendatário no pagamento das rendas em dívida e indemnizaçăo e na entrega do locado, poderia, na falta de apresentaçăo de justificaçăo para tal por parte do autor e de contestaçăo pelo arrendatário, ser condenado em custas, nos termos do art.º 449.º, n.º 2, al. c) do CPC de 1961 (neste sentido, Rui Pinto, Manual da execuçăo e despejo, Coimbra Editora, 2013, p. 1099; Laurinda Gemas e outros, ob. cit., p. 49, nota 3).
A Lei n.º 31/2012, de 14.8, que reviu o NRAU, năo interferiu nesta polémica […]
Mas haverá que registar que, por força das alteraçơes introduzidas pela Lei n.º 31/2012 ao NRAU, desapareceram algumas das diferenças […]
Porém, na exposiçăo de motivos da Proposta de Lei n.º 38/XII, que esteve na origem da Lei n.º 31/2012, năo se anunciou nenhum propósito restritivo dos direitos do senhorio nesta matéria, nem se expressou especial motivaçăo no sentido do interesse público de poupança de recursos e de retirada dos litígios de arrendamento para fora dos tribunais.
Veja-se o que ali se contém: “A reforma do regime do arrendamento urbano que agora se propơe procura encontrar soluçơes simples, assentes em quatro dimensơes essenciais: (i) alteraçăo ao regime substantivo, vertido no Código Civil; (ii) revisăo do sistema de transiçăo dos contratos antigos para o novo regime; (iii) agilizaçăo do procedimento de despejo; e (iv) melhoria do enquadramento fiscal.” (…) “No que respeita ao regime processual, reconhece-se a necessidade e a premência de reforçar os mecanismos que garantam aos senhorios meios para reagir perante o incumprimento do contrato, assim tornando o mercado de arrendamento e o investimento na reabilitaçăo urbana para colocaçăo no mercado de arrendamento uma verdadeira opçăo para os proprietários e, mais relevantemente ainda, uma opçăo segura. Esta medida, concretizada mediante a agilizaçăo do procedimento de despejo, é fundamental para recuperar a confiança dos proprietários. Até à presente data, o senhorio tinha de recorrer a um processo de despejo apresentado junto de um tribunal. Mesmo dispondo de um título executivo nos termos previstos na Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, verificou-se que o tempo médio de duraçăo da correspondente acçăo executiva é ainda de dezasseis meses. Tal longa espera, muitas vezes acompanhada pelo năo recebimento das rendas, revelou ser um motivo de desincentivo para a colocaçăo de imóveis no mercado do arrendamento pelos proprietários, ou ainda para a elevaçăo do valor da renda como forma de controlo do risco. Para tornar o arrendamento num contrato mais seguro e com mecanismos que permitam reagir com eficácia ao incumprimento, é criado um novo procedimento extrajudicial que permite que a desocupaçăo do imóvel seja realizada de forma célere e eficaz, num prazo médio estimado de três meses, no caso de incumprimento do contrato por parte do arrendatário. Promove-se, por esta via, a confiança do senhorio no funcionamento ágil do mercado de arrendamento e o investimento neste sector da economia.”
Concentrando-nos na resoluçăo do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, constata-se que na sequência da revisăo do NRAU a lei deixou de atribuir à comunicaçăo da resoluçăo do contrato força de título executivo. A comunicaçăo de resoluçăo do contrato, que passou a admitir, nos contratos celebrados por escrito em que tenha sido convencionado o domicílio, a notificaçăo por carta registada com aviso de receçăo (al. d) do n.º 7 do art. 9.º) passará a instruir o procedimento especial de despejo, instituído pelo NRAU (revisto) no art.º 15.º. […]
O procedimento especial de despejo é pois, conforme o define o art.º 15.º n.º 1 do NRAU, um “meio processual que se destina a efetivar a cessaçăo do arrendamento, independentemente do fim a que se destina, quando o arrendatário năo desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convençăo entre as partes”.
Trata-se, seguindo a terminologia de Rui Pinto (obra citada, páginas 1160 e 1169), de um “processo especial sincrético”, isto é, declarativo e executivo, que se inicia com uma fase injuntória a que poderá seguir-se uma fase contenciosa, tendo em vista a formaçăo de um título executivo, prosseguindo, se for o caso, com uma fase executiva, destinada à realizaçăo coativa do direito à entrega do locado.
Deduzida válida oposiçăo ao requerimento de despejo, segue-se a fase contenciosa, que é “uma fase declarativa pura perante um juiz” (Rui Pinto, obra citada, pág. 1191) e que constitui, pois, um processo declarativo especial, a que se aplicarăo, nos termos do art.º 549.º n.º 1 do CPC, no que năo estiver especialmente regulado, as regras gerais e comuns do Código do Processo Civil e, se for o caso, as regras do processo comum (Rui Pinto, obra citada, pág. 1191).
Como se vê, o novo regime năo acarreta ou visa, propriamente, poupança de recursos económicos, nem o afastamento dos tribunais: cria novas estruturas, que tenderăo a servir com especial eficácia os legítimos interesses dos senhorios, mas sem se prescindir, se for necessário, da intervençăo dos tribunais para dirimirem os litígios emergentes do legítimo acautelamento dos interesses dos arrendatários.
Note-se que, apesar de instalada a aludida polémica, o art.º 1048.º manteve a referência genérica à possibilidade de o direito à resoluçăo do contrato por falta de pagamento da renda ser exercido judicialmente (n.º 1 do artigo), tendo inclusive sido aditado um n.º 4, que tem por objeto o exercício extrajudicial do direito à resoluçăo do contrato por falta de pagamento de renda e de aluguer […]
Permanece, pois, aberta a via para os senhorios, na livre e independente apreciaçăo dos seus interesses, optarem pelo meio judicial de prossecuçăo da defesa da sua situaçăo jurídica, mesmo no caso de incumprimento da obrigaçăo de pagamento de renda. Desde logo, quando se pretenda a apreciaçăo de cumulativos fundamentos de resoluçăo que năo possam operar extrajudicialmente […] Ou quando se desconheça o paradeiro do arrendatário […]
Defendendo, atualmente, que o procedimento especial de despejo “é apenas um meio processual colocado à disposiçăo do senhorio em alternativa à açăo de despejo, pelo que nada o impede de recorrer a essa acçăo em lugar de instaurar esse procedimento”, năo havendo até, nesse enquadramento, lugar à suportaçăo das custas pelo senhorio, nos termos do art. 535.º, n.º 2 c) do CPC, uma vez que o senhorio năo dispơe atualmente de qualquer título executivo prévio à açăo, só o podendo formar por recurso ao BNA, vide Luís Menezes Leităo, Arrendamento Urbano, 8.ª ediçăo, Almedina, p. 206, nota 212.
Dando relevância e operatividade ao interesse processual nesta temática, mas reconhecendo a necessidade de se atender às especificidades de cada caso em concreto, e considerando que é sempre admissível uma açăo de despejo fundamentada na falta de pagamento de rendas pelo arrendatário, devendo o demandante pagar as respetivas custas se já houver título executivo para esse pagamento e o arrendatário năo deduzir oposiçăo, vide Miguel Teixeira de Sousa, in Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, coordenaçăo de António Menezes Cordeiro, pp. 396 a 399.”
Na ponderaçăo do confronto efectuado neste acórdăo das normas pretéritas e vigentes, năo se vê como concluir de modo diverso, pois que em momento algum parece ter estado na intençăo do legislador arredar a possibilidade de os senhorios lançarem măo da acçăo judicial para resoluçăo do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, tanto mais que, na redacçăo actual do NRAU, como bem se evidencia da exposiçăo acima transcrita, a comunicaçăo ao arrendatário da resoluçăo do contrato năo constitui, por si só, título executivo, acarretando ainda a necessidade de intentar o procedimento especial de despejo, onde năo deixa de estar prevista a possibilidade de oposiçăo (cf. art. 15º-F do NRAU), pelo que năo se vislumbra fundamento, sequer de economia processual, que justifique impedir o recurso à acçăo judicial.
E também como se retira do acima exposto, năo é a circunstância de o senhorio ter procedido à comunicaçăo extrajudicial da resoluçăo do contrato que o impede de lançar măo da acçăo judicial (ainda que, se se reconhecer a prévia existência de um título executivo, deva aquele suportar as respectivas custas judiciais), havendo que aferir das circunstâncias específicas do caso concreto para avaliar do interesse processual na demanda – cf. Luís Menezes Leităo, Arrendamento Urbano, 9ª Ediçăo, pág. 208, nota 213, no sentido de que, nos termos do art. 15º, n.º 1 do NRAU, o procedimento especial de despejo é apenas um meio processual colocado à disposiçăo do senhorio em alternativa à acçăo de despejo, nada obstando a que o senhorio a esta recorra em lugar de instaurar esse procedimento; Fernando de Gravato Morais, Novo Regime do Arrendamento Comercial, 2011, 3ª Ediçăo, pp. 255-257; Manteigas Martins et al., Novo Regime do Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 2ª Ediçăo, pág. 28; cf. Elsa Sequeira Santos, Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) Volume I (Artigos 1º A 1250º), 2ª Ediçăo Revista e Actualizada, 2019, pág. 1367, no sentido de a circunstância de o senhorio poder efectuar a resoluçăo por via extrajudicial năo o priva da possibilidade de recorrer a uma acçăo judicial destinada àquela resoluçăo, quer como pedido isolado, quer em cumulaçăo com outros pedidos.
Assim, o que se impơe questionar é se os senhorios, podendo resolver e tendo resolvido o contrato mediante comunicaçăo extrajudicial enviada à arrendatária, afinal năo possuem interesse em agir relevante para recorrer à acçăo judicial.
Ou seja, há que determinar se havendo duas possibilidades de exercer um direito, o seu titular deve exercer primacialmente a via extrajudicial, incorrendo em falta de interesse em agir na utilizaçăo imediata da via judicial.
O Prof. Miguel Teixeira de Sousa define o interesse processual como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de um direito subjectivo através de um determinado meio processual, de modo que é aferido em funçăo da necessidade de tutela judicial e da adequaçăo do meio processual escolhido pelo autor
A necessidade da tutela judicial é aferida objectivamente perante o direito subjectivo alegado pelo autor. Assim, “o autor tem interesse processual se, da situaçăo descrita, resulta que essa parte necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito” – cf. O Interesse Processual na Acçăo Declarativa, AAFDL, 1989, pág. 9.
Além disso, a acçăo instaurada deve ser o meio judicial mais rápido, económico e adequado para obter a tutela visada. Logo, “a parte năo tem interesse processual quando pode obter o mesmo resultado visado com a propositura da acçăo através de um outro meio, processual ou extraprocessual, que importa menos custos económicos.” – cf. Prof. M. Teixeira de Sousa, op. cit., pág. 11.
Realce-se, contudo, que “a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, năo tem que ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realizaçăo da pretensăo formulada. Mas também năo bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situaçơes. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar măo do processo ou de fazer prosseguir a acçăo – mas năo mais que isso.” – cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ediçăo, pp. 180-181.
Atente-se nos seguintes factos:
·    A ré pagou a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer renda;
·    DS e a mulher, A., notificaram a ré, por notificaçăo judicial avulsa, da resoluçăo do contrato de arrendamento celebrado em 1 de Agosto de 1999, por falta de pagamento das rendas vencidas de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2013, notificaçăo que esta assinou, em 30 de Janeiro de 2014;
·    A ré recusou-se a entregar o locado aos autores e notificada para entregar as chaves, em 6 de Junho de 2017, năo deu resposta a tal interpelaçăo;
Tal como refere a recorrida A. nas suas contra-alegaçơes, a notificaçăo judicial avulsa foi promovida por DS e pela própria, tendo falecido, entretanto, o primeiro, em 25 de Julho de 2015, o que conduziu à habilitaçăo dos seus herdeiros, os aqui autores.
À partida, o óbito do senhorio năo afastaria a possibilidade de recurso ao procedimento especial de despejo por parte dos autores, demonstrada a sua qualidade de herdeiros e instruído o processo com o comprovativo da comunicaçăo prevista no art. 1084º, n.º 2 do C. Civil (cf. art. 15º, n.º 2, e) do NRAU).
De todo o modo, pode aceitar-se que essa circunstância tenha contribuído para a opçăo pelo recurso à via judicial.
Atente-se, também, que tal como a própria ré/recorrente reconheceu, desde logo, no seu articulado de contestaçăo, a notificaçăo foi por si assinada, considerando a própria que operou os seus efeitos com a inerente cessaçăo do contrato de arrendamento.
Todavia, tal năo obstou a que, decorridos mais de cinco anos, a ré permaneça no locado, năo obstante os pedidos de entrega do imóvel e chaves, a que sempre se recusou.
Ora, em termos de economia de meios e rapidez, năo se vislumbra que a opçăo pela acçăo judicial de despejo deva ser tida como mais onerosa ou desadequada, tendo em conta que, ainda que a via escolhida fosse a do procedimento especial de despejo, sempre seria possível a deduçăo de oposiçăo pela requerida, que, a ter lugar, determinaria a sua remessa à distribuiçăo, com eventual realizaçăo de audiência de julgamento e necessidade de prolaçăo de uma decisăo.
Certo é que, na ausência de oposiçăo, os autores poderiam obter mais rapidamente o título de desocupaçăo do locado e, subsequentemente, o despejo do locado. Contudo, năo é seguro que essa via viesse a se revelar mais célere e eficaz.
Além disso, como se menciona na decisăo recorrida, a necessidade de tutela judicial năo pode, de todo, ser negada, quando após a comunicaçăo da resoluçăo do contrato, a arrendatária persiste na ocupaçăo do locado, ao longo de cinco anos, sem o pagamento de qualquer renda.
Acresce que a notificaçăo judicial avulsa e o contrato de arrendamento năo contêm, por si só, força executiva, constituindo apenas pressuposto para a obtençăo de título de desocupaçăo do locado, este sim, passível de ser executado.
Aliás, nem o Código de Processo Civil veda o recurso à acçăo declarativa quando o demandante dispơe de título executivo, pois que prevê expressamente que estando já aquele munido de título executivo possa ainda assim instaurar uma acçăo declarativa para obter uma sentença que reconheça o seu direito, situaçăo em que apenas responsabiliza o autor pelas respectivas custas (cf. artigo 535º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do CPC).
Logo, para o próprio Código de Processo Civil existe interesse em agir ainda quando o autor já possua um título executivo, caso em que o releva é o interesse em obter os efeitos jurídicos consentâneos com o direito que a decisăo reconhece. “Por isso, o que afasta esse interesse năo é a existência ou a possibilidade de obtençăo deste outro título, há-se ser algo que em concreto dispense a acçăo em si mesma. E isso só pode ser evidentemente algo que coloque o autor na mesma posiçăo a que aspira com a acçăo judicial, na mesma posiçăo que resultará da existência de uma decisăo judicial que reconheça o direito.” – cf. acórdăo do Tribunal da Relaçăo do Porto de 17-10-2013, relator Aristides Rodrigues de Almeida, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/140021" target="_blank">2541/11.5TBOAZ.P1</a>.
Assim, havendo um manifesto, reiterado e ostensivo incumprimento por banda da ré/apelante das obrigaçơes que sobre si impendiam quer na vigência do contrato de arrendamento, quer após a sua cessaçăo, face à subsistente recusa de entrega do objecto locado e mantendo-se uma situaçăo fáctica incompatível com os efeitos jurídicos da comunicaçăo da resoluçăo do contrato de arrendamento, deve aceitar-se, à luz do critério da razoabilidade, justa medida e adequaçăo, que a parte năo inadimplente, os aqui autores/recorridos, tem interesse em agir bastante para poder recorrer a uma acçăo judicial que lhe reconheça o direito e condene a outra nas consequências do seu incumprimento – cf. no sentido apontado, para além dos acórdăos já referidos, os acórdăos do Tribunal da Relaçăo de Lisboa de 29-11-2018, relator António Valente, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/104652" target="_blank">19373/17.0T8SNT.L1-8</a> e de 28-05-2013, relatora Teresa de Sousa Henriques, processo n.º 317/12.1T2MFR.L1-1; acórdăo do Tribunal da Relaçăo do Porto de 26-03-2019, relatora Ana Lucinda Cabral, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/135019" target="_blank">1208/17.5T8MTS.P1</a>; acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Guimarăes de 25-10-2012, relatora Maria Luísa Ramos, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/196372" target="_blank">481/11.7TBCMN.G1</a>.
Assim, tal como se concluiu em sede de despacho saneador, improcede a excepçăo dilatória de falta de interesse processual em agir e improcede o recurso nesta parte (conclusơes 1. a 8.).
*
Da Existência de erro na definiçăo do Objecto do Litígio
Sustenta a apelante que o despacho que indeferiu a reclamaçăo apresentada relativamente à definiçăo do objecto do litígio deve ser revogado com fundamento no facto de ter invocado na contestaçăo a excepçăo de năo cumprimento do contrato de arrendamento, em virtude de falta de condiçơes de habitabilidade do bem locado, matéria que o Tribunal a quo năo integrou na determinaçăo do objecto do litígio e temas de prova, inviabilizando assim a produçăo de prova e a justa composiçăo do litígio; mais alega que ou o Tribunal conhecia desde logo da excepçăo invocada, o que năo fez, ou năo poderia deixar de levar a matéria ao objecto do litígio e aos temas de prova.
A recorrida alega que o fundamento do Tribunal a quo para a rejeiçăo da reclamaçăo assentou na circunstância de năo ter sido deduzido pedido reconvencional, para além do que, tendo a ré admitido que se manteve a residir no locado, năo se poderia deixar de concluir que incorreu em mora, pois o máximo a que poderia ter direito seria a uma reduçăo da renda e năo à suspensăo total dessa obrigaçăo.
Conforme resulta do relatório supra, a ré contestou a acçăo admitindo que deixou de pagar a renda, pelo menos desde Fevereiro de 2013, mas sustentando que lhe assistia o direito a recusar esse pagamento porque o locado năo apresenta as condiçơes mínimas de habitabilidade, o que coloca em causa a sua segurança e saúde, tendo solicitado a realizaçăo de obras, sem sucesso; mais referiu que, de todo o modo, sempre o valor da renda teria de ser reduzido em dois terços, durante todo o período pós Fevereiro de 2013, face ao avançado estado de degradaçăo do locado.
No decurso da audiência prévia realizada em 9 de Janeiro de 2019, o Tribunal a quo procedeu à identificaçăo do objecto do litígio e fixaçăo dos temas da prova nos seguintes termos:
“II - Identificaçăo do objecto do Litígio
Na presente acçăo impơe-se fundamentalmente apreciar as questơes atinentes à resoluçăo do contrato dos autos e seus efeitos e se a Ré pode ser responsabilizada pelo pagamento das quantias reclamadas pelos Autores.
*
III - Enunciaçăo dos Temas da Prova
Considerando o objecto do litígio acima identificado, os pedidos formulados, as posiçơes assumidas pelas partes nos respectivos articulados e as soluçơes plausíveis da questăo de direito controvertida, importa apurar: 
1. O valor da renda (ajustada) devida desde Dezembro de 2012 em diante.
2. Se alguma das rendas reclamadas na acçăo por referência ao período de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2013 (sendo que relativamente ao mais năo se mostra controvertido o seu năo pagamento) se mostram pagas e, em caso afirmativo, quais.”
