Não tendo sido promovida a habilitação do cessionário, mantém-se a legitimidade da primitiva autora ao lado da cessionária, que interveio espontaneamente na acção como sua associada. - Estando a ré obrigada, como empreiteira contratada para reparar uma avaria num veículo, a restitui-lo após a cessação desse contrato e face à frustração de gozo do veículo durante o período em que a ré recusa a entrega, deve ser condenada a indemnizar uma indemnização diária à autora, até à data da transmissão do veículo à interveniente e a esta, desde a transmissão e até à efectiva restituição. (sumário elaborado pela relatora)
Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO. A…, SA intentou contra M…, Unipessoal, Lda a presente acção declarativa com processo sumário, alegando, em síntese, que, no exercício da sua actividade comercial, utiliza várias viaturas da sua propriedade, entre as quais o veículo Mercedes Benz 500 SEC, com a matrícula …, a qual, por apresentar uma avaria que consistia em o motor se desligar depois de aquecer, só voltando a funcionar depois de arrefecer, foi entregue na oficina da ré para reparação, tendo esta apresentado dois orçamentos para reparação que a autora aceitou, mas protelando a ré a execução da reparação, veio apresentar um terceiro orçamento de valor muito superior que a autora recusou imediatamente, desistindo da reparação e reclamando a restituição do veículo, o que a ré não satisfez, comunicando que havia desmontado o veículo e remetido as peças para diagnóstico, procedimento que nunca havia sido autorizado pela autora, já que ambas haviam acordado que qualquer intervenção no veículo teria de ser expressa e pontualmente autorizada pela autora, acabando a ré por apresentar um quarto orçamento para ser montado o veículo, recusando-se a restitui-lo à autora sem que esta lhe pague, pelo menos, os dois primeiros orçamentos, o que a autora não aceita. Concluiu pedindo a condenação da ré a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o veículo e a restitui-lo, bem como a pagar-lhe a quantia diária de 60,00 euros por cada dia de paralisação do veículo desde a data em que o terceiro orçamento da autora foi recusado, até à efectiva restituição, que ascende, à data da propositura da acção, a 4 800,00 euros. A ré contestou impugnando a versão apresentada pela autora e alegando que efectuou trabalhos no veículo que têm custos e que a autora se recusa a pagar, sendo certo que não estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil da contestante. Concluiu pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido. Feito o saneamento dos autos, veio intervir nos autos S…, Lda, que, alegando ter adquirido o veículo na pendência da acção, fez suas todas as peças processuais apresentadas pela autora. Procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a reconhecer o direito de propriedade da interveniente sobre o veículo e a restituir-lho no estado em que se encontrava aquando da sua entrega para reparação, absolvendo a ré do pedido de restituição do veículo à autora e do pedido de pagamento à autora e à interveniente da quantia diária de 60,00 euros, desde a data em que foi recusado o terceiro orçamento, até à restituição do veículo. Da absolvição do pedido de pagamento de indemnização pela privação de uso do veículo, foi interposto recurso e, nas alegações, foram formuladas conclusões com os seguintes argumentos: - As recorrentes não se conformam com a decisão recorrida, na parte que não condenou a ré a pagar uma indemnização pela paralisação do veículo. - As recorrentes entendem que a simples privação de uso resultante da retenção ilegal da ré, por si só, constitui um dano indemnizável, independentemente do uso que se faça ou não do bem em causa, pois impede o exercício dos direitos inerentes ao direito de propriedade, previstos no artigo 1305º do CC. - As autoras alegaram e provaram que o veículo tinha utilização por parte da administração da empresa, já que a dita viatura era utilizada para o transporte dos seus administradores e até de visitas e parceiros internacionais, estando demonstrado o prejuízo indemnizável, de acordo com a jurisprudência dos nossos tribunais superiores. - Considerando que ficou provado que o valor do aluguer diário de uma viatura de gama média ascende a 60,00 euros diários, entendem as recorrentes ser este um valor justo e equitativo, considerando que o veículo em causa, Mercedes 500 SEC é um veículo de gama alta, facto de conhecimento notório. - Como o seu comportamento, que já dura há mais de três anos, a ré tem impedido as recorrentes de exercer o seu direito de gozo, fruição e possibilidade de disposição da viatura em causa, pelo que se impunha a fixação de indemnização equitativa nos termos do artigo 566º nº3 do CC. A recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso, alegando ainda que, mesmo que seja considerado ser devida a indemnização, a mesma deverá ser devida apenas à interveniente, porque apenas esta recorreu da sentença. O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo. As questões a decidir são: I) Questão prévia, levantada nas contra-alegações, sobre a autoria do recurso. II) Indemnização pela privação de uso do veículo. FACTOS. A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: 1. A A. é uma sociedade comercial que se dedica, além do mais, à produção, comercialização e instalação de aparelhos de ar condicionado industriais. 2. No exercício da sua actividade comercial a A. utiliza várias viaturas de sua propriedade, entre as quais, o Mercedes Benz 500 SEC, com a matrícula …. 3. Esta viatura, propriedade da A., é por esta utilizada como viatura da Administração, não só para uso pessoal do Presidente do Conselho de Administração da A., mas também para serviço de apoio a clientes e parceiros internacionais, sempre que estes se deslocam ao nosso País e carecem de transporte profissional. 4. Em 5 de Setembro de 2011, a viatura sofreu uma avaria, que consistia no facto de o motor se desligar sempre que, após funcionar algum tempo, o motor atingia temperaturas notoriamente elevadas. 5. A Ré por sua vez, é uma empresa que se dedica à reparação, assistência técnica e comércio de viaturas de marca Mercedes Benz. 6. Para desempenho da sua actividade, a Ré possui pelo menos as instalações oficinais de Sintra, situadas na …, em Sintra. 7. Em face da avaria do referido carro da A., esta enviou-o para reparação para as instalações oficinais da Ré, da …, em Sintra, onde o mesmo foi por esta intervencionado. 8. Após a referida intervenção oficinal da Ré, esta devolveu a viatura à A., pensava-se reparada e apta a funcionar plenamente, cobrando para o efeito uma factura de 2.258,16 Euros, que a A. pagou. 9. A viatura foi funcionando de forma aparentemente satisfatória, durante quase um ano até que, em Agosto de 2012, voltou a evidenciar a mesma avaria. 10. Por essa razão, foi a viatura novamente entregue nas instalações da Ré da referida …, a 20 de Agosto de 2012, para reparação. 11. Quando da entrega da viatura, a A. expressou de imediato o seu desagrado pelo facto de a viatura acusar a mesma avaria do ano anterior, quando foi entregue à Ré, pela primeira vez para reparação. 12. A A. voltou a entregar o carro para reparação, reiterando que “o motor desliga-se em andamento e depois só volta a “arrancar” depois de esfriar o suficiente”. 13. Recebida a viatura da A., a R. de imediato apresentou-lhe um primeiro Orçamento com o número 91788, para reparação no valor de 392,29 Euros, datado de 23 de Agosto de 2012. 14. A A. apesar de contrariada, por entender que se tratava da mesma avaria do ano anterior, acedeu de pronto, a que a Ré procedesse à reparação da sua viatura, ao abrigo deste primeiro orçamento. 15. Estranhando o silêncio da Ré, em 27 de Agosto de 2012, a A. contactou os Serviços da Ré, instando-os sobre a reparação da sua viatura, sendo então afirmado por estes, que o carro estaria novamente em diagnóstico, pois teria “dado avaria” logo após a reparação efectuada. 16. A 3 de Setembro de 2012, recebe a A. um segundo orçamento da Ré, com o número 92166, no valor de 145,69 Euros, para realização de verificações do Motor, o que foi novamente aceite. 17. Inconformada já com este procedimento da Ré, a A. deu instruções a um seu colaborador para insistir junto da Ré pela reparação, pois a viatura estava parada, havia demasiado tempo. 18. A A. enviou um e-mail a 17 de Setembro de 2012, comunicando por escrito o seu profundo desagrado. 19. No seguimento das insistências da A., de frequência diária, a R. apresentou em 19 de Setembro de 2012, um terceiro Orçamento sob o número 92829, para reparação da viatura, no valor de 7.992,27 Euros, que a A., de imediato recusou. 20. A A. desistiu dos seus serviços de reparação e exigiu a devolução da viatura no estado em que se encontrava, aquando da sua entrega em 20 de Agosto de 2012. 21. A Ré recusou a devolução da viatura sem que fosse pago o valor correspondente aos serviços de diagnóstico (montagem e desmontagem da viatura). 22. No dia 10 de Outubro de 2012, após mais um contacto da A., que perguntava quando poderia proceder à recolha da viatura, a R. respondeu não ser ainda possível, já que “as chefias” estavam reunidas e a “tratar do assunto”. 23. No dia seguinte, a 11 de Outubro, quando contactados de manhã e à tarde, pela A., insistiram os serviços da R. com a mesma resposta. 24. Quando informados de que a A. havia desistido da reparação, face ao valor do orçamento 92829, os serviços da R. responderam que haviam desmantelado a viatura e remetido as peças para diagnóstico. 25. A A. desconhecia que a R. havia desmontado o seu carro sem que para tal estivesse autorizada. 26. A A. nunca autorizou a R. a desmontar a sua referida viatura. 27. A A. logo após a apresentação do primeiro orçamento, de imediato comunicou à R. que qualquer intervenção na viatura deveria ser expressa e pontualmente autorizada, o que, aliás foi aceite pela R.. 28. Foi a com grande surpresa e indignação que a A. tomou conhecimento da atitude da R., quanto esta lhe disse que para a A. levantar o carro, teria de mandar um reboque para carregar as peças do carro, já que este estava totalmente desmontado. 29. A A. insurgiu-se contra esta atitude e exigiu de imediato e mais uma vez, a devolução da viatura, tal como esta tinha sido entregue, e que era “com avaria, mas a circular”, ao que a R. respondeu que isso só seria possível mediante deliberação expressa “das chefias”. 30. No dia 12 de Outubro de 2012, a A. voltou a contactar a R. insistindo na devolução da viatura, reinsistindo, no dia 15 de Outubro de 2012, recebendo sempre a mesma resposta, de que a R. estaria a aguardar uma tomada de posição por parte das suas “chefias”. 31. A R. envio de um 4º Orçamento, agora no valor de € 1.233,47, desta vez, para montar o carro, colocando-o na situação em que o mesmo se encontraria a 20 de Agosto de 2012, de forma que o carro pudesse circular com o fazia antes de ser entregue para reparação. 