Concedida a palavra às partes para se pronunciarem, pela ilustre defensora oficiosa da ré foi apresentada a seguinte reclamaçăo:
“A ré vem reclamar do objecto do litígio doutamente fixado por considerar que, tendo invocado em sede de contestaçăo a diminuiçăo do gozo do imóvel locado, em virtude do seu elevado grau de degradaçăo, deverá tal privaçăo do gozo impor uma diminuiçăo da renda mensal acordada com os autores, conforme pedido subsidiário efectuado na contestaçăo."
Os autores pronunciaram-se da seguinte forma:
“Os autores entendem que năo assiste razăo à ré por duas ordens de razơes. A primeira é que foram pagas rendas desde o início do contrato e até determinada altura, quando as condiçơes do locado eram do inteiro conhecimento da ré que com elas se conformou e aceitou. E, em segundo lugar, pelo facto de, aceitando-se o alegado pela ré, em tese, sempre esta deveria ter notificado o senhorio de tal facto e, bem assim, fixar o valor da renda que julgava ser devida e pagá-la.
Ao năo ter liquidado qualquer valor a título de rendas durante mais de cinco anos, parece-nos ser perfeitamente acessório discutir esta questăo em sede julgamento, uma vez que os autos fornecem todos os elementos para que seja proferida decisăo."
Pela senhora juíza a quo foi entăo proferido o seguinte despacho:
“A excepçăo de năo cumprimento do contrato pode ser deduzida numa acçăo de resoluçăo do arrendamento por falta de pagamento de rendas, se o arrendatário alega que suspendeu o pagamento de toda a renda por incumprimento do locador que exclua totalmente o uso da coisa ou que suspenda o pagamento de parte da renda por incumprimento do locador que exclua o uso parcial do locado e năo pode proceder se decorrer dos factos que a falta de pagamento das rendas ocorreu depois da questăo da privaçăo do uso.
No caso concreto, decorre da contestaçăo apresentada pela ré que:
a) a alegada privaçăo do gozo do locado é anterior à falta (admitida) de pagamento da totalidade da renda.
b) a privaçăo do gozo do locado năo é total considerando que a ré sempre se manteve, e mantém até ao presente, a residir no locado, năo obstante o que alega quanto ao estado do mesmo.
Por outro lado, como se constata da contestaçăo apresentada, a ré, relacionada com a questăo da invocada excepçăo do năo cumprimento do contrato, năo deduziu qualquer pedido reconvencional contra os autores.
Em face do exposto, entende-se que a matéria relacionada com a invocada excepçăo do năo cumprimento do contrato, năo deve integrar o objecto do litígio e, consequentemente, os respectivos temas da prova. 
Nestas condiçơes, indefere-se a reclamaçăo apresentada pela ré.”
Considerando irrelevante para a apreciaçăo do mérito da causa a suscitada questăo da excepçăo de năo cumprimento do contrato com fundamento na falta de condiçơes de habitabilidade do imóvel locado, o Tribunal a quo năo levou aos temas da prova a matéria de facto integrante da aludida excepçăo e sobre ela năo se pronunciou na fixaçăo dos factos provados e năo provados, vindo, a final, năo obstante isso [num iter processual menos rigoroso], a apreciar tal excepçăo, em sede de sentença final, para concluir, demonstrada a resoluçăo do contrato de arrendamento, que tal excepçăo nunca poderia funcionar porque o seu pressuposto é que o cumprimento da prestaçăo em falta ainda seja possível.
Dispơe o art. 596º, n.º 1 do CPC que “Proferido despacho saneador, quando a açăo houver de prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova.”
Este despacho tem por funçăo condensar o objecto do processo, tal como se previa no art. 511º do CPC de 1961, substituindo a anterior especificaçăo e questionário, precedendo os actos processuais de instruçăo, discussăo e sentença que se seguirăo, dado que a causa irá prosseguir.
Com efeito, a possibilidade de conhecimento do mérito da causa no despacho saneador estava consagrada no art. 510º, n.º 1, alínea b) do CPC de 1961, o que, a năo ocorrer, implicava que o juiz fixasse a base instrutória, seleccionando a matéria de facto relevante para a decisăo da causa, segundo as várias soluçơes plausíveis da questăo de direito, que deva considerar-se controvertida – cf. art. 511º, n.º 1 do CPC de 1961.
O actual art. 595º, n.º 1, b) do CPC de 2013 continua a contemplar a possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa, sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciaçăo, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepçăo peremptória.
Nessa decisăo, o tribunal deve observar, com as devidas adaptaçơes, as regras da sentença, designadamente as vertidas nos art.ºs 607º e 608º do CPC, declarando os factos que julga provados, tomando em consideraçăo os admitidos por confissăo judicial, por acordo expresso ou tácito das partes nos articulados, por funcionamento de presunçăo legal inilidível, por documento com força probatória bastante ou factos notórios ou de que o juiz tem conhecimento.
Com a consagraçăo deste regime processual visa-se evitar o protelamento de acçơes que logo nessa fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisăo e em que as partes apenas discordem da soluçăo jurídica da questăo a dirimir.
Contudo, apesar das razơes de celeridade subjacentes a tal opçăo, importa ter presente que deverá ser sempre concedida às partes a possibilidade de discussăo e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluçơes jurídicas muito mais abrangentes, ainda que se năo afigurem possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nesse momento processual.
Assim, quando năo seja clarividente a sua inutilidade ou năo se verifique a demonstraçăo dos factos necessários para a prolaçăo de uma decisăo sobre o objecto da causa, impondo-se antes uma clarificaçăo da factualidade alegada, o juiz deverá prosseguir a tramitaçăo processual até à realizaçăo de audiência de julgamento, posto que é este o momento processual adequado à efectiva compreensăo e ponderaçăo das soluçơes plausíveis de direito que no caso se possam configurar.
Assim é que, “este conhecimento só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisăo conscienciosa, segundo as várias soluçơes plausíveis de direito e năo apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa […] Havendo mais de uma causa de pedir ou mais de uma exceçăo peremptória, o conhecimento de uma delas, que prejudique as restantes, no despacho saneador, quer conduza ao termo do processo, quer a uma decisăo de mérito parcial […] só deve ter lugar quando haja uma muito razoável margem de segurança quanto à soluçăo a proferir, pois de outro modo o aparente ganho de economia processual pode resultar, pela via da revogaçăo da decisăo em recurso, em perda real na duraçăo do processos.”- cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Ediçăo, pp. 659-661.
Năo havendo lugar ao conhecimento imediato do mérito da causa, ao despacho saneador seguia-se, no CPC de 1961, a selecçăo dos factos assentes e dos carecidos de prova, que era feita a partir dos factos articulados pelas partes que integram a causa de pedir e os que fundam as excepçơes, ou seja, os factos principais da causa, sem prejuízo de poderem ser integrados na base instrutória, os factos acessórios e instrumentais, enquanto passíveis de constituírem a base de uma presunçăo legal ou um facto contrário ao presumido.
A selecçăo dos factos assentes e dos controvertidos era feita tendo em conta as várias soluçơes plausíveis da questăo de direito, ou seja, o juiz năo podia cingir-se aos factos essenciais ou relevantes para a soluçăo das questơes que, no seu entender, fossem pertinentes; “fosse qual fosse a sua visăo da que devia ser a decisăo jurídica da causa e o caminho para a atingir, o juiz tinha de seleccionar também os factos que interessassem a outras vias de soluçăo possível do litígio, tidas em conta as posiçơes assumidas pelas partes quanto à fundamentaçăo jurídica das pretensơes e excepçơes e as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questăo que elas levantassem” – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 667.
No actual CPC de 2013, o conteúdo do novo despacho que identifica o objecto do litígio e enuncia os temas de prova năo está descrito no diploma legal, embora se deva ter como constituindo uma “síntese narrativa do que se afigura ao tribunal como sendo a causa de pedir e o efeito pretendido pelo autor, as impugnaçơes do réu e as exceçơes opostas” – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, pág. 128.
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ensaiam a seguinte delimitaçăo de tal despacho:
“Em termos amplos […] dir-se-á que tal despacho consiste na explicitaçăo dos pedidos deduzidos sobre os quais haja controvérsia e das questơes fundamentais (causa de pedir e exceçơes) que se encontram controvertidas e servirăo para orientar, num momento subsequente, a actividade probatória. Ao exigir a nunciaçăo dos temas da prova, năo pretendeu o legislador que o juiz elencasse factos descritos segundo a sua perspectiva sobre a distribuiçăo do ónus da prova, mas apenas questơes genéricas […] que podem ser formuladas mediante o uso de qualificaçơes jurídicas e que têm como referência a causa de pedir as exceçơes alegadas pelas partes. […]
Entendendo que “[n]o regime processual que actualmente vigora, embora inexista [năo exista] norma que preveja a organizaçăo dos temas de prova em funçăo das soluçơes plausíveis de direito […], a organizaçăo daqueles temas deverá ter em consideraçăo as diversas soluçơes plausíveis das questơes de direito decidendas, pois só assim, por um lado, se respeitarăo as exigências de um processo jutos e equitativo, com respeito do princípio do contraditório, e, por outro lado, se evitarăo as delongas decorrentes da eventual necessidade de ampliaçăo da matéria de facto, no tribunal ad quem, por se ter desconsiderado uma ou várias vertentes fácticas daquelas questơes de direito […]” – cf. op. cit., pp. 670-671.
Rui Pinto refere que na identificaçăo do objecto do litígio o juiz terá de lhe dar uma provisória qualificaçăo jurídica, sendo que “o equilíbrio entre o dever de condensaçăo e a proibiçăo de antecipar a decisăo final, impơe, necessariamente, que a enunciaçăo das questơes em litígio seja feita segundo as várias soluçơes plausíveis da questăo de direito. […] Para tal, o juiz deve ponderar a relevância jurídica dos factos trazidos pelas partes e o quadro de relevância factual oficiosa que o novo artigo 5º, n.º 2 lhe concede, considerando as soluçơes jurídicas que săo, razoavelmente, suscitadas pela sua perspectiva provisória (onde já considera a jurisprudência e a doutrina), pela perspectiva do autor e pela perspectiva do réu.” – cf. op. cit., pp. 129-130.
Nos termos do n.º 2 do art. 596º do CPC, as partes podem reclamar do despacho de identificaçăo do objecto do litígio e enunciaçăo dos temas de prova, sendo que o despacho que incida sobre tais reclamaçơes apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisăo final (cf. n.º 3) – cf. art. 644º, n.º 3 do CPC.
Pode suceder, contudo, que nem se chegue a conhecer do recurso se se considerar que a infracçăo cometida năo irá modificar a decisăo final – cf. art. 660º do CPC -, sendo que a manutençăo do interesse na impugnaçăo de tal decisăo interlocutória depende da subsequente evoluçăo processual e do resultado que vier a ser declarado a final – cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 238.
Naturalmente que, tendo a apelante ficado vencida na presente causa, a eventual procedência do recurso relativo ao despacho que apreciou a reclamaçăo que apresentou quanto à identificaçăo do objecto do litígio e temas de prova, com eventual reconhecimento de năo terem sido atendidos factos essenciais ou nucleares de uma das pretensơes ou excepçơes deduzidas, acarretaria a anulaçăo da decisăo, revelando-se aqui o interesse da apelante na aludida impugnaçăo – cf. acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Guimarăes de 17-12-2014, relator Jorge Teixeira, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/195079" target="_blank">2777/12.1TBBRG.G1</a>.
Dado que a lei concede ao juiz uma grande margem de autonomia na elaboraçăo do despacho previsto no n.º 1 do art. 596º do CPC, os fundamentos para a sua impugnaçăo devem reconduzir-se, no essencial, àqueles que poderiam ser aduzidos contra as antigas selecçăo da matéria de facto assente e fixaçăo da base instrutória, isto é, deficiência, excesso ou obscuridade. “Assim, a deficiência consistirá na omissăo de pontos relevantes para a decisăo da causa; o excesso, na inclusăo de pontos irrelevantes, fora do objecto do processo ou năo introduzidos pelas partes, devendo sê-lo; a obscuridade, em redacçăo que suscite dúvidas quanto à identificaçăo do objecto do litígio ou ao enunciado dos temas de prova.” – J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 671.
Estando assente que a identificaçăo do objecto do litígio e a enunciaçăo dos temas de prova visam delimitar o âmbito da instruçăo, que deve ter lugar tendo por limites a causa de pedir e as excepçơes deduzidas, assegurando a livre investigaçăo e consideraçăo de toda a matéria relevante para a decisăo da causa, tal instruçăo deve ter por objecto os factos relevantes para o exame e decisăo da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova, e que constituem, impedem, modificam ou extinguem o direito controvertido, tal como decorre do vertido nos articulados.
Se os temas de prova delimitam o âmbito da instruçăo e se esta năo pode incidir sobre factos que năo os integrem, um eventual facto relevante para a decisăo da causa, năo ponderado ou năo incluído naquele despacho, necessariamente excluído da actividade probatória, determinará a anulaçăo da decisăo – cf. neste sentido, acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Guimarăes de 17-12-2014 acima mencionado.
Importa, assim, determinar se, na situaçăo dos autos, deveria ter sido incluída na identificaçăo do objecto do litígio a questăo atinente à excepçăo de năo cumprimento do contrato de arrendamento e, por consequência, se os factos a esta respeitantes deveriam ter sido considerados nos temas de prova e se, năo o tendo sido, se impơe revogar o despacho que indeferiu a reclamaçăo apresentada e daí retirar as inerentes consequências.
O arrendamento, como é entendimento uniforme, consiste num contrato sinalagmático, uma vez que a obrigaçăo do senhorio de proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa – cf. art.º 1931º, alínea b) do Código Civil - tem como correspectivo a obrigaçăo de pagar a renda ou aluguer – cf. art.º 1038º, alínea a) do mesmo diploma legal -, ou seja, ambos os contraentes ficam sujeitos a obrigaçơes recíprocas.
O pagamento da renda tem como correspectivo a cedência do local arrendado em condiçơes de ser plenamente fruído em vista do fim a que se destina.
Da qualificaçăo do arrendamento como contrato sinalagmático decorre a aplicaçăo de vários institutos jurídicos, entre os quais, a excepçăo de năo cumprimento do contrato, prevista nos artigos 428º e seguintes do Código Civil (constituindo a norma do art. 1040º do C. Civil, que prevê, no caso de o locatário, por motivos que lhe sejam estranhos, sofrer privaçăo ou diminuiçăo do gozo da coisa locada, a possibilidade de reduçăo da renda proporcional ao tempo da privaçăo ou diminuiçăo e à extensăo desta, um afloramento desse instituto).
O art. 428º, n.º 1 do C. Civil estatui: “Se nos contratos bilaterais năo houver prazos diferentes para o cumprimento das prestaçơes, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestaçăo enquanto o outro năo efectuar a que lhe cabe ou năo oferecer o seu cumprimento simultâneo.”
A excepçăo de năo cumprimento do contrato consiste, assim, na faculdade que, nos contratos bilaterais, cada uma das partes tem de recusar a sua prestaçăo enquanto a outra năo realizar ou năo oferecer a realizaçăo simultânea da sua prestaçăo, pelo que o respectivo exercício pressupơe a existência de um contrato bilateral, a simultaneidade do prazo (mais precisamente, que o excepcionante năo se encontre obrigado a cumprir antes da contraparte) e a mora de um dos contraentes – cf. Mário de Almeida Costa, Direito das Obrigaçơes, 6ª ediçăo, pp. 301-303.
Nos contratos em que a prestaçăo se protela no tempo, denominados de duraçăo ou de prestaçăo duradoura, ainda que o contraente deva efectuar a sua prestaçăo antes do outro pode lançar măo da excepçăo de năo cumprimento do contrato, baseando-se na inexecuçăo de prestaçơes anteriores, isto é, de prestaçơes correspondentes a outras que ele próprio anteriormente tenha efectuado, sendo que a maioria da jurisprudência tem aceitado a aplicabilidade da excepçăo de năo cumprimento do contrato no âmbito do arrendamento.
A exceptio non adimplenti contractus é, no essencial, um meio de conservaçăo do equilíbrio sinalagmático que deverá existir na génese e no próprio desenvolvimento dos contratos bilaterais, em especial no seu cumprimento, justificando-se quando ocorra uma ausência de correspondência ou de reciprocidade entre as obrigaçơes que, no âmbito dos contratos bilaterais, emergem para ambas as partes. Pressupơe, portanto, a existência de um nexo de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensăo da prestaçăo pelo excipiens, devendo ser alegada tendo em vista compelir à execuçăo da obrigaçăo correspectiva por parte do outro contraente.
A excepçăo de năo cumprimento do contrato constitui uma excepçăo dilatória de direito material, dado que năo exclui definitivamente o direito invocado pelo autor e porque se baseia em razơes de direito substantivo, recaindo sobre o arrendatário o respectivo ónus de alegaçăo e de prova conducente à demonstraçăo da exceptio que consubstancia, portanto, matéria de excepçăo.
Recaindo sobre o senhorio a obrigaçăo de realizar as obras de conservaçăo, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, nos termos do art. 1074º, n.º 1 do C. Civil, a falta de cumprimento dessa obrigaçăo pode constituir fundamento de resoluçăo do contrato pelo arrendatário – cf. art.º 1083º, n.º 1 do referido diploma legal.
No entanto, tem sido uniformemente entendido que, enquanto se mantiver no gozo do imóvel o arrendatário năo poderá utilizar a excepçăo de năo cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência da năo realizaçăo das obras, apenas podendo efectuar a reduçăo da renda na medida proporcional à privaçăo ou diminuiçăo do gozo.
Neste sentido se pronuncia, claramente, Luís Menezes Leităo: “Năo parece, porém, que, enquanto se mantiver no gozo do imóvel o arrendatário possa utilizar a excepçăo de năo cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência da năo realizaçăo das obras, apenas podendo efectuar a reduçăo da renda na medida proporcional à privaçăo ou diminuiçăo do gozo nos termos do art. 1040.” – cf. op. cit., pág. 80.
Fernando Gravato de Morais refere que a falta de pagamento só pode ser total se o prédio năo realizar cabalmente o fim a que é destinado, carecendo das qualidades asseguradas no início do contrato – cf. op. cit., pág. 226.
Com efeito, como se refere no acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Lisboa de 12-10-2017, relatora Ondina Carmo Alves, processo n.º 4058-12.ITJLSB.L1-2:
“[…] o sinalagma existente no contrato de arrendamento reside precisamente na obrigaçăo do arrendatário de pagar a renda, contraposta à obrigaçăo do locador de assegurar o gozo da coisa para o fim a que a mesma se destina. Daí que é pacífico o entendimento de que, enquanto o senhorio năo proceder à entrega do prédio arrendado, o arrendatário năo está obrigado a pagar a renda, podendo invocar a exceptio, de harmonia com o disposto no citado artigo 428º, nº 1 do C.C. Entregue ao locatário a coisa locada, o sinalagma em grande medida se desfaz, pois a obrigaçăo de proporcionar o gozo da coisa é uma obrigaçăo sem prazo ou dia certo para o seu cumprimento, ao passo que é a termo a do pagamento da renda […]
Já o mesmo năo se poderá afirmar com relaçăo à obrigaçăo de realizaçăo de obras na casa arrendada, por parte do senhorio e o ónus do arrendatário de habitar o arrendado. Inexiste entre eles a correspectividade ou sinalagma que justifique a invocaçăo da excepçăo de incumprimento do contrato.
É que, a obrigaçăo de pagar a renda imposta ao locatário, faz parte, como se disse, do sinalagma contratual, na medida em que se contrapơe à obrigaçăo fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo da coisa. Mas, o sinalagma liga entre si as obrigaçơes essenciais de cada contrato bilateral, mas năo todos os deveres de prestaçăo dele nascidos. Daí que, como se refere no Ac. STJ de 11.10.2007 (Pº 07B2934) […] “no arrendamento, o pagamento da renda tem como correspectivo a cedência do arrendado e năo também a obrigaçăo de nela fazer obras”.
De igual modo, refere-se no acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Coimbra de 22-05-2012, relator Fonte Ramos, processo n.º 3536/10.1TJCBR-A.C1 que:
“Nesta perspectiva das coisas e acolhendo a ideia do equilíbrio ou equivalência das prestaçơes, considera-se que o locatário só poderá suspender o pagamento da renda (de toda a renda) quando se trate de năo cumprimento do locador que exclua totalmente o gozo da coisa; no caso de privaçăo parcial do gozo, imputável ao locador, o locatário apenas poderá suspender o pagamento de parte da renda.
E tem vindo a ser admitido o funcionamento do instituto mesmo nas situaçơes de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso, fazendo intervir entăo, sempre que as circunstâncias concretas o imponham, o princípio da boa fé e a “válvula de segurança” do abuso do direito (art.ºs 762º, n.º 2, e 334º), donde o imperativo de uma apreciaçăo, em face das circunstâncias concretas, da gravidade do incumprimento, porquanto seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestaçăo, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. […]
Assim, a exceptio opera sempre que exista correspectividade entre a prestaçăo que uma das partes na relaçăo de locaçăo pretenda recusar e aquela cuja falta se invoca, pelo que se o locatário ficar privado do gozo da coisa, no todo ou em parte, por facto imputável ao locador, pode ele suspender, numa medida proporcional, a sua contraprestaçăo; o locatário tem a faculdade de invocar, nos termos gerais, a excepçăo da inadimplência, quando se verifique mero incumprimento parcial da correspectiva obrigaçăo do locador mas a boa fé exige, por um lado, que a falta assuma relevo significativo e, por outro lado, que se observe proporcionalidade ou adequaçăo entre essa falta e a recusa do excipiente.
O recurso do arrendatário a este instituto, se existe cumprimento defeituoso ou parcial pelo senhorio, apenas o dispensa de pagar a renda correspondente à falta verificada. A quantificaçăo pode tornar-se mais ou menos difícil. Quando as partes năo chegarem a acordo subsiste o remédio da consignaçăo em depósito, mas o arrendatário corre o risco de o seu cálculo pecar por defeito, depositando uma renda menor do que a devida - daí que se imponha uma actuaçăo ponderada e cautelosa sempre que se pretenda exercitar a excepçăo do năo cumprimento no assinalado contexto.
[…] tem-se afirmado que o arrendatário, no caso de mora do senhorio na reparaçăo dos defeitos, năo pode, mantendo-se no gozo da coisa locada, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno, sob pena de incorrer em mora. Pode, apenas, no caso de vício ou defeito, considerar năo cumprido o contrato, ou resolver o mesmo, se os defeitos assumirem a gravidade prevista na lei […]
Um arrendatário, em virtude de defeitos da coisa locada, mesmo em caso de mora do senhorio para a reparaçăo, năo pode, mantendo-se no gozo da coisa, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno. Năo o fazendo incorre em mora.”
No caso em apreço, face ao conteúdo da contestaçăo deduzida pela ré/apelante, era já seguro ao momento da prolaçăo do despacho de identificaçăo do objecto do litígio e enunciaçăo dos temas de prova que, por um lado, a própria reconhecia a cessaçăo do contrato de arrendamento operada por via da comunicaçăo extrajudicial da resoluçăo com fundamento em pagamento das rendas e, por outro, que admitia a falta de pagamento da totalidade da renda, pelo menos desde Fevereiro de 2013.
Ora, o funcionamento da excepçăo de năo cumprimento do contrato năo pode ter lugar verificada a cessaçăo do contrato, como é evidente.
Com efeito, decorre expressamente da norma vertida no n.º 1 do art. 428º do C. Civil, que a excepçăo procede “enquanto o outro năo efectuar a que lhe cabe”, ou seja, reporta-se a um incumprimento temporário, pois que se for incumprimento definitivo haverá lugar, se for culposo, ao direito à resoluçăo do contrato ou, năo sendo imputável ao contraente incumpridor, ocorre a impossibilidade năo culposa de cumprimento com extinçăo da obrigaçăo – cf. Ana Prata, Código Civil Anotado, Volume I, 2019, pág. 587.
Em consonância, reconhecendo a ré e aceitando que a cessaçăo do contrato de arrendamento ocorreu com a sua notificaçăo judicial avulsa, concretizada em 30 de Janeiro de 2014, e motivada por falta de pagamento de rendas vencidas, é evidente que năo podia nesta acçăo convocar a excepçăo de năo cumprimento do contrato de arrendamento imputando ao senhorio a falta de gozo do prédio para justificar seja o năo pagamento das rendas seja a reduçăo parcial do seu valor.
Pretendendo lançar măo do mecanismo vertido no art. 1040º do C. Civil deveria a ré tê-lo feito durante a vigência do contrato, sendo que a sua invocaçăo no âmbito da contestaçăo dependia da impugnaçăo da verificaçăo da cessaçăo do contrato, a que, de modo evidente, năo procedeu.
Neste contexto, há que concluir pela irrelevância da invocada excepçăo de năo cumprimento do contrato, invocaçăo que se afigura contraditória por referência ao conteúdo da contestaçăo e em face da expressa aceitaçăo da cessaçăo do contrato de arrendamento. Logo, irrelevante se afigura integrar tal excepçăo no objecto do litígio como questăo a dirimir e, por consequência, levar a respectiva matéria de facto à enunciaçăo dos temas de prova – cf. neste sentido, acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Guimarăes de 3-03-0216, relator Jorge Seabra, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/194363" target="_blank">328/14.2T8VCT.G1</a> – “[…] a exceptio non adimplenti contratus só tem cabimento lógico e legal nas hipóteses de mora (incumprimento temporário) ou cumprimento defeituoso pelo devedor, mas já năo se o devedor incorrer em situaçăo de incumprimento definitivo da sua prestaçăo, seja este incumprimento definitivo resultante da impossibilidade da realizaçăo da prestaçăo - impossibilidade fortuita ou impossibilidade imputável ao devedor -, seja resultante da recusa inequívoca e peremptória do devedor ao cumprimento, seja resultante do facto de, por via do retardamento no cumprimento, ter o credor perdido o seu interesse objectivo na prestaçăo em falta – arts. 801º, n.º 1 e 808º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil”.
Mas ainda que assim se năo entendesse sempre se teria de chegar a idêntica conclusăo considerando que, năo obstante as alegadas deficiências que a ré imputa ao locado, ainda que estas viessem a ser demonstradas, sempre se teria de ter como assente, tal como resulta da expressa confissăo da ré nesse sentido, que esta se manteve a residir no locado, como se mantém, e, mais do que isso, deixou de proceder ao pagamento da totalidade das rendas vencidas (ao menos desde Fevereiro de 2013), o que significa que as apontadas deficiências năo se apresentaram como absolutamente impeditivas de continuar a ter a residência no prédio arrendado.
In casu, e em conformidade com o acima expendido, năo era lícito à ré/apelante deixar de pagar a renda na sua totalidade e daí a verificaçăo da mora com as respectivas consequências, pois que, quando muito, a verificar-se privaçăo parcial do gozo do locado, poderia aquela reduzir a renda, năo sendo esta, claramente, a situaçăo pela qual optou.
Assim, porque a ré/recorrente deixou, conforme sua expressa admissăo na contestaçăo, de satisfazer a totalidade da renda devida quando o máximo a que eventualmente teria direito seria, face ao expendido, suspender o respectivo pagamento em medida proporcionada à privaçăo parcial do gozo, a conclusăo a extrair năo pode ser outra senăo a de que incorreu em mora, com as inerentes consequências, nomeadamente, a resoluçăo do contrato por falta de pagamento da renda – cf. neste sentido, acórdăos do Tribunal da Relaçăo de Coimbra de 22-05-2012, acima mencionado e de 6-06-2017, relator Vítor Amaral, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/118157" target="_blank">467/13.7TBSEI.C1</a>; acórdăo do Supremo Tribunal de Justiça de 9-12-2008, relator Nuno Cameira, processo n.º 08A3302; acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Guimarăes de 3-03-0216, relator Jorge Seabra, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/194363" target="_blank">328/14.2T8VCT.G1</a> , acórdăo do Tribunal da Relaçăo do Porto de 8-05-2017, relator Manuel Domingos Fernandes, processo n.º <a href="https://acordao.pt/decisoes/136617" target="_blank">3542/15.0T8GDM.P1</a>.
Como tal, ao momento da identificaçăo do objecto do litígio e enunciaçăo dos temas de prova, a improcedência da excepçăo de năo cumprimento do contrato afigurava-se manifesta, considerando as várias soluçơes plausíveis da questăo de direito, tornando inócua e inútil a sua inclusăo em tal despacho para efeitos de posterior instruçăo, o que se traduziria na prática de actos inúteis e contrários ao princípio da economia processual, porquanto, pelas razơes apontadas, ainda que se apurasse a existência das deficiências e a privaçăo parcial do gozo do locado, tal năo teria qualquer virtualidade para interferir no desfecho da causa.
Conclui-se, deste modo, pela improcedência do recurso que incidiu sobre o indeferimento da reclamaçăo que visou o despacho de identificaçăo do objecto do litígio e enunciaçăo dos temas de prova e pela respectiva manutençăo do decidido (improcedem as conclusơes 9. a 12. das alegaçơes da recorrente).
*
Da Nulidade da Sentença prevista no art. 615º, n.º 1, c), primeira parte do CPC
Por fim, veio a requerente suscitar a nulidade da sentença por oposiçăo entre os fundamentos e a decisăo, o que sustenta no facto de decorrer do estatuído no art. 1087º do Código Civil que a desocupaçăo do locado, nos termos do art. 1081º, é exigível após o decurso de um mês a contar da resoluçăo, se outro prazo năo for fixado judicialmente, pelo que, tendo sido referido na sentença que a ré se encontra desempregada e que năo lhe săo conhecidos rendimentos, seria expectável que o tribunal fixasse um prazo superior, pelo que face às consideraçơes tecidas na fundamentaçăo, a decisăo a proferir deveria ter sido necessariamente outra, pelo que deve a sentença, nessa parte, ser substituída, fixando-se um prazo nunca inferior a 90 dias para a desocupaçăo do locado.
A recorrida, nas suas contra-alegaçơes defende que năo se verifica tal vício tendo em conta que a recorrente năo paga renda há seis anos e que foi interpelada para entregar o locado e as chaves, em 2017, e, em abuso de direito, ainda pretende dispor de noventa dias para o desocupar.
A senhora juíza a quo, ao admitir o recurso, apreciou a nulidade arguida do seguinte modo:
“No caso sub judice, compulsado o teor da decisăo sob recurso, entende-se năo assistir qualquer razăo à recorrente e ser manifesto que năo se verifica a apontada (mas infundada) nulidade.
Com efeito, a decisăo recorrida, clara e linear, mostra-se fundamentada, especifica os fundamentos de facto e de direito, e como resulta da sua leitura tem os fundamentos de facto e de direito em concordância lógica com a decisăo (năo se verificando qualquer contradiçăo).
A ré manifestamente faz tábua rasa do que se decidiu, nomeadamente, na alínea a) [“Declarar que o contrato de arrendamento dos autos se extinguiu, pro via da comunicada resoluçăo, por notificaçăo avulsa, no dia 30.01.2014”].
Năo se vislumbrando em que se estriba para afirmar (erradamente, porém) que no caso concreto “nos termos do artigo 1087º, o prazo mínimo supletivo legal para desocupaçăo do locado é de 30 dias”.
Por outro lado, a discordância que evidencia face à sentença proferida năo autoriza concluir pela alegada, mas năo verificada, nulidade.
Em síntese, é manifesto que năo correr a alegada nulidade e que a ré apenas pretende, infundadamente (continuar a), protelar, de forma abusiva e censurável, a entrega do locado.
Flui do exposto que năo se verifica a invocada nulidade.
A recorrente pode discordar da decisăo proferida mas tal năo encerra a suscitada nulidade.
Nestas condiçơes, conclui-se que a decisăo recorrida năo padece da suscitada nulidade.”
As decisơes judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razơes: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violaçăo das regras próprias da sua elaboraçăo e estruturaçăo ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615.º do Código de Processo Civil (CPC).
Dispơe o art. 615º, n.º 1 do CPC o seguinte:
“1 - É nula a sentença quando:
a) Năo contenha a assinatura do juiz;
b) Năo especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisăo;
c) Os fundamentos estejam em oposiçăo com a decisăo ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisăo ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questơes que devesse apreciar ou conheça de questơes de que năo podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Para a correcta interpretaçăo deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.
Conforme impơe o n.º 3 do art.º 607º do CPC, o juiz deve especificar os fundamentos de facto e de direito da decisăo, observando o disposto quer nesse normativo, quer no respectivo n.º 4, ou seja, o juiz deve discriminar os factos que julga provados e os que julga năo provados, analisando criticamente as provas, o que fará em conformidade com a sua livre apreciaçăo (princípio da liberdade de julgamento – cf. n.º 5 do art. 607º do CPC).
É usual verificar-se alguma confusăo entre nulidade da decisăo e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentaçăo e uma fundamentaçăo insuficiente ou divergente da pretendida ou até entre a omissăo de pronúncia (quanto a alguma questăo ou pretensăo) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que săo convocados pelas partes – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luí Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaraçăo, 2018, pág. 737.
A oposiçăo entre os fundamentos e a decisăo corresponde a “uma «construçăo viciosa», ou seja, […] um vício lógico da sentença: o juiz elegeu deliberadamente determinada fundamentaçăo e seguiu um determinado raciocínio para extrair uma dada conclusăo; só que esses fundamentos conduziriam logicamente, năo ao resultado expresso na decisăo, mas a um resultado oposto a esse, isto é, existe contradiçăo entre os fundamentos e a decisăo (por ex., toda a lógica fundamentadora da sentença apontaria para a condenaçăo do réu no pagamento da dívida reclamada pelo autor, mas o juiz, na sentença, decreta, de modo contraditório, a absolviçăo do réu do pedido). Năo se trata de um qualquer simples erro material (em que o juiz escreveu coisa diversa da pretendia – contradiçăo ou oposiçăo aparente) mas de um erro lógico-discursivo em termos da obtençăo de um determinado resultado – contradiçăo ou oposiçăo real. O que năo se confunde, também, com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunçăo da hipótese concreta na correspondente fattispecie ou previsăo normativa abstracta, vício este só sindicável em sede de recurso jurisdicional.” – cf. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, pp. 370-371; J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 736.
A leitura da decisăo recorrida, no segmento ora convocado, viabiliza a afirmaçăo de que aquela năo enferma do vício que a apelante lhe imputa.
Com efeito, conforme realça a senhora juíza a quo no despacho em que conheceu de tal nulidade, há que atentar que a sentença proferida declarou ou reconheceu que o contrato de arrendamento para habitaçăo que vigorou entre as partes cessou por via da comunicaçăo extrajudicial promovida pelos senhorios e realizada em 30 de Janeiro de 2014, data em que a apelante assinou a notificaçăo judicial avulsa – cf. pontos 9. e 10. da matéria de facto provada e alínea a) do dispositivo.
Conforme decorre do disposto no art. 1081º do C. Civil, a regra geral é a de que a cessaçăo do contrato torna imediatamente exigível a entrega da coisa.
Ora, um dos desvios a essa regra dá-se no caso de resoluçăo do contrato de arrendamento, pois que, nessa situaçăo, o arrendatário năo pode conhecer o momento em que a cessaçăo vai ocorrer, pelo que năo se lhe pode exigir que esteja preparado para, a qualquer momento, abandonar o locado (como sucede, diversamente, na cessaçăo do contrato por decurso do prazo). Por essa razăo, a lei concede-lhe o prazo de um mês para a entrega do imóvel locado.
Quando a resoluçăo funciona por via judicial, a sentença pode fixar um prazo diferente para a desocupaçăo, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, podendo também as partes, ao abrigo da autonomia privada, acordar em prazo diferente para a desocupaçăo, sendo certo que o tempo que decorre entre a resoluçăo e a desocupaçăo obriga o arrendatário ao pagamento da renda, nos termos do n.º 1 do art. 1045º do C. Civil.
É neste enquadramento jurídico que tem de ser interpretada a decisăo em referência quando ali se refere:
“Finalmente, considerando que a ré se encontra desempregada e que năo lhe săo conhecidos rendimentos, concede-se à mesma o prazo de trinta dias, após o trânsito em julgado da presente sentença, para desocupar o locado (artigo 1087º do Código Civil).”
Foi exactamente por ter atendido às específicas circunstâncias económicas em que a ré/apelante se encontra – vertidas nos pontos 14. e 15. da matéria de facto provada – que a senhora juíza a quo, apesar de reconhecer que a cessaçăo do contrato se verificou em 30 de Janeiro de 2014 e, logo, que a entrega do locado deveria ter ocorrido no prazo de trinta dias depois dessa data, ainda assim, concedeu um novo prazo para a desocupaçăo, năo obstante o longo tempo decorrido em que é manifesto o incumprimento da ré dessa sua obrigaçăo.
Năo existe, assim, qualquer contradiçăo entre a fundamentaçăo aduzida e a concessăo de um acrescido período de trinta dias, que apenas se iniciará após o trânsito em julgado da decisăo, para a efectiva desocupaçăo do locado e que se mostra fundamentado nas frágeis circunstâncias económicas em que a apelante se encontra e que o tribunal recorrido entendeu relevar.
Improcede, também nesta parte, o recurso e as respectivas conclusơes 13. a 19..
Improcede, na íntegra, a apelaçăo devendo manter-se inalterada a decisăo recorrida.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisăo que julgue a acçăo ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, năo havendo vencimento da acçăo, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporçăo em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do RCP, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributaçăo própria.
A recorrente decai em toda a extensăo quanto à pretensăo que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
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IV – DECISĂO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secçăo do Tribunal de Relaçăo de Lisboa, em julgar improcedente a apelaçăo, mantendo, em consequência, a decisăo recorrida.
As custas ficam a cargo da apelante.