32. A Ré inscreveu neste Orçamento, que o mesmo se destinava a novas verificações de mecânica da viatura conforme documento 7 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente por reproduzido. 33. O carro da A. quando foi entregue à R. funcionava, com a referida deficiência, apesar de se imobilizar quando o motor atingia temperaturas muito elevadas. 34. A A. recusou o Orçamento nº4 por ter proibido peremptoriamente qualquer intervenção no carro sem a sua prévia e expressa autorização e exigiu como o fez várias vezes, a imediata devolução da viatura, no estado em que se encontrava a 20 de Agosto de 2012. 35. Face à intransigência da A., que exigia e exige a devolução da sua viatura, a R. recusou tal entrega, retendo a viatura na sua posse, a menos que a A. lhe pague, pelo menos, os dois primeiros Orçamentos, o que a A. agora recusa. 36. A A. recusou o orçamento a 20.09.2012 e exigiu a viatura nessa data. 37. O valor diário de aluguer de uma viatura de gama alta, como é a da viatura da A., ultrapassa os € 100,00. 38. O valor diário de aluguer de uma viatura de gama média corresponde a cerca de €60,00 (sessenta euros). 39. O orçamento nº4 destinava-se a colocar o veículo na situação anterior às intervenções levada a cabo pela R. 40. Os trabalhos de desmontagem e montagem de peças, designadamente em veículos automóveis, implicam custos. 41. A montagem e desmontagem de um motor de um veículo é um trabalho que requer especial cuidado. 42. Desde 17-10-2013 que o veículo com a matrícula 54-76-CC é da propriedade da interveniente espontânea S…, Lda. Nos termos dos artigos 607º nº4 e 663º nº2 do CPC, haverá ainda que atender que: 43. O Presidente do Conselho de Administração da autora é AT… (certidão do registo comercial da autora de fls 17 e sgts e procuração de fls 112 conferida ao mandatário judicial da autora pelo seu presidente do conselho de administração). 44. O administrador da interveniente é AT… (requerimento e procuração de fls 130 conferida ao mandatário da interveniente pelo seu administrador). ENQUADRAMENTO JURÍDICO. I) Questão prévia da autoria do recurso. A recorrida, nas suas contra-alegações, vem alegar que o pedido de indemnização por paralisação do veículo não poderá proceder relativamente à autora porque apenas a interveniente recorreu. Porém, não está correcta esta afirmação, pois o recurso foi interposto pela interveniente e pela autora. Na verdade, o cabeçalho do requerimento de recurso está subscrito pelo mandatário judicial que representa a autora e a interveniente e nele consta “S…, Lda e outros, A. nos autor acima identificados, na acção que movem contra a ré M… Unipessoal, Lda, não se tendo conformado com a douta decisão neles proferida a fls… e seguintes, vêm da mesma interpor recurso, ao abrigo do disposto nos artigos (…)”. Embora com redacção não muito rigorosa, é manifesto que o recurso não é interposto apenas por uma entidade, sendo referida a expressão “outros” e sendo utilizado a primeira pessoa do plural na conjugação dos verbos, não só neste cabeçalho, mas também ao longo das alegações, onde se menciona também repetidamente “as autoras” ou “as recorrentes”. Aliás, a autora manteve a sua legitimidade na acção depois da intervenção principal da S…, não só porque nunca chegou a ser promovido o incidente de habilitação previsto no artigo 356º do NCPC (anterior artigo 376º), mas também porque, apesar de ter transmitido o veículo para a interveniente, tem legitimidade para pedir indemnização por prejuízos que tenham ocorrido até à data da transmissão. Deverá, portanto, ser apreciado no presente recurso o pedido de indemnização relativamente à autora. II) Indemnização por privação de uso do veículo. Na presente acção é pedida a restituição de um veículo automóvel, registado primeiro a favor da autora e, a partir de 17/10/2013, a favor da interveniente (pontos 2 e 42 dos factos), que a ré mantém em seu poder e se recusa a devolver. A sentença recorrida entendeu que as partes celebraram um contrato de empreitada previsto nos artigos 1207º e seguintes do CC, mediante o qual a ré se comprometeu a reparar uma avaria do veículo mediante o pagamento da contrapartida e que, ao ser apresentado o terceiro orçamento à autora, esta desistiu da empreitada, como lhe era legítimo fazer, ao abrigo do artigo 1229º do mesmo código. Entendeu ainda a sentença recorrida que foi abusivo o comportamento da ré ao desmontar o veículo sem a autorização da autora e que esta não estava obrigada a pagar as despesas devidas por este procedimento, não sendo devidos os valores do terceiro e quarto orçamentos apresentados pela ré. Concluiu então a sentença recorrida que a ré estava obrigada a restituir o veículo à autora, mas que esta estaria obrigada a pagar os dois primeiros orçamentos, que corresponderiam a trabalhos efectivamente realizados pela ré; mais concluiu a sentença recorrida que não seria aplicável o artigo 754º do CC, ou seja, o direito de retenção, porque a ré não o teria invocado expressamente e condenou-a a restituir o veículo à interveniente. Entendeu, finalmente, a sentença recorrida que não há lugar à indemnização por privação de uso porque não estão demonstrados prejuízos pela imobilização do veículo. Constituindo o objecto do presente recurso saber se é ou não devida a indemnização pela