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Lisboa, 2 de Julho de 2019

Micaela Sousa
Maria Amélia Ribeiro
Dina Maria Monteiro

Acordam as Juízas na 7ª Secçăo do Tribunal da Relaçăo de Lisboa * I – RELATÓRIO A., B. e C. intentaram contra D. a presente acçăo declarativa de condenaçăo, com processo comum formulando os seguintes pedidos: · A declaraçăo de resoluçăo do contrato de arrendamento de duraçăo limitada, para habitaçăo celebrado em 1 de Agosto de 1999 com a ré e a condenaçăo desta a entregar aos autores o locado, livre e devoluto de pessoas e bens; · A condenaçăo da ré a pagar aos autores a quantia de € 21 997,08 (vinte e um mil novecentos e noventa e sete euros e oito cêntimos), por rendas vencidas e năo pagas desde Novembro de 2012, acrescida do valor das rendas que se vencerem até ao trânsito da sentença que decretar a resoluçăo do contrato de arrendamento; · A condenaçăo da ré no pagamento da quantia de € 698,32 (€ 349,16 x 2) por cada mês de atraso na entrega do locado livre e devoluto, a partir da data do trânsito em julgado da sentença que declare a resoluçăo do contrato e a ré se constitua em mora e até efectivo pagamento; · No caso de assim se năo entender, deve o pedido subsidiário ser julgado procedente e a ré ser condenada a entregar o locado desocupado de pessoas e bens e a pagar aos autores a quantia de € 5 586,56 (cinco mil quinhentos e oitenta e seis euros e cinquenta e seis cêntimos) correspondente a rendas năo pagas; · E ainda o valor de € 15 400,00, a título de indemnizaçăo por enriquecimento sem causa, a que acresce a quantia mensal de € 350,00, enquanto a ré mantiver a ocupaçăo ilícita do locado e até à sua efectiva entrega; · Tudo acrescido de juros à taxa legal contados do trânsito em julgado da sentença. Alegam para tanto, muito em síntese, o seguinte: · Os autores săo proprietários do segundo andar direito, destinado a habitaçăo, do prédio sito em ..., freguesia da Ameixoeira, Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 2... e actualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santa Clara sob o artigo 3..., direito que lhes adveio por óbito de DS, falecido em 25-07-2015 e de quem săo os únicos herdeiros; · O referido imóvel foi dado de arrendamento à ré pelo falecido DS por contrato de arrendamento de duraçăo limitada, celebrado em 1 de Agosto de 1999, com destino a habitaçăo, mediante o pagamento de renda mensal fixada no valor de Esc. 70 000$00 (€ 349,16); · A ré pagou a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer outra renda; · Ainda em vida do senhorio DS, este e a mulher, notificaram a ré, por notificaçăo judicial avulsa, comunicando a resoluçăo do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, notificaçăo que esta assinou em 30 de Janeiro de 2014, recusando-se, contudo, a entregar o locado livre e desocupado de pessoas e bens. A ré contestou suscitando a excepçăo de falta de interesse em agir dado o fundamento da resoluçăo ser a falta de pagamento de rendas, o que permite ao senhorio proceder à resoluçăo por comunicaçăo à contraparte, tanto mais que os autores procederam a tal comunicaçăo por notificaçăo judicial avulsa, assinada pela ré em 30 de Janeiro de 2014, tendo cessado entăo o contrato de arrendamento, pelo que deveriam recorrer ao Balcăo Nacional de Arrendamento para executar o despejo; mais invocou a prescriçăo das rendas que se venceram até Fevereiro de 2013, impugnando ainda o seu valor mensal. Alegou ainda que lhe assiste o direito de recusar o pagamento das rendas porque o locado năo apresenta as condiçơes mínimas de habitabilidade, o que coloca em causa a sua segurança e saúde, nomeadamente, apresenta os armários da cozinha apodrecidos, o autoclismo năo funciona, ausência de isolamento na caixa de estores, porta e janela, e as paredes e tectos têm manchas e fissuras e uma tomada eléctrica encontra-se em estado que coloca em causa a segurança da ré, pelo que o senhorio incumpriu o dever de lhe proporcionar o gozo do imóvel, sendo que solicitou a realizaçăo de obras, sem sucesso; mais refere que mesmo que assim năo se entenda, sempre o valor da renda terá de ser reduzido em dois terços, durante todo o período após Fevereiro de 2013, face ao avançado estado de degradaçăo do locado. Os autores apresentaram resposta sustentando ser admissível o recurso à acçăo judicial ainda que tenham ao seu dispor a via extrajudicial, para além do que à data da interpelaçăo feita năo tinham as obrigaçơes fiscais, imposto de selo, cumpridas, o que os impedia de recorrer ao Balcăo Nacional de Arrendamento; mais afastaram a falta de condiçơes de habitabilidade do locado e consideram essa invocaçăo um exercício abusivo de direito, refutando também a prescriçăo das rendas. Em 8 de Outubro de 2018 foi proferido despacho convidando a ré a concretizar a data em que ocorreram as situaçơes que impediram o gozo do imóvel e a data e modo pelo qual solicitou a realizaçăo de obras e ainda a extensăo da afectaçăo do gozo do imóvel. A ré acedeu ao convite, por requerimento de 22 de Outubro de 2018, esclarecendo que os problemas mencionados, com excepçăo do autoclismo, agravaram-se há cerca de sete/oito anos e desde entăo solicitou ao senhorio a realizaçăo de obras, através de contactos verbais, confirmando que reside no imóvel mas sente a sua segurança e saúde colocadas em causa. Os autores responderam ao novo articulado. Em 9 de Janeiro de 2019, teve lugar a realizaçăo de audiência prévia com prolaçăo do despacho saneador em que foram aferidos os pressupostos processuais relevantes, sendo julgadas improcedentes as excepçơes de falta de interesse em agir e de prescriçăo das rendas. Foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova. A ré reclamou do objecto do litígio por considerar que tendo invocado a diminuiçăo do gozo do imóvel locado decorrente do seu estado de degradaçăo, tal privaçăo do gozo deve determinar uma diminuiçăo da renda mensal, conforme pedido efectuado na contestaçăo. Foi proferido despacho que indeferiu a aludida reclamaçăo. Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, em 11 de Fevereiro de 2019, que decidiu a causa nos seguintes termos: “a) Declarar que o contrato de arrendamento dos autos se extinguiu, por via da comunicada resoluçăo, por notificaçăo avulsa, no dia 30.01.2014. b) Condenar a Ré a entregar aos Autores o locado livre e devoluto de pessoas e bens. c) Condenar a Ré a pagar aos Autores as rendas vencidas desde Novembro de 2012 e até Janeiro de 2014 (isto é, até à data da resoluçăo), no valor total de € 4.888,24 (quatro mil oitocentos e oitenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos). d) Condenar a Ré a pagar aos Autores as rendas peticionadas vencidas desde Fevereiro de 2014 (posteriormente à resoluçăo) a Fevereiro de 2018, na quantia total de € 17.108,84 (dezassete mil cento e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), a título de indemnizaçăo (artigo 1045º, n.º 1 do Código Civil) e, bem assim, as rendas vencidas desde Março de 2018 em diante e vincendas até à restituiçăo, igualmente a título de indemnizaçăo. e) Após o trânsito em julgado da presente sentença, caso a Ré năo proceda à entrega do locado livre de pessoas e bens, haverá lugar a indemnizaçăo do valor correspondente à renda em dobro, pelo atraso na restituiçăo da coisa (cfr. artigos artigos 1045º, n.º 2 do Código Civil). f) Condenar a Ré no pagamento aos Autores de juros de mora, à taxa legal, contados desde o trânsito em julgado da sentença. g) Conceder à Ré o prazo de trinta dias, após o trânsito em julgado da presente sentença, para desocupar o locado.” É desta sentença que a ré interpơe o presente recurso concluindo as suas alegaçơes do seguinte modo: 1. Nos presentes autos os Recorridos requereram como pedido principal a resoluçăo do contrato de arrendamento com falta de pagamento das rendas, a qual, nos termos do no n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, opera por comunicaçăo à contraparte, isto é, sem necessidade de intervençăo judicial (artigo 14.º n.º 1 do NRAU) 2. Ainda que se admita no seguimento de alguma jurisprudência, que a via extrajudicial é, apenas, uma via alternativa năo imperativa, que năo faz claudicar o recurso à via judicial, os presentes autos gozam de um atributo que escapam ao âmbito da citada jurisprudência, e tornam evidente a verificaçăo da excepçăo da falta de interesse em agir, que o Tribunal a quo julgou improcedente no douto despacho saneador. 3. É que, por notificaçăo avulsa assinada pela R. em 30.10.2014, os anteriores senhorios fizeram cessar o contrato de arrendamento 4. É manifesto que os Recorridos năo necessitavam do Tribunal para fazer valer o seu alegado direito de obter a resoluçăo do contrato de arrendamento uma vez que este já havia cessado, por via extrajudicial, e por opçăo dos Recorridos. 5. Deveriam, isto sim, os Recorridos recorrer de imediato ao BNA, para executar e tornar efectivo o despejo na sequência de cessaçăo do contrato que já tenha operado extrajudicialmente, como in casu sucedeu. 6. O procedimento especial de despejo é o meio processual que se destina, justamente, a efectivar a cessaçăo do arrendamento, quando o arrendatário năo desocupe o locado na data prevista na lei, e năo ficou demonstrado nos presentes autos qualquer dificuldade dos Recorridos no recurso ao citado procedimento, que pudesse justificar a presente acçăo. 7. Acresce que năo foi alegada e, por conseguinte, provada, qualquer dificuldade dos Recorridos no recurso ao citado procedimento, que pudesse justificar a presente acçăo. 8. Por conseguinte, o douto Tribunal, ao ter julgado improcedente a excepçăo da falta de interesse em agir dos Recorridos violou o disposto nos artigos 1083.º e 1084.º do Código Civil e artigo 14.º do NRAU. 9. Por outro lado, o Tribunal năo levou ao objecto do litígio a matéria invocada pela Recorrente na contestaçăo relacionada com a excepçăo do năo cumprimento do contrato de arrendamento (falta de condiçơes de habitabilidade do bem locado), indeferindo a Reclamaçăo apresentada pela Recorrente ao douto despacho, decisăo com a qual a Recorrente năo se conforma. 10. Ao năo permitir a inclusăo da referida questăo no objecto do litígio e temas da prova, o Tribunal comprometeu a boa e justa composiçăo do litígio, violando o artigo 596.º do CPC. 11. Ou o douto Tribunal, entendendo possuir todos os elementos necessários, conhecia expressamente da excepçăo deduzida, julgando-a improcedente, com os fundamentos invocados para indeferir a Reclamaçăo ou, năo o fazendo, como năo o fez, năo poderia deixar de levar a matéria ao objecto do litígio e aos temas da prova 12. Termos em que deverá ser revogado o despacho que indeferiu a reclamaçăo apresentada, acrescentando-se ao objecto do litígio a matéria relacionada com a invocada excepçăo do năo cumprimento, isto é, a falta de condiçơes do imóvel locado, submetendo-a à prova necessária. 13. Por fim, a douta Sentença é nula por oposiçăo entre os fundamentos e a decisăo. 14. Na verdade, nos termos do artigo 1087.º, o prazo mínimo supletivo legal para desocupaçăo do locado é de 30 dias. 15. Ora, consigna-se na douta Sentença que “considerando que a Ré se encontra desempregada e que năo lhe săo conhecidos rendimentos, concede-se à mesma um prazo de (….)” 16. Seria expectável que, com base em tais considerandos, o Tribunal fixasse um prazo superior ao supletivo, porém, limita-se a conceder “o prazo de trinta dias”, isto é, o prazo supletivo legal. 17. Pelo que, em bom rigor, as consideraçơes tecidas a propósito da situaçăo económica da Recorrente năo tiveram qualquer reflexo na decisăo do Tribunal, isto é, a fundamentaçăo foi num sentido e a decisăo foi noutro, o que acarreta a nulidade da Sentença nos termos e para efeitos do disposto na alínea c), do n. º1 do artigo 615.º do CPC. 18. Ainda que assim năo se entenda, o que por mero dever de patrocínio se concebe, e atentos os factos provados n.º 14 e 15.º, deverá a douta Sentença ser revogada por outra que conceda à Recorrente um prazo nunca inferior a 90 dias para a desocupaçăo do locado. 19. Em suma, a douta Sentença violou o disposto no artigo 1087.º do Código Civil e alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Nestes termos […] deve o presente Recurso ser julgado procedente. A recorrida A. apresentou contra-alegaçơes pugnando pela improcedência do recurso e manutençăo da decisăo recorrida. * II – OBJECTO DO RECURSO Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusơes do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questơes de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciaçăo das questơes suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusơes que năo encontrem correspondência com a motivaçăo - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª ediçăo, pág. 95. Na falta de especificaçăo logo no requerimento de interposiçăo, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, n.º 3, do CPC), contudo o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusơes da alegaçăo (cf. n.º 4 do mencionado art. 635º). Por isso, todas as questơes de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que năo sejam abordadas nas conclusơes da alegaçăo do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusơes, têm de se considerar decididas e arrumadas, năo podendo delas conhecer o tribunal de recurso. Por outro lado, como meio impugnatório de decisơes judiciais, o recurso visa tăo só suscitar a reapreciaçăo do decidido, năo podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questơes novas - cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., 2016, 3ª ediçăo, pág. 97. Assim, perante as conclusơes da alegaçăo da ré/apelante, o objecto do presente recurso consiste na apreciaçăo das seguintes questơes: · Da excepçăo de falta de interesse em agir; · Da existência ou năo de erro na definiçăo do objecto do litígio; · Nulidade da sentença por oposiçăo entre os fundamentos e oposiçăo. Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir. * III - FUNDAMENTAÇĂO 3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos: · Os Autores săo proprietários do segundo andar direito, destinado a habitaçăo, do prédio sito... freguesia da Ameixoeira, Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o Número 2... e actualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santa Clara sob o artigo 3..., que proveio dos artigos ...  da extinta freguesia da Ameixoeira, concelho de Lisboa. · O imóvel que integra o referido andar veio à posse dos Autores por sucessăo de DS, falecido em 25/07/2015, e de que săo os únicos herdeiros. · O locado foi dado de arrendamento à Ré pelo falecido DS e mulher A. por contrato de arrendamento de duraçăo limitada celebrado em 1 de Agosto de 1999. · O locado destinava-se a habitaçăo da Ré, năo podendo sublocar ou ceder, no todo ou em parte os direitos do arrendamento (cláusula quinta). · O contrato tinha a duraçăo de 5 anos, com início em 1 de Agosto de 1999 e termo aprazado para 1 de Agosto de 2004 (cláusula primeira). · O contrato renovar-se-ia automaticamente no fim do prazo, por períodos de três anos (cláusula primeira). · A renda estipulada foi de 70 000$00, que feita a conversăo equivale a € 349,16 (trezentos e quarenta e nove euros e dezasseis cêntimos) mensais e devia ser paga por depósito ou transferência bancária para a conta de que o senhorio era titular ou em casa do seu representante na Rua...  – Lisboa, no primeiro dia do mês anterior a que respeitar (cláusula segunda). · A Ré pagou a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer renda. · Ainda em vida do senhorio DS, este e a mulher, aqui Autora, notificaram a Ré, por notificaçăo judicial avulsa cuja cópia se mostra inserta a fls. 17 a 26, da resoluçăo do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas vencidas de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2013. · A Ré assinou a certidăo de notificaçăo avulsa em 30 de Janeiro de 2014. · Apesar da comunicada resoluçăo do contrato a Ré recusou-se a entregar aos Autores o locado livre e desocupado de pessoas e bens. · Em 6 de Junho de 2017 a Ré foi interpelada pelo Advogado dos Autores, em representaçăo destes, para entregar as chaves do andar e pagar as quantias peticionadas a título de rendas. · A Ré năo deu resposta à referida interpelaçăo. · A Ré encontra-se desempregada e năo lhe săo conhecidos rendimentos. · A Ré apresentou na Câmara Municipal de Lisboa pedidos de atribuiçăo de uma habitaçăo municipal que năo foram deferidos. * O Tribunal a quo considerou năo provados os seguintes factos: · O valor actual da renda cifra-se em € 320,00. · A Ré pagou todas as rendas relativas ao ano de 2013. * 3.2. – APRECIAÇĂO DO MÉRITO DO RECURSO Da excepçăo dilatória de falta de interesse em agir A ré/apelante vem recorrer da decisăo proferida em sede de despacho saneador que julgou improcedente a excepçăo de falta de interesse em agir que aquela havia suscitado na sua contestaçăo. Sustenta a apelante que sendo o fundamento do pedido de resoluçăo do contrato de arrendamento a falta de pagamento de rendas, a resoluçăo pelo senhorio opera por comunicaçăo à contraparte, nos termos dos art.ºs 1083º, n.º 3 e 1084º, n.º 2 do C. Civil, estando a acçăo de despejo reservada, nos termos do art. 14º, n.º 1 do Novo Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro e subsequentes alteraçơes), para as situaçơes em que a lei impơe o recurso à via judicial, pelo que năo existe qualquer interesse relevante dos autores/senhorios em interpor a presente acçăo, o que, neste caso, é mais evidente porque aqueles já fizeram cessar o contrato de arrendamento por notificaçăo judicial avulsa, assinada pela ré; assim, o procedimento especial de despejo era o meio processual próprio para efectivar a cessaçăo do arrendamento e a desocupaçăo do locado. A recorrida pugna pela manutençăo da decisăo recorrida entendendo que nada obsta à instauraçăo da acçăo judicial, tanto mais que os autores nesta năo săo os mesmos que procederam à notificaçăo judicial avulsa, para além de o contrato de arrendamento năo ter sido declarado na Repartiçăo de Finanças, sendo que o pagamento do imposto de selo é condiçăo de aceitaçăo do requerimento de procedimento especial de despejo. O Tribunal a quo apreciou a questăo em apreço nos seguintes termos: “Apreciando dir-se-á que a acçăo de despejo constituiu meio processual adequado para a cessaçăo coerciva, por iniciativa do senhorio, de um contrato de arrendamento válido (artigo 14º NRAU). A referida acçăo tem por fundamento qualquer facto que, segundo a lei, confira ao senhorio o direito de fazer cessar uma relaçăo jurídica de arrendamento e tem por escopo final obter a condenaçăo do arrendatário a despejar o prédio que gozava (Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. I, pág. 159 e Pais de Sousa, Extinçăo do Arrendamento Predial). O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) foi aprovado pela Lei n.º 6/2006 de 27/2, e entrou em vigor em 28/6/2006 (artigos 1º e 65º). Prescreve o artigo 59º n.º 1 do NRAU que este se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relaçơes contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias. À situaçăo sub judice é incontroverso que se aplica o Novo Regime do Arrendamento Urbano. Como bem se decidiu no douto Acórdăo da Relaçăo do Porto, datado de 17.10.2013 (disponível em www.dgsi.pt): “As disposiçơes do NRAU abandonaram a ideia que provinha da anterior legislaçăo segundo a qual a resoluçăo do contrato de arrendamento apenas podia ser decretada judicialmente (artigo 1084.º do Código Civil) e, em conformidade com essa inovaçăo, criaram um mecanismo para, nos casos de falta de pagamento da renda em caso de mora superior a três meses, o senhorio poder resolver o contrato mediante mera comunicaçăo extrajudicial ao arrendatário (artigo 9.º, n.º 7, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro). Esta inovaçăo legislativa logo suscitou uma dúvida: se, nesses casos, o senhorio apenas pode operar a resoluçăo através da comunicaçăo extrajudicial, năo possuindo interesse em agir para recorrer à acçăo de despejo ou se o senhorio, apesar de ter à sua disposiçăo àquela via, pode optar por lançar măo da acçăo de despejo possuindo para o efeito interesse em agir suficiente. (…) O facto de o n.