imobilização do veículo, vejamos então se a ré está ou não obrigada a este pagamento. A restituição do veículo tem como fundamento a cessação do contrato de empreitada por legítima desistência e os artigos 1305º e 1311º do CC, ou seja, o direito de propriedade sobre o veículo e o direito do proprietário à sua restituição como consequência de detenção não titulada de terceiro. Assim, desde logo, para haver responsabilidade civil da ré por prejuízos sofridos com a retenção do veículo, é necessário saber se tal retenção foi lícita. Ora, ao contrário do que refere a sentença recorrida, os factos provados não levam à conclusão de que a autora está obrigada a pagar os dois primeiros orçamentos. É certo que o artigo 1229º do CC, ao permitir ao dono da obra desistir da empreitada a qualquer momento, ressalva a indemnização devida ao empreiteiro pelo trabalho e gastos efectuados. Mas, no caso dos autos, a ré não provou que tivesse efectuado os trabalhos previstos nos dois primeiros orçamentos. O único facto relativo a esta matéria é o que consta no ponto nº15 dos factos provados, ou seja, que a autora estranhou o silêncio da ré e em 27/08/2012 contactou-a, tendo esta comunicado que o carro estaria novamente em diagnóstico, pois teria “dado avaria” logo após a reparação efectuada. Este facto não é suficiente para se concluir que foi feita qualquer reparação, pois nele apenas consta o que, na altura, foi comunicado à autora. Ignora-se, assim, se foram efectuados os trabalhos previstos nos dois primeiros orçamentos e sendo certo que a ré, na sua contestação, apenas refere que foram realizados trabalhos que têm de ser pagos, mas não indica nem discrimina os trabalhos efectivamente realizados, não tendo cumprido o ónus da prova que lhe incumbia, nos termos do artigo 342º do CC. Sendo incontornável que foi absolutamente abusivo o desmantelamento do veículo sem a autorização da autora e que esta nada tem a pagar dos terceiro e quarto orçamentos, igualmente não ficou provado que a ré tivesse efectivamente realizado os trabalhos dos dois primeiros orçamentos, razão pela qual a recusa de entrega do veículo é ilícita a partir da data da recusa da não aceitação do terceiro orçamento, em 20/09/2012 (ponto 36 dos factos) e geradora de responsabilidade civil, caso se verifique a existência de prejuízos (artigos 798º e 799º do CC) Para se apreciar se a não restituição do veículo pela ré causou prejuízos à autora e à interveniente, haverá que atender à teoria da diferença, por força da qual e nos termos do artigo 562º do CC, a indemnização deve reconstituir a situação que existiria, caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, atendendo-se ainda ao disposto no artigo 566º nºs 1 e 2, segundo o qual, não sendo possível a reconstituição natural, a indemnização é fixada em dinheiro, tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos, dispondo ainda o nº3 do mesmo artigo que: “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”. No caso dos autos ficou provado que a autora utilizava o veículo em causa como viatura da administração, não só para uso pessoal do Presidente do Conselho de Administração, mas também para serviço de apoio a clientes e parceiros internacionais (pontos 2 e 3 dos factos). Por seu lado, a interveniente, no articulado que apresentou, no incidente de intervenção espontânea, declarou expressamente fazer seus todos os articulados da autora, tendo-se provado que o presidente do conselho de administração da autora e o administrador da interveniente são a mesma pessoa (pontos 43 e 44 dos factos). Destes factos, ou seja, do uso pessoal dado ao veículo pelo presidente de administração da autora, da transmissão do veículo à interveniente, que tem o mesmo administrador e fez seus os articulados da autora e atento ainda aos artigos 349º e 351º do CC, é de presumir que, ao ser transmitido o veículo, foi mantida a intenção de o mesmo ser usado pela interveniente para o mesmo fim. Verifica-se, portanto, uma frustração de gozo que, apesar de não existência de discriminação dos danos concretos, é suficiente para constituir o lesante em responsabilidade civil, devendo recorrer-se à equidade, ao abrigo do artigo 566º nº3 do CC para a fixação do montante da indemnização – neste sentido acórdãos RL 20/04/2010, p. 7894/05 e RP 12/04/2011, p. 273/09, ambos em www.dgsi.pt. Deverá assim ter-se em conta as circunstâncias apuradas em cada caso concreto, relevando na situação dos autos os pontos 37 e 38 dos autos, onde consta o valor diário de aluguer de uma viatura da gama do veículo em causa e de uma viatura de gama média, respectivamente de 100,00 euros e de 60,00 euros diários. Tendo em atenção, por um lado o comportamento abusivo da ré exigindo o valor de orçamentos não aceites (o terceiro e o quarto) e depois de ter desmontado o veículo sem autorização da autora e, por outro lado, que o veículo funcionava, mas não em perfeitas condições (ponto 33 dos factos), entende-se ser adequada uma indemnização diária de 30,00 euros diários, devida à autora desde a data de recusa do terceiro orçamento até à transmissão do veículo à interveniente e devida a esta desde a aquisição do veículo e até à sua restituição pela ré. Procedem, pois, parcialmente, as alegações de recurso. DECISÃO. Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, se decide: a) Condenar a ré a pagar à autora a quantia diária de 30,00 euros (trinta euros) desde 20/09/2012, até 16/10/2013. b) Condenar a ré a pagar à interveniente a quantia diária de 30,00 euros (trinta euros) desde 17/10/2013, até à efectiva restituição do veículo ordenada na sentença recorrida. Custas por ambas as partes na proporção dos decaimentos. 2016-06-22 Maria Teresa Pardal Carlos Marinho Anabela Calafate
Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO. A…, SA intentou contra M…, Unipessoal, Lda a presente acção declarativa com processo sumário, alegando, em síntese, que, no exercício da sua actividade comercial, utiliza várias viaturas da sua propriedade, entre as quais o veículo Mercedes Benz 500 SEC, com a matrícula …, a qual, por apresentar uma avaria que consistia em o motor se desligar depois de aquecer, só voltando a funcionar depois de arrefecer, foi entregue na oficina da ré para reparação, tendo esta apresentado dois orçamentos para reparação que a autora aceitou, mas protelando a ré a execução da reparação, veio apresentar um terceiro orçamento de valor muito superior que a autora recusou imediatamente, desistindo da reparação e reclamando a restituição do veículo, o que a ré não satisfez, comunicando que havia desmontado o veículo e remetido as peças para diagnóstico, procedimento que nunca havia sido autorizado pela autora, já que ambas haviam acordado que qualquer intervenção no veículo teria de ser expressa e pontualmente autorizada pela autora, acabando a ré por apresentar um quarto orçamento para ser montado o veículo, recusando-se a restitui-lo à autora sem que esta lhe pague, pelo menos, os dois primeiros orçamentos, o que a autora não aceita. Concluiu pedindo a condenação da ré a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o veículo e a restitui-lo, bem como a pagar-lhe a quantia diária de 60,00 euros por cada dia de paralisação do veículo desde a data em que o terceiro orçamento da autora foi recusado, até à efectiva restituição, que ascende, à data da propositura da acção, a 4 800,00 euros. A ré contestou impugnando a versão apresentada pela autora e alegando que efectuou trabalhos no veículo que têm custos e que a autora se recusa a pagar, sendo certo que não estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil da contestante. Concluiu pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido. Feito o saneamento dos autos, veio intervir nos autos S…, Lda, que, alegando ter adquirido o veículo na pendência da acção, fez suas todas as peças processuais apresentadas pela autora. Procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a reconhecer o direito de propriedade da interveniente sobre o veículo e a restituir-lho no estado em que se encontrava aquando da sua entrega para reparação, absolvendo a ré do pedido de restituição do veículo à autora e do pedido de pagamento à autora e à interveniente da quantia diária de 60,00 euros, desde a data em que foi recusado o terceiro orçamento, até à restituição do veículo. Da absolvição do pedido de pagamento de indemnização pela privação de uso do veículo, foi interposto recurso e, nas alegações, foram formuladas conclusões com os seguintes argumentos: - As recorrentes não se conformam com a decisão recorrida, na parte que não condenou a ré a pagar uma indemnização pela paralisação do veículo. - As recorrentes entendem que a simples privação de uso resultante da retenção ilegal da ré, por si só, constitui um dano indemnizável, independentemente do uso que se faça ou não do bem em causa, pois impede o exercício dos direitos inerentes ao direito de propriedade, previstos no artigo 1305º do CC. - As autoras alegaram e provaram que o veículo tinha utilização por parte da administração da empresa, já que a dita viatura era utilizada para o transporte dos seus administradores e até de visitas e parceiros internacionais, estando demonstrado o prejuízo indemnizável, de acordo com a jurisprudência dos nossos tribunais superiores. - Considerando que ficou provado que o valor do aluguer diário de uma viatura de gama média ascende a 60,00 euros diários, entendem as recorrentes ser este um valor justo e equitativo, considerando que o veículo em causa, Mercedes 500 SEC é um veículo de gama alta, facto de conhecimento notório. - Como o seu comportamento, que já dura há mais de três anos, a ré tem impedido as recorrentes de exercer o seu direito de gozo, fruição e possibilidade de disposição da viatura em causa, pelo que se impunha a fixação de indemnização equitativa nos termos do artigo 566º nº3 do CC. A recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso, alegando ainda que, mesmo que seja considerado ser devida a indemnização, a mesma deverá ser devida apenas à interveniente, porque apenas esta recorreu da sentença. O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo. As questões a decidir são: I) Questão prévia, levantada nas contra-alegações, sobre a autoria do recurso. II) Indemnização pela privação de uso do veículo. FACTOS. A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: 1. A A. é uma sociedade comercial que se dedica, além do mais, à produção, comercialização e instalação de aparelhos de ar condicionado industriais. 2. No exercício da sua actividade comercial a A. utiliza várias viaturas de sua propriedade, entre as quais, o Mercedes Benz 500 SEC, com a matrícula …. 3. Esta viatura, propriedade da A., é por esta utilizada como viatura da Administração, não só para uso pessoal do Presidente do Conselho de Administração da A., mas também para serviço de apoio a clientes e parceiros internacionais, sempre que estes se deslocam ao nosso País e carecem de transporte profissional. 