º 1 do artigo 1084º do Código Civil prescrever que a resoluçăo do arrendamento pelo senhorio com fundamento na falta de pagamento de renda opera por comunicaçăo à contraparte, apenas pode significar que a declaraçăo de vontade no sentido da resoluçăo pode ser manifestada por essa forma, mas já năo que o senhorio esteja impedido de lançar măo de uma acçăo judicial manifestando essa vontade e pedindo a condenaçăo do réu nas consequências legais do seu incumprimento. (…) Assiste ao senhorio o direito a instaurar acçăo declarativa destinada à resoluçăo do contrato de arrendamento, mesmo quando tenha ao seu dispor a via da resoluçăo extrajudicial (art. 9º do CC)”. Aqui chegados, como é consabido o interesse processual é pressuposto do recurso a juízo (cfr. Lebre de Freitas, J. redinha e R. Pinto, “CPC Anotado”, vol. I, p. 14 e Ac. do STJ de 16/09/2008 in www.dgsi.pt). “O interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situaçăo subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessăo daquela tutela” (Miguel Teixeira de Sousa “As partes, o objecto e prova na acçăo declarativa”, p. 97). Como se refere no Ac. do STJ de 8/03/2001 “O interesse em agir constitui um pressuposto processual, que năo se confunde com a legitimidade processual”. A admissibilidade da demanda judicial está subordinada à subsistência de um interesse em agir. O interesse em agir, enquanto pressuposto processual, tem sido definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acçăo e constitui excepçăo dilatória inominada, de conhecimento oficioso, conducente à absolviçăo da instância (neste sentido vide Abrantes Geraldes, 1 Vol. (2ª Ed. Revista e ampliada, Almedina, pág. 262 e 263). Como se exarou no acórdăo da Relaçăo de Évora de 12.07.2007 (proc. n.º 728/07-3, consultável em www.dgsi.pt) há falta de interesse em agir quando, entre o objecto da acçăo e o pedido formulado năo existe uma situaçăo de conflitualidade sobre o direito, uma situaçăo e incerteza objectiva e grave sobre o direito de que o autor se arroga. A este propósito decidiu-se no acórdăo da Relaçăo de Lisboa de 21.11.2013 (proc. n.º 1303/12.7 TVLSB.L2-6, consultável em www.dgsi.pt), “o interesse em agir consiste na necessidade e utilidade da demanda considerado o sistema jurídico aplicável às pretensơes invocadas e a sua verificaçăo basta-se com a necessidade razoável do recurso à acçăo judicial. (…) Na jurisprudência é aceite que o interesse em agir é verdadeiro pressuposto processual inominado determinante da absolviçăo da instância. O interesse em agir consiste assim na verificaçăo da necessidade ou utilidade da acçăo, sendo definido como «a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acçăo». Em conclusăo, o interesse em agir consiste na necessidade e utilidade da demanda considerado o sistema jurídico aplicável às pretensơes invocadas. (…) O pressuposto processual em causa deve ser analisado também à luz dos princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça, em dupla vertente: consagraçăo e limitaçăo. (…) Em conclusăo, extrai-se dos princípios constitucionais e do desenho da acçăo enquanto adjectivaçăo do direito (artigo 2.º, n.º 2 do CPC) que o interesse em agir é pressuposto processual e que a sua verificaçăo se basta com a necessidade razoável do recurso à acçăo judicial a que alude o Professor Antunes Varela. Assim, tem de considerar-se que a sua verificaçăo ocorre sempre que o demandante tenha necessidade de intervençăo judicial para reconhecimento da sua pretensăo, tal como a configura no exercício da sua liberdade de conformaçăo da acçăo”. O que manifestamente se verifica na hipótese sub judice, sendo certo que a Ré se mantém até ao presente no locado e que os Autores pretendem efectivar o seu despejo, com a entrega do locado livre e devoluto de pessoas e bens e, bem assim, a sua condenaçăo no pagamento das quantias peticionadas. “Havendo uma relaçăo jurídica, havendo incumprimento por uma das suas partes das respectivas obrigaçơes, havendo do incumpridor a năo-aceitaçăo pacífica das consequências desse incumprimento e permanecendo a situaçăo fáctica aquém do que adviria dessas consequências, deve entender-se, de acordo com um critério de razoabilidade e de justa medida, que a parte năo inadimplente tem interesse em agir bastante para (optar) recorrer a uma acçăo judicial que lhe reconheça o direito e condene a outra nas consequências do seu incumprimento” (Acórdăo da Relaçăo do Porto, datado de 17.10.2013, já anteriormente citado). Pelo que, considerando a causa de pedir e os pedidos formulados pelos Autores, impơe-se concluir pela improcedência da suscitada excepçăo de falta de interesse em agir. I.I – 3 – Decisăo Termos em que, atentas as consideraçơes expendidas e as normas legais citadas, se julga improcedente a suscitada excepçăo de falta de interesse em agir.” O excurso doutrinário efectuado na decisăo recorrida a propósito do pressuposto processual de interesse em agir menciona correcta e adequadamente a sua configuraçăo jurídica, o que dispensa ulteriores consideraçơes a esse propósito, havendo apenas que analisar sobre o bem fundado da decisăo a que aportou, ou seja, se no caso em apreço se verifica por parte dos autores o interesse em agir ou na obtençăo da decisăo judicial que visam alcançar com a interposiçăo da presente acçăo. O contrato de arrendamento em apreço nos presentes autos foi celebrado em 1 de Agosto de 1999, na vigência do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo DL 321-B/90, de 15 de Outubro, com destino a habitaçăo e duraçăo limitada. O art. 26º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro estipula que os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes, ou seja, as atinentes à transmissăo por morte, denúncia e indemnizaçăo por benfeitorias. Nos termos do art. 12º, n.º 1 do C. Civil “a lei só dispơe para o futuro”. Porém, de acordo com o n.º 2 da referida disposiçăo legal “quando a lei dispơe sobre as condiçơes de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relaçơes jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relaçơes já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”. “As normas jurídicas que determinam o efeito de um facto (de que derivam, portanto, o nascimento, a extinçăo ou a modificaçăo de uma relaçăo jurídica) referem-se unicamente aos factos futuros dessa espécie. As normas que se referem imediatamente aos próprios direitos, isto é, abstraindo dos factos do seu nascimento ou da sua extinçăo, do seu conteúdo ou do seu efeito, da sua existência ou da sua inexistência, regem, igualmente, para o futuro, mas abrangem os direitos dessa índole já existentes” – cf. J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. I, pág. 47; no mesmo sentido, Fernando Baptista de Oliveira, Contratos Privados – Das Noçơes à Prática Judicial, Vol. I, pág. 143. O arrendamento configura uma situaçăo jurídica duradoura, como tal visada na segunda parte do n.º 2 do art. 12º do C. Civil. Por sua vez, o art. 59º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro dispơes que “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relaçơes contratuais constituídas que subsistam nessa data.” À data do início da vigência do aludido diploma – 28-06-2006 (art.ºs 1º e 65º do NRAU) -, o contrato de arrendamento objecto dos autos ainda se mantinha em vigor. A presente acçăo deu entrada em juízo em 16-02-2018, momento temporal que corresponde ao da sua instauraçăo (cf. art. 267º do CPC), data em que vigorava o regime instituído pelo NRAU. Estando em causa, na presente acçăo, normas de direito substantivo atinentes à extinçăo de um contrato de arrendamento, com fundamento na ocorrência de factos integrativos da sua resoluçăo, ter-se-á de considerar o regime em vigor à data da propositura da acçăo, que, no caso, năo é o correspondente ao que vigorava à data da celebraçăo do referido contrato, mas sim o decorrente do NRAU – cf. neste sentido, acórdăo do Supremo Tribunal de Justiça de 22-05-2012, relator Sousa Leite, processo n.º 66/03.1TBCLB.C2.S1 acessível na Base de dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestăo Financeira e Equipamentos da Justiça, IP, em www.dgsi.pt. Adianta-se, desde já, que se adere à jurisprudência maioritária segundo a qual, no âmbito do NRAU, a comunicaçăo extrajudicial prevista no art.º 1084º do Código Civil năo constitui o único meio ao dispor do senhorio para operar a resoluçăo do contrato de arrendamento, com fundamento no incumprimento pelo arrendatário da obrigaçăo de pagamento das rendas, tendo este, de igual modo, a possibilidade de, para esse efeito, recorrer à acçăo judicial (de despejo), competindo-lhe optar pelo uso de um ou outro meio, pois que esta se afigura ser este o entendimento que melhor se ajusta a uma interpretaçăo sistemática e teleológica das normas jurídicas que, no âmbito do novo RAU, se destinam a regulamentar o arrendamento e os modos da respectiva cessaçăo. Com efeito, da conjugaçăo do vertido no art. 9º, n.º 7 do NRAU, que define a forma por que deve concretizar-se a notificaçăo ou comunicaçăo (notificaçăo judicial avulsa ou contacto pessoal) para a cessaçăo do contrato de arrendamento, no art. 15º, n.º 1, e) (que determina que o comprovativo de tal comunicaçăo ou notificaçăo e o contrato de arrendamento passam a constituir título executivo) e no ar.º 14º, n.º 1 (que estipula que a acçăo de despejo constitui meio para fazer cessar a situaçăo jurídica do arrendamento) năo se pode concluir que resulta afastada a admissibilidade de recurso à via judicial para operar a resoluçăo do contrato de arrendamento com fundamento na situaçăo de mora por mais de três meses, por parte do arrendatário, no pagamento das rendas vencidas. Note-se que o próprio art. 1048º, n.º 1 do C. Civil, ao prever a caducidade do direito à resoluçăo do contrato por falta de pagamento da renda quando o locatário, até ao termo do prazo para a contestaçăo da acçăo declarativa, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnizaçăo, ressalva a sua aplicabilidade “quando for exercido judicialmente” o direito à resoluçăo do contrato por falta de pagamento da renda, ou seja, deixa claramente em aberto a possibilidade de o exercício do direito à resoluçăo poder ocorrer seja por via judicial, seja por via extrajudicial. Aliás, no ponto 1 da Exposiçăo de Motivos da Proposta de Lei do Arrendamento nº 34/X consta expressamente: “O regime jurídico mantém a sua imperatividade em sede de cessaçăo do contrato de arrendamento, mas abre-se a hipótese à resoluçăo extrajudicial do contrato, com base no incumprimento que, pela sua gravidade, ou consequências, torne inexigível à outra a manutençăo do arrendamento”, o que năo pode deixar de significar que, para além de se manterem os mecanismos pré-existente para a cessaçăo do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, se criou um novo mecanismo visando idêntico fim, mas com o objectivo de agilizar o procedimento relativo à resoluçăo do contrato e entrega do locado, que surge, năo em substituiçăo dos anteriormente existentes, mas em aditamento a estes. Atente-se na explanaçăo elucidativa que a este propósito consta do acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Lisboa de 11-12-2018, relator Jorge Leal, processo n.º 10901/17.1T8LSB.L1-2 (aliás, expressamente convocado pela recorrente, que dele, contudo, pretendeu retirar ilaçăo contrária, que năo se afigura consonante com o que dele consta): “É sabido que até à entrada em vigor do NRAU o contrato de locaçăo só podia ser resolvido pelo locador judicialmente (art.º 1047.º do Código Civil: “a resoluçăo do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do locatário tem de ser decretada pelo tribunal”; art.º 63.º n.º 2 do RAU – Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15.10: “a resoluçăo do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do arrendatário tem de ser decretada pelo tribunal”). O NRAU alterou o art.º 1047.º do Código Civil, aí passando a figurar que “a resoluçăo do contrato de locaçăo pode ser feita judicial ou extrajudicialmente.” No que concerne à resoluçăo do contrato de arrendamento urbano, passou a prever-se uma cláusula geral, que inclui a resoluçăo por iniciativa do senhorio, nos termos da qual “é fundamento de resoluçăo o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutençăo do arrendamento (…)” […] No que concerne, em particular, àquela que constitui a principal obrigaçăo do arrendatário, o pagamento da renda, no n.º 3 do art.º 1083.º do CC passou a estipular-se, na versăo inicial do NRAU, que “é inexigível ao senhorio a manutençăo do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas, ou de oposiçăo pelo arrendatário à realizaçăo de obra ordenada por autoridade pública (…)”. No que respeita a este último fundamento de resoluçăo do contrato de arrendamento, prescreve-se (na versăo inicial do NRAU) no n.º 1 do art.º 1084.º do CC que a resoluçăo pelo senhorio opera “por comunicaçăo à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigaçăo incumprida.” Essa comunicaçăo deverá ser efetuada mediante notificaçăo judicial avulsa ou mediante contacto pessoal de advogado, solicitador ou solicitador de execuçăo, sendo neste caso feita na pessoa do notificando, com entrega do duplicado da comunicaçăo e cópia dos documentos que a acompanhem, devendo o notificando assinar o original (art.º 9.º n.º 7 do NRAU – versăo inicial). Se o locado năo for desocupado (e o arrendatário năo se socorrer da faculdade de fazer abortar a resoluçăo pondo fim à mora no prazo de três meses após a comunicaçăo – n.º 3 do art.º 1084.º do CC – versăo inicial do NRAU) o senhorio poderá instaurar execuçăo para entrega de coisa certa, servindo de título executivo o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicaçăo ao arrendatário da declaraçăo de resoluçăo (alínea e) do n.º 1 do art.º 15.º do NRAU – versăo inicial). Quanto aos restantes fundamentos de resoluçăo do contrato de arrendamento urbano, a resoluçăo pelo senhorio será, conforme se enuncia no n.º 2 do art.º 1084.º do CC, “decretada nos termos da lei de processo”, ou seja, através de açăo que a lei continua a designar de “acçăo de despejo” (art.º 14.º do NRAU). Face a este regime discutia-se se o senhorio poderia peticionar a resoluçăo do contrato em açăo judicial nos casos de mora do inquilino, no pagamento de renda, superior a três meses, ou seja, em situaçơes em que, em princípio, poderia resolver o contrato pela via extra-judicial. O texto dos citados n.ºs 1 e 2 do artigo 1084.º do CC, conjugado com o disposto no art.º 1080.º do Código Civil – versăo original do NRAU (“o disposto nesta subsecçăo tem natureza imperativa, salvo disposiçăo em contrário”), assim como a redaçăo do n.º 1 do art.º 14.º do NRAU (“a acçăo de despejo destina-se a fazer cessar a situaçăo jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessaçăo, e segue a forma de processo comum declarativo”) podiam inculcar a ideia de que o senhorio năo podia recorrer aos tribunais para obter a declaraçăo judicial da resoluçăo do contrato de arrendamento nos casos ora referidos. Porém, tal interpretaçăo da lei deixaria em sérias dificuldades os senhorios nas situaçơes em que năo fosse possível interpelar o arrendatário para lhe comunicar a resoluçăo, nomeadamente por se desconhecer o seu paradeiro, assim como nos casos de contratos de arrendamento năo reduzidos a escrito […] Por outro lado, o próprio legislador concebia a existência de açơes em que o direito à resoluçăo do contrato por falta de pagamento da renda era exercido por meio de açăo declarativa, conforme decorria desde logo, do disposto no n.º 1 do art.º 1048.º do Código Civil – redaçăo original do NRAU […] De resto, mesmo no âmbito de normas atinentes ao arrendamento urbano, o legislador previa e subentendia como admissível a propositura de açơes de resoluçăo do contrato de arrendamento fundadas na falta de pagamento de renda. Assim, quando o arrendatário procede ao depósito de rendas, estipulava o n.º 2 do art.º 21.º do NRAU (redaçăo original) que “quando o senhorio pretenda resolver judicialmente o contrato por năo pagamento de renda, a impugnaçăo [do depósito] deve ser efectuada em acçăo de despejo a intentar no prazo de 20 dias contados da comunicaçăo do depósito ou, estando a acçăo já pendente, na resposta à contestaçăo ou em articulado específico, apresentado no prazo de 10 dias contados da comunicaçăo em causa, sempre que esta ocorra depois da contestaçăo.” Na exposiçăo de motivos da Proposta de Lei n.º 34/X, que deu origem ao NRAU (D.A.R. II série-A, n.º 47, de 07.09.2005, pág. 57 e seguintes), escreve-se, a propósito de normas propostas de conteúdo idêntico às que foram aprovadas, que “o regime jurídico mantém a sua imperatividade em sede de cessaçăo do contrato de arrendamento, mas abre-se a hipótese à resoluçăo extrajudicial do contrato, com base em incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutençăo do arrendamento. As partes devem pautar-se pelo princípio da boa fé no cumprimento das suas obrigaçơes, dando um sinal ao mercado de que o arrendatário deve primar pelo pontual cumprimento das obrigaçơes, prevendo-se expressamente que é sempre inexigível ao senhorio a manutençăo do arrendamento em caso de mora no pagamento da renda superior a três meses, ou de oposiçăo pelo arrendatário à realizaçăo de obra ordenada por autoridade pública. (…) A almejada agilizaçăo da actual acçăo de despejo passa pela separaçăo entre a fase declarativa e executiva, através da alteraçăo de algumas normas do Código de Processo Civil (CPC). (…). Tendo em vista aligeirar a pendência processual em fase declarativa, prevê-se a ampliaçăo do número de títulos executivos de formaçăo extrajudicial, possibilitando-se ao senhorio o recurso imediato à acçăo executiva, por exemplo, nos casos em que o contrato de arrendamento tenha cessado por revogaçăo das partes, por caducidade por decurso do prazo ou por oposiçăo à renovaçăo. De igual modo, nos casos de cessaçăo por resoluçăo com base em mora no pagamento da renda superior a três meses, ou devido a oposiçăo pelo arrendatário à realizaçăo de obra ordenada por autoridade pública, se o senhorio proceder à notificaçăo judicial do arrendatário, ou à sua notificaçăo através de contacto pessoal pelo advogado ou solicitador de execuçăo, e o arrendatário mantiver a sua conduta inadimplente, permite-se a formaçăo de título executivo extrajudicial.” Pese embora a almejada preocupaçăo de agilizaçăo processual, năo se surpreendia na exposiçăo de motivos a intençăo de retirar ao senhorio a possibilidade de, facultativamente, buscar junto dos tribunais a extinçăo do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas. Assim, caberia ao senhorio apreciar qual a via que melhor servia os seus interesses, sendo certo que, para além dos casos gritantes já supra enunciados, o recurso à via judicial seria desde logo mais aconselhável quando se antevisse controvérsia no que concerne à própria caraterizaçăo do contrato como sendo de arrendamento, à identificaçăo das respetivas partes, ao montante das rendas devidas, ou quando se pretendesse demandar igualmente o fiador do contrato de arrendamento, prevenindo eventual controvérsia acerca da formaçăo de título executivo contra este (no sentido da necessidade da acçăo declarativa, vide, v.g., acórdăos da Relaçăo de Lisboa, de 23.10.2007, processo 6397/2007-7 e de 08.11.2007, processo 7685/2007-6; entendendo que o título executivo complexo definido no art.º 15.º n.º 2 do NRAU pode ser utilizado para reclamar rendas também do fiador, v.g., acórdăo da Relaçăo de Lisboa, de 12.12.2008, processo 10790/2008-7 e acórdăo da Relaçăo de Coimbra, de 21.4.2009, processo 7864/07.5TBLRA-B.C1, todos publicados na internet, dgsi-itij). Acresce ainda, entre outras vantagens do recurso aos tribunais, a possibilidade de por via da citaçăo judicial o senhorio encurtar o prazo entăo previsto (na redaçăo original do NRAU) no art.