4. Em 5 de Setembro de 2011, a viatura sofreu uma avaria, que consistia no facto de o motor se desligar sempre que, após funcionar algum tempo, o motor atingia temperaturas notoriamente elevadas. 5. A Ré por sua vez, é uma empresa que se dedica à reparação, assistência técnica e comércio de viaturas de marca Mercedes Benz. 6. Para desempenho da sua actividade, a Ré possui pelo menos as instalações oficinais de Sintra, situadas na …, em Sintra. 7. Em face da avaria do referido carro da A., esta enviou-o para reparação para as instalações oficinais da Ré, da …, em Sintra, onde o mesmo foi por esta intervencionado. 8. Após a referida intervenção oficinal da Ré, esta devolveu a viatura à A., pensava-se reparada e apta a funcionar plenamente, cobrando para o efeito uma factura de 2.258,16 Euros, que a A. pagou. 9. A viatura foi funcionando de forma aparentemente satisfatória, durante quase um ano até que, em Agosto de 2012, voltou a evidenciar a mesma avaria. 10. Por essa razão, foi a viatura novamente entregue nas instalações da Ré da referida …, a 20 de Agosto de 2012, para reparação. 11. Quando da entrega da viatura, a A. expressou de imediato o seu desagrado pelo facto de a viatura acusar a mesma avaria do ano anterior, quando foi entregue à Ré, pela primeira vez para reparação. 12. A A. voltou a entregar o carro para reparação, reiterando que “o motor desliga-se em andamento e depois só volta a “arrancar” depois de esfriar o suficiente”. 13. Recebida a viatura da A., a R. de imediato apresentou-lhe um primeiro Orçamento com o número 91788, para reparação no valor de 392,29 Euros, datado de 23 de Agosto de 2012. 14. A A. apesar de contrariada, por entender que se tratava da mesma avaria do ano anterior, acedeu de pronto, a que a Ré procedesse à reparação da sua viatura, ao abrigo deste primeiro orçamento. 15. Estranhando o silêncio da Ré, em 27 de Agosto de 2012, a A. contactou os Serviços da Ré, instando-os sobre a reparação da sua viatura, sendo então afirmado por estes, que o carro estaria novamente em diagnóstico, pois teria “dado avaria” logo após a reparação efectuada. 16. A 3 de Setembro de 2012, recebe a A. um segundo orçamento da Ré, com o número 92166, no valor de 145,69 Euros, para realização de verificações do Motor, o que foi novamente aceite. 17. Inconformada já com este procedimento da Ré, a A. deu instruções a um seu colaborador para insistir junto da Ré pela reparação, pois a viatura estava parada, havia demasiado tempo. 18. A A. enviou um e-mail a 17 de Setembro de 2012, comunicando por escrito o seu profundo desagrado. 19. No seguimento das insistências da A., de frequência diária, a R. apresentou em 19 de Setembro de 2012, um terceiro Orçamento sob o número 92829, para reparação da viatura, no valor de 7.992,27 Euros, que a A., de imediato recusou. 20. A A. desistiu dos seus serviços de reparação e exigiu a devolução da viatura no estado em que se encontrava, aquando da sua entrega em 20 de Agosto de 2012. 21. A Ré recusou a devolução da viatura sem que fosse pago o valor correspondente aos serviços de diagnóstico (montagem e desmontagem da viatura). 22. No dia 10 de Outubro de 2012, após mais um contacto da A., que perguntava quando poderia proceder à recolha da viatura, a R. respondeu não ser ainda possível, já que “as chefias” estavam reunidas e a “tratar do assunto”. 23. No dia seguinte, a 11 de Outubro, quando contactados de manhã e à tarde, pela A., insistiram os serviços da R. com a mesma resposta. 24. Quando informados de que a A. havia desistido da reparação, face ao valor do orçamento 92829, os serviços da R. responderam que haviam desmantelado a viatura e remetido as peças para diagnóstico. 25. A A. desconhecia que a R. havia desmontado o seu carro sem que para tal estivesse autorizada. 26. A A. nunca autorizou a R. a desmontar a sua referida viatura. 27. A A. logo após a apresentação do primeiro orçamento, de imediato comunicou à R. que qualquer intervenção na viatura deveria ser expressa e pontualmente autorizada, o que, aliás foi aceite pela R.. 28. Foi a com grande surpresa e indignação que a A. tomou conhecimento da atitude da R., quanto esta lhe disse que para a A. levantar o carro, teria de mandar um reboque para carregar as peças do carro, já que este estava totalmente desmontado. 29. A A. insurgiu-se contra esta atitude e exigiu de imediato e mais uma vez, a devolução da viatura, tal como esta tinha sido entregue, e que era “com avaria, mas a circular”, ao que a R. respondeu que isso só seria possível mediante deliberação expressa “das chefias”. 30. No dia 12 de Outubro de 2012, a A. voltou a contactar a R. insistindo na devolução da viatura, reinsistindo, no dia 15 de Outubro de 2012, recebendo sempre a mesma resposta, de que a R. estaria a aguardar uma tomada de posição por parte das suas “chefias”. 31. A R. envio de um 4º Orçamento, agora no valor de € 1.233,47, desta vez, para montar o carro, colocando-o na situação em que o mesmo se encontraria a 20 de Agosto de 2012, de forma que o carro pudesse circular com o fazia antes de ser entregue para reparação. 32. A Ré inscreveu neste Orçamento, que o mesmo se destinava a novas verificações de mecânica da viatura conforme documento 7 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente por reproduzido. 33. O carro da A. quando foi entregue à R. funcionava, com a referida deficiência, apesar de se imobilizar quando o motor atingia temperaturas muito elevadas. 34. A A. recusou o Orçamento nº4 por ter proibido peremptoriamente qualquer intervenção no carro sem a sua prévia e expressa autorização e exigiu como o fez várias vezes, a imediata devolução da viatura, no estado em que se encontrava a 20 de Agosto de 2012. 35. Face à intransigência da A., que exigia e exige a devolução da sua viatura, a R. recusou tal entrega, retendo a viatura na sua posse, a menos que a A. lhe pague, pelo menos, os dois primeiros Orçamentos, o que a A. agora recusa. 36. A A. recusou o orçamento a 20.09.2012 e exigiu a viatura nessa data. 37. O valor diário de aluguer de uma viatura de gama alta, como é a da viatura da A., ultrapassa os € 100,00. 38. O valor diário de aluguer de uma viatura de gama média corresponde a cerca de €60,00 (sessenta euros). 39. O orçamento nº4 destinava-se a colocar o veículo na situação anterior às intervenções levada a cabo pela R. 40. Os trabalhos de desmontagem e montagem de peças, designadamente em veículos automóveis, implicam custos. 41. A montagem e desmontagem de um motor de um veículo é um trabalho que requer especial cuidado. 42. Desde 17-10-2013 que o veículo com a matrícula 54-76-CC é da propriedade da interveniente espontânea S…, Lda. Nos termos dos artigos 607º nº4 e 663º nº2 do CPC, haverá ainda que atender que: 43. O Presidente do Conselho de Administração da autora é AT… (certidão do registo comercial da autora de fls 17 e sgts e procuração de fls 112 conferida ao mandatário judicial da autora pelo seu presidente do conselho de administração). 44. O administrador da interveniente é AT… (requerimento e procuração de fls 130 conferida ao mandatário da interveniente pelo seu administrador). ENQUADRAMENTO JURÍDICO. I) Questão prévia da autoria do recurso. A recorrida, nas suas contra-alegações, vem alegar que o pedido de indemnização por paralisação do veículo não poderá proceder relativamente à autora porque apenas a interveniente recorreu. Porém, não está correcta esta afirmação, pois o recurso foi interposto pela interveniente e pela autora. Na verdade, o cabeçalho do requerimento de recurso está subscrito pelo mandatário judicial que representa a autora e a interveniente e nele consta “S…, Lda e outros, A. nos autor acima identificados, na acção que movem contra a ré M… Unipessoal, Lda, não se tendo conformado com a douta decisão neles proferida a fls… e seguintes, vêm da mesma interpor recurso, ao abrigo do disposto nos artigos (…)”. Embora com redacção não muito rigorosa, é manifesto que o recurso não é interposto apenas por uma entidade, sendo referida a expressão “outros” e sendo utilizado a primeira pessoa do plural na conjugação dos verbos, não só neste cabeçalho, mas também ao longo das alegações, onde se menciona também repetidamente “as autoras” ou “as recorrentes”. Aliás, a autora manteve a sua legitimidade na acção depois da intervenção principal da S…, não só porque nunca chegou a ser promovido o incidente de habilitação previsto no artigo 356º do NCPC (anterior artigo 376º), mas também porque, apesar de ter transmitido o veículo para a interveniente, tem legitimidade para pedir indemnização por prejuízos que tenham ocorrido até à data da transmissão. Deverá, portanto, ser apreciado no presente recurso o pedido de indemnização relativamente à autora. II) Indemnização por privação de uso do veículo. Na presente acção é pedida a restituição de um veículo automóvel, registado primeiro a favor da autora e, a partir de 17/10/2013, a favor da interveniente (pontos 2 e 42 dos factos), que a ré mantém em seu poder e se recusa a devolver. A sentença recorrida entendeu que as partes celebraram um contrato de empreitada previsto nos artigos 1207º e seguintes do CC, mediante o qual a ré se comprometeu a reparar uma avaria do veículo mediante o pagamento da contrapartida e que, ao ser apresentado o terceiro orçamento à autora, esta desistiu da empreitada, como lhe era legítimo fazer, ao abrigo do artigo 1229º do mesmo código. Entendeu ainda a sentença recorrida que foi abusivo o comportamento da ré ao desmontar o veículo sem a autorização da autora e que esta não estava obrigada a pagar as despesas devidas por este procedimento, não sendo devidos os valores do terceiro e quarto orçamentos apresentados pela ré. Concluiu então a sentença recorrida que a ré estava obrigada a restituir o veículo à autora, mas que esta estaria obrigada a pagar os dois primeiros orçamentos, que corresponderiam a trabalhos efectivamente realizados pela ré; mais concluiu a sentença recorrida que não seria aplicável o artigo 754º do CC, ou seja, o direito de retenção, porque a ré não o teria invocado expressamente e condenou-a a restituir o veículo à interveniente. Entendeu, finalmente, a sentença recorrida que não há lugar à indemnização por privação de uso porque não estão demonstrados prejuízos pela imobilização do veículo. Constituindo o objecto do presente recurso saber se é ou não devida a indemnização pela imobilização do veículo, vejamos então se a ré está ou não obrigada a este pagamento. A restituição do veículo tem como fundamento a cessação do contrato de empreitada por legítima desistência e os artigos 1305º e 1311º do CC, ou seja, o direito de propriedade sobre o veículo e o direito do proprietário à