º 1084.º n.º 3 do CC para a purgaçăo da mora (“a resoluçăo pelo senhorio, quando opere por comunicaçăo à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de três meses”), uma vez que em sede de açăo declarativa as somas devidas e a respetiva indemnizaçăo deveriam (e devem) ser prestadas até ao termo do prazo para a contestaçăo (art.º 1048.º n.º 1). Mais relevante ainda, a faculdade da purgaçăo da mora só poder ser exercida uma vez, em fase judicial (n.º 2 do art.º 1048.º), contrariamente ao que, à luz do regime original do NRAU, ocorria em sede extrajudicial. Por outro lado, nos termos do art.º 930.º-B, n.º 1, al. a), do CPC de 1961, a oposiçăo a execuçăo para entrega de imóvel arrendado que se fundasse em título executivo extrajudicial suspenderia a execuçăo. […] A imperatividade proclamada no art.º 1080.º do CC năo colidiria com a facultatividade do recurso à via extrajudicial para o senhorio resolver o contrato de arrendamento com base na mora no pagamento da renda superior a três meses […] Se o senhorio resolvesse extrajudicialmente o contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas, e, em lugar de instaurar as competentes execuçơes para entrega de imóvel arrendado e pagamento das rendas e indemnizaçăo, instaurasse açăo de despejo, ou, afinal, açăo de apreciaçăo da cessaçăo do contrato de arrendamento por resoluçăo justificada, eventualmente cumulada com o pedido de condenaçăo do arrendatário no pagamento das rendas em dívida e indemnizaçăo e na entrega do locado, poderia, na falta de apresentaçăo de justificaçăo para tal por parte do autor e de contestaçăo pelo arrendatário, ser condenado em custas, nos termos do art.º 449.º, n.º 2, al. c) do CPC de 1961 (neste sentido, Rui Pinto, Manual da execuçăo e despejo, Coimbra Editora, 2013, p. 1099; Laurinda Gemas e outros, ob. cit., p. 49, nota 3). A Lei n.º 31/2012, de 14.8, que reviu o NRAU, năo interferiu nesta polémica […] Mas haverá que registar que, por força das alteraçơes introduzidas pela Lei n.º 31/2012 ao NRAU, desapareceram algumas das diferenças […] Porém, na exposiçăo de motivos da Proposta de Lei n.º 38/XII, que esteve na origem da Lei n.º 31/2012, năo se anunciou nenhum propósito restritivo dos direitos do senhorio nesta matéria, nem se expressou especial motivaçăo no sentido do interesse público de poupança de recursos e de retirada dos litígios de arrendamento para fora dos tribunais. Veja-se o que ali se contém: “A reforma do regime do arrendamento urbano que agora se propơe procura encontrar soluçơes simples, assentes em quatro dimensơes essenciais: (i) alteraçăo ao regime substantivo, vertido no Código Civil; (ii) revisăo do sistema de transiçăo dos contratos antigos para o novo regime; (iii) agilizaçăo do procedimento de despejo; e (iv) melhoria do enquadramento fiscal.” (…) “No que respeita ao regime processual, reconhece-se a necessidade e a premência de reforçar os mecanismos que garantam aos senhorios meios para reagir perante o incumprimento do contrato, assim tornando o mercado de arrendamento e o investimento na reabilitaçăo urbana para colocaçăo no mercado de arrendamento uma verdadeira opçăo para os proprietários e, mais relevantemente ainda, uma opçăo segura. Esta medida, concretizada mediante a agilizaçăo do procedimento de despejo, é fundamental para recuperar a confiança dos proprietários. Até à presente data, o senhorio tinha de recorrer a um processo de despejo apresentado junto de um tribunal. Mesmo dispondo de um título executivo nos termos previstos na Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, verificou-se que o tempo médio de duraçăo da correspondente acçăo executiva é ainda de dezasseis meses. Tal longa espera, muitas vezes acompanhada pelo năo recebimento das rendas, revelou ser um motivo de desincentivo para a colocaçăo de imóveis no mercado do arrendamento pelos proprietários, ou ainda para a elevaçăo do valor da renda como forma de controlo do risco. Para tornar o arrendamento num contrato mais seguro e com mecanismos que permitam reagir com eficácia ao incumprimento, é criado um novo procedimento extrajudicial que permite que a desocupaçăo do imóvel seja realizada de forma célere e eficaz, num prazo médio estimado de três meses, no caso de incumprimento do contrato por parte do arrendatário. Promove-se, por esta via, a confiança do senhorio no funcionamento ágil do mercado de arrendamento e o investimento neste sector da economia.” Concentrando-nos na resoluçăo do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, constata-se que na sequência da revisăo do NRAU a lei deixou de atribuir à comunicaçăo da resoluçăo do contrato força de título executivo. A comunicaçăo de resoluçăo do contrato, que passou a admitir, nos contratos celebrados por escrito em que tenha sido convencionado o domicílio, a notificaçăo por carta registada com aviso de receçăo (al. d) do n.º 7 do art. 9.º) passará a instruir o procedimento especial de despejo, instituído pelo NRAU (revisto) no art.º 15.º. […] O procedimento especial de despejo é pois, conforme o define o art.º 15.º n.º 1 do NRAU, um “meio processual que se destina a efetivar a cessaçăo do arrendamento, independentemente do fim a que se destina, quando o arrendatário năo desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convençăo entre as partes”. Trata-se, seguindo a terminologia de Rui Pinto (obra citada, páginas 1160 e 1169), de um “processo especial sincrético”, isto é, declarativo e executivo, que se inicia com uma fase injuntória a que poderá seguir-se uma fase contenciosa, tendo em vista a formaçăo de um título executivo, prosseguindo, se for o caso, com uma fase executiva, destinada à realizaçăo coativa do direito à entrega do locado. Deduzida válida oposiçăo ao requerimento de despejo, segue-se a fase contenciosa, que é “uma fase declarativa pura perante um juiz” (Rui Pinto, obra citada, pág. 1191) e que constitui, pois, um processo declarativo especial, a que se aplicarăo, nos termos do art.º 549.º n.º 1 do CPC, no que năo estiver especialmente regulado, as regras gerais e comuns do Código do Processo Civil e, se for o caso, as regras do processo comum (Rui Pinto, obra citada, pág. 1191). Como se vê, o novo regime năo acarreta ou visa, propriamente, poupança de recursos económicos, nem o afastamento dos tribunais: cria novas estruturas, que tenderăo a servir com especial eficácia os legítimos interesses dos senhorios, mas sem se prescindir, se for necessário, da intervençăo dos tribunais para dirimirem os litígios emergentes do legítimo acautelamento dos interesses dos arrendatários. Note-se que, apesar de instalada a aludida polémica, o art.º 1048.º manteve a referência genérica à possibilidade de o direito à resoluçăo do contrato por falta de pagamento da renda ser exercido judicialmente (n.º 1 do artigo), tendo inclusive sido aditado um n.º 4, que tem por objeto o exercício extrajudicial do direito à resoluçăo do contrato por falta de pagamento de renda e de aluguer […] Permanece, pois, aberta a via para os senhorios, na livre e independente apreciaçăo dos seus interesses, optarem pelo meio judicial de prossecuçăo da defesa da sua situaçăo jurídica, mesmo no caso de incumprimento da obrigaçăo de pagamento de renda. Desde logo, quando se pretenda a apreciaçăo de cumulativos fundamentos de resoluçăo que năo possam operar extrajudicialmente […] Ou quando se desconheça o paradeiro do arrendatário […] Defendendo, atualmente, que o procedimento especial de despejo “é apenas um meio processual colocado à disposiçăo do senhorio em alternativa à açăo de despejo, pelo que nada o impede de recorrer a essa acçăo em lugar de instaurar esse procedimento”, năo havendo até, nesse enquadramento, lugar à suportaçăo das custas pelo senhorio, nos termos do art. 535.º, n.º 2 c) do CPC, uma vez que o senhorio năo dispơe atualmente de qualquer título executivo prévio à açăo, só o podendo formar por recurso ao BNA, vide Luís Menezes Leităo, Arrendamento Urbano, 8.ª ediçăo, Almedina, p. 206, nota 212. Dando relevância e operatividade ao interesse processual nesta temática, mas reconhecendo a necessidade de se atender às especificidades de cada caso em concreto, e considerando que é sempre admissível uma açăo de despejo fundamentada na falta de pagamento de rendas pelo arrendatário, devendo o demandante pagar as respetivas custas se já houver título executivo para esse pagamento e o arrendatário năo deduzir oposiçăo, vide Miguel Teixeira de Sousa, in Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, coordenaçăo de António Menezes Cordeiro, pp. 396 a 399.” Na ponderaçăo do confronto efectuado neste acórdăo das normas pretéritas e vigentes, năo se vê como concluir de modo diverso, pois que em momento algum parece ter estado na intençăo do legislador arredar a possibilidade de os senhorios lançarem măo da acçăo judicial para resoluçăo do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, tanto mais que, na redacçăo actual do NRAU, como bem se evidencia da exposiçăo acima transcrita, a comunicaçăo ao arrendatário da resoluçăo do contrato năo constitui, por si só, título executivo, acarretando ainda a necessidade de intentar o procedimento especial de despejo, onde năo deixa de estar prevista a possibilidade de oposiçăo (cf. art. 15º-F do NRAU), pelo que năo se vislumbra fundamento, sequer de economia processual, que justifique impedir o recurso à acçăo judicial. E também como se retira do acima exposto, năo é a circunstância de o senhorio ter procedido à comunicaçăo extrajudicial da resoluçăo do contrato que o impede de lançar măo da acçăo judicial (ainda que, se se reconhecer a prévia existência de um título executivo, deva aquele suportar as respectivas custas judiciais), havendo que aferir das circunstâncias específicas do caso concreto para avaliar do interesse processual na demanda – cf. Luís Menezes Leităo, Arrendamento Urbano, 9ª Ediçăo, pág. 208, nota 213, no sentido de que, nos termos do art. 15º, n.º 1 do NRAU, o procedimento especial de despejo é apenas um meio processual colocado à disposiçăo do senhorio em alternativa à acçăo de despejo, nada obstando a que o senhorio a esta recorra em lugar de instaurar esse procedimento; Fernando de Gravato Morais, Novo Regime do Arrendamento Comercial, 2011, 3ª Ediçăo, pp. 255-257; Manteigas Martins et al., Novo Regime do Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 2ª Ediçăo, pág. 28; cf. Elsa Sequeira Santos, Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) Volume I (Artigos 1º A 1250º), 2ª Ediçăo Revista e Actualizada, 2019, pág. 1367, no sentido de a circunstância de o senhorio poder efectuar a resoluçăo por via extrajudicial năo o priva da possibilidade de recorrer a uma acçăo judicial destinada àquela resoluçăo, quer como pedido isolado, quer em cumulaçăo com outros pedidos. Assim, o que se impơe questionar é se os senhorios, podendo resolver e tendo resolvido o contrato mediante comunicaçăo extrajudicial enviada à arrendatária, afinal năo possuem interesse em agir relevante para recorrer à acçăo judicial. Ou seja, há que determinar se havendo duas possibilidades de exercer um direito, o seu titular deve exercer primacialmente a via extrajudicial, incorrendo em falta de interesse em agir na utilizaçăo imediata da via judicial. O Prof. Miguel Teixeira de Sousa define o interesse processual como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de um direito subjectivo através de um determinado meio processual, de modo que é aferido em funçăo da necessidade de tutela judicial e da adequaçăo do meio processual escolhido pelo autor A necessidade da tutela judicial é aferida objectivamente perante o direito subjectivo alegado pelo autor. Assim, “o autor tem interesse processual se, da situaçăo descrita, resulta que essa parte necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito” – cf. O Interesse Processual na Acçăo Declarativa, AAFDL, 1989, pág. 9. Além disso, a acçăo instaurada deve ser o meio judicial mais rápido, económico e adequado para obter a tutela visada. Logo, “a parte năo tem interesse processual quando pode obter o mesmo resultado visado com a propositura da acçăo através de um outro meio, processual ou extraprocessual, que importa menos custos económicos.” – cf. Prof. M. Teixeira de Sousa, op. cit., pág. 11. Realce-se, contudo, que “a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, năo tem que ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realizaçăo da pretensăo formulada. Mas também năo bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situaçơes. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar măo do processo ou de fazer prosseguir a acçăo – mas năo mais que isso.” – cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ediçăo, pp. 180-181. Atente-se nos seguintes factos: · A ré pagou a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer renda; · DS e a mulher, A., notificaram a ré, por notificaçăo judicial avulsa, da resoluçăo do contrato de arrendamento celebrado em 1 de Agosto de 1999, por falta de pagamento das rendas vencidas de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2013, notificaçăo que esta assinou, em 30 de Janeiro de 2014; · A ré recusou-se a entregar o locado aos autores e notificada para entregar as chaves, em 6 de Junho de 2017, năo deu resposta a tal interpelaçăo; Tal como refere a recorrida A. nas suas contra-alegaçơes, a notificaçăo judicial avulsa foi promovida por DS e pela própria, tendo falecido, entretanto, o primeiro, em 25 de Julho de 2015, o que conduziu à habilitaçăo dos seus herdeiros, os aqui autores. À partida, o óbito do senhorio năo afastaria a possibilidade de recurso ao procedimento especial de despejo por parte dos autores, demonstrada a sua qualidade de herdeiros e instruído o processo com o comprovativo da comunicaçăo prevista no art. 1084º, n.º 2 do C. Civil (cf. art. 15º, n.º 2, e) do NRAU). De todo o modo, pode aceitar-se que essa circunstância tenha contribuído para a opçăo pelo recurso à via judicial. Atente-se, também, que tal como a própria ré/recorrente reconheceu, desde logo, no seu articulado de contestaçăo, a notificaçăo foi por si assinada, considerando a própria que operou os seus efeitos com a inerente cessaçăo do contrato de arrendamento. Todavia, tal năo obstou a que, decorridos mais de cinco anos, a ré permaneça no locado, năo obstante os pedidos de entrega do imóvel e chaves, a que sempre se recusou. Ora, em termos de economia de meios e rapidez, năo se vislumbra que a opçăo pela acçăo judicial de despejo deva ser tida como mais onerosa ou desadequada, tendo em conta que, ainda que a via escolhida fosse a do procedimento especial de despejo, sempre seria possível a deduçăo de oposiçăo pela requerida, que, a ter lugar, determinaria a sua remessa à distribuiçăo, com eventual realizaçăo de audiência de julgamento e necessidade de prolaçăo de uma decisăo. Certo é que, na ausência de oposiçăo, os autores poderiam obter mais rapidamente o título de desocupaçăo do locado e, subsequentemente, o despejo do locado. Contudo, năo é seguro que essa via viesse a se revelar mais célere e eficaz. Além disso, como se menciona na decisăo recorrida, a necessidade de tutela judicial năo pode, de todo, ser negada, quando após a comunicaçăo da resoluçăo do contrato, a arrendatária persiste na ocupaçăo do locado, ao longo de cinco anos, sem o pagamento de qualquer renda. Acresce que a notificaçăo judicial avulsa e o contrato de arrendamento năo contêm, por si só, força executiva, constituindo apenas pressuposto para a obtençăo de título de desocupaçăo do locado, este sim, passível de ser executado. Aliás, nem o Código de Processo Civil veda o recurso à acçăo declarativa quando o demandante dispơe de título executivo, pois que prevê expressamente que estando já aquele munido de título executivo possa ainda assim instaurar uma acçăo declarativa para obter uma sentença que reconheça o seu direito, situaçăo em que apenas responsabiliza o autor pelas respectivas custas (cf. artigo 535º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do CPC). Logo, para o próprio Código de Processo Civil existe interesse em agir ainda quando o autor já possua um título executivo, caso em que o releva é o interesse em obter os efeitos jurídicos consentâneos com o direito que a decisăo reconhece. “Por isso, o que afasta esse interesse năo é a existência ou a possibilidade de obtençăo deste outro título, há-se ser algo que em concreto dispense a acçăo em si mesma. E isso só pode ser evidentemente algo que coloque o autor na mesma posiçăo a que aspira com a acçăo judicial, na mesma posiçăo que resultará da existência de uma decisăo judicial que reconheça o direito.” – cf. acórdăo do Tribunal da Relaçăo do Porto de 17-10-2013, relator Aristides Rodrigues de Almeida, processo n.º 2541/11.5TBOAZ.P1. Assim, havendo um manifesto, reiterado e ostensivo incumprimento por banda da ré/apelante das obrigaçơes que sobre si impendiam quer na vigência do contrato de arrendamento, quer após a sua cessaçăo, face à subsistente recusa de entrega do objecto locado e mantendo-se uma situaçăo fáctica incompatível com os efeitos jurídicos da comunicaçăo da resoluçăo do contrato de arrendamento, deve aceitar-se, à luz do critério da razoabilidade, justa medida e adequaçăo, que a parte năo inadimplente, os aqui autores/recorridos, tem interesse em agir bastante para poder recorrer a uma acçăo judicial que lhe reconheça o direito e condene a outra nas consequências do seu incumprimento – cf. no sentido apontado, para além dos acórdăos já referidos, os acórdăos do Tribunal da Relaçăo de Lisboa de 29-11-2018, relator António Valente, processo n.º 19373/17.0T8SNT.L1-8 e de 28-05-2013, relatora Teresa de Sousa Henriques, processo n.º 317/12.1T2MFR.L1-1; acórdăo do Tribunal da Relaçăo do Porto de 26-03-2019, relatora Ana Lucinda Cabral, processo n.º 1208/17.5T8MTS.P1; acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Guimarăes de 25-10-2012, relatora Maria Luísa Ramos, processo n.º 481/11.7TBCMN.G1. Assim, tal como se concluiu em sede de despacho saneador, improcede a excepçăo dilatória de falta de interesse processual em agir e improcede o recurso nesta parte (conclusơes 1. a 8.). * Da Existência de erro na definiçăo do Objecto do Litígio Sustenta a apelante que o despacho que indeferiu a reclamaçăo apresentada relativamente à definiçăo do objecto do litígio deve ser revogado com fundamento no facto de ter invocado na contestaçăo a excepçăo de năo cumprimento do contrato de arrendamento, em virtude de falta de condiçơes de habitabilidade do bem locado, matéria que o Tribunal a quo năo integrou na determinaçăo do objecto do litígio e temas de prova, inviabilizando assim a produçăo de prova e a justa composiçăo do litígio; mais alega que ou o Tribunal conhecia desde logo da excepçăo invocada, o que năo fez, ou năo poderia deixar de levar a matéria ao objecto do litígio e aos temas de prova. A recorrida alega que o fundamento do Tribunal a quo para a rejeiçăo da reclamaçăo assentou na circunstância de năo ter sido deduzido pedido reconvencional, para além do que, tendo a ré admitido que se manteve a residir no locado, năo se poderia deixar de concluir que incorreu em mora, pois o máximo a que poderia ter direito seria a uma reduçăo da renda e năo à suspensăo total dessa obrigaçăo. Conforme resulta do relatório supra, a ré contestou a acçăo admitindo que deixou de pagar a renda, pelo menos desde Fevereiro de 2013, mas sustentando que lhe assistia o direito a recusar esse pagamento porque o locado năo apresenta as condiçơes mínimas de habitabilidade, o que coloca em causa a sua segurança e saúde, tendo solicitado a realizaçăo de obras, sem sucesso; mais referiu que, de todo o modo, sempre o valor da renda teria de ser reduzido em dois terços, durante todo o período pós Fevereiro de 2013, face ao avançado estado de degradaçăo do locado. No decurso da audiência prévia realizada em 9 de Janeiro de 2019, o Tribunal a quo procedeu à identificaçăo do objecto do litígio e fixaçăo dos temas da prova nos seguintes termos: “II - Identificaçăo do objecto do Litígio Na presente acçăo impơe-se fundamentalmente apreciar as questơes atinentes à resoluçăo do contrato dos autos e seus efeitos e se a Ré pode ser responsabilizada pelo pagamento das quantias reclamadas pelos Autores. * III - Enunciaçăo dos Temas da Prova Considerando o objecto do litígio acima identificado, os pedidos formulados, as posiçơes assumidas pelas partes nos respectivos articulados e as soluçơes plausíveis da questăo de direito controvertida, importa apurar: 1. O valor da renda (ajustada) devida desde Dezembro de 2012 em diante. 