sua restituição como consequência de detenção não titulada de terceiro. Assim, desde logo, para haver responsabilidade civil da ré por prejuízos sofridos com a retenção do veículo, é necessário saber se tal retenção foi lícita. Ora, ao contrário do que refere a sentença recorrida, os factos provados não levam à conclusão de que a autora está obrigada a pagar os dois primeiros orçamentos. É certo que o artigo 1229º do CC, ao permitir ao dono da obra desistir da empreitada a qualquer momento, ressalva a indemnização devida ao empreiteiro pelo trabalho e gastos efectuados. Mas, no caso dos autos, a ré não provou que tivesse efectuado os trabalhos previstos nos dois primeiros orçamentos. O único facto relativo a esta matéria é o que consta no ponto nº15 dos factos provados, ou seja, que a autora estranhou o silêncio da ré e em 27/08/2012 contactou-a, tendo esta comunicado que o carro estaria novamente em diagnóstico, pois teria “dado avaria” logo após a reparação efectuada. Este facto não é suficiente para se concluir que foi feita qualquer reparação, pois nele apenas consta o que, na altura, foi comunicado à autora. Ignora-se, assim, se foram efectuados os trabalhos previstos nos dois primeiros orçamentos e sendo certo que a ré, na sua contestação, apenas refere que foram realizados trabalhos que têm de ser pagos, mas não indica nem discrimina os trabalhos efectivamente realizados, não tendo cumprido o ónus da prova que lhe incumbia, nos termos do artigo 342º do CC. Sendo incontornável que foi absolutamente abusivo o desmantelamento do veículo sem a autorização da autora e que esta nada tem a pagar dos terceiro e quarto orçamentos, igualmente não ficou provado que a ré tivesse efectivamente realizado os trabalhos dos dois primeiros orçamentos, razão pela qual a recusa de entrega do veículo é ilícita a partir da data da recusa da não aceitação do terceiro orçamento, em 20/09/2012 (ponto 36 dos factos) e geradora de responsabilidade civil, caso se verifique a existência de prejuízos (artigos 798º e 799º do CC) Para se apreciar se a não restituição do veículo pela ré causou prejuízos à autora e à interveniente, haverá que atender à teoria da diferença, por força da qual e nos termos do artigo 562º do CC, a indemnização deve reconstituir a situação que existiria, caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, atendendo-se ainda ao disposto no artigo 566º nºs 1 e 2, segundo o qual, não sendo possível a reconstituição natural, a indemnização é fixada em dinheiro, tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos, dispondo ainda o nº3 do mesmo artigo que: “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”. No caso dos autos ficou provado que a autora utilizava o veículo em causa como viatura da administração, não só para uso pessoal do Presidente do Conselho de Administração, mas também para serviço de apoio a clientes e parceiros internacionais (pontos 2 e 3 dos factos). Por seu lado, a interveniente, no articulado que apresentou, no incidente de intervenção espontânea, declarou expressamente fazer seus todos os articulados da autora, tendo-se provado que o presidente do conselho de administração da autora e o administrador da interveniente são a mesma pessoa (pontos 43 e 44 dos factos). Destes factos, ou seja, do uso pessoal dado ao veículo pelo presidente de administração da autora, da transmissão do veículo à interveniente, que tem o mesmo administrador e fez seus os articulados da autora e atento ainda aos artigos 349º e 351º do CC, é de presumir que, ao ser transmitido o veículo, foi mantida a intenção de o mesmo ser usado pela interveniente para o mesmo fim. Verifica-se, portanto, uma frustração de gozo que, apesar de não existência de discriminação dos danos concretos, é suficiente para constituir o lesante em responsabilidade civil, devendo recorrer-se à equidade, ao abrigo do artigo 566º nº3 do CC para a fixação do montante da indemnização – neste sentido acórdãos RL 20/04/2010, p. 7894/05 e RP 12/04/2011, p. 273/09, ambos em www.dgsi.pt. Deverá assim ter-se em conta as circunstâncias apuradas em cada caso concreto, relevando na situação dos autos os pontos 37 e 38 dos autos, onde consta o valor diário de aluguer de uma viatura da gama do veículo em causa e de uma viatura de gama média, respectivamente de 100,00 euros e de 60,00 euros diários. Tendo em atenção, por um lado o comportamento abusivo da ré exigindo o valor de orçamentos não aceites (o terceiro e o quarto) e depois de ter desmontado o veículo sem autorização da autora e, por outro lado, que o veículo funcionava, mas não em perfeitas condições (ponto 33 dos factos), entende-se ser adequada uma indemnização diária de 30,00 euros diários, devida à autora desde a data de recusa do terceiro orçamento até à transmissão do veículo à interveniente e devida a esta desde a aquisição do veículo e até à sua restituição pela ré. Procedem, pois, parcialmente, as alegações de recurso. DECISÃO. Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, se decide: a) Condenar a ré a pagar à autora a quantia diária de 30,00 euros (trinta euros) desde 20/09/2012, até 16/10/2013. b) Condenar a ré a pagar à interveniente a quantia diária de 30,00 euros (trinta euros) desde 17/10/2013, até à efectiva restituição do veículo ordenada na sentença recorrida. Custas por ambas as partes na proporção dos decaimentos. 2016-06-22 Maria Teresa Pardal Carlos Marinho Anabela Calafate