2. Se alguma das rendas reclamadas na acçăo por referência ao período de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2013 (sendo que relativamente ao mais năo se mostra controvertido o seu năo pagamento) se mostram pagas e, em caso afirmativo, quais.” Concedida a palavra às partes para se pronunciarem, pela ilustre defensora oficiosa da ré foi apresentada a seguinte reclamaçăo: “A ré vem reclamar do objecto do litígio doutamente fixado por considerar que, tendo invocado em sede de contestaçăo a diminuiçăo do gozo do imóvel locado, em virtude do seu elevado grau de degradaçăo, deverá tal privaçăo do gozo impor uma diminuiçăo da renda mensal acordada com os autores, conforme pedido subsidiário efectuado na contestaçăo." Os autores pronunciaram-se da seguinte forma: “Os autores entendem que năo assiste razăo à ré por duas ordens de razơes. A primeira é que foram pagas rendas desde o início do contrato e até determinada altura, quando as condiçơes do locado eram do inteiro conhecimento da ré que com elas se conformou e aceitou. E, em segundo lugar, pelo facto de, aceitando-se o alegado pela ré, em tese, sempre esta deveria ter notificado o senhorio de tal facto e, bem assim, fixar o valor da renda que julgava ser devida e pagá-la. Ao năo ter liquidado qualquer valor a título de rendas durante mais de cinco anos, parece-nos ser perfeitamente acessório discutir esta questăo em sede julgamento, uma vez que os autos fornecem todos os elementos para que seja proferida decisăo." Pela senhora juíza a quo foi entăo proferido o seguinte despacho: “A excepçăo de năo cumprimento do contrato pode ser deduzida numa acçăo de resoluçăo do arrendamento por falta de pagamento de rendas, se o arrendatário alega que suspendeu o pagamento de toda a renda por incumprimento do locador que exclua totalmente o uso da coisa ou que suspenda o pagamento de parte da renda por incumprimento do locador que exclua o uso parcial do locado e năo pode proceder se decorrer dos factos que a falta de pagamento das rendas ocorreu depois da questăo da privaçăo do uso. No caso concreto, decorre da contestaçăo apresentada pela ré que: a) a alegada privaçăo do gozo do locado é anterior à falta (admitida) de pagamento da totalidade da renda. b) a privaçăo do gozo do locado năo é total considerando que a ré sempre se manteve, e mantém até ao presente, a residir no locado, năo obstante o que alega quanto ao estado do mesmo. Por outro lado, como se constata da contestaçăo apresentada, a ré, relacionada com a questăo da invocada excepçăo do năo cumprimento do contrato, năo deduziu qualquer pedido reconvencional contra os autores. Em face do exposto, entende-se que a matéria relacionada com a invocada excepçăo do năo cumprimento do contrato, năo deve integrar o objecto do litígio e, consequentemente, os respectivos temas da prova. Nestas condiçơes, indefere-se a reclamaçăo apresentada pela ré.” Considerando irrelevante para a apreciaçăo do mérito da causa a suscitada questăo da excepçăo de năo cumprimento do contrato com fundamento na falta de condiçơes de habitabilidade do imóvel locado, o Tribunal a quo năo levou aos temas da prova a matéria de facto integrante da aludida excepçăo e sobre ela năo se pronunciou na fixaçăo dos factos provados e năo provados, vindo, a final, năo obstante isso [num iter processual menos rigoroso], a apreciar tal excepçăo, em sede de sentença final, para concluir, demonstrada a resoluçăo do contrato de arrendamento, que tal excepçăo nunca poderia funcionar porque o seu pressuposto é que o cumprimento da prestaçăo em falta ainda seja possível. Dispơe o art. 596º, n.º 1 do CPC que “Proferido despacho saneador, quando a açăo houver de prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova.” Este despacho tem por funçăo condensar o objecto do processo, tal como se previa no art. 511º do CPC de 1961, substituindo a anterior especificaçăo e questionário, precedendo os actos processuais de instruçăo, discussăo e sentença que se seguirăo, dado que a causa irá prosseguir. Com efeito, a possibilidade de conhecimento do mérito da causa no despacho saneador estava consagrada no art. 510º, n.º 1, alínea b) do CPC de 1961, o que, a năo ocorrer, implicava que o juiz fixasse a base instrutória, seleccionando a matéria de facto relevante para a decisăo da causa, segundo as várias soluçơes plausíveis da questăo de direito, que deva considerar-se controvertida – cf. art. 511º, n.º 1 do CPC de 1961. O actual art. 595º, n.º 1, b) do CPC de 2013 continua a contemplar a possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa, sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciaçăo, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepçăo peremptória. Nessa decisăo, o tribunal deve observar, com as devidas adaptaçơes, as regras da sentença, designadamente as vertidas nos art.ºs 607º e 608º do CPC, declarando os factos que julga provados, tomando em consideraçăo os admitidos por confissăo judicial, por acordo expresso ou tácito das partes nos articulados, por funcionamento de presunçăo legal inilidível, por documento com força probatória bastante ou factos notórios ou de que o juiz tem conhecimento. Com a consagraçăo deste regime processual visa-se evitar o protelamento de acçơes que logo nessa fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisăo e em que as partes apenas discordem da soluçăo jurídica da questăo a dirimir. Contudo, apesar das razơes de celeridade subjacentes a tal opçăo, importa ter presente que deverá ser sempre concedida às partes a possibilidade de discussăo e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluçơes jurídicas muito mais abrangentes, ainda que se năo afigurem possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nesse momento processual. Assim, quando năo seja clarividente a sua inutilidade ou năo se verifique a demonstraçăo dos factos necessários para a prolaçăo de uma decisăo sobre o objecto da causa, impondo-se antes uma clarificaçăo da factualidade alegada, o juiz deverá prosseguir a tramitaçăo processual até à realizaçăo de audiência de julgamento, posto que é este o momento processual adequado à efectiva compreensăo e ponderaçăo das soluçơes plausíveis de direito que no caso se possam configurar. Assim é que, “este conhecimento só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisăo conscienciosa, segundo as várias soluçơes plausíveis de direito e năo apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa […] Havendo mais de uma causa de pedir ou mais de uma exceçăo peremptória, o conhecimento de uma delas, que prejudique as restantes, no despacho saneador, quer conduza ao termo do processo, quer a uma decisăo de mérito parcial […] só deve ter lugar quando haja uma muito razoável margem de segurança quanto à soluçăo a proferir, pois de outro modo o aparente ganho de economia processual pode resultar, pela via da revogaçăo da decisăo em recurso, em perda real na duraçăo do processos.”- cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Ediçăo, pp. 659-661. Năo havendo lugar ao conhecimento imediato do mérito da causa, ao despacho saneador seguia-se, no CPC de 1961, a selecçăo dos factos assentes e dos carecidos de prova, que era feita a partir dos factos articulados pelas partes que integram a causa de pedir e os que fundam as excepçơes, ou seja, os factos principais da causa, sem prejuízo de poderem ser integrados na base instrutória, os factos acessórios e instrumentais, enquanto passíveis de constituírem a base de uma presunçăo legal ou um facto contrário ao presumido. A selecçăo dos factos assentes e dos controvertidos era feita tendo em conta as várias soluçơes plausíveis da questăo de direito, ou seja, o juiz năo podia cingir-se aos factos essenciais ou relevantes para a soluçăo das questơes que, no seu entender, fossem pertinentes; “fosse qual fosse a sua visăo da que devia ser a decisăo jurídica da causa e o caminho para a atingir, o juiz tinha de seleccionar também os factos que interessassem a outras vias de soluçăo possível do litígio, tidas em conta as posiçơes assumidas pelas partes quanto à fundamentaçăo jurídica das pretensơes e excepçơes e as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questăo que elas levantassem” – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 667. No actual CPC de 2013, o conteúdo do novo despacho que identifica o objecto do litígio e enuncia os temas de prova năo está descrito no diploma legal, embora se deva ter como constituindo uma “síntese narrativa do que se afigura ao tribunal como sendo a causa de pedir e o efeito pretendido pelo autor, as impugnaçơes do réu e as exceçơes opostas” – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, pág. 128. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ensaiam a seguinte delimitaçăo de tal despacho: “Em termos amplos […] dir-se-á que tal despacho consiste na explicitaçăo dos pedidos deduzidos sobre os quais haja controvérsia e das questơes fundamentais (causa de pedir e exceçơes) que se encontram controvertidas e servirăo para orientar, num momento subsequente, a actividade probatória. Ao exigir a nunciaçăo dos temas da prova, năo pretendeu o legislador que o juiz elencasse factos descritos segundo a sua perspectiva sobre a distribuiçăo do ónus da prova, mas apenas questơes genéricas […] que podem ser formuladas mediante o uso de qualificaçơes jurídicas e que têm como referência a causa de pedir as exceçơes alegadas pelas partes. […] Entendendo que “[n]o regime processual que actualmente vigora, embora inexista [năo exista] norma que preveja a organizaçăo dos temas de prova em funçăo das soluçơes plausíveis de direito […], a organizaçăo daqueles temas deverá ter em consideraçăo as diversas soluçơes plausíveis das questơes de direito decidendas, pois só assim, por um lado, se respeitarăo as exigências de um processo jutos e equitativo, com respeito do princípio do contraditório, e, por outro lado, se evitarăo as delongas decorrentes da eventual necessidade de ampliaçăo da matéria de facto, no tribunal ad quem, por se ter desconsiderado uma ou várias vertentes fácticas daquelas questơes de direito […]” – cf. op. cit., pp. 670-671. Rui Pinto refere que na identificaçăo do objecto do litígio o juiz terá de lhe dar uma provisória qualificaçăo jurídica, sendo que “o equilíbrio entre o dever de condensaçăo e a proibiçăo de antecipar a decisăo final, impơe, necessariamente, que a enunciaçăo das questơes em litígio seja feita segundo as várias soluçơes plausíveis da questăo de direito. […] Para tal, o juiz deve ponderar a relevância jurídica dos factos trazidos pelas partes e o quadro de relevância factual oficiosa que o novo artigo 5º, n.º 2 lhe concede, considerando as soluçơes jurídicas que săo, razoavelmente, suscitadas pela sua perspectiva provisória (onde já considera a jurisprudência e a doutrina), pela perspectiva do autor e pela perspectiva do réu.” – cf. op. cit., pp. 129-130. Nos termos do n.º 2 do art. 596º do CPC, as partes podem reclamar do despacho de identificaçăo do objecto do litígio e enunciaçăo dos temas de prova, sendo que o despacho que incida sobre tais reclamaçơes apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisăo final (cf. n.º 3) – cf. art. 644º, n.º 3 do CPC. Pode suceder, contudo, que nem se chegue a conhecer do recurso se se considerar que a infracçăo cometida năo irá modificar a decisăo final – cf. art. 660º do CPC -, sendo que a manutençăo do interesse na impugnaçăo de tal decisăo interlocutória depende da subsequente evoluçăo processual e do resultado que vier a ser declarado a final – cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 238. Naturalmente que, tendo a apelante ficado vencida na presente causa, a eventual procedência do recurso relativo ao despacho que apreciou a reclamaçăo que apresentou quanto à identificaçăo do objecto do litígio e temas de prova, com eventual reconhecimento de năo terem sido atendidos factos essenciais ou nucleares de uma das pretensơes ou excepçơes deduzidas, acarretaria a anulaçăo da decisăo, revelando-se aqui o interesse da apelante na aludida impugnaçăo – cf. acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Guimarăes de 17-12-2014, relator Jorge Teixeira, processo n.º 2777/12.1TBBRG.G1. Dado que a lei concede ao juiz uma grande margem de autonomia na elaboraçăo do despacho previsto no n.º 1 do art. 596º do CPC, os fundamentos para a sua impugnaçăo devem reconduzir-se, no essencial, àqueles que poderiam ser aduzidos contra as antigas selecçăo da matéria de facto assente e fixaçăo da base instrutória, isto é, deficiência, excesso ou obscuridade. “Assim, a deficiência consistirá na omissăo de pontos relevantes para a decisăo da causa; o excesso, na inclusăo de pontos irrelevantes, fora do objecto do processo ou năo introduzidos pelas partes, devendo sê-lo; a obscuridade, em redacçăo que suscite dúvidas quanto à identificaçăo do objecto do litígio ou ao enunciado dos temas de prova.” – J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 671. Estando assente que a identificaçăo do objecto do litígio e a enunciaçăo dos temas de prova visam delimitar o âmbito da instruçăo, que deve ter lugar tendo por limites a causa de pedir e as excepçơes deduzidas, assegurando a livre investigaçăo e consideraçăo de toda a matéria relevante para a decisăo da causa, tal instruçăo deve ter por objecto os factos relevantes para o exame e decisăo da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova, e que constituem, impedem, modificam ou extinguem o direito controvertido, tal como decorre do vertido nos articulados. Se os temas de prova delimitam o âmbito da instruçăo e se esta năo pode incidir sobre factos que năo os integrem, um eventual facto relevante para a decisăo da causa, năo ponderado ou năo incluído naquele despacho, necessariamente excluído da actividade probatória, determinará a anulaçăo da decisăo – cf. neste sentido, acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Guimarăes de 17-12-2014 acima mencionado. Importa, assim, determinar se, na situaçăo dos autos, deveria ter sido incluída na identificaçăo do objecto do litígio a questăo atinente à excepçăo de năo cumprimento do contrato de arrendamento e, por consequência, se os factos a esta respeitantes deveriam ter sido considerados nos temas de prova e se, năo o tendo sido, se impơe revogar o despacho que indeferiu a reclamaçăo apresentada e daí retirar as inerentes consequências. O arrendamento, como é entendimento uniforme, consiste num contrato sinalagmático, uma vez que a obrigaçăo do senhorio de proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa – cf. art.º 1931º, alínea b) do Código Civil - tem como correspectivo a obrigaçăo de pagar a renda ou aluguer – cf. art.º 1038º, alínea a) do mesmo diploma legal -, ou seja, ambos os contraentes ficam sujeitos a obrigaçơes recíprocas. O pagamento da renda tem como correspectivo a cedência do local arrendado em condiçơes de ser plenamente fruído em vista do fim a que se destina. Da qualificaçăo do arrendamento como contrato sinalagmático decorre a aplicaçăo de vários institutos jurídicos, entre os quais, a excepçăo de năo cumprimento do contrato, prevista nos artigos 428º e seguintes do Código Civil (constituindo a norma do art. 1040º do C. Civil, que prevê, no caso de o locatário, por motivos que lhe sejam estranhos, sofrer privaçăo ou diminuiçăo do gozo da coisa locada, a possibilidade de reduçăo da renda proporcional ao tempo da privaçăo ou diminuiçăo e à extensăo desta, um afloramento desse instituto). O art. 428º, n.º 1 do C. Civil estatui: “Se nos contratos bilaterais năo houver prazos diferentes para o cumprimento das prestaçơes, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestaçăo enquanto o outro năo efectuar a que lhe cabe ou năo oferecer o seu cumprimento simultâneo.” A excepçăo de năo cumprimento do contrato consiste, assim, na faculdade que, nos contratos bilaterais, cada uma das partes tem de recusar a sua prestaçăo enquanto a outra năo realizar ou năo oferecer a realizaçăo simultânea da sua prestaçăo, pelo que o respectivo exercício pressupơe a existência de um contrato bilateral, a simultaneidade do prazo (mais precisamente, que o excepcionante năo se encontre obrigado a cumprir antes da contraparte) e a mora de um dos contraentes – cf. Mário de Almeida Costa, Direito das Obrigaçơes, 6ª ediçăo, pp. 301-303. Nos contratos em que a prestaçăo se protela no tempo, denominados de duraçăo ou de prestaçăo duradoura, ainda que o contraente deva efectuar a sua prestaçăo antes do outro pode lançar măo da excepçăo de năo cumprimento do contrato, baseando-se na inexecuçăo de prestaçơes anteriores, isto é, de prestaçơes correspondentes a outras que ele próprio anteriormente tenha efectuado, sendo que a maioria da jurisprudência tem aceitado a aplicabilidade da excepçăo de năo cumprimento do contrato no âmbito do arrendamento. A exceptio non adimplenti contractus é, no essencial, um meio de conservaçăo do equilíbrio sinalagmático que deverá existir na génese e no próprio desenvolvimento dos contratos bilaterais, em especial no seu cumprimento, justificando-se quando ocorra uma ausência de correspondência ou de reciprocidade entre as obrigaçơes que, no âmbito dos contratos bilaterais, emergem para ambas as partes. Pressupơe, portanto, a existência de um nexo de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensăo da prestaçăo pelo excipiens, devendo ser alegada tendo em vista compelir à execuçăo da obrigaçăo correspectiva por parte do outro contraente. A excepçăo de năo cumprimento do contrato constitui uma excepçăo dilatória de direito material, dado que năo exclui definitivamente o direito invocado pelo autor e porque se baseia em razơes de direito substantivo, recaindo sobre o arrendatário o respectivo ónus de alegaçăo e de prova conducente à demonstraçăo da exceptio que consubstancia, portanto, matéria de excepçăo. Recaindo sobre o senhorio a obrigaçăo de realizar as obras de conservaçăo, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, nos termos do art. 1074º, n.º 1 do C. Civil, a falta de cumprimento dessa obrigaçăo pode constituir fundamento de resoluçăo do contrato pelo arrendatário – cf. art.º 1083º, n.º 1 do referido diploma legal. No entanto, tem sido uniformemente entendido que, enquanto se mantiver no gozo do imóvel o arrendatário năo poderá utilizar a excepçăo de năo cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência da năo realizaçăo das obras, apenas podendo efectuar a reduçăo da renda na medida proporcional à privaçăo ou diminuiçăo do gozo. Neste sentido se pronuncia, claramente, Luís Menezes Leităo: “Năo parece, porém, que, enquanto se mantiver no gozo do imóvel o arrendatário possa utilizar a excepçăo de năo cumprimento do contrato para se recusar a pagar a renda, em consequência da năo realizaçăo das obras, apenas podendo efectuar a reduçăo da renda na medida proporcional à privaçăo ou diminuiçăo do gozo nos termos do art. 1040.” – cf. op. cit., pág. 80. Fernando Gravato de Morais refere que a falta de pagamento só pode ser total se o prédio năo realizar cabalmente o fim a que é destinado, carecendo das qualidades asseguradas no início do contrato – cf. op. cit., pág. 226. Com efeito, como se refere no acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Lisboa de 12-10-2017, relatora Ondina Carmo Alves, processo n.º 4058-12.ITJLSB.L1-2: “[…] o sinalagma existente no contrato de arrendamento reside precisamente na obrigaçăo do arrendatário de pagar a renda, contraposta à obrigaçăo do locador de assegurar o gozo da coisa para o fim a que a mesma se destina. Daí que é pacífico o entendimento de que, enquanto o senhorio năo proceder à entrega do prédio arrendado, o arrendatário năo está obrigado a pagar a renda, podendo invocar a exceptio, de harmonia com o disposto no citado artigo 428º, nº 1 do C.C. Entregue ao locatário a coisa locada, o sinalagma em grande medida se desfaz, pois a obrigaçăo de proporcionar o gozo da coisa é uma obrigaçăo sem prazo ou dia certo para o seu cumprimento, ao passo que é a termo a do pagamento da renda […] Já o mesmo năo se poderá afirmar com relaçăo à obrigaçăo de realizaçăo de obras na casa arrendada, por parte do senhorio e o ónus do arrendatário de habitar o arrendado. Inexiste entre eles a correspectividade ou sinalagma que justifique a invocaçăo da excepçăo de incumprimento do contrato. É que, a obrigaçăo de pagar a renda imposta ao locatário, faz parte, como se disse, do sinalagma contratual, na medida em que se contrapơe à obrigaçăo fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo da coisa. Mas, o sinalagma liga entre si as obrigaçơes essenciais de cada contrato bilateral, mas năo todos os deveres de prestaçăo dele nascidos. Daí que, como se refere no Ac. STJ de 11.10.2007 (Pº 07B2934) […] “no arrendamento, o pagamento da renda tem como correspectivo a cedência do arrendado e năo também a obrigaçăo de nela fazer obras”. De igual modo, refere-se no acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Coimbra de 22-05-2012, relator Fonte Ramos, processo n.º 3536/10.1TJCBR-A.C1 que: “Nesta perspectiva das coisas e acolhendo a ideia do equilíbrio ou equivalência das prestaçơes, considera-se que o locatário só poderá suspender o pagamento da renda (de toda a renda) quando se trate de năo cumprimento do locador que exclua totalmente o gozo da coisa; no caso de privaçăo parcial do gozo, imputável ao locador, o locatário apenas poderá suspender o pagamento de parte da renda. E tem vindo a ser admitido o funcionamento do instituto mesmo nas situaçơes de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso, fazendo intervir entăo, sempre que as circunstâncias concretas o imponham, o princípio da boa fé e a “válvula de segurança” do abuso do direito (art.ºs 762º, n.º 2, e 334º), donde o imperativo de uma apreciaçăo, em face das circunstâncias concretas, da gravidade do incumprimento, porquanto seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestaçăo, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. […] Assim, a exceptio opera sempre que exista correspectividade entre a prestaçăo que uma das partes na relaçăo de locaçăo pretenda recusar e aquela cuja falta se invoca, pelo que se o locatário ficar privado do gozo da coisa, no todo ou em parte, por facto imputável ao locador, pode ele suspender, numa medida proporcional, a sua contraprestaçăo; o locatário tem a faculdade de invocar, nos termos gerais, a excepçăo da inadimplência, quando se verifique mero incumprimento parcial da correspectiva obrigaçăo do locador mas a boa fé exige, por um lado, que a falta assuma relevo significativo e, por outro lado, que se observe proporcionalidade ou adequaçăo entre essa falta e a recusa do excipiente. O recurso do arrendatário a este instituto, se existe cumprimento defeituoso ou parcial pelo senhorio, apenas o dispensa de pagar a renda correspondente à falta verificada. A quantificaçăo pode tornar-se mais ou menos difícil. Quando as partes năo chegarem a acordo subsiste o remédio da consignaçăo em depósito, mas o arrendatário corre o risco de o seu cálculo pecar por defeito, depositando uma renda menor do que a devida - daí que se imponha uma actuaçăo ponderada e cautelosa sempre que se pretenda exercitar a excepçăo do năo cumprimento no assinalado contexto. […] tem-se afirmado que o arrendatário, no caso de mora do senhorio na reparaçăo dos defeitos, năo pode, mantendo-se no gozo da coisa locada, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno, sob pena de incorrer em mora. Pode, apenas, no caso de vício ou defeito, considerar năo cumprido o contrato, ou resolver o mesmo, se os defeitos assumirem a gravidade prevista na lei […] Um arrendatário, em virtude de defeitos da coisa locada, mesmo em caso de mora do senhorio para a reparaçăo, năo pode, mantendo-se no gozo da coisa, e enquanto subsistir o contrato, deixar de pagar a renda no momento oportuno. Năo o fazendo incorre em mora.” No caso em apreço, face ao conteúdo da contestaçăo deduzida pela ré/apelante, era já seguro ao momento da prolaçăo do despacho de identificaçăo do objecto do litígio e enunciaçăo dos temas de prova que, por um lado, a própria reconhecia a cessaçăo do contrato de arrendamento operada por via da comunicaçăo extrajudicial da resoluçăo com fundamento em pagamento das rendas e, por outro, que admitia a falta de pagamento da totalidade da renda, pelo menos desde Fevereiro de 2013. Ora, o funcionamento da excepçăo de năo cumprimento do contrato năo pode ter lugar verificada a cessaçăo do contrato, como é evidente. Com efeito, decorre expressamente da norma vertida no n.º 1 do art. 428º do C. Civil, que a excepçăo procede “enquanto o outro năo efectuar a que lhe cabe”, ou seja, reporta-se a um incumprimento temporário, pois que se for incumprimento definitivo haverá lugar, se for culposo, ao direito à resoluçăo do contrato ou, năo sendo imputável ao contraente incumpridor, ocorre a impossibilidade năo culposa de cumprimento com extinçăo da obrigaçăo – cf. Ana Prata, Código Civil Anotado, Volume I, 2019, pág. 587. Em consonância, reconhecendo a ré e aceitando que a cessaçăo do contrato de arrendamento ocorreu com a sua notificaçăo judicial avulsa, concretizada em 30 de Janeiro de 2014, e motivada por falta de pagamento de rendas vencidas, é evidente que năo podia nesta acçăo convocar a excepçăo de năo cumprimento do contrato de arrendamento imputando ao senhorio a falta de gozo do prédio para justificar seja o năo pagamento das rendas seja a reduçăo parcial do seu valor. Pretendendo lançar măo do mecanismo vertido no art. 1040º do C. Civil deveria a ré tê-lo feito durante a vigência do contrato, sendo que a sua invocaçăo no âmbito da contestaçăo dependia da impugnaçăo da verificaçăo da cessaçăo do contrato, a que, de modo evidente, năo procedeu. Neste contexto, há que concluir pela irrelevância da invocada excepçăo de năo cumprimento do contrato, invocaçăo que se afigura contraditória por referência ao conteúdo da contestaçăo e em face da expressa aceitaçăo da cessaçăo do contrato de arrendamento. Logo, irrelevante se afigura integrar tal excepçăo no objecto do litígio como questăo a dirimir e, por consequência, levar a respectiva matéria de facto à enunciaçăo dos temas de prova – cf. neste sentido, acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Guimarăes de 3-03-0216, relator Jorge Seabra, processo n.º 328/14.2T8VCT.G1 – “[…] a exceptio non adimplenti contratus só tem cabimento lógico e legal nas hipóteses de mora (incumprimento temporário) ou cumprimento defeituoso pelo devedor, mas já năo se o devedor incorrer em situaçăo de incumprimento definitivo da sua prestaçăo, seja este incumprimento definitivo resultante da impossibilidade da realizaçăo da prestaçăo - impossibilidade fortuita ou impossibilidade imputável ao devedor -, seja resultante da recusa inequívoca e peremptória do devedor ao cumprimento, seja resultante do facto de, por via do retardamento no cumprimento, ter o credor perdido o seu interesse objectivo na prestaçăo em falta – arts. 801º, n.º 1 e 808º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil”. Mas ainda que assim se năo entendesse sempre se teria de chegar a idêntica conclusăo considerando que, năo obstante as alegadas deficiências que a ré imputa ao locado, ainda que estas viessem a ser demonstradas, sempre se teria de ter como assente, tal como resulta da expressa confissăo da ré nesse sentido, que esta se manteve a residir no locado, como se mantém, e, mais do que isso, deixou de proceder ao pagamento da totalidade das rendas vencidas (ao menos desde Fevereiro de 2013), o que significa que as apontadas deficiências năo se apresentaram como absolutamente impeditivas de continuar a ter a residência no prédio arrendado. In casu, e em conformidade com o acima expendido, năo era lícito à ré/apelante deixar de pagar a renda na sua totalidade e daí a verificaçăo da mora com as respectivas consequências, pois que, quando muito, a verificar-se privaçăo parcial do gozo do locado, poderia aquela reduzir a renda, năo sendo esta, claramente, a situaçăo pela qual optou. Assim, porque a ré/recorrente deixou, conforme sua expressa admissăo na contestaçăo, de satisfazer a totalidade da renda devida quando o máximo a que eventualmente teria direito seria, face ao expendido, suspender o respectivo pagamento em medida proporcionada à privaçăo parcial do gozo, a conclusăo a extrair năo pode ser outra senăo a de que incorreu em mora, com as inerentes consequências, nomeadamente, a resoluçăo do contrato por falta de pagamento da renda – cf. neste sentido, acórdăos do Tribunal da Relaçăo de Coimbra de 22-05-2012, acima mencionado e de 6-06-2017, relator Vítor Amaral, processo n.º 467/13.7TBSEI.C1; acórdăo do Supremo Tribunal de Justiça de 9-12-2008, relator Nuno Cameira, processo n.º 08A3302; acórdăo do Tribunal da Relaçăo de Guimarăes de 3-03-0216, relator Jorge Seabra, processo n.º 328/14.2T8VCT.G1 , acórdăo do Tribunal da Relaçăo do Porto de 8-05-2017, relator Manuel Domingos Fernandes, processo n.º 3542/15.0T8GDM.P1. Como tal, ao momento da identificaçăo do objecto do litígio e enunciaçăo dos temas de prova, a improcedência da excepçăo de năo cumprimento do contrato afigurava-se manifesta, considerando as várias soluçơes plausíveis da questăo de direito, tornando inócua e inútil a sua inclusăo em tal despacho para efeitos de posterior instruçăo, o que se traduziria na prática de actos inúteis e contrários ao princípio da economia processual, porquanto, pelas razơes apontadas, ainda que se apurasse a existência das deficiências e a privaçăo parcial do gozo do locado, tal năo teria qualquer virtualidade para interferir no desfecho da causa. Conclui-se, deste modo, pela improcedência do recurso que incidiu sobre o indeferimento da reclamaçăo que visou o despacho de identificaçăo do objecto do litígio e enunciaçăo dos temas de prova e pela respectiva manutençăo do decidido (improcedem as conclusơes 9. a 12. das alegaçơes da recorrente). * Da Nulidade da Sentença prevista no art. 615º, n.º 1, c), primeira parte do CPC Por fim, veio a requerente suscitar a nulidade da sentença por oposiçăo entre os fundamentos e a decisăo, o que sustenta no facto de decorrer do estatuído no art. 1087º do Código Civil que a desocupaçăo do locado, nos termos do art. 1081º, é exigível após o decurso de um mês a contar da resoluçăo, se outro prazo năo for fixado judicialmente, pelo que, tendo sido referido na sentença que a ré se encontra desempregada e que năo lhe săo conhecidos rendimentos, seria expectável que o tribunal fixasse um prazo superior, pelo que face às consideraçơes tecidas na fundamentaçăo, a decisăo a proferir deveria ter sido necessariamente outra, pelo que deve a sentença, nessa parte, ser substituída, fixando-se um prazo nunca inferior a 90 dias para a desocupaçăo do locado. A recorrida, nas suas contra-alegaçơes defende que năo se verifica tal vício tendo em conta que a recorrente năo paga renda há seis anos e que foi interpelada para entregar o locado e as chaves, em 2017, e, em abuso de direito, ainda pretende dispor de noventa dias para o desocupar. A senhora juíza a quo, ao admitir o recurso, apreciou a nulidade arguida do seguinte modo: “No caso sub judice, compulsado o teor da decisăo sob recurso, entende-se năo assistir qualquer razăo à recorrente e ser manifesto que năo se verifica a apontada (mas infundada) nulidade. Com efeito, a decisăo recorrida, clara e linear, mostra-se fundamentada, especifica os fundamentos de facto e de direito, e como resulta da sua leitura tem os fundamentos de facto e de direito em concordância lógica com a decisăo (năo se verificando qualquer contradiçăo). A ré manifestamente faz tábua rasa do que se decidiu, nomeadamente, na alínea a) [“Declarar que o contrato de arrendamento dos autos se extinguiu, pro via da comunicada resoluçăo, por notificaçăo avulsa, no dia 30.01.2014”]. Năo se vislumbrando em que se estriba para afirmar (erradamente, porém) que no caso concreto “nos termos do artigo 1087º, o prazo mínimo supletivo legal para desocupaçăo do locado é de 30 dias”. Por outro lado, a discordância que evidencia face à sentença proferida năo autoriza concluir pela alegada, mas năo verificada, nulidade. Em síntese, é manifesto que năo correr a alegada nulidade e que a ré apenas pretende, infundadamente (continuar a), protelar, de forma abusiva e censurável, a entrega do locado. Flui do exposto que năo se verifica a invocada nulidade. A recorrente pode discordar da decisăo proferida mas tal năo encerra a suscitada nulidade. Nestas condiçơes, conclui-se que a decisăo recorrida năo padece da suscitada nulidade.” As decisơes judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razơes: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violaçăo das regras próprias da sua elaboraçăo e estruturaçăo ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615.º do Código de Processo Civil (CPC). Dispơe o art. 615º, n.º 1 do CPC o seguinte: “1 - É nula a sentença quando: a) Năo contenha a assinatura do juiz; b) Năo especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisăo; c) Os fundamentos estejam em oposiçăo com a decisăo ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisăo ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questơes que devesse apreciar ou conheça de questơes de que năo podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.” Para a correcta interpretaçăo deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência. Conforme impơe o n.º 3 do art.º 607º do CPC, o juiz deve especificar os fundamentos de facto e de direito da decisăo, observando o disposto quer nesse normativo, quer no respectivo n.º 4, ou seja, o juiz deve discriminar os factos que julga provados e os que julga năo provados, analisando criticamente as provas, o que fará em conformidade com a sua livre apreciaçăo (princípio da liberdade de julgamento – cf. n.º 5 do art. 607º do CPC). É usual verificar-se alguma confusăo entre nulidade da decisăo e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentaçăo e uma fundamentaçăo insuficiente ou divergente da pretendida ou até entre a omissăo de pronúncia (quanto a alguma questăo ou pretensăo) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que săo convocados pelas partes – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luí Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaraçăo, 2018, pág. 737. A oposiçăo entre os fundamentos e a decisăo corresponde a “uma «construçăo viciosa», ou seja, […] um vício lógico da sentença: o juiz elegeu deliberadamente determinada fundamentaçăo e seguiu um determinado raciocínio para extrair uma dada conclusăo; só que esses fundamentos conduziriam logicamente, năo ao resultado expresso na decisăo, mas a um resultado oposto a esse, isto é, existe contradiçăo entre os fundamentos e a decisăo (por ex., toda a lógica fundamentadora da sentença apontaria para a condenaçăo do réu no pagamento da dívida reclamada pelo autor, mas o juiz, na sentença, decreta, de modo contraditório, a absolviçăo do réu do pedido). Năo se trata de um qualquer simples erro material (em que o juiz escreveu coisa diversa da pretendia – contradiçăo ou oposiçăo aparente) mas de um erro lógico-discursivo em termos da obtençăo de um determinado resultado – contradiçăo ou oposiçăo real. O que năo se confunde, também, com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunçăo da hipótese concreta na correspondente fattispecie ou previsăo normativa abstracta, vício este só sindicável em sede de recurso jurisdicional.” – cf. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, pp. 370-371; J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 736. A leitura da decisăo recorrida, no segmento ora convocado, viabiliza a afirmaçăo de que aquela năo enferma do vício que a apelante lhe imputa. Com efeito, conforme realça a senhora juíza a quo no despacho em que conheceu de tal nulidade, há que atentar que a sentença proferida declarou ou reconheceu que o contrato de arrendamento para habitaçăo que vigorou entre as partes cessou por via da comunicaçăo extrajudicial promovida pelos senhorios e realizada em 30 de Janeiro de 2014, data em que a apelante assinou a notificaçăo judicial avulsa – cf. pontos 9. e 10. da matéria de facto provada e alínea a) do dispositivo. Conforme decorre do disposto no art. 1081º do C. Civil, a regra geral é a de que a cessaçăo do contrato torna imediatamente exigível a entrega da coisa. Ora, um dos desvios a essa regra dá-se no caso de resoluçăo do contrato de arrendamento, pois que, nessa situaçăo, o arrendatário năo pode conhecer o momento em que a cessaçăo vai ocorrer, pelo que năo se lhe pode exigir que esteja preparado para, a qualquer momento, abandonar o locado (como sucede, diversamente, na cessaçăo do contrato por decurso do prazo). Por essa razăo, a lei concede-lhe o prazo de um mês para a entrega do imóvel locado. Quando a resoluçăo funciona por via judicial, a sentença pode fixar um prazo diferente para a desocupaçăo, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, podendo também as partes, ao abrigo da autonomia privada, acordar em prazo diferente para a desocupaçăo, sendo certo que o tempo que decorre entre a resoluçăo e a desocupaçăo obriga o arrendatário ao pagamento da renda, nos termos do n.º 1 do art. 1045º do C. Civil. É neste enquadramento jurídico que tem de ser interpretada a decisăo em referência quando ali se refere: “Finalmente, considerando que a ré se encontra desempregada e que năo lhe săo conhecidos rendimentos, concede-se à mesma o prazo de trinta dias, após o trânsito em julgado da presente sentença, para desocupar o locado (artigo 1087º do Código Civil).” Foi exactamente por ter atendido às específicas circunstâncias económicas em que a ré/apelante se encontra – vertidas nos pontos 14. e 15. da matéria de facto provada – que a senhora juíza a quo, apesar de reconhecer que a cessaçăo do contrato se verificou em 30 de Janeiro de 2014 e, logo, que a entrega do locado deveria ter ocorrido no prazo de trinta dias depois dessa data, ainda assim, concedeu um novo prazo para a desocupaçăo, năo obstante o longo tempo decorrido em que é manifesto o incumprimento da ré dessa sua obrigaçăo. Năo existe, assim, qualquer contradiçăo entre a fundamentaçăo aduzida e a concessăo de um acrescido período de trinta dias, que apenas se iniciará após o trânsito em julgado da decisăo, para a efectiva desocupaçăo do locado e que se mostra fundamentado nas frágeis circunstâncias económicas em que a apelante se encontra e que o tribunal recorrido entendeu relevar. Improcede, também nesta parte, o recurso e as respectivas conclusơes 13. a 19.. Improcede, na íntegra, a apelaçăo devendo manter-se inalterada a decisăo recorrida. * Das Custas De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisăo que julgue a acçăo ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, năo havendo vencimento da acçăo, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporçăo em que o for. Nos termos do art. 1º, n.º 2 do RCP, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributaçăo própria. A recorrente decai em toda a extensăo quanto à pretensăo que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo. * IV – DECISĂO Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secçăo do Tribunal de Relaçăo de Lisboa, em julgar improcedente a apelaçăo, mantendo, em consequência, a decisăo recorrida. As custas ficam a cargo da apelante. * Lisboa, 2 de Julho de 2019 Micaela Sousa Maria Amélia Ribeiro Dina